quinta-feira, 28 de julho de 2016

Análise reflexiva sobre a pintura O Historiador (1902), de Irving Couse

O Historiador (1902), pintura do americano Eanger Irving Couse.

No presente texto farei a análise de uma pintura, relacionando seus elementos com o conhecimento adquirido durante as aulas de Historiografia Geral I e II, ministradas pelo professor Auxiliomar, da Universidade Federal do Amazonas, com foco na reflexão sobre as formas que diferentes sociedades criaram para registrar e transmitir suas histórias.

O Historiador (1902) é uma pintura do americano Eanger Irving Couse (1866-1936), famoso por produzir quadros retratando índios norte-americanos do Novo México e do Sudoeste do país. Essa pintura me chamou atenção não apenas pelo título e pelos elementos nela representados, mas em especial por me fazer relembrar das primeiras aulas da disciplina Historiografia Geral, ministrada pelo mestre Auxiliomar Silva Ugarte.

No trabalho de Irving temos retratados dois indígenas, um adulto e outro jovem. Não consegui identificar a qual etnia pertencem, mas podem ser Taos ou Pueblo, os mais registrados pelo autor. O primeiro está registrando, por meio de desenhos feitos no que parece ser um pedaço de couro, a história de uma batalha de sua tribo contra soldados americanos. São identificáveis as figuras de um cavalo, alguns soldados em posição de ataque e outros mortos, nativos na mesma situação, flechas e balas. O jovem parece observar com atenção esse processo e, em uma leitura simbólica, será a próxima geração encarregada de registrar novos acontecimentos e relembrar os que lhe foram transmitidos.

Historiografia (história+grafia), em uma definição bem básica, é a escrita da história. Desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de registrar suas ações no espaço e no tempo. Como exemplos, podemos citar o grego Heródoto, que escreve história [..] para que nem os feitos dos homens, com o tempo, se reduzam ao esquecimento, nem as obras grandes e admiráveis - tanto as realizadas pelos gregos quanto as realizadas pelos bárbaros - fiquem sem glória e as demais coisas por causa das quais foi o motivo de guerrearem uns com os outros" 1; e os primeiros autores cristãos, que viam na escrita uma forma de preservar os ensinamentos de Jesus Cristo e defender a sua fé (apologia).

Ambos, cronologicamente separados por alguns séculos, tinham suas próprias visões de mundo. Eduardo Natalino dos Santos, citando Alfredo López Austin, define visão de mundo como […] “um conjunto articulado de sistemas ideológicos, relacionados entre si em forma relativamente congruente, com a qual um indivíduo ou grupo social, em um momento histórico, pretende apreender o universo”2. Esses homens, gregos ou cristãos medievais, registravam o momento que viviam, baseados em seus anseios pessoais ou coletivos (o encadeamento cíclico dos fatos, para os gregos; e o eminente apocalipse, para os cristãos) . Eram produtos de sua própria época. A historiografia está em constante produção, sendo alterada diariamente, seja pelas transformações sociais, teóricas ou metodológicas.

apresentada uma breve noção do que é historiografia, podemos voltar ao quadro. Vemos que ela é a escrita da história. Nesse sentido, têm-se a ideia de que as únicas sociedades que possuem história são aquelas com domínio da escrita. Como fica, então, o nosso historiador da pintura, visto que ele é um indígena e está utilizando como registro pinturas rústicas, uma técnica comum nas sociedades primitivas? De fato, ela não está produzindo uma historiografia tradicional, um registro escrito, mas isso não quer dizer que ele não tenha noção de seu passado. O historiador francês Charles-Olivier Carbonell, no contexto das reformulações feitas pela Escola dos Annales, afirma que

[…] “nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer. Não ultrapassou o homem a animalidade quando com o auxílio das palavras conseguiu acrescentar a uma memória instintiva, programada mesquinhamente para a ilusória eternidade da espécie, a memória cultural única capaz de exorcizar a morte e fundar a hereditariedade dos saberes?”3.

Auxílio das palavras, memória cultural e hereditariedade dos saberes. Emprestando essas palavras de Carbonell, podemos compreender como o indígena retratado na pintura produz história: Ele, à sua maneira, registra por meio de desenhos um fato que marcou seu povo (a guerra contra os americanos). Aliado a isso têm a oralidade, uma poderosa arma na transmissão e preservação de conhecimento para as próximas gerações. Os desenhos, os relatos, expressarão sua visão de mundo no momento da produção, trarão discursos visíveis e outros nem tanto. Não será considerada a versão 'oficial' de um fato, mas é a versão particular de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.

Portanto, a pintura O Historiador e os elementos nela representados nos lembram de dois pontos importantes para o conhecimento histórico no campo da Nova História: primeiro, com a ausência de documentos escritos, o historiador pode e deve recorrer a outros tipos de fontes, como manifestações culturais, a oralidade, os mitos, as lendas, as ruínas antigas, as poesias e as palavras. O bom historiador vê possibilidades de trabalho em uma paisagem, no caminhar de uma pessoa, nos diálogos do cotidiano. Por último, a construção de uma narrativa histórica não é exclusiva das sociedades letradas, pois as culturas mais primitivas desenvolveram outras técnicas de representar suas percepções de mundo.


NOTAS:

1SOUSA, Paulo Ângelo de Meneses. Memória histórica e narrativa em Heródoto. Revista Humanitas, UFPI, 2009, P. 84.

2SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica. São Paulo, Alameda, 2009, p. 45.


3CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa, Teorema, tradução de Pedro Jordão, 1992, p. 7.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

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