O Historiador (1902), pintura do americano Eanger Irving Couse.
No
presente texto farei a análise de uma pintura, relacionando seus
elementos com o conhecimento adquirido durante as aulas de
Historiografia Geral I e II, ministradas pelo professor Auxiliomar,
da Universidade Federal do Amazonas, com foco na reflexão sobre as formas que
diferentes sociedades criaram para registrar e transmitir suas
histórias.
O
Historiador (1902) é uma
pintura do americano Eanger
Irving Couse (1866-1936), famoso por produzir quadros
retratando
índios norte-americanos do
Novo México e do Sudoeste do
país. Essa
pintura me chamou atenção não apenas
pelo título e
pelos elementos nela representados,
mas em especial por me fazer
relembrar das primeiras aulas da disciplina Historiografia Geral,
ministrada pelo mestre Auxiliomar Silva Ugarte.
No
trabalho de Irving temos
retratados dois indígenas, um adulto e outro jovem. Não
consegui identificar a qual
etnia pertencem, mas podem
ser Taos ou Pueblo, os mais registrados pelo autor.
O primeiro está registrando,
por meio de desenhos
feitos
no que parece ser
um pedaço de couro, a história de uma batalha de sua tribo contra
soldados americanos. São identificáveis
as figuras de um cavalo, alguns soldados em
posição de ataque e outros mortos,
nativos na mesma situação,
flechas e balas. O jovem parece observar com atenção esse processo
e, em uma leitura simbólica,
será a próxima geração encarregada de registrar novos
acontecimentos e
relembrar os que lhe foram transmitidos.
Historiografia
(história+grafia),
em uma definição bem básica, é a escrita
da história.
Desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de
registrar suas ações no espaço e no tempo. Como
exemplos, podemos citar o grego Heródoto, que escreve história
[..]
para
que nem os feitos dos homens, com o tempo, se reduzam ao
esquecimento, nem as obras grandes e admiráveis - tanto as
realizadas pelos gregos quanto as realizadas pelos bárbaros - fiquem
sem glória e as demais coisas por causa das quais foi o motivo de
guerrearem uns com os outros" 1;
e os primeiros autores cristãos, que viam na escrita uma forma de
preservar os ensinamentos de Jesus Cristo e defender a sua fé
(apologia).
Ambos,
cronologicamente
separados por alguns séculos, tinham
suas próprias visões de mundo. Eduardo Natalino dos Santos, citando
Alfredo López Austin, define visão de mundo como […]
“um conjunto articulado de sistemas ideológicos, relacionados
entre si em forma relativamente congruente, com a qual um indivíduo
ou grupo social, em um momento histórico, pretende apreender o
universo”2.
Esses homens, gregos ou cristãos medievais, registravam o momento
que viviam, baseados em seus anseios pessoais ou coletivos (o
encadeamento cíclico dos fatos, para os gregos; e o eminente
apocalipse, para os cristãos) .
Eram produtos de sua própria época. A
historiografia está em constante produção, sendo alterada
diariamente, seja pelas transformações sociais, teóricas ou
metodológicas.
Já
apresentada
uma
breve noção do que é historiografia, podemos voltar ao quadro.
Vemos que ela
é a escrita
da história. Nesse sentido, têm-se a ideia de que as únicas
sociedades que possuem história são aquelas com domínio da
escrita. Como fica, então, o nosso historiador da
pintura,
visto que ele é um indígena e está utilizando como registro
pinturas
rústicas,
uma
técnica comum nas sociedades primitivas?
De
fato, ela não está produzindo uma historiografia tradicional, um
registro escrito, mas isso não quer dizer que ele não tenha noção
de seu passado. O historiador francês Charles-Olivier Carbonell, no
contexto das reformulações feitas pela Escola dos Annales, afirma
que
[…]
“nenhum
grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir;
perder a memória é desaparecer. Não ultrapassou o homem a
animalidade quando com o auxílio das palavras conseguiu acrescentar
a uma memória instintiva, programada mesquinhamente para a ilusória
eternidade da espécie, a memória cultural única capaz de exorcizar
a morte e fundar a hereditariedade dos saberes?”3.
Auxílio
das palavras, memória
cultural e hereditariedade
dos saberes. Emprestando
essas palavras de Carbonell, podemos compreender como o indígena
retratado na pintura produz história: Ele, à
sua maneira, registra por meio de desenhos
um fato que marcou seu povo (a guerra contra os americanos). Aliado a
isso têm a oralidade, uma poderosa arma na transmissão e
preservação de conhecimento para as próximas gerações. Os
desenhos, os relatos, expressarão sua visão de mundo no momento da
produção, trarão discursos visíveis e outros nem tanto. Não será
considerada a versão 'oficial' de um fato, mas é a versão
particular de uma sociedade construída sob suas próprias concepções
e vivências.
Portanto,
a pintura O
Historiador e
os elementos nela representados nos lembram de dois pontos
importantes para o conhecimento histórico no
campo da Nova História:
primeiro,
com
a ausência de documentos escritos, o historiador pode e deve
recorrer a outros tipos de fontes, como manifestações culturais, a
oralidade, os mitos, as lendas, as ruínas antigas, as poesias e as
palavras. O bom historiador vê possibilidades de trabalho em uma
paisagem, no caminhar de uma pessoa, nos diálogos do cotidiano. Por
último, a construção de uma narrativa histórica não é exclusiva
das sociedades letradas, pois as
culturas mais primitivas desenvolveram outras técnicas de
representar suas percepções de mundo.
NOTAS:
1SOUSA,
Paulo Ângelo de Meneses. Memória histórica e narrativa em
Heródoto. Revista Humanitas,
UFPI, 2009, P. 84.
2SANTOS,
Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica.
São Paulo, Alameda, 2009, p. 45.
3CARBONELL,
Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa,
Teorema, tradução de Pedro Jordão, 1992, p. 7.
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org
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