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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Curso de História: Expectativa e Realidade


Esse texto pode ser útil para as pessoas que estão em dúvida em cursar História ou que já se veem decididas em dedicar seus próximos anos a essa área das Ciências Humanas.

Gostamos de História. Se perguntarmos aos nossos pais, tios ou primos mais velhos, ou questionarmo-nos, possivelmente uma das matérias que eles mais gostavam e nós gostávamos no ensino básico era a História. O interesse pode surgir pelos mais variados motivos, que podem ir desde o encantamento por estudar temas passados como o Egito, Grécia e Roma antigas, Idade Média e Grandes Navegações, até ao simples fato da matéria ser preferida a outras como a Matemática, a Física e a Química.

Você que ainda está no ensino fundamental ou médio e se sente atraído por essa disciplina, ou que já está na reta final dos vestibulares e pensa em dedicar os próximos anos de sua vida a essa área, que História espera encontrar na universidade? Pode ficar ciente que essa História maravilhosa, das civilizações antigas, dos homens medievais, das grandes navegações e das grandes guerras, existe, mas também encontrará em 4 ou 5 anos de estudo as Histórias teórica e metodológica. Essa é uma questão séria, pois muitos que entram no curso podem ficar insatisfeitos, no início, ao se verem diante de questões mais complexas. Essa ciência é muito maior do que aparenta ser.

Num primeiro momento, nos períodos iniciais, nos deparamos com disciplinas que, a primeira vista, não parecem em nada com o que aprendemos no ensino básico: Historiografia Geral I e II, Teoria da História, Didática Geral, Psicologia da Educação e História Antiga I e II (pode variar dependendo da instituição). Até aí, a História Antiga refresca a memória das aulas sobre a Mesopotâmia e o Egito e a Grécia e a Roma. O primeiro “choque” pode ser a Historiografia Geral, pois passamos a compreender que desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de registrar suas ações no espaço e no tempo. As leituras são as mais variadas, indo de clássicos greco-romanos a ensaios escritos no século XVIII. Psicologia da Educação e Didática Geral podem causar estranhamento. Acredite, todo historiador é um professor, pois o conhecimento que este adquire na academia será transmitido depois para a sala de aula e através de livros didáticos e paradidáticos. Falarei da Teoria em conjunto com as Metodologias.

Mais adiante, surgem disciplinas como Metodologia da História, Metodologia do Ensino da História, História Medieval I e Prática Integrada I. A História Medieval que estudamos é cronologicamente semelhante a que estudamos no ensino fundamental. As semelhanças acabam aí, pois as abordagens sobre esse período, dependendo dos autores utilizados, são vistas do ponto de vista teórico, dependendo do (s) autor (es) utilizados, como Jerôme Baschet, que questiona aspectos como a economia, a cultura, a política e a duração desse período. A Prática Integrada pretende a elaboração de reflexões sobre as linguagens, formas de transmitir o conhecimento histórico para os ensinos fundamental e médio. Teoria da História, Metodologia da História e Metodologia do Ensino da História merecem ser analisadas de forma conjunta:

O Historiador Eraldo Ribeiro Tavares examinando atas da Câmara de Vitória.

A Teoria pode ser definida como uma visão de mundo. Existem várias teorias, existem várias visões de mundo. Na História, as abordagens teóricas são diversas. Existe o Positivismo, o Materialismo Histórico, a Micro-História, a Nova História etc. São diferentes visões de mundo utilizadas para compreender as formulações históricas. Por ser um campo que trata de pensamentos, visões de mundo, mantém diálogo com a Filosofia e a Sociologia. A Metodologia do Ensino da História trabalha com a formação do profissional de História, a trajetória do ensino de História e novas perspectivas e metodologias para sua aplicação. As metodologias são baseadas nas teorias anteriormente citadas e em elementos da Prática Integrada. Enfim a Metodologia da História, talvez a disciplina que mais abra os horizontes de quem faz o curso. Aprende-se que o historiador não é um “calendário”, um mero repetidor de fatos e datas, mas sim um profissional que investiga, colhe fontes (materiais e imateriais), as critica, analisa, interpreta os fatos e tenta explicá-los. É, ainda, auxiliado por ciências como a Arqueologia, a Paleografia, a Diplomática e a Epigrafia.

