sexta-feira, 21 de julho de 2023

Entrevista: Professor Dr. Bruno Miranda Braga

Bruno Miranda Braga nasceu em Manaus, Amazonas. Historiador e geógrafo, tem graduação em História pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte) e Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com especializações em Gestão e Produção Cultural pela UEA e Estudos Amazônicos pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi professor substituto na graduação em História da UFAM e pesquisador no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, no Projeto MASP Pesquisa. Atualmente é membro do Núcleo de Estudos em História Social da Cidade – NEHSC, da PUC-SP, e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38, cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen.

Primeiramente, muito obrigado por ter aceitado o convite para conceder essa entrevista, que faz parte de um projeto de conversas com historiadores amazonenses. Para iniciarmos, que tal você falar um pouco sobre sua origem e família?

Eu que agradeço o convite, Fábio. Então, eu sou manauara, filho de uma parintinense (por isso meu amor pelo Caprichoso, risos) e um manauara. Bem, minha mãe Sônia Miranda é professora de educação básica, foi por anos alfabetizadora e mais tarde graduou-se em Letras Língua e Literaturas Portuguesa e Espanhola. Hoje não exerce mais o magistério. Já meu pai, Valmir Braga, é funcionário público aposentado, foi industriário boa parte da vida, depois foi funcionário público do estado até se aposentar. Eu sou o filho caçula dos dois. Desde cedo quis ser professor, demorei a decidir as áreas da Licenciatura que queria, mas durante meus tempos de Ensino Médio, cursado no IEA, a opção pela História e pela Geografia se confirmou. Sempre friso que não era História ou Geografia, porém História e Geografia, e assim o fiz!

A escolha das carreiras de docente e pesquisador foi uma influência familiar, já que sua mãe foi professora?

É inegável que a escolha pelo magistério teve sim profunda ligação com mamãe que é professora. Reitero que desde muito cedo, ainda criança, escolhi o magistério como mister, motivado por minha mãe. Já a questão da pesquisa foi algo que surgiu ao longo da minha graduação em história. Quando adentrei a universidade meu desejo era me formar professor. Como todo calouro, não sabia o que era “ser/ter” lato sensu, strictu sensu, menos ainda como proceder em pesquisa. Ao final da graduação já após ter feito pesquisa para minha monografia, a pesquisa foi paulatinamente tomando vez em minha vida e carreira.

O vestibular é um dos momentos mais tensos na vida dos jovens, que enfrentam pressões da família e da sociedade. Muitos ainda não fazem ideia de qual área escolher. Como você encarou esse processo?

Comigo o mais difícil foi definir a aérea da Licenciatura. Já sabia que queria ser professor só não sabia de que: pensei em Pedagogia, Letras, Artes. Mas sempre na habilitação para o magistério. Sempre costumo dizer para os vestibulandos que o que mais importa é a sua realização e a sua inserção e seu gosto. Não adianta o aluno querer cursar Direito se não gosta de História ou de Ciências Políticas, ou querer cursar Medicina se não gosta de Biologia ou Anatomia. Então sempre destaco que o aluno deve considerar isso, o Ensino Médio em nosso país foi pensado para isso também, de apresentar um leque de ciências que no universo acadêmico são presença constante. Vale sempre a pena considerar suas vontades e gostos, até mesmo para no futuro não se frustrar com tanta matemática ou com tanta história na grade de seu curso. Uma dica que vale muito é verificar as grades curriculares, eu mesmo fiz isso, e dizia a meus colegas “meu curso não pode ter Matemática ou Química ou Física” que eram as temidas, por mim, exatas (risos). Então, vestibulando, veja as grades, se tem perfil para aquele métier, e considera muito sua vontade. Pois serão 4 ou 5 anos lendo, pesquisando e estudando aquela área. E se não for algo prazeroso acarretará sua eminente desistência.

A graduação é outro grande impacto. Nos deparamos com novos conhecimentos, novas abordagens, novas visões de mundo. Em outras palavras, somos praticamente desconstruídos. Conte-nos como foi o início de sua formação.

Interessante abrir um parêntese: como eu fiz duas graduações, cada uma teve um impacto diferente. Primeiramente cursei História. História de cara é um curso que a gente entra e pensa “mas cadê o Renascimento? Cadê a Segunda Guerra Mundial?” Aí vem Marc Bloch, Chartier, Boris Fausto e os autores/teóricos. Ai caímos por terra e vemos que a História por nós pensada é uma coisa, já a graduação é outra, aí começamos a aprender. Costumo dizer que sempre gostei de Teoria da História e Historiografia sem falar em História da Amazônia, tiveram assim disciplinas que foram para mim amadas, outras nem tanto (Medieval que o diga) mas de um todo a História nos impele a ser e ler mais! Creio que a leitura no Curso de História foi primordial para meu encantamento pela ciência. Adorava e ainda prezo muito em ler os textos, fazer comentários, enfim, sentir o texto. E isso fez e faz a História ser fascinante para mim. Durante a graduação foram muitos fichamentos, uns que dava raiva sim de ter de fazê-los, mas foram fundamentais. O exercício do historiador começa na nossa graduação com os fichamentos.

E por falar em textos e fichamentos, quais autores foram marcantes nesse período?

Essa pergunta é difícil viu… Muitos textos nos marcam seja pela complexidade seja pela facilidade. Mas vou te citar os que ainda hoje são referências quase em tudo que produzo: Apologia da História ou Ofício de Historiador, de Marc Bloch. A nossa Bíblia. A veemência do autor nesse texto, o amor pela História é atemporal, o capítulo da crítica histórica é para mim uma lição eterna de como ler documentos; A invenção do cotidiano I: artes de fazer, de Michel de Certeau. Tive uma dificuldade enorme em entender esse autor, mas a teoria dos “usos e práticas” me seduziu de uma maneira única, quando o autor fala em “resistência silenciosa” como sendo “mais perigosa que a barulhenta” me fez pensar que a história é sempre feita de lutas, mas que nem todos veem outros tipos de lutas e propostas de insurreições; Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias na Amazônia do século XIX – Patrícia Melo. O Capítulo intitulado “Bens e homens no mundo das águas” é para mim um dos maiores escritos sobre a história da Amazônia, me marcou muito, lembro que lemos na disciplina de Amazônia II, e dali em diante sabia que queria pesquisar o século XIX; A Ilusão do Fausto – Edinea Mascarenhas. Existem textos que não morrem. A Ilusão do Fausto é um deles. Obra revolucionária, quando li também em Amazônia II me confirmou a vontade de escrever algo sobre Manaus na Belle Époque, mas noutras perspectivas. Edinea nos brinda nesse texto de maneira ousada e comprometida.

Além dos célebres autores, é impossível passar pela academia sem ser marcado pelos professores e professoras, tanto positivamente quanto negativamente em alguns casos. Qual foram aqueles que você viu e pensou: quero ser assim quando crescer?

Sem dúvidas na graduação em História me marcaram os Drs. Arcangelo Ferreira e José Vicente Aguiar, ambos foram meus professores de História da Amazônia em diferentes temporalidades, e me ensinaram muito, sendo e fazendo. A Mestra Cristiane Manique foi quem me introduziu a Ciência histórica de fato. Foi minha professora de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Teoria da História e Laboratório do Ensino e da Pesquisa em História. Com ela em suas diferentes aulas aprendi o “grosso” da nossa ciência, como pesquisar e produzir a narrativa historiográfica, além do mais foi minha orientadora de Monografia histórica, marcando-me até o presente. Mestra Elisângela Maciel e Dra. Adriana Brito também me marcaram bastante. Mantenho ainda hoje boas relações com ambas se tornando amigas de profissão com muita cordialidade.

Você tem formação em História e Geografia, duas das principais ciências humanas, que mantém um diálogo bastante profundo. Como enxerga essa relação?

Penso que uma completa a outra e ambas completam a cultura e a sociabilidade. História se dedica aos homens no tempo, Geografia, os homens no espaço. Tempo e Espaço são indispensáveis para pensar as diferentes formas de ser/fazer da humanidade. São duas categorias presentes em qualquer pesquisa. Lembro que um dia num congresso sobre a História Indígena, a conferencista falou “assim como há uma história, há também uma geografia indígena”, parafraseando-a penso que para tudo há uma história e uma geografia, e isso concerne boa parte das ciências humanas e sociais que as duas disciplinas englobam. Sou suspeito pra falar de ambas, em minha formação as duas foram primaz para pensar e estruturar meu pensamento e vertente teórico-metodológico.

Até hoje você é lembrado por sua passagem como professor substituto na graduação em História da UFAM, tido como bastante atencioso aos alunos e com uma didática e domínio do conteúdo de dar inveja. Como foram as primeiras experiências como professor?

