Lançamento: 2004
Direção: Eliane Caffé
País: Brasil
O Filme Narradores de Javé
(2004), guardadas as devidas proporções, nos lembra do método
histórico, do longo caminho que o historiador trilha até dar corpo
à sua pesquisa. Num primeiro momento, o escrivão Antônio Biá,
nosso “historiador”, já possui um tema definido para sua
pesquisa: a história do povoado de Javé. Definido o tema, a próxima
etapa de Antônio é verificar se existem fontes disponíveis para a
realização de seu trabalho. Em um povoado onde estão ausentes
qualquer forma de documentos ou outros registros escritos, serão as
histórias dos moradores, seus relatos, as principais fontes de
informação.
Outro elemento importante é o
fato de que o historiador não é um ser neutro, e que os documentos,
sejam eles materiais ou imateriais (as histórias dos moradores)
também não são. Ao receber as primeiras histórias, Biá fica
insatisfeito com a “importância” de algumas, e sugere algumas
alterações para engrandecê-las. Os moradores que dão suas versões
da fundação da cidade se mostram orgulhosos com elas. Nos são
apresentadas três versões vindas de três lugares sociais
diferentes: O primeiro vem de um descendente do fundador, homem
destemido, de Javé; O segundo, também de um descendente, a moradora
Mariardina, conta que a fundação se deu pelas mãos da heroína
Maria Dina; O último vem de um narrador negro, descendente de
escravos, e cujo fundador é Indaleô.
Esses registros nos lembram
que, até em um diminuto povoado fictício como Javé, existem
verdadeiras “guerras da história”, um conflito simbólico entre
as diferentes versões que serão legitimadas para a contar a
fundação da cidade. As versões de um homem; de uma mulher e de um
descendente de escravos. Conflitantes em gênero e classe social.
Depois de reunidas as fontes,
o historiador deve assegurar a confiabilidade destas. Esse é um
ponto interessante do filme: Biá, assim como os demais moradores,
ficam cientes que os funcionários da represa pediram uma história
“científica”, e fica em dúvida se as histórias destes, para
ele fantasiosas, estão enquadradas nesse quesito. Vemos que o
conceito de fonte histórica
se alargou com o tempo, estando incluídos, desde o início do século
XX, a oralidade, as manifestações culturais e religiosas e outros
elementos não necessariamente escritos. Mas ainda são muitos
aqueles que produzem história exclusivamente com registros escritos
em arquivos públicos ou particulares.
A
última etapa do processo histórico é a redação. Antônio Biá,
funcionário de uma filial dos correios, é o único habitante de
Javé que possui um certo domínio da escrita. Esse diferencial de
Biá nos remete ao conceito básico de Historiografia, a escrita
da história. Ele, por dominar
a escrita, é o único elemento apto a registrar a história do
povoado. Assim, nos parece que os únicos registram a história, que
a possuem, são aqueles que escrevem. Mas, emprestando alguns dizeres
de Carbonnel (1992, p. 7), devemos estar cientes que “nenhum
grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir;
perder a memória é desaparecer”.
Isso fica claro quando alguns moradores dão depoimentos para um
funcionário que os está filmando: “Aqui estão enterrados meus
antepassados, meus filhos que já morreram”. A História não é
uma exclusividade das sociedades letradas, ela apenas assume outras
formas dependendo dos mecanismos encontrados por outras culturas
(iletradas) para sua preservação.
Biá,
com inúmeras dificuldades para realizar sua pesquisa, escolher qual
história deve ser registrada, termina entregando um livro em branco,
sem a
tão esperado história de Javé. Essa desistência nos faz lembrar
da dificuldade do trabalho do historiador, pois todos os elementos do
processo histórico, num primeiro momento, são desafios para o
profissional da história. O “progresso” chega, inundando o
povoado.
Zaqueu,
antigo morador do povoado e narrador do filme, vem nos apresentando o
drama de Javé desde a notícia da construção da represa até o
momento fatídico de sua destruição. Percebemos, então, que a
história de Javé, mesmo com o seu desaparecimento, continua
existindo, não em forma escrita, mas como sempre foi desde seus
primórdios, de forma oral, circulando entre seus habitantes e,
agora, ex-habitantes.
Por
último, vamos nos lembrar do título do filme: Narradores
de Javé. O filme é isso, uma gama de narrativas, de opressores e
oprimidos. Uma luta para reunir essas histórias em um livro, de dar
importância a um lugar praticamente esquecido no tempo, mas que luta
para continuar existindo à sua própria maneira. Os relatos desses
moradores podem não ser considerados a “versão oficial”, mas
são as versões particulares de uma sociedade construída sob suas
próprias concepções e vivências.
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org
Estou cursando Licenciatura em História pela UFRPE e na necessidade de uma narrativa sobre o filme encontrei seu blog e parabenizo pelo excelente trabalho
ResponderExcluirMuito obrigado. Ter assistido esse filme e produzir uma resenha sobre o mesmo foi incrível.
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