Artigo de minha autoria publicado originalmente na Manduarisawa - Revista Eletrônica Discente do Curso de História da UFAM (v. 4, n. 1, 2020).
Disponível em:
https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/manduarisawa/article/view/7458
RESUMO
A
invenção do daguerreótipo, predecessor das modernas câmeras
fotográficas, criação do pintor e cenógrafo francês Louis
Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), revolucionou a prática de
registrar determinados momentos do cotidiano, fossem eles
particulares ou não, ao redor do mundo. Um novo leque de
possibilidades se abriu. Dentre esses registros estão os mortuários,
de pessoas no leito de morte ou no velório, que se popularizaram em
diferentes regiões. No presente trabalho buscou-se analisar a
prática das fotografias mortuárias na cidade de Manaus. Além dos
anúncios de serviços fotográficos publicados em periódicos da
segunda metade do século XIX, foi estudado um conjunto desses
registros fotográficos produzidos na cidade entre as décadas de
1900 e 1990, visando compreender a confecção e os significados dos
mesmos.
Palavras-chaves:
Fotografias;
Morte; Manaus.
ABSTRACT
The
invention of the daguerreotype, predecessor of modern photographic
cameras, created by the French painter and scenographer Louis Jacques
Mandé Daguerre (1787-1851), revolutionized the practice of recording
certain moments of everyday life, whether they were private or not,
around the world. A new range of possibilities has opened. Among
these records are the mortuary, of people on the deathbed or at the
wake, which became popular in different regions. In the present work,
we sought to analyze the practice of mortuary photographs in the city
of Manaus. In addition to the advertisements for photographic
services published in periodicals in the second half of the 19th
century, a set of these photographic records produced in the city
between the 1900s and 1990s was studied, with a view to understanding
their production and meanings.
Keywords:
Photographs;
Death; Manaus.
Representações imagéticas
da morte, o daguerreótipo e as fotografias mortuárias
Desde os
tempos mais remotos o homem buscou representar diferentes momentos de
sua vida. Nas cavernas Pré-Históricas, do período conhecido como
Paleolítico, que de acordo com pesquisas do historiador espanhol
Jorge Juan Eiroa García “es la etapa más larga de la historia
humana, desde la aparición de los primeiros seres humanos hasta el
final del Pleistoceno,
hace unos 10.000 años” (EIROA GARCIA, 2003, p. 43),
é possível encontrar desenhos que retratam o cotidiano de caça,
pesca, rituais e morte. Essa última etapa da vida sempre despertou
temores, crenças e representações, sentimentos que podem ser
compreendidos através da arqueologia funerária:
“La
Arqueología de la Muerte pretende investigar aspectos de la
estructura social a partir de las praticas funerarias, así como
o.tros aspectos antropológicos del grupo, ya que se parte de la
ideia de que las estructuras implícitas e.n las prácticas
funerarias expresan la realidad social o sus principios simbólicos
y, por tanto, constituyen una base potencial de estudio para obtener
información” (EIROA GARCIA, 2003, p. 60).
Além das
pinturas rupestres, os homens pré-históricos, sobretudo da fase do
Paleolítico, também representavam seus semelhantes falecidos com
objetos, sendo o principal deles o crânio. Georges Didi-Huberman,
historiador e crítico da arte francês, afirma que ele “[…] era
a parte do corpo que, na morte, não devia cessar de representar o
ser que o habitava” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 69).
O crânio era enfeitado, cultuado e guardado em respeito ao falecido.
Didi-Huberman encontrou essa prática em antigas culturas da Europa,
da América, da Ásia, da África, do Oriente Médio e da Oceania.