Portanto, você que vai cursar História em uma universidade, seja ela pública ou privada, modalidade de licenciatura ou bacharelado, encontrará no curso a História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, mas também encontrará a Teoria da História, as Metodologias e as Práticas. Decidido? Você não irá se arrepender. É uma experiência incrível, que nos apresenta outras perspectivas de mundo, reflexões sobre a própria História e o cotidiano.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
camaradevitoria.pe.gov.br

sábado, 6 de agosto de 2016

Resenha: Narradores de Javé (2004)



Lançamento: 2004
Direção: Eliane Caffé
País: Brasil


O Filme Narradores de Javé (2004), guardadas as devidas proporções, nos lembra do método histórico, do longo caminho que o historiador trilha até dar corpo à sua pesquisa. Num primeiro momento, o escrivão Antônio Biá, nosso “historiador”, já possui um tema definido para sua pesquisa: a história do povoado de Javé. Definido o tema, a próxima etapa de Antônio é verificar se existem fontes disponíveis para a realização de seu trabalho. Em um povoado onde estão ausentes qualquer forma de documentos ou outros registros escritos, serão as histórias dos moradores, seus relatos, as principais fontes de informação.

Outro elemento importante é o fato de que o historiador não é um ser neutro, e que os documentos, sejam eles materiais ou imateriais (as histórias dos moradores) também não são. Ao receber as primeiras histórias, Biá fica insatisfeito com a “importância” de algumas, e sugere algumas alterações para engrandecê-las. Os moradores que dão suas versões da fundação da cidade se mostram orgulhosos com elas. Nos são apresentadas três versões vindas de três lugares sociais diferentes: O primeiro vem de um descendente do fundador, homem destemido, de Javé; O segundo, também de um descendente, a moradora Mariardina, conta que a fundação se deu pelas mãos da heroína Maria Dina; O último vem de um narrador negro, descendente de escravos, e cujo fundador é Indaleô.

Esses registros nos lembram que, até em um diminuto povoado fictício como Javé, existem verdadeiras “guerras da história”, um conflito simbólico entre as diferentes versões que serão legitimadas para a contar a fundação da cidade. As versões de um homem; de uma mulher e de um descendente de escravos. Conflitantes em gênero e classe social.

Depois de reunidas as fontes, o historiador deve assegurar a confiabilidade destas. Esse é um ponto interessante do filme: Biá, assim como os demais moradores, ficam cientes que os funcionários da represa pediram uma história “científica”, e fica em dúvida se as histórias destes, para ele fantasiosas, estão enquadradas nesse quesito. Vemos que o conceito de fonte histórica se alargou com o tempo, estando incluídos, desde o início do século XX, a oralidade, as manifestações culturais e religiosas e outros elementos não necessariamente escritos. Mas ainda são muitos aqueles que produzem história exclusivamente com registros escritos em arquivos públicos ou particulares.

A última etapa do processo histórico é a redação. Antônio Biá, funcionário de uma filial dos correios, é o único habitante de Javé que possui um certo domínio da escrita. Esse diferencial de Biá nos remete ao conceito básico de Historiografia, a escrita da história. Ele, por dominar a escrita, é o único elemento apto a registrar a história do povoado. Assim, nos parece que os únicos registram a história, que a possuem, são aqueles que escrevem. Mas, emprestando alguns dizeres de Carbonnel (1992, p. 7), devemos estar cientes que nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer”. Isso fica claro quando alguns moradores dão depoimentos para um funcionário que os está filmando: “Aqui estão enterrados meus antepassados, meus filhos que já morreram”. A História não é uma exclusividade das sociedades letradas, ela apenas assume outras formas dependendo dos mecanismos encontrados por outras culturas (iletradas) para sua preservação.

Biá, com inúmeras dificuldades para realizar sua pesquisa, escolher qual história deve ser registrada, termina entregando um livro em branco, sem a tão esperado história de Javé. Essa desistência nos faz lembrar da dificuldade do trabalho do historiador, pois todos os elementos do processo histórico, num primeiro momento, são desafios para o profissional da história. O “progresso” chega, inundando o povoado.