As minhas primeiras experiências como professor de história foram desafiantes e instigantes. Comecei ministrando aulas em um famoso curso preparatório para vestibular da cidade e ali, o domínio do conteúdo e da didática se tornam essenciais. Depois me tornei professor do Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, o PARFOR da UEA, e surgiram mais desafios: o PARFOR nos ensina muito, a dinâmica, o ritmo da viagem para o Alto Rio Negro, Alto Solimões, Calha Média do Solimões já se torna um desafio, então saber que tinham pessoas me esperando fazia-me querer ser mais, ensinar sendo, como eu gosto de apontar. Na UFAM eu concretizei no meu período de substituto uma tentativa de tornar as “disciplinas pedagógicas e didáticas” interessante aos alunos, uma vez que o curso é uma Licenciatura e muitos, ainda hoje pouco apreciam as disciplinas da formação docente, mais um desafio, fazer os alunos se interessarem pelas disciplinas didáticas. O resultado foi muito bom. Então assim, ao longo da minha breve (até aqui) carreira eu procurei e procuro verificar maneiras de ensinar sendo, a partir daí vem o domínio do conteúdo, a dinâmica, mas o ponto primevo é a didática, é pensar algo que os alunos pensem “poxa quero fazer isso quando eu lecionar”. Meus primeiros anos foram desafiantes, mas com o sentimento de estar feliz fazendo aquilo que sempre quis.

Sua dissertação de mestrado, Manáos uma Aldeia que virou Paris: saberes e fazeres indígenas na Belle Époque Baré 1845-1910, defendida em 2016, hoje é uma referência para os estudos sobre a constituição do espaço urbano de Manaus e as tentativas de apagamento e a resistência dos 'excluídos da história'. Percebo que ela dialoga com premissas postuladas por Edinea Mascarenhas Dias em a A Ilusão do Fausto, mas você buscou ir além. Qual foi o caminho trilhado em sua produção?

Sem sombras de dúvidas o proposto pelo clássico da nossa historiografia A Ilusão do Fausto da professora Edinea foi leitura inspiradora para tal feito. É uma história bem peculiar: tudo iniciou antes mesmo de eu estar na Faculdade de História. Ainda aluno no IEA, um dia olhando a Eduardo Ribeiro, a Cúpula do Teatro Amazonas e todo seu entorno das janelas da minha sala pensei “como seria isso aqui tudo no século de sua criação? Como os indígenas viviam aqui?” E fiquei com aquela questão, lembro que comentei com o professor Laerte, ícone das humanas no IEA sobre e ele me indicou o texto da professora Edinea. Li sem entender muito, era um garoto de 16 anos. Me fascinaram as imagens do texto. Já na faculdade tudo foi definido. O caminho seria o mesmo que Edinea definiu: não negar o Fausto, mas destacar que ele não foi para todos, porém todos estavam naquele espaço/tempo: indígenas, negros, escravizados, prostitutas, mendigos, doentes… o foco foi destacar o elemento indígena, que era o mais visível e o que mais tentavam esconder, porém o que mais permanecia. E na guisa da Edinea mostrar que “pobres” na Belle Époque manauara, era um termo genérico: era pobre o trabalhador urbano, o indígena, o negro, a prostituta, o doente, o migrante nordestino, o seringueiro, tudo que contrariava o belo, era pobre. E desse termo genérico, disse “vou focar nos indígenas e nos seus saberes e fazeres”, em diante tudo fluiu e foi acontecendo, começaram a aparecer nas minhas fontes indígenas de diferentes grupos, realizando diferentes coisas na cidade: sendo batizados, fugindo das obras da Igreja Matriz, tomando banho no Igarapé de São Vicente, atirando flechas no Porto, vendendo doces e “encantamentos” no Mercado, etc. A cidade estava assim para o indígena como este estava para a cidade.

Anos mais tarde você ingressou no doutorado em História na PUC-SP. Sua tese de doutorado Chão de vidas, rios de memórias: histórias indígenas do Amazonas Imperial 1845-1888, defendida em 2022, é monumental. Nela você buscou compreender o cotidiano indígena do Amazonas na época imperial, desnudando aquela ideia tradicional do 'índio genérico', como se cada comunidade não tivesse suas especificidades. Conte-nos como foi sua produção.

Foi desafiadora ao máximo. Eu sempre disse a mim mesmo que quando fosse cursar doutoramento seria com o propósito de responder antes de tudo inquietações minhas. Quando escrevi o projeto de tese me propus a compor não uma história, mas diferentes histórias que se encontravam num elemento comum: esse elemento comum eram as populações indígenas. Era uma inquietação particular em desvendar como eram/estavam os mundos indígenas no Amazonas Provincial. Se até antes nos séculos XVII E XVIII grandes historiadores já haviam mostrados os xamanismos, as lideranças, as práticas de cura e o cotidiano de diferentes etnias, me perguntava “cadê esse povo no XIX? É consenso entre os historiadores do Brasil Imperial que a questão indígena para aquele século ainda é um campo em plena construção, é algo em andamento. Nisso me filiei plenamente na História Indígena que usa de certa “sensibilidade antropológica” como diz o mestre John Manuel Monteiro, e a História Cultural, e procurei na minha tese fazer uma História dos sentimentos e sensibilidades indígenas, dei ao indígena além da voz protagonista, a ação de sujeito histórico. Sempre ouvimos falar que “os índios eram os braços do Amazonas provincial”, que “eles dependiam da província” e inverti a lógica: era a província que dependia dos indígenas para tudo: eles eram os trabalhadores das obras públicas, os guias dos rios e matas seja dos naturalistas, seja das expedições demarcatórias do Império e da Província, eles que dominavam o conhecimento das ervas e fármacos da floresta, dos peixes e frutos bons, do manejo do solo e das estações sazonais dos rios do Amazonas. Nessa lógica procurei entender como os indígenas trabalhavam, estudavam, lideravam, dançavam e festejavam. Para o Brasil oitocentista como um todo se criou uma coisa que chamo de “discurso da aniquilação” que simplesmente sumiu com os povos indígenas no XIX, atrelando a eles o estigma de “ociosos, vagabundos e preguiçosos” simplesmente pelo fato de seus fazeres serem a outros modos. Então busquei nas fontes dizer “quem eram eles”, dar nomes, aí me apareceram macuxi, wapixana, baré, werekena, parintintim, sateré, tikuna, matsé, e uma gama de povos. Procurei mostrar como cada um agia e demonstrava suas organizações. E isso está na fonte. E não precisamos, como muitíssimo bem disse John Manuel Monteiro “forçar a mão” para escrever essa história. Eles, os povos indígenas, estão nas fontes, tudo é uma questão de perspectiva de leitura e construção da narrativa. Logo me “casei” numa portentosa união com a antropologia e fiz História Cultural Indígena mostrando sobretudo sua presença em todo o Amazonas do oitocentos.

Você se define como um Historiador Cultural. A palavra cultura tem um peso fortíssimo, pois é polissêmica, dando margem a diversas interpretações e gerando debates acalorados. No entanto, sabemos que a História Cultural é um campo historiográfico que nos apresenta inúmeras possibilidades. Foi essa variedade de temas que lhe atraiu?

Então o campo da cultura é polissêmico por “abraçar tudo” como dizem alguns colegas de outras vertentes da História. As inúmeras possibilidades da História Cultural tendem a complementar os vazios do Político, do Econômico e do Social. O que mais me atraiu na História Cultural foi sua amplitude teórico-metodológica. Diferente de suas “irmãs mais velhas” como diz o historiador inglês Peter Burke, a História Cultural parte de um exercício semântico da sensibilidade: o exercício da narrativa historiográfica não tende apenas a destacar nomes, valores, monumentos e esfinges, mas verificar cheiros, sabores, rostos. Isso me seduziu na História Cultural: a possibilidade de escrever história pelos ritmos, pelas danças, pelos sentidos dos rituais indígenas, pelos rostos desses… então o que mais me atraiu e continua atraindo é essa possibilidade quase como que uma encantriz de narrar a partir de coisas que não estão grafadas, mas estão nas fontes, especialmente nas fontes imagéticas, que gosto muito de utilizar.

No início de 2022 você foi eleito membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38 cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen, tomando posse hoje. Fizeram parte dessa instituição pesquisadores renomados como Arthur Cézar Ferreira Reis, Mário Ypiranga Monteiro e Agnello Bittencourt. Quais são suas expectativas ao adentrar nessa casa centenária e de que forma pretende contribuir para sua aproximação com a comunidade?

Primeiro quero destacar a alegria e honra que é tomar posse de uma cadeira nesse estimado espaço da cultura e da pesquisa da nossa cidade, a mais antiga instituição do gênero. O IGHA está presente em todos os meus textos, trabalhos e pesquisas. Seu acervo é um dos que mais utilizo desde a monografia da licenciatura. A cadeira que passarei a me assentar era a que sempre quis: Karl von den Steinen, proeminente etnógrafo alemão que em nosso país muito contribuiu para o conhecimento dos povos indígenas. Sem dúvidas é um desafio estar a posteriori dos nomes que você citou pela carga grandiosa que as pesquisas destes nos legaram. Ainda hoje é quase inconcebível findar um curso de História sem ter lido algo de Arthur Reis, de Mário Ypiranga. É difícil estudar Amazônia e não ter lido Agnello. Estar no local que eles estiveram um dia é se apropriar e gerar novidades, uma vez que eles em seus tempos nos brindaram com essas novidades. A expectativa é grande e auspiciosa, pretendo junto ao Instituto potencializar aquilo que temos e ser/fazer mais, considerar a longevidade do IGHA é apontar para as vindouras realizações do Silogeu. Espero que estando ali a comunidade acadêmica e interessada em nossa história avance, seja e faça mais. Temos tanto a pesquisar e apresentar ainda sobre nossa capital e nosso estado. Então a expectativa é de cada vez sermos mais.