Uma das
representações imagéticas mais interessantes da Antiguidade são
os retratos mortuários de Fayum, cidade do Médio Egito. Datados dos
séculos I a.C. a III d.C., época da dominação grega Ptolomaica e
posteriormente da anexação pelo Império Romano, eram feitos sobre
tábuas de madeira de cedro, carvalho e cipreste, através das
técnicas de encáustica (pigmentos de cor diluídos em cera quente,
para dar brilho) e têmpera, sendo pintados ainda em vida e guardados
nas casas dos retratados. Após a morte destes, eram fixados nas
faces de seus caixões e sarcófagos.
O
tratamento dado ao corpo, mumificado, e os locais em que era
depositado, caixões e sarcófagos, eram elementos egípcios,
enquanto a arte dos retratos é greco-romana, com as figuras
expressivas, pintadas com detalhes fisionômicos, diferente da
frontalidade da arte egípcia, como pode ser visto na Figura 01. Nos
caixões e sarcófagos, lembrando a religião egípcia, figuras de
divindades como Anúbis, Hórus e Seth. Os retratos, na religião
romana, eram
peças importantes no culto aos ancestrais, lembrança das linhagens
patrícias, dos predecessores que continuariam a proteger os lares (VALTIERRA, 2017, p. 20-21).
Figura
01: Um dos vários exemplares dos retratos de Fayum. Fonte:
http://adrastuscollection.org/los-hechos-encera-jose-maria-cano-2/.
Acesso em 23/07/2019.
Na Idade
Média e mesmo na Idade Moderna, a morte foi largamente representada
nos memento
mori,
imagens e esculturas que lembravam as pessoas de sua condição
mortal. Os corpos eram representados em três estágios: vida, morte
e decomposição. Os transi,
tumbas com efígies do cadáver em decomposição, eram utilizados
pelas classes mais abastadas. Serviam para mostrar, como o nome
sugere, que a vida era uma transição de estados físicos.
A
historiadora da Arte Juliana Schmidt, em estudo sobre o imaginário
do cadáver em decomposição na Idade Média, afirma que esse tipo
de representação iconográfica, das etapas de deterioração do
corpo humano, tem relação com o contexto de grande mortandade em
que se vivia durante a Baixa Idade Média, marcado por epidemias como
a de Peste Negra. Dessa forma, “insiste-se
na exposição da podridão, em especial do abdômen – estufado ou
aberto e abarrotado de vermes exaltados, ou vazio, com as peles
penduradas” (SCHMITT, 2015, p. 84).
Um dos exemplares mais expressivos é o Transi
de René de Chalon
(Figura 02).
Figura
02: Transi
de
René de Chalon, do escultor francês Ligier Richier, circa
1544-1557. Fonte:
http://morbidanatomy.blogspot.com/2008/09/transi-de-ren-de-chalon-ligier-richier.html.
Acesso em 23/07/2019.
A invenção da fotografia, no
século XIX, revolucionou a forma do homem representar seu último
momento.
As
fotografias mortuárias surgem, na Europa, paralelamente à invenção
do daguerreótipo, predecessor das modernas câmeras fotográficas,
criação do pintor e cenógrafo francês Louis Jacques Mandé
Daguerre (1787-1851). Antes de sua popularização entre 1840 e 1860,
as pinturas mortuárias, mais conhecidas como mourning
portraits,
nas quais o morto era retratado em seu leito, eram os meios
utilizados, pelas classes mais abastadas, além das máscaras
mortuárias, para preservar a memória do falecido.
Dava-se continuidade a uma
prática antiga, a de perpetuar, através de uma imagem, o extinto.
Essa perpetuação da memória, a constituição de uma lembrança do
ente falecido, tornou-se mais realista com a invenção de Daguerre,
que “congelava” perfeitamente aquele momento. As fotografias
mortuárias se disseminaram rapidamente para outros continentes. Essa
expansão, de acordo com o Doutor em Ciências da Comunicação Paulo
César Boni, tem a ver com questões econômicas e práticas,
“pois
o custo de pinturas e máscaras mortuárias era alto; logo a
fotografia se tornou a forma mais barata e oportuna. Também a
reprodutibilidade técnica com a invenção da Carte de Visite, em
1854, por André Adolphe Eugène Disdéri, permitia o envio de
fotografias do morto a parentes distantes” (BONI, 2011, p. 293).