Zaqueu, antigo morador do povoado e narrador do filme, vem nos apresentando o drama de Javé desde a notícia da construção da represa até o momento fatídico de sua destruição. Percebemos, então, que a história de Javé, mesmo com o seu desaparecimento, continua existindo, não em forma escrita, mas como sempre foi desde seus primórdios, de forma oral, circulando entre seus habitantes e, agora, ex-habitantes.

Por último, vamos nos lembrar do título do filme: Narradores de Javé. O filme é isso, uma gama de narrativas, de opressores e oprimidos. Uma luta para reunir essas histórias em um livro, de dar importância a um lugar praticamente esquecido no tempo, mas que luta para continuar existindo à sua própria maneira. Os relatos desses moradores podem não ser considerados a “versão oficial”, mas são as versões particulares de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.


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quinta-feira, 28 de julho de 2016

Análise reflexiva sobre a pintura O Historiador (1902), de Irving Couse

O Historiador (1902), pintura do americano Eanger Irving Couse.

No presente texto farei a análise de uma pintura, relacionando seus elementos com o conhecimento adquirido durante as aulas de Historiografia Geral I e II, ministradas pelo professor Auxiliomar, da Universidade Federal do Amazonas, com foco na reflexão sobre as formas que diferentes sociedades criaram para registrar e transmitir suas histórias.

O Historiador (1902) é uma pintura do americano Eanger Irving Couse (1866-1936), famoso por produzir quadros retratando índios norte-americanos do Novo México e do Sudoeste do país. Essa pintura me chamou atenção não apenas pelo título e pelos elementos nela representados, mas em especial por me fazer relembrar das primeiras aulas da disciplina Historiografia Geral, ministrada pelo mestre Auxiliomar Silva Ugarte.

No trabalho de Irving temos retratados dois indígenas, um adulto e outro jovem. Não consegui identificar a qual etnia pertencem, mas podem ser Taos ou Pueblo, os mais registrados pelo autor. O primeiro está registrando, por meio de desenhos feitos no que parece ser um pedaço de couro, a história de uma batalha de sua tribo contra soldados americanos. São identificáveis as figuras de um cavalo, alguns soldados em posição de ataque e outros mortos, nativos na mesma situação, flechas e balas. O jovem parece observar com atenção esse processo e, em uma leitura simbólica, será a próxima geração encarregada de registrar novos acontecimentos e relembrar os que lhe foram transmitidos.

Historiografia (história+grafia), em uma definição bem básica, é a escrita da história. Desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de registrar suas ações no espaço e no tempo. Como exemplos, podemos citar o grego Heródoto, que escreve história [..] para que nem os feitos dos homens, com o tempo, se reduzam ao esquecimento, nem as obras grandes e admiráveis - tanto as realizadas pelos gregos quanto as realizadas pelos bárbaros - fiquem sem glória e as demais coisas por causa das quais foi o motivo de guerrearem uns com os outros" 1; e os primeiros autores cristãos, que viam na escrita uma forma de preservar os ensinamentos de Jesus Cristo e defender a sua fé (apologia).

Ambos, cronologicamente separados por alguns séculos, tinham suas próprias visões de mundo. Eduardo Natalino dos Santos, citando Alfredo López Austin, define visão de mundo como […] “um conjunto articulado de sistemas ideológicos, relacionados entre si em forma relativamente congruente, com a qual um indivíduo ou grupo social, em um momento histórico, pretende apreender o universo”2. Esses homens, gregos ou cristãos medievais, registravam o momento que viviam, baseados em seus anseios pessoais ou coletivos (o encadeamento cíclico dos fatos, para os gregos; e o eminente apocalipse, para os cristãos) . Eram produtos de sua própria época. A historiografia está em constante produção, sendo alterada diariamente, seja pelas transformações sociais, teóricas ou metodológicas.