Quais são seus planos futuros?

Então a pesquisa é algo que nunca para, atualmente eu estou como Especialista Visitante do CNPq num projeto educacional do Museu da Amazônia MUSA, e está sendo uma experiência muito boa. Meu plano maior é voltar ao magistério, que é minha realização maior, voltar também a “amores que deixei no caminho” por conta da tese, ou seja, finalizar umas pesquisas que ainda não findei. Colaborar com o engrandecimento do IGHA, que passará a ser minha eterna casa de pesquisa histórica. E esperar, uma das coisas que aprendi ao longo dessa minha breve trajetória até aqui, é saber esperar. Não somos nós que escolhemos a ciência, é ela que nos escolhe e acolhe. Então esperar o que a história reserva a mim (risos).

Para finalizarmos, você é um historiador jovem, mas com uma bagagem cultural e experiência imensos. Quais conselhos você dá para aqueles que almejam ser historiadores?

Leia, reserve um tempo pra você, e se atualize! Ser historiador é estar aberto a muitas possibilidades e não fechar portas. Invista em você e no seu crescimento, faça cursos, adquira livros, participe de congressos, ouse. Para mim ser historiador hoje é ousar, é saber a partir da leitura da palavra mundo, como ensinou Paulo Freire, o que dizer, o que narrar e como narrar. Ousando construímos narrativas novas, conhecemos problemas novos e concebemos metodologias novas, então ouse! Vão te criticar, vão, mas também irão te aplaudir e dizer “olha ela fez isso, ele trouxe isso…” Sempre digo que o bom historiador lê muito e nessa leitura ele constrói aliados. A importância da leitura em nosso mister é conhecer, então leia, mesmo àqueles autores/teóricos que por alguma razão tu não concordas, leia. Logo, o conselho é leia, conheça, ouse e faça! Seja a diferença e construa uma boa narrativa histórica. Não invente, não caia em sensacionalismos, o bom historiador foge disso, mas, faça um texto que ao lerem as pessoas aprendam.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Como escrever um TCC de História

Pintura de Albert Anker, 1908.

Um dos momentos mais marcantes na vida de um acadêmico, sem dúvidas, é a escrita do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), também conhecido como monografia. Não é para menos, pois sem ele você não consegue colar grau, pôr as mãos no tão sonhado diploma e nem exercer uma profissão. Nesse texto pretendo dar algumas dicas de como escrever um bom trabalho final de História.

O QUE É O TCC?

De acordo com algumas universidades, como a Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), “O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) é uma atividade acadêmica obrigatória que consiste na sistematização, registro e apresentação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos, produzidos na área do Curso, como resultado do trabalho de pesquisa, investigação científica e extensão. O TCC tem por finalidade estimular a curiosidade e o espírito questionador do acadêmico, fundamentais para o desenvolvimento da ciência” (UFVJM, s. d.). Em síntese, no trabalho de conclusão de curso o acadêmico irá demonstrar, através de pesquisa, todos os conhecimentos adquiridos durante sua formação. Tudo o que aprendemos na graduação em História, como ler e analisar textos e documentos e pesquisar em arquivos, deve ser aplicado no TCC.

ESCOLHA E DELIMITAÇÃO DO TEMA

Os professores são unânimes nesse ponto: escolha um assunto que lhe agrade. Uma das piores coisas que se pode fazer é escrever sobre algo que você não gosta. Qualquer leitura, por mais simples que seja, se torna enfadonha quando o assunto abordado não nos interessa. Quantas disciplinas encaramos sem gostar, não é mesmo? Mas os créditos valem o sacrifício.

Ao entrar na graduação, preciso escolher logo de cara o assunto que vou abordar no TCC? Não, não se afobe. Temos, é claro, alguns casos de pessoas que já entram no curso decididas com o que vão trabalhar. Mas o mais comum é que a escolha vá se desenrolando ao longo dos períodos. E você tem todo o direito de mudar de opção. Ao entrar na graduação, tinha em mente falar sobre a história de Manaus. Escolhi falar sobre as origens de suas primeiras ruas. Ao ter contato com o livro História da Morte no Ocidente, de Philippe Ariès, optei por escrever sobre a proibição dos enterros nas igrejas e o surgimento dos cemitérios na capital. Exemplos de assuntos:

História da Igreja;

Historiografia;

História Política;

Questões de gênero;

História da Amazônia;

Na pesquisa histórica utilizamos dois tipos de recortes: espacial e cronológico. Eles servem para delimitar a pesquisa, pois é praticamente impossível darmos conta, por causa dos prazos, de abordar períodos muito longos. Imaginem só o trabalho hercúleo que seria falar sobre a História da Amazônia. É algo muito amplo que foge da nossa capacidade, pois são milhares e milhares de anos para serem analisados. Como solução, escolhemos dentro desse assunto um tema, estabelecendo limites. Ex: economia gomífera no Amazonas (1880-1920). E não precisa ser necessariamente um recorte de várias décadas, podendo ser analisados alguns poucos anos. Em meu TCC, Os mortos e suas moradas na terra dos Barés: o fim dos enterros nas igrejas e seus arredores e a construção do cemitério de São José, em Manaus (1848-1859), estudei um período de 11 anos, justificando o recorte por ter constatado que foi nessa época que surgiram os primeiros discursos contra os enterros tradicionais e quando foram construídos os primeiros cemitérios públicos da cidade.

O que um bom TCC de História precisa ter? Vejamos o que dizem alguns professores:

– "O objeto de investigação claro para o leitor e o recorte temporal"Profa. Dra. Keith Valéria de Oliveira Barbosa.

– "Um TCC precisa ter o objeto de pesquisa bem definido espacialmente e temporalmente. Isso já deve estar apresentado no título. Deve ter uma base teórica e metodológica que dialoguem, pois a escolha das fontes, a sua coleta e o seu tratamento precisarão estar fundamentadas"Profa. Dra. Kátia Cilene do Couto.

– "Um bom TCC de história precisa ter basicamente dois elementos: 1) uma leitura/revisão bibliográfica consistente, seja com quem você concorda ou discorda como autor; e 2) um plano de pesquisa bem elaborado, sejam as fontes primárias ou secundárias. Algo que defina ‘eu vou trabalhar com isso’!"Prof. Dr. Bruno Miranda Braga.

Escolhido o assunto e delimitado o tema, você deve se perguntar sobre a viabilidade da pesquisa. Tenho tempo? Qual sua relevância? Existem fontes e referências bibliográficas disponíveis? Se existirem, estão ao meu alcance (compra, troca e empréstimo de materiais e livros)? Esses são os principais pontos a serem avaliados antes do início do trabalho. Vejam abaixo algumas monografias de História publicadas nos últimos anos na UFAM:

Da Vida para a História: a crise de 1954 e a repercussão da morte de Vargas na imprensa manauara. Autora: Larissa Leite Colares. Ano: 2019.

Desde a época em que fazia curso preparatório a autora gostava de estudar a vida de Getúlio Vargas, principalmente a sua morte. Já na graduação, decidiu que sua monografia seria sobre a o impacto da morte de Vargas em Manaus, entrando em contato com o professor de Brasil Republicano, que decidiu orientá-la.

O Egito faraônico no período Armaniano (1352-1336 A. C.): Cultos, Diplomacia, Poderes e Problematizações. Autora: Inara Kézia Gama Araújo. Ano: 2021.

A autora vinha pesquisando esse tema em projetos de iniciação científica. Pensou em abordá-lo na monografia pensando na pluralidade que esse período representa na egiptologia.

ESCOLHENDO O (A) ORIENTADOR (A)

Baseado na minha experiência e nas conversas com amigos de curso, afirmo que existem dois tipos de orientador: anjos e carrascos. Os anjos são aqueles que lhe acolhem, respeitando suas escolhas e fazendo críticas e sugestões construtivas, indicando fontes e referências e contribuindo para a realização da pesquisa. As seções de orientação são bastante produtivas. Ele também cuida dos seguintes aspectos:

Ajuda na estruturação do trabalho;

Informa sobre as normas técnicas que devem ser obedecidas e as corrige;

Corrige e revisa o trabalho ao longo de sua execução;

Os carrascos, por outro lado, têm o prazer de depreciar a pesquisa de seus orientandos e, sempre que podem, dão uma de Mestre dos Magos (desaparecem quando mais precisamos). As seções de orientação parecem mais uma estadia no Purgatório. Lembro que, certa vez, quando fazia um projeto voltado para o estudo da Amazônia, a orientadora só queria aceitá-lo se incluísse o referencial teórico de sua formação, no caso Michel Foucault. Com a minha negativa, perdi a orientação.

Escolha um (a) orientador (a) que tenha afinidade com o assunto que você escolheu. E também com você. As sociabilidades são muito importantes na vida acadêmica. Muitas dores de cabeça serão evitadas dessa forma. Aliás, qual seria a lógica em escolher um especialista em História Social do Trabalho para lhe orientar em uma pesquisa sobre História Cultural no Brasil Colônia?

No entanto, por conta do grande número de trabalhos, pode ser que aquele professor que você esteja interessado não tenha mais vagas abertas. Isso acontece com frequência. Não desanime. Dialogue com o que foi escolhido, mesmo que não seja o que você esperava.

MONTANDO O PROJETO

MONOGRAFIA HISTÓRICA I

O TCC, ou monografia histórica, é dividido em duas partes: Monografia Histórica I e Monografia Histórica II. A primeira é o projeto do seu trabalho, e deve ter a seguinte estrutura: Introdução; Justificativa; Objetivos; Metodologia; Fontes; e Referências Bibliográficas.

A introdução, como o próprio nome indica, é a parte em que você introduz o leitor ao tema do trabalho, apresentando as questões norteadoras, fazendo uma revisão da literatura existente, apresentando as fontes que serão utilizadas e o referencial teórico. Na justificativa você deve, obviamente, justificar a importância de sua pesquisa para a comunidade científica e as contribuições que ela traz para a temática pesquisada. Observações:

Faça uma revisão consistente da literatura, mas não exaustiva. Lembre dos prazos. Escolha alguns dos principais autores e apresente suas perspectivas;

O mesmo ocorre com o referencial teórico. Não é necessário escolher um planetário de autores. Fique com os fundamentais: vai escrever sobre metodologia da pesquisa histórica? Não esqueça de Marc Bloch. Vai falar de história das mulheres? Tenha em mãos trabalhos de Michelle Perrot;

Os objetivos são divididos em objetivo geral e objetivos específicos. O objetivo geral é amplo e está relacionado com o problema da pesquisa: qual o objetivo principal do trabalho? Dica: use verbos de compreensão/aplicação como explicar, ilustrar e demonstrar. Os objetivos específicos são a ponte de acesso ao objetivo geral. Neles são utilizados verbos de análise como analisar, comparar, categorizar e compreender. O ideal é que sejam formulados um objetivo geral e dois ou cinco específicos.

Na metodologia devem ser abordados os procedimentos utilizados na condução da pesquisa: pesquisa de campo, revisão bibliográfica, entrevistas, pesquisa documental, levantamento fotográfico, estudo de caso etc.

Na seção fontes deve ser arrolada a documentação empregada: jornais, revistas, leis, decretos, requerimentos, certidões de nascimento e óbito, registros paroquiais, fotografias, relatórios municipais e estaduais e outros tipos de documentos. Nas referências bibliográficas são elencados os artigos, livros e obras consultadas.

MONOGRAFIA HISTÓRICA II

A Monografia Histórica II é o trabalho em si, contendo os resultados da pesquisa. Têm a seguinte estrutura: capa; folha de rosto; agradecimentos (opcional); resumo; resumo em língua estrangeira; lista de figuras (se forem utilizadas); sumário; introdução; desenvolvimento; considerações finais; fontes; e referências bibliográficas.

A capa deve contar o cabeçalho com o nome da universidade, do instituto e do departamento, o nome do autor, título, cidade e ano de entrega. A folha de rosto começa com o nome do autor, seguida do título e, abaixo, informações sobre o trabalho e o nome do orientador (a). Por último, cidade e data novamente. Em seguida temos o resumo, que deve ser um compilado do tema estudado, trazendo as questões que serão trabalhadas, o objetivo, metodologia empregada, as considerações finais e as palavras-chave (de 3 a 5). Ele deve ser feito novamente na próxima página, só que em língua estrangeira (inglês, espanhol e francês).

Na introdução, o tema deve ser apresentado, contextualizado e delimitado, bem como as questões que norteiam a pesquisa, os objetivos e a metodologia. Os capítulos que compõe o trabalho também devem ser expostos, só que de forma sucinta. O tamanho da introdução varia, mas geralmente a encontramos com extensão de 3 a 5 páginas. No final, ela vai depender do tamanho da pesquisa. No desenvolvimento são apresentados os resultados da pesquisa, divididos em capítulos. É recomendável que o trabalho tenha de 3 a 5 capítulos.

Conclusão ou considerações finais? É um termo que gera debate na academia. Uma parte da comunidade científica defende que são termos diferentes que possuem o mesmo significado. A outra afirma que considerações iniciais e conclusão possuem diferenças: as considerações finais indicam que não existe uma verdade única sobre a pesquisa. Novos pontos de vista podem ser lançados ao tema, fazendo surgir novos resultados. A conclusão, por outro lado, transmite a ideia de totalidade, verdade absoluta, ideia rechaçada nas ciências. Para as considerações finais, você deve recapitular, de forma geral e sucinta, o tema pesquisado, reapresentar a justificativa, a metodologia, os objetivos, as hipóteses e, por fim, os resultados.

Nas fontes devem ser listados os documentos utilizados (leis, decretos, requerimentos, certidões de óbito e nascimento etc) e, na bibliografia, os textos, artigos, teses, dissertações e monografias que foram consultados.

CONCLUSÃO

O TCC, ou monografia, não é um bicho de sete cabeças. Infelizmente se sabe que é grande o número de pessoas que saem do ensino médio sem saber redigir um texto, problema que aflora na hora de realizar trabalhos acadêmicos. Por isso a importância, na graduação em História, de disciplinas como Metodologia da Pesquisa Histórica, em que temos contato com o instrumental de pesquisa. Você não precisa escrever a nova Apologia da História para ser aprovado por uma banca. A grande maioria dos trabalhos de conclusão de curso, não só de História como de outras áreas, são revisões bibliográficas. Com um bom orientador, fontes e referenciais teóricos, é possível fazer um bom trabalho, ser aprovado e tornar-se historiador.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Conjuntos, condomínios e o problema de moradia em Manaus

Conjunto Cidade Nova, na zona Norte de Manaus. Fonte: Acervo da fanpage Manaus Sorriso.

Manaus, há tempos, sofre com um enorme deficit habitacional. A corrida da borracha entre 1880 e 1910 trouxe milhares de pessoas para a cidade, que passaram a viver em péssimas condições em cortiços. Essa situação piorou na época da crise, a partir de 1920, quando milhares migraram do interior para a capital em busca de melhores condições de vida, dando origem à Cidade Flutuante, um aglomerado de habitações no Rio Negro que chegou a ter 12 mil moradores. Existiram, deve-se mencionar, algumas vilas operárias, mas elas não atendiam a demanda existente. Entre as décadas de 1950 e 1960 o Estado apostou na construção de conjuntos habitacionais para amenizar o problema. O primeiro conjunto residencial da cidade foi o Conjunto Juscelino Kubitschek, localizado na extinta Praça General Carneiro, entre as avenidas Carvalho Leal, Codajás e Castelo Branco, no bairro Cachoeirinha, na zona Sul. Construído através do DAPS (Departamento de Assistência e Previdência Social) e da Construtora Lippi, no Governo de Plínio Ramos Coelho, foi inaugurado pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1957.

No Regime Militar, a Cidade Flutuante foi demolida no Governo de Arthur Cézar Ferreira Reis (1964-1967). Foram projetados dois conjuntos habitacionais para realocar parte – geralmente com melhor condição financeira – de seus habitantes: os conjuntos de Flores e Costa e Silva, construídos em 1967 e 1968, respectivamente, pela Companhia de Habitação do Amazonas (COHAB-AM). O grosso dos moradores recebeu uma ínfima ajuda financeira, dando origem a ocupações improvisadas em bairros como Compensa, São Lázaro, Crespo, São Jorge e Alvorada. Com a instalação da Zona Franca, em 1967, a população cresceu em grandes proporções com a vinda de trabalhadores do interior e de outros Estados. De acordo com o IBGE, a população de Manaus era de 175.343 habitantes em 1960. Em 1970 ela chegou a 314.197.

Um dos mais antigos conjuntos da cidade, voltado para as classes média e alta, faz parte do bairro Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul. Trata-se do Conjunto Isaías Vieiralves. Projetado pelo arquiteto Rubens Madela, foi construído pela Incorporadora Irmãos Valle Ltda, de Goiânia, especializada em apartamentos de luxo, e pela EMBRATEC – Empresa Técnica de Construções, responsável pela contratação dos funcionários. As primeiras residências foram entregues em 1970. Tinham pouco mais de 100m², 3 quartos, dois banheiros, garagem, quarto para empregada, área de serviço, sala ampla, sala de jantar e copa-cozinha. As obras foram concluídas em 1974. Seu nome é uma homenagem a Isaías Vieiralves (1884-1958), cearense de Sobral que veio para o Amazonas em 1914, estabelecendo-se como guarda-livros no rio Juruá e fundando em Manaus a Vieiralves Imobiliária S. A., uma das responsáveis pela venda de casas no conjunto. Manauense, Vila Amazonas, Ica Maceió e Haideya III são outros conjuntos existentes nesse bairro.

O bairro Dom Pedro, na zona Centro-Oeste, nasceu como um conjunto habitacional. As terras, que no início pertenciam a José Gabriel Rolim, foram adquiridas pelo empresário Isaac Benzecry, que posteriormente as vendeu para a Cooperativa Habitacional dos Trabalhadores de Manaus (COOPHAB – TRABAM), que iniciou em 1972 a construção do Conjunto Habitacional Dom Pedro I, nome dado em referência à comemoração dos 150 anos da Independência do Brasil, festejada naquele ano. A inauguração ocorreu em 20 de março de 1974. As obras foram realizadas pela construtora Flávio Espírito Santo. Posteriormente foi construído o Conjunto Dom Pedro II. Considerado um dos bairros nobres da cidade, é formado pelos conjuntos Dom Pedro I e II, Kyssia I e II, Déborah e pelos loteamentos Parque Jerusalém e Tropical. Nele estão localizadas a sede da Polícia Federal do Amazonas, a Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas (Fcecon), a Fundação de Medicina Tropical Alfredo da Mata (FMT), a Vila Olímpica, o Centro de Convenções (Sambódromo), a Delegacia Geral da Polícia Civil do Amazonas, o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas e a Secretaria de Estado da Juventude e Lazer.

Vista aérea do Conjunto Dom Pedro, na zona Centro-Oeste de Manaus. Fonte: Instituto Durango Duarte.

Ao longo da década de 1970 surgiram vários conjuntos, como o Ajuricaba, da Sociedade de Habitação do Amazonas (SHAM), na Alvorada; Bancários, da construtora Nóvoa e Cia Ltda., no Santo Antônio; Eldorado e Castelo Branco, no Parque 10 de Novembro, o primeiro a cargo da Soaplan – Sociedade Amazonense de Planejamento e Administração Ltda, e o segundo da SHAM; Coophasa, da Cooperativa Habitacional dos Subtenentes e Sargentos do Amazonas, no Nova Esperança; Parque das Laranjeiras, da ELA – Empresa Líder de Asses Ltda, em Flores; Petro e Tiradentes, o primeiro da A. Gaspar e o segundo a cargo da CERTAM – Companhia de Engenharia Ltda, no Aleixo; Ayapuá, erguido pela ARCA – Arquitetura e Construção do Amazonas, entre Ponta Negra e Compensa; e Santos Dumont, da A. Gaspar, no bairro da Paz.

Na Avenida Constantino Nery, no bairro Chapada, localiza-se o Conjunto dos Jornalistas. Iniciativa da Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP-AM) e da Cooperativa Habitacional dos Jornalistas Profissionais, com financiamento da Caixa Econômica Federal, foi idealizado no final da década de 1970 e construído pela construtora A. Gaspar entre 1980 e 1981. Cada apartamento possui 2 quartos, sala, banheiro, cozinha e área de serviço. A poucos metros dele encontra-se o Conjunto Tocantins, também construído pela A. Gaspar na década de 1980, sendo entregue em 1985.

O bairro Cidade Nova, na zona Norte, surgiu como um imenso conjunto através de planejamento habitacional feito no Governo de José Bernardino Lindoso em 1979. Ele foi criado para abrigar migrantes do interior e de outros Estados que vieram para a cidade trabalhar no Polo Industrial. Foi inaugurado oficialmente em 23 de abril de 1980. O nome Cidade Nova foi dado pois acreditava-se que o mesmo seria desmembrado da capital, tornando-se uma nova cidade que faria parte da Região Metropolitana de Manaus. Isso não ocorreu. O bairro é dividido em 24 núcleos e cinco subdivisões: Cidade Nova 1, Cidade Nova 2, Cidade Nova 3, Cidade Nova 4 e Cidade Nova 5. Em 1986 é inaugurado na Cidade Nova o Conjunto Manôa, construído pelo IPASEA e posteriormente pela SUHAB (Superintendência Estadual de Habitação) no Governo de Gilberto Mestrinho. Destinava-se a funcionários públicos.

O grosso da população, que entre 1980 e 1990 saltou de 642.492 para 1.010.544, não conseguiu moradia nos conjuntos. Foram feitas invasões, originando bairros como São José, Jorge Teixeira, Zumbi, Colônia Terra Nova e Cidade de Deus, nas zonas Norte e Leste, as principais áreas de expansão urbana nas últimas décadas.

Conjunto Viver Melhor, na zona Norte de Manaus. Fonte: divulgação.

Recentemente, o Governo do Estado, através da SUHAB e da Caixa Econômica Federal, construiu, na zona Norte, os conjuntos habitacionais Viver Melhor I e II, no bairro Lago Azul, e Viver Melhor III e IV, no bairro Colônia Terra Nova. Esses são apenas alguns exemplos do que foi feito até hoje para tentar sanar um problema urbano crônico, fruto da falta de planejamento de diferentes administrações municipais e estaduais. Observando boa parte desses casos, percebe-se que os grupos mais beneficiados com moradias foram as classes média e alta, enquanto os mais necessitados, que não podiam arcar com a compra dos imóveis, recorreram às ocupações irregulares para ter direito de habitar a cidade que ajudaram a construir.

Agora vejamos como se deu a construção de condomínios, símbolos da verticalização iniciada entre as décadas de 1970 e 1990, período marcado por significativos avanços nas técnicas construtivas, na otimização do uso do espaço urbano e pela busca, das classes média e alta, de novos modelos de habitação que oferecessem segurança, lazer e serviços de forma integrada.

A Avenida Getúlio Vargas foi uma das mais requisitadas para a construção de prédios residenciais. No início da década de 1960 foi erguido o Condomínio Edifício Palácio do Rádio, propriedade do radialista Josué Cláudio de Souza, da Rádio Difusora. Com pedra fundamental lançada em 1957, foi inaugurado em 1962. A construção ficou a cargo da Cointer Ltda. Ele fazia parte um ambicioso projeto denominado ‘Cidade do Rádio’, que previa a construção de três edifícios residenciais de 12 andares, contando com supermercado, piscina, playground, auditório e serviços de luz e água próprios. Ao lado da Policlínica Gilberto Mestrinho se situa o Condomínio Edifício Monte Carlo, de 18 andares, planejado pela Soaplan – Sociedade Amazonense de Planejamento e Administração Ltda e construído entre 1973 e 1984. O Condomínio Edifício Mônaco, na esquina com a rua 24 de Maio, começou a ser construído em 1973. Com as obras paradas por vários anos, foi concluído em 1984.

Condomínio Edifício Cidade de Manaus, construído na década de 1970. Fonte: Google Maps.

Na Avenida Eduardo Ribeiro estão alguns clássicos da década de 1970. O Condomínio Edifício Cidade de Manaus, na esquina com a rua 24 de Maio, foi projetado pelo arquiteto Ary Macedo e construído entre 1969 e 1972 pela Construtora América do Sul – CASUL. Inaugurado em 31 de março de 1973, possui 24 pavimentos. Do outro lado da esquina ergue-se outro gigante, o Condomínio Edifício Palácio do Comércio, construído pela Cia. Rio Branco de Engenharia e Comércio. Inaugurado em 1978, possui 23 andares. Em frente a ele temos o Condomínio Edifício Zulmira Bittencourt. Na esquina com a rua Saldanha Marinho situa-se o Condomínio Edifício Manaus Shopping Center. Com 20 andares, foi construído entre 1973 e 1976 pela Construtora Adolpho Lindenberg S. A. Em seu lugar existiu, entre 1913 e 1973, o Cine Odeon. No térreo funcionou o Studio Center, cinema da empresa de Adriano Bernardino. Na parte alta da avenida, em frente ao Ideal Clube, na esquina com a Monsenhor Coutinho, onde ficava o Palacete Miranda Corrêa, domina a paisagem o Condomínio Edifício Maximino Corrêa, de 20 andares, projetado pelos arquitetos Luís Carlos Antony e Fernando Pereira da Cunha, com incorporação da firma Grande Rio S. A. e construção executada entre 1971 e 1973 pela Construtora Santa Catarina. Os anúncios o descreviam como um prédio luxuoso, com apartamentos de 2 e 3 quartos, dependência para empregada, playground e piscina. Teve financiamento da TROPICAL – Companhia de Crédito Imobiliário, com repasse do Banco Nacional de Habitação (BNH). Foi inaugurado em 30 de novembro de 1973.

A poucos metros do Manaus Shopping Center, na Saldanha Marinho com a Costa Azevedo, está o Condomínio Edifício Rio Madeira, construído pela Construtora Novoa & Cia Ltda. entre 1970 e 1973. Possui 12 pavimentos e um centro comercial. Também é na Saldanha Marinho, na esquina com a rua Barroso, que fica o Condomínio Edifício Alfredo da Cunha, construído entre 1970 e 1977 pela construtora Sociedade de Obras Ltda. Têm 49 apartamentos e uma galeria comercial no térreo. Ainda na Saldanha, próximo da Avenida Getúlio Vargas, o Condomínio Edifício Beta, construído entre 1973 e 1977, destaca-se pelos seus amplos apartamentos que chegam a 150m². Nele residiram personalidades ilustres da sociedade amazonense, como o poeta e imortal da Academia Amazonense de Letras (AAL) Almir Diniz de Carvalho e o historiador Coronel Roberto Mendonça.

Entre o antigo Cine Polytheama e o Palácio Rio Negro, na avenida Sete de Setembro, estão dois interessantes condomínios: o Condomínio Edifício Antônio Simões, empreendimento da Novacasa Imobiliária Industrial Ltda., com financiamento da Amazon-Lar (Associação de Poupança e Empréstimo) na qualidade de agente financeiro do Banco Nacional de Habitação (BNH) e construído pela Construtora Artec entre 1969 e 1976; e o Condomínio Edifício Infante Dom Henrique, construído pela construtora A. Gaspar no final da década de 1970 e entregue em 1981.

Na tradicional Avenida Joaquim Nabuco, outrora endereço da burguesia durante a Belle Époque, o Condomínio Edifício David Nóvoa, na esquina com a rua Lauro Cavalcante, representa bem os esforços de modernizar a cidade nos primeiros anos da Zona Franca. Seu lançamento ocorreu em 27 de setembro de 1968. Com 17 pavimentos, foi construído entre 1968 e 1972 através de consórcio entre a Importadora Nasser Comércio e Engenharia, de Belém, e a Construtora Nóvoa Ltda., de Manaus. Na época de sua inauguração foi considerado o edifício mais luxuoso da cidade. Nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, na rua Miranda Leão, encontramos o Condomínio Edifício Bader Sadala, propriedade da tradicional família Sadala, cujo nome homenageia a matriarca Bader Sadala, natural do Líbano. Sua construção teve início em 1985, foi paralisada em 1987 e concluída em 1990.

Condomínio Edifício Bader Sadala. Fonte: Google Maps.

No início da avenida Constantino Nery, ainda no Centro, ao lado do Terminal de Integração I, chama a atenção o Condomínio Edifício Manoel José Ribeiro, um tanto maltratado. Construído entre 1987 e 1989 pela Construtora Plinic, possui 80 apartamentos. Na Leonardo Malcher estão dois edifícios construídos pelo engenheiro paulista Luís Carlos Nistal: o Condomínio Edifício Maria Beatriz, de 1991-1992; e o Condomínio Edifício Anaira, na esquina com a rua Tapajós, erguido entre o final da década de 1980 e início de 1990.

O Condomínio Edifício Simon Bolívar, em rua homônima, perto da Praça da Saudade, é um genuíno representante da verticalização ocorrida em Manaus na década de 1980. Foi construído entre 1984 e 1987 pela Construtora Rayol Ltda., do saudoso empresário Murilo Rayol. Um pouco mais distante dali, na rua Ferreira Pena, o Condomínio Edifício São João Del Rey destaca-se pelo alto padrão e amplos apartamentos. Sua construção se deu entre 1987 e 1989 pela Construtora Rayol Ltda.

Até aqui é perceptível como o Centro foi a área em que teve início a verticalização. Com a ausência de leis de proteção ao patrimônio histórico, muitos bens de época foram demolidos para dar lugar a edifícios residenciais. A partir da publicação de planos diretores e do Tombamento da região central, esse processo foi levado para outras zonas, principalmente as Centro-Sul e Centro-Oeste. Um dos bairros mais afetados foi o Parque 10 de Novembro, na zona Centro-Sul. Na Avenida Djalma Batista foi erguido o então luxuoso Condomínio Amazonas Flat, projetado pelo premiado arquiteto Severiano Mário Porto e construído pela Engecenter entre 1986 e 1991. Primeiro apart-hotel de Manaus, foi considerado um dos prédios mais modernos e luxuosos da época, com apartamentos de 1, 2 e 3 quartos, 2 piscinas, sauna, quadra de tênis, squash, central telefônica, centro comercial, garagem coberta e circuito de TV. Em poucos meses todas as unidades foram vendidas.

Atualmente, de acordo com o IBGE, a cidade possui um déficit de moradia de 105.587 habitações. Seria necessária a construção de 5 mil casas por ano. Manaus tem uma população de 2.219.580 habitantes, dos quais 195 mil vivem na extrema pobreza. A tragédia ocorrida no bairro Jorge Teixeira, causando oito mortes, é parte de uma lamentável e histórica ausência do poder público no que diz respeito a políticas de habitação pública. Faltam políticas ambientais, sociais e habitacionais sólidas. Quanto aos condomínios, estima-se que eles existam em número de 500, atendendo diferentes tipos de gostos e bolsos. Aos interessados em conhecer de forma aprofundada o problema de moradia na cidade e sua verticalização, recomendo as dissertações Habitar na cidade: Provisão estatal da moradia em Manaus, de 1943 a 1975, da historiadora Vládia Pinheiro Cantanhede; e Solo Criado: estudo sobre o processo de verticalização em Manaus, do geógrafo Fellipe Costa Barbosa.

Artigo publicado na coluna Memória JC, do Jornal do Commercio, em 04/04/2023, p. A5.

sábado, 4 de março de 2023

Ferreira Pena, a rua do Conselheiro

Rua Ferreira Pena. Foto: Google Maps.

Na primeira semana de fevereiro fui instado pela produtora cultural Loren Lunière para fazer um levantamento histórico sobre a rua Ferreira Pena, onde será realizado um animado bloco de Carnaval. Com este singelo trabalho buscou-se dar maior relevância cultural às festividades momescas, mostrando como diversão e conhecimento podem andar de mãos dadas.

A rua Ferreira Pena tem início na rua 10 de Julho, atravessando a rua Monsenhor Coutinho, avenida Ramos Ferreira, rua Simon Bolívar, avenida Leonardo Malcher, rua Silva Ramos, rua Tarumã, avenida Japurá, alameda Hortência, rua Barcelos e avenida Ayrão, e termina na avenida Álvaro Maia (Boulevard). No passado, quando a Geografia da cidade era bastante peculiar e com limites bem diferentes dos atuais, a rua Ferreira Pena fazia parte do antigo bairro da Campina. Analisando algumas plantas da cidade chegou-se a conclusão de que sua abertura se deu por volta de 1890.

Quem foi Ferreira Pena? O Conselheiro Herculano Ferreira Pena nasceu em 14 de janeiro de 1811 na cidade de Diamantina, na Província de Minas Gerais, e faleceu em 27 de maio de 1867 no Rio de Janeiro. De acordo com o historiador amazonense Agnello Bittencourt, em seu Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado (1973), pouco se sabe sobre seus primeiros anos de vida. Entre 1830 e 1832 foi Professor de Primeiras Letras na Escola Modelo de Ouro Preto. Junto à carreira docente, trabalhou em periódicos mineiros, como O Novo Argos, onde atuou de 1829 a 1834. Foi nomeado Secretário-Geral da Província de Minas Gerais pelo presidente Manuel Ignácio de Mello e Souza.

Em 1842 foi nomeado Presidente da Província de Minas Gerais. Posteriormente presidiu as províncias do Espírito Santo (1845-1846), Pará (1846-1847 e 1847-1848), Pernambuco (1848), Maranhão (1849), Amazonas (1853-1855), Minas Gerais (1856-1857), Bahia (1859-1860) e Mato Grosso (1862-1863). O Imperador o nomeou Senador pela Província do Amazonas, cargo que desempenhou entre 1855-1856, 1857-1860, 1861-1863, 1864-1866 e 1867-1867. Fez parte do Conselho de Sua Majestade. De acordo com os pesquisadores Vera Lúcia Nogueira e Dalvit Greiner de Paula, autores do artigo De professor público a Presidente de Província: anotações sobre a trajetória política de Herculano Ferreira Pena (1811-1867) (2017), ele foi o político que mais vezes foi nomeado para presidir províncias no Império.

Foi sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e membro da diretoria do Banco do Brasil. Por sua atuação como destacado político, foi fidalgo da Casa Imperial e dignitário da Ordem da Rosa. Foi casado com Francisca de Paula Freire de Andrade. Da união nasceram Isabel Herculana Ferreira Pena, Herculano Carlos Ferreira Pena, Herculano Velloso Ferreira Pena e Carlos Amazonio Ferreira Pena. Faleceu no Rio de Janeiro em 27 de maio de 1867, aos 56 anos.

Herculano Ferreira Pena (1811-1867). Foto: Acervo do IHGB.

O médico e historiador brasileiro Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, no monumental Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1970), registra que Ferreira Penna produziu os seguintes discursos e relatórios: Discussão do voto de graças, discurso lido na Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro em 23 de janeiro de 1850; Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas no dia 1° de outubro de 1853; e Exploração dos afluentes do Amazonas, de 1855, disponível na Biblioteca Nacional.

Na Ferreira Pena estão localizados alguns prédios de interesse histórico. O primeiro é o Palacete Mourisco, na esquina com a rua Simon Bolívar. Datado de 1908, foi construído em estilo mourisco para ser residência do empresário, engenheiro e arquiteto paraense Carlos de Castro Figueiredo (1865-1927), Gerente e sócio majoritário do antigo Banco Amazonense. Nele também residiu o teatrólogo e escritor paraense Benjamin Lima (1885-1948). O prédio funcionou, posteriormente, como sede de audiências do Juizado Federal do Amazonas; Departamento de Educação e Cultura; Gabinete do Vice-Governador; Reitoria da Universidade do Amazonas, atual UFAM; Secretaria de Estado de Segurança Pública; e, entre 1999 e 2008, Escola Superior de Magistratura do Amazonas (ESMAM). Atualmente pertence à Secretaria de Estado de Cultura, estando sem uso.

Na esquina com a avenida Ramos Ferreira fica o Palacete Afonso de Carvalho, construído entre 1907 e 1908 para ser residência do Coronel da Guarda Nacional Raimundo Afonso de Carvalho, que assumiu o Governo do Estado quando da renúncia de Constantino Nery em 1907. Nele foi instalado, em 1922, a Casa Doutor Fajardo, hospital infantil. O nome é uma homenagem ao médico fluminense Francisco de Paula Fajardo Júnior (1864-1906). Posteriormente funcionou como Faculdade de Engenharia da antiga Universidade do Amazonas, Junta de Alistamento Militar e escritório.

Palacete Mourisco da Praça da Saudade. Foto: Hyago Sena.

Nas proximidades da avenida Ramos Ferreira ergue-se majestoso o casarão da tradicional família Benzecry. Trata-se de um bungalow em estilo missão californiana, construído na primeira metade da década de 1940 por Joaquim José da Cunha para ser residência do Comendador Isaac Jacob Benzecry, um dos empresários mais prósperos da Manaus na época. A família Benzecry residiu nele até a década de 1990. Posteriormente funcionaram em suas dependências a Aliança Francesa, o Consulado da Venezuela, Conselho Tutelar e a Defensoria Pública da União. Ao lado dela fica o Bororó Bar, instalado em um belo solar do início de 1900 construído pela família Câmara.

Perto do prédio da Santa Casa de Misericórdia, na esquina com a rua 10 de Julho, está o antigo Museu Fernando Ferreira da Cruz, instalado em um prédio centenário e dedicado à preservação e divulgação da História do Hospital da Sociedade Beneficente Portuguesa do Amazonas. Foi inaugurado em 31 de outubro de 1997 com o nome Fernando Ferreira da Cruz (1909-1997), antigo sócio da instituição. Na esquina com a rua Monsenhor Coutinho encontra-se o casarão da família Nasser, de origem árabe. Foi construído no início do século XX, tendo funcionado no passado como Consulado do Japão.

Longe dali, no trecho mais “novo” da rua e representando o processo de verticalização do Centro da cidade na década de 1980, situa-se o Edifício São João Del Rey, condomínio de alto padrão construído entre 1987 e 1989 pela conceituada Construtora Rayol Ltda. Na esquina com a Avenida Álvaro Maia fica o deteriorado prédio do antigo Cine Palace, em atividade entre 1965 e 1973. Além dessas construções, ao longo da via encontram-se outras dezenas de casarões e palacetes.

Nos últimos anos a rua vem ganhando novos ares com a abertura de empreendimentos como clínicas, restaurantes e, principalmente, bares, instalados em charmosos prédios de época restaurados e bem cuidados, como é o caso do Jápeto Bar e Restaurante e do Bororó Bar – casa de gente Feliz. Que nesse Carnaval os foliões que passarem pela Ferreira Pena se atentem à grandeza dessa artéria.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Entrevista: Ed Lincon Barros Silva

Ed Lincon Barros Silva.

Ed Lincon Barros Silva, 53, nasceu em Manaus, na Maternidade Balbina Mestrinho, em 20 de julho de 1969, dia em que o homem pisou na lua. Pesquisa de forma autodidata a História de Manaus e de suas antigas salas de cinema desde 1984. É proprietário de um dos mais ricos acervos fotográficos e documentais da cidade, em parte reproduzido em fanpages na internet, em livros, revistas e jornais.

– Muito obrigado por conceder essa entrevista. Para começarmos, conte um pouco sobre você e sua família.

Sou filho de Aluízio e Arlete Barros Silva. Minha infância foi boa. Gostava de assistir desenhos e séries hoje considerados clássicos. Tive vários brinquedos. Joguei bola, empinei papagaio e brinquei de bolinha de gude. Só não joguei pião porque nunca soube usar. Fui nos balneários do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponte da Bolívia e Ponta Negra, quando esta era distante da cidade e cercada pelo mato. Estudei no Colégio Ângelo Ramazzotti, Escola Estadual Márcio Nery e Escola Estadual Ruy Araújo. Trabalhei 11 anos em uma empresa concessionária da Scania e Agrale. Também fui estagiário na Caixa Econômica e na Suhab. Atualmente trabalho em uma loja de informática.

- Quando e como surgiu o interesse pela História, especialmente a de Manaus?

Começou quando o meu pai e outras pessoas mais velhas me falavam sobre as coisas da Manaus de outrora, como os bondes, os cinemas, os prédios antigos, o Carnaval, os carros, os ônibus com carroceria de madeira, o Zeppelin, o Balneário do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponta Negra dentre outros assuntos. Isso despertou o desejo de saber mais sobre a História de Manaus que não ensinaram na escola, pois não existiam, naquela época, livros sobre o assunto. No começo foi difícil, já que não havia internet, e as únicas fontes de pesquisa eram os jornais e revistas da Biblioteca Pública e também livros de parentes e amigos. Meu pai era minha fonte de informações. Infelizmente ele faleceu em 2013. Ele tirava minhas dúvidas e dizia que eu era um saudosista (risos). Alguns parentes também me ajudavam.

- Ao nos aventurarmos pela pesquisa, é impossível não nos inspirarmos em determinados autores. Quais você considera mais marcantes?

São vários: Selda Vale da Costa, Mário Ypiranga Monteiro, Cláudio Amazonas, Roberto Mendonça, Otoni Mesquita, Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, Samuel Benchimol, Márcio Souza, Elza Souza, Moacir Andrade e tantos outros. A minha pesquisa sobre os cinemas começou com a leitura dos livros Hoje tem Guarany!, de Selda Vale e Narciso Lobo, Eldorado das Ilusões: cinema e sociedade, Manaus 1897-1935 e No rastro de Silvino Santos, ambos de Selda Vale, A Tônica da Descontinuidade: Cinema e Política em Manaus na década de 1960, de Narciso Lobo. Também tem o livro Síntese da História do Amazonas, de Antônio Loureiro, publicado em 1978.

- Em algum momento dessa trajetória você pensou em se profissionalizar através de um curso superior?

Sim, mas acho que não levo muito jeito para escrever.

- Você é considerado por muitos historiadores como um dos grandes especialistas na História dos cinemas de Manaus. Como surgiu o interesse pela sétima arte?

Como disse, das conversas com os mais velhos, da leitura dos livros da Professora Selda Vale da Costa e das conversas com o Joaquim Marinho. Meu pai, durante a década de 1960, trabalhava como taxista e também era contratado pelo gerente do Cine Polytheama para fazer a propaganda dos filmes. Para isso, o gerente mandava colocar em cima do carro dois alto falantes e cartazes afixados nas portas com o nome ou pôster do filme. Ele ia acompanhado por um funcionário do cinema que fazia a locução. A curiosidade de saber a História das casas cinematográficas de Manaus me empolgaram. Juntei um bom material. Joaquim Marinho e a professora Selda me ajudaram muito nas minhas pesquisas com fotos e informações. A pesquisa nos jornais foi longa e difícil, pois muitos jornais estavam deteriorados.

- Como pesquisador detentor de um acervo ímpar, você já foi várias vezes requisitado por historiadores, instituições, jornais e revistas para prestar consultoria. Foi um bom período? Quais os trabalhos mais desafiadores?

Foi uma época boa, pois eu estava desempregado. Trabalhei com o Coronel Roberto Mendonça, Selda Vale da Costa, Durango Duarte e Cláudio Amazonas. Agradeço a todos eles. A História dos grupos teatrais de Manaus e a História dos bombeiros foram grandes desafios. A falta de informações sobre o segundo era grande. Muita coisa se perdeu como jornais e fotos, e as pessoas que viveram a época já haviam falecido. Os jornais e revistas que existiam estavam em péssimo estado de conservação, com páginas rasgadas. Uma pena. Outra dificuldade encontrada foi que algumas instituições dificultaram o acesso a seus acervos, como o Instituto Geográfico e Histórico do Amazona (IGHA) e a Biblioteca da Fundação Rede Amazônica. NA Biblioteca da Associação Comercial do Amazonas (ACA) e do Museu Amazônico da UFAM fui muito bem atendido.

- Além da consultoria, você também é conhecido por colaborar com fanpages e blogs que divulgam a História de Manaus e do Amazonas. Parte de seu acervo se encontra em páginas e perfis no Instagram e Facebook. Como funciona essa parceria?

Eu sempre procuro ajudar com informações sobre datas e observações, como curiosidades sobre os registros fotográficos. Quando alguém tem dúvida, procuro sempre passar a informação correta. Quando não sei, prefiro não opinar. Sou muito consultado pelo jornalista Evaldo Ferreira, do Jornal do Commercio. No passado, o saudoso Joaquim Marinho sempre me ligava quando precisava saber a data de inauguração de seus cinemas. Atualmente colaboro com o Eliton Reis Lira, da Manaus na História, com o Paulo Menezes, da Manaus em Cores, com o Marçal, da Manaus Sorriso, com você, do blog História Inteligente, e com a Elza Souza e o Cláudio Amazonas. Todos são grandes amigos que fiz durante as pesquisas.

Nos arquivos encontramos fontes únicas, verdadeiros tesouros históricos muitas vezes intocados. Quais foram suas principais descobertas?

A foto do Cine Popular quando de seu fechamento em 1972. Não existia nada na internet. Procurei ano a ano em todos os jornais até que finalmente encontrei. Depois o Coronel Roberto Mendonça colocou na internet e agora é fácil de encontrar. Mas quem encontrou fui eu. Outra foto difícil de encontrar foi a do Silvério José Nery, patriarca da família Nery falecido em 1878. Achei no Diário Oficial. Outros achados foram a fotos da inauguração do Prédio do Departamento de Saúde Pública, na Praça Antônio Bittencourt (do Congresso) e da inauguração do Quartel dos Bombeiros na rua Joaquim Sarmento. Encontramos uma página manuscrita no Arquivo Público com dona Janete, funcionária.

Tanto pesquisadores formados quanto autodidatas, para realizarem suas investigações, enfrentam uma série de problemas, como a péssima conservação de arquivos e a resistência de certas instituições em abrir seus espaços ao público. Você já se viu diante desses entraves?

As dificuldades são muitas. A falta de incentivo para as pesquisas e os locais que não permitem a reprodução de seus acervos são alguns exemplos. Alguns responsáveis pelos arquivos questionam o porque da pesquisa, se é trabalho de faculdade ou para escrever um livro. Sempre que possível limitam o acesso a jornais e revistas.

Em sua opinião, qual o papel dos historiadores na sociedade?

Os historiadores devem ser pessoas interessadas em resgatar a História de uma cidade que, como a nossa, não se preocupa em preservá-la; ajudar quem tem interesse em conhecer as origens de sua cidade, de seus habitantes e seu cotidiano ao longo do tempo; deixar um legado para as novas gerações que desconhecem a História de Manaus, seja por falta de interesse ou de não haver a matéria de história local nas escolas. Falta incentivo do Governo e da Prefeitura.

A Manaus de sua geração foi a das décadas de 1970, 80 e 90. Do que você guarda boas lembranças?

Da minha infância. Dos igarapés de águas limpas e sem poluição. Dos vários circos que passaram por Manaus, de algumas lojas que fecharam, supermercados como Agromar, Royale, loja S. Monteiro e Credilar. Do Parquinho 2000 no Adrianópolis, do Aviaquário na Praça da Matriz, do Avião da Praça da Saudade e do Cine Guarany. Até hoje não me conformo com a demolição dele. Sinto um vazio muito grande quando passo em frente onde ele existiu. Guardo ainda boas recordações do Boulevard Amazonas, onde eu e meus primos costumávamos jogar bola no canteiro central. De andar de bicicleta na época de finados, saudades da casa dos meus avós. Como era de dois andares, gostava de ver a cidade lá do alto. Da Lobrás com seus chocolates e revistas para colorir na minha infância. Da Pastelaria Suprema na Rua Silva Ramos com Ferreira Pena, da Sorveteria Zizas na Praca 14. De visitar o Aeroporto de Ponta Pelada, do Porto com a locomotiva na entrada e as águas escuras que me davam medo. Da drogaria Avenida que vi inaugurar em 1977. Dos desfiles na avenida Eduardo Ribeiro e do Peladão.

Para finalizarmos, que conselhos você pode dar para os pesquisadores que estão iniciando suas carreiras?

Primeiro, gostar de pesquisar em jornais, revistas, cemitérios e arquivos públicos. Segundo, sempre usar equipamentos de proteção quando for manusear material antigo. Se dedicar, gostar de História e entender o passado, para poder ter pleno domínio sobre o assunto pesquisado. Registrar em fotos o que está pesquisando, respeitando os acervos dos arquivo para que outros pesquisadores possam utilizar os mesmos.

Manaus, 26/02/2023 – 27/02/2023.



sábado, 21 de janeiro de 2023

10 anos de História Inteligente

No dia 18 o blog História Inteligente completou 10 anos de existência. Tudo começou em 18 de janeiro de 2013, nas férias do Ensino Médio. Historia era desde que me lembre a disciplina à que mais me dedicava. Escrevia textos e fazia resumos de livros sobre as mais variadas temáticas históricas. Tive a ideia, então, de criar um blog para divulgar essa singela e amadora produção. Me questionei qual seria seu nome. Minha mãe fez uma sugestão: "História Inteligente". Não sabia utilizar muito bem essa nova tecnologia. Mas precisava dar início com uma postagem. Acabou que fiz a reprodução de uma matéria de 2006 da revista História Viva sobre o racismo no século XIX. Após ter contato na escola com a História do Amazonas, especialmente a da capital Manaus, decidi focar nessa área. Os textos sobre a história da cidade fizeram sucesso. Era pouco o conteúdo dessa área na internet. Ainda não sabia, mas estava fazendo um trabalho atualmente conhecido como História Pública, que consiste na divulgação do conhecimento histórico para o grande público. Em 2015 surgiu a oportunidade de me especializar através do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Olhando para trás, percebo o quanto ela foi importante para o amadurecimento da escrita e para reflexões profundas sobre a sociedade. A partir daí fui convidado para publicar textos em jornais, dar entrevistas, prestar consultoria, realizar passeios públicos e ministrar palestras. O ponto alto foi o convite para ser colunista de História do Jornal do Commercio. Após finalizar a graduação, fui aprovado em 2022 para cursar o Mestrado em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente estou na fase da redação da dissertação, o que fez eu esquecer de publicar esse texto no dia 18. O blog foi responsável por várias conquistas. Agradeço imensamente a vocês seguidores, no Facebook e no Instagram, que me acompanham ao longo dessa década.

sábado, 19 de novembro de 2022

Uma ilha de histórias - A história por trás da sede do Comando do 9° Distrito Naval

Adriel França*

Ilha de São Vicente, em Manaus. Cartão postal.

A cidade de Manaus é cheia de ruas históricas que guardam as mais diversas histórias que se possam imaginar, mas nenhuma delas é tão fascinante quanto a rua Bernardo Ramos, uma das ruas mais antigas de Manaus, que possuía uma ilha ao final dela, a ilha de São Vicente.

Localizada no final da rua Bernardo Ramos, a ilha de São Vicente já era conhecida pelos primeiros moradores da então Cidade da Barra desde fins do século XVIII, quando o Governador da Capitania Lobo D ́Almada mandou erguer na ilha, um prédio para servir de quartel de milícias, e que assim se seguiu até idos de 1850, quando se fez presente na ilha outra instituição o Hospital Militar, o único da cidade que acabava não só por servir aos militares mas também aos civis. O hospital militar, foi responsável por cuidar das pessoas acometidas pelas diversas epidemias que assolavam Manaus no século XIX.

A incerteza de datas é grande, mas algumas fontes alegam que em 1857 o hospital já se encontrava em condições de funcionamento e por mais de 50 anos o funcionou no mesmo prédio, no qual já havia sofrido algumas alterações em sua estrutura e aparência.

Durante o século XIX só era possível chegar na ilha de S. Vicente por meio de pontes que ligavam a rua com a ilha e por pequenas embarcações que transportavam pessoal e mercadorias, mas, quase próximo a virada do século, o então governador Eduardo Ribeiro, mandou aterrar o igarapé que separa a ilha do continente, tornando-se uma península. Em 1909 o Hospital Militar deixa de funcionar no local, deixando para trás um prédio já histórico, mesmo que para a época, visto que sua fundação remonta aos idos do século XVIII, tornando-se ruínas.

Após algumas concessões do Governo para empresas privadas, a ilha torna-se novamente uma casa militar, passando abrigar o Grupamento de Elementos de Fronteira, nos anos 50, posteriormente servindo de primeira sede do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) em 1966, passando a servir depois de sede para a 29o Circunscrição de Serviço Militar em 1973, e em 1975 a 1o Companhia Especial de transportes do exército. Após tanto tempo servir como casa militar, volta para a iniciativa privada, mas, já como patrimônio histórico tombado do Estado, abrigando a antiga Portobras (Empresa de Portos do Brasil S.A) em 1982, resultado de uma permuta com o Exército, que ficou com a área que a Portobras detinha no bairro da Ponta.

Em substituição a Portobras, assumiu o local a AHIMOC (Administração das Hidrovias da Amazônia Ocidental) que ofereceu o prédio para o então Comando Naval da Amazônia Ocidental (CNAO), que até então localizava-se nas instalações do atual Batalhão dos Fuzileiros no bairro do Mauazinho. Oficializada a troca em agosto de 2001, e alguns meses de trabalho na recuperação do prédio, finalmente em 22 de janeiro de 2004 o prédio torna-se sede do CNAO, sendo este elevado à categoria de Distrito Naval em maio de 2005, mudando mais uma vez de nome, servindo de casa para o Comando do 9° Distrito Naval.

E sob os cuidados da Marinha encontra-se preservado mas fora do olha do público externo, por ser área militar, como sempre foi, pelo visto, São Vicente estará sempre guarnecida.


*Pesquisador, acadêmico de Jornalismo na Faculdade Martha Falcão e membro do Clube Filatélico do Amazonas, onde desempenha a função de Secretário. Colaborar da Web Rádio Censura Livre, Rádio JCAM, de revistas filatélicas e do Centro Cultural dos Povos da Amazônia.