O fotógrafo francês André
Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889) foi um dos pioneiros na produção
e divulgação das fotografias mortuárias. Apesar de ter sido um dos
primeiros a trabalhar com elas, Disdéri manifestava um certo
estranhamento com essa prática:
“Por
nosso lado fizemos uma multidão de retratos após o falecimento, mas
confessamos com franqueza; com uma certa repugnância [...] Toda vez
que fomos chamados para fazer um retrato após falecimento, vestimos
o morto com as roupas que ele usava habitualmente. Recomendamos que
lhe deixassem os olhos abertos, sentamo-lo junto a uma mesa e, para
operar, aguardamos sete ou oito horas. Dessa maneira, conseguimos
captar o momento em que, tendo as contracções da agonia
desaparecido, era-nos possível reproduzir uma aparência de vida” (DUBOIS, 1993 Apud ALMEIDA, 2011, p. 07).
O contato
com o cadáver manifestava o estranhamento e mesmo a repugnância,
explica a historiadora Marcelina das Graças de Almeida. O que antes
era trabalho de pintores e moldadores de máscaras mortuárias,
ficava agora a cargo dos fotógrafos. No entanto, conforme a
historiadora, “[…] a montagem cênica, a preparação, aguardando
inclusive, um espaço-tempo para a dissipação das evidências da
morte permitiam, através do recurso fotográfico, encenar um
simulacro de vida” (ALMEIDA, 2011, p. 07).
Da Europa,
a prática das fotografias mortuárias chegou às Américas, à
África e à Ásia. O pesquisador norte-americano Jay Ruby
identificou que na América do século XIX existiam três estilos de
fotografias mortuárias: “Dois deles projetados para “negar a
morte”, isto é, para insinuar que os defuntos não morreram
realmente, e o terceiro que buscava revelar uma tentativa de retratar
os mortos como um objeto de dor circundado por entes queridos
enlutados” (RUBY, 2001, p. 97 Apud OLIVEIRA, 2015, p. 133).
Os dois primeiros estilos foram
por muito tempo os mais utilizados no período Vitoriano. Os
fotógrafos posicionavam os mortos em cenas cotidianas, em cômodos
da casa ou em cenários produzidos em estúdios, de forma a
transmitir a impressão de que estes não estavam realmente “mortos”.
O terceiro estilo retratava os mortos em seus caixões, rodeados por
membros da família e conhecidos. Esse terceiro estilo fotográfico
seria um dos elementos utilizados como recordação no processo de
enfrentamento do luto.
De acordo
com a Filósofa e pesquisadora da História da Arte Maria das Graças
Vieira Proença dos Santos, desde o início da década de 1830 o
francês Hercules Florence (1804-1879), radicado na capital do
Império Brasileiro, fazia experimentos na impressão de imagens. O
daguerreótipo, diz Proença, “[…] chegou ao Brasil em 1840,
trazido pelo abade Compte” (PROENÇA, 2005, p. 226).
Pouco mais de uma década depois de sua chegada, já fazia sensação
no Corte, sendo anunciado nos jornais locais:
“Daguerreotypo.
Novo
estabelicimento, entrada pela rua do Cano n. 52, esquina da rua dos
Ourives, tirão-se retratos desde as 8 horas da manhã até as 4 da
tarde, vão-se tirar retratos
de defuntos,
bem como de pessoas inhabilitadas a virem ao estabelicimento, por
preços razoaveis” (Grifo nosso. CORREIO MERCANTIL, RJ, 13/09/1857).