apresentada uma breve noção do que é historiografia, podemos voltar ao quadro. Vemos que ela é a escrita da história. Nesse sentido, têm-se a ideia de que as únicas sociedades que possuem história são aquelas com domínio da escrita. Como fica, então, o nosso historiador da pintura, visto que ele é um indígena e está utilizando como registro pinturas rústicas, uma técnica comum nas sociedades primitivas? De fato, ela não está produzindo uma historiografia tradicional, um registro escrito, mas isso não quer dizer que ele não tenha noção de seu passado. O historiador francês Charles-Olivier Carbonell, no contexto das reformulações feitas pela Escola dos Annales, afirma que

[…] “nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer. Não ultrapassou o homem a animalidade quando com o auxílio das palavras conseguiu acrescentar a uma memória instintiva, programada mesquinhamente para a ilusória eternidade da espécie, a memória cultural única capaz de exorcizar a morte e fundar a hereditariedade dos saberes?”3.

Auxílio das palavras, memória cultural e hereditariedade dos saberes. Emprestando essas palavras de Carbonell, podemos compreender como o indígena retratado na pintura produz história: Ele, à sua maneira, registra por meio de desenhos um fato que marcou seu povo (a guerra contra os americanos). Aliado a isso têm a oralidade, uma poderosa arma na transmissão e preservação de conhecimento para as próximas gerações. Os desenhos, os relatos, expressarão sua visão de mundo no momento da produção, trarão discursos visíveis e outros nem tanto. Não será considerada a versão 'oficial' de um fato, mas é a versão particular de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.

Portanto, a pintura O Historiador e os elementos nela representados nos lembram de dois pontos importantes para o conhecimento histórico no campo da Nova História: primeiro, com a ausência de documentos escritos, o historiador pode e deve recorrer a outros tipos de fontes, como manifestações culturais, a oralidade, os mitos, as lendas, as ruínas antigas, as poesias e as palavras. O bom historiador vê possibilidades de trabalho em uma paisagem, no caminhar de uma pessoa, nos diálogos do cotidiano. Por último, a construção de uma narrativa histórica não é exclusiva das sociedades letradas, pois as culturas mais primitivas desenvolveram outras técnicas de representar suas percepções de mundo.


NOTAS:

1SOUSA, Paulo Ângelo de Meneses. Memória histórica e narrativa em Heródoto. Revista Humanitas, UFPI, 2009, P. 84.

2SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica. São Paulo, Alameda, 2009, p. 45.


3CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa, Teorema, tradução de Pedro Jordão, 1992, p. 7.


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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A evolução histórica e social das vias públicas

Via Ápia (aberta em 312 a.C.  e ampliada em 264 a.C.), estrada romana com 600 quilômetros de extensão, ligando Roma até a cidade de Brindisi.

Hoje, quem passa por uma rua, avenida, beco ou travessa, independente da cidade, talvez não se questione sobre a origem daquela via pública, quais os motivos para a sua abertura e quais as mudanças ocorridas com isso. As vias públicas como as conhecemos atualmente são o resultado de um longo processo de aperfeiçoamento social e técnico: social no sentido de ligar diferentes pontos de uma cidade, onde são realizadas transações comerciais, oferecidos serviços, abriga templos religiosos e, claro, as casas; e técnico pela forma como são construídas e com quais materiais foram produzidas.

Quando os homens ainda se agrupavam em comunidades primitivas, com atividades de subsistência baseadas na pesca, coleta e troca de produtos, talvez a abertura de caminhos não tivesse um sentido técnico-econômico complexo, servindo apenas para atalhos, localizar um curso d' água ou para facilitar a comunicação entre as casas ou um local de adoração a divindades. Com algumas exceções, já existe uma preocupação no traçado desses caminhos (ruas e avenidas), como ficou claro em escavações arqueológicas na Turquia, em 1996-7, que revelaram a antiga cidade de Titris Hoyuk (cerca de 5.000 anos), que chegou a abrigar 10.000 habitantes.

Na Antiguidade Clássica, as ruas da Roma Imperial eram construídas em ângulos retos, e largas, possibilitando um tráfego fluente de carruagens, liteiras e transeuntes sem maiores problemas. Os templos e foros se comunicavam; comerciantes anunciavam os mais variados produtos em cavaletes e barracas instaladas de uma ponta a outra da via; semblantes de diferentes nacionalidades se aglomeravam em busca das melhores ofertas, de um lugar para repousar, como os albergues e pensões, ou cuidar da higiene em um dos vários banhos públicos. O anfiteatro, casas de prostituição e tavernas prolongam a vida noturna, iluminada por tochas ou pela queima do azeite, mas perigosa nas estradas mais afastadas, que ligavam Roma à diferentes pontos da Itália.

As ruas medievais eram estreitas, ou porque seguiam a linha da muralha, uma necessidade de defesa para a cidade; a direção dos ventos, para arejar; ou a formação geográfica tortuosa da região. Eram, no entanto, movimentadas pelo comércio e por atrações dos tipos mais variados. A nomenclatura das ruas é definida por nomes populares, geralmente ligadas a uma atividade comercial nela estabelecida: Rua dos Ourives, Rua dos Cuteleiros, Rua dos Livreiros. Existem também nomes de santos e de nobres. A pavimentação das vias era feita com pedras sob uma camada de cimento. Esgotos eram construídos para dar vazão aos detritos públicos, e o resto era queimado. Construídas na rua principal, a fim de dominarem a paisagem e servirem de confluência política, social e religiosa, estavam as catedrais, abadias e capelas.

Nos séculos 16 e 17, as ruas e avenidas das principais metrópoles europeias foram favorecidas pela exploração ultramarina, que possibilitou o escoamento de riquezas para essas cidades, riquezas essas investidas em Lisboa, Paris, Madri e Amsterdã. As vias públicas mais preteridas pela burguesia eram aquelas com localização privilegiada, no caso a orla da cidade ou próximo a ela. A Rua Nova d' EL REI era a principal via da Lisboa Manuelina. Nela estavam os prédios públicos mais suntuosos e importantes e as principais lojas do país. Estrangeiros, vendedores de escravos, nobres e aristocratas frequentavam o local. O Óleo de baleia era utilizado na iluminação. Não só na Europa, mas também nas terras recém-descobertas, as ruas eram suntuosas. Hernán Cortés se impressionou com ruas de Tenochtitlán, largas e retas, tão grandes quanto as de Sevilha ou Córdoba, com praças e pontos de venda e troca de produtos.

Os caminhos do Brasil Colonial ligavam a Igreja ao forte, o forte a casa do administrador, e a produção econômica ao porto. Esses caminhos eram definidos pelas construções e muitas vezes eram o reaproveitamento de antigas trilhas indígenas. Na enriquecida Minas Gerais, por exemplo, os caminhos de terra batida interligavam a produção da região: Pelo Caminho Velho ou Caminho do Ouro, que passava pela Vila do Falcão, descendo o vale do rio Paraíba e atingia Vila Rica, o ouro das minas era transportado até o Rio de Janeiro, de onde partia para Lisboa. Os caminhos eram tortuosos, estreitos, iluminados apenas em algumas cidades, por meio de velas feitas com cera de abelha ou pela queima de óleos vegetais e animais. As cidades mais importantes recebiam o acompanhamento de engenheiros militares na hora de definir o traçado das ruas. A rua, junto à praça pública, era o local do divertimento popular, das procissões religiosas, do comércio, dos castigos no Pelourinho, trajeto dos condenados à morte, e local de exposição das partes dos corpos de rebeldes esquartejados. As nomenclaturas eram pitorescas, levando em conta alguma característica especial da região, nomes religiosos ou de moradores ilustres.

Os avanços industriais dos séculos 18, 19 e 20 permitiram o prolongamento da vida urbana, com o advento da iluminação pública mais eficiente. Os caminhos do passado agora eram ruas e avenidas propriamente ditas, construídas sob a supervisão de engenheiros e através de códigos de conduta rígidos. O asfalto produzido através do petróleo substituiu as pedras e o cimento; a iluminação a gás ou energia elétrica permitiu que a ópera acabasse mais tarde, que as casas de diversão, os cafés e tavernas atendessem por mais tempo. A rua ganhou a função social que possui até hoje: é o local de lazer, das práticas mundanas e religiosas, das trocas comerciais, do trabalho