Algumas das
mais antigas fotografias mortuárias feitas no Brasil, de anjinhos
(crianças mortas), são de autoria do fotógrafo carioca Militão
Augusto de Azevedo (1837-1905), podendo ser encontradas no Museu
Paulista da USP. Elas foram analisadas pelo historiador Luiz Lima
Vailati em estudo sobre as representações e transformações da
percepção da morte infantil no Brasil no século XIX (VAILATI, 2007, p. 51-71).
Serão
analisadas no presente estudo onze fotografias mortuárias feitas em
Manaus entre as décadas de 1900 e 1990. Seis delas fazem parte de um
álbum de família, tendo sido cedidas por Eros Augusto Pereira da
Silva. Uma foi publicada em uma revista de colunismo social e as
quatro últimas, as mais antigas, encontradas em túmulos do
Cemitério de São João Batista.
Se têm o
conhecimento de que o recorte temporal do trabalho é deveras extenso
para um artigo, e que as fontes utilizadas não constituem um corpus
documental característico de uma abordagem serial da História, que
conforme o historiador José D’ Assunção Barros,
“Trata-se,
neste caso, de abordar fontes com algum nível de homogeneidade, e
que se abram para a possibilidade de quantificar ou de serializar as
informações ali perceptíveis no intuito de identificar
regularidades, variações, mudanças tendenciais e discrepâncias
reveladoras” (BARROS, 2012, p. 206).
No entanto,
não buscou-se dar por encerrada essa temática, mas contribuir para
uma compreensão inicial dessa prática e futuros trabalhos, que
poderão ser mais apurados na medida em que mais álbuns familiares
forem encontrados e divulgados.
Fotografias mortuárias em
Manaus
A prática
de fotografar pessoas mortas chegou na cidade de Manaus, na época
capital da distante Província do Amazonas, na segunda metade do
século XIX. É o que se concluiu através de anúncios de serviços
fotográficos compulsados em periódicos. Entre as décadas de 1860 e
1890 é possível encontrar, nas páginas desses jornais, brasileiros
e estrangeiros oferecendo seus serviços fotográficos, dentre eles o
de fotografar pessoas mortas.
Por volta
de 1864, Eduardo José de Souza, estabelecido na rua Formosa (atual
Theodoreto Souto), fazia fotografias pelos sistemas de ambrótipo e
cromótipo e, mediante ajuste especial (um adicional nos valores
estabelecidos), ia em casas particulares e também fotografava
pessoas falecidas. Além da fotografia, fazia retratos a óleo e
consertava “caixas de muzica e realejos com todo o esmero e
promptidão” (O CATEQUISTA, 30/01/1864).
Em 1867, anunciava-se que na casa do Major Tapajoz, na Praça
Tamandaré, tiravam-se fotografias pelos sistemas mais modernos, de
casas particulares e de pessoas falecidas. Da mesma forma que no
estabelecimento de Eduardo José de Souza, consertava-se “caixas de
musica, e realêjos, com todo o esmero e promptidão possível,
galvaniza-se a ouro por menos preço que em outra qualquer parte”.
A dúzia dos retratos custava 10 mil réis (AMAZONAS, 30/01/1867).
Nos anos
finais da Província e com o crescimento das atividades ligadas à
extração do látex, os serviços ofertados na capital tornaram-se
mais refinados para atender um público consumidor cada vez mais
interessado nas comodidades e praticidades do mundo moderno.
Francisco Candido Lyra, em 1888, oferecia seus serviços
fotográficos, das 8 da manhã às 16 horas, em seu ateliê
estabelecido na rua Marcílio Dias, além de também realizar viagens
periódicas para o interior do Estado, onde tinha clientes:
“Tirao-se
retratos de todos os tamanhos, em grupos, a oleonicraion, assim como
se executa qualquer trabalho fora da officina, como sejão: vistas de
chalets, retratos
de pessoas mortas,
e todo e qualquer trabalho pertencente à arte photographica, tudo
com e, maior perfeição, asseio e modicidade de preços” (Grifo nosso. JORNAL DO AMAZONAS, 22/07/1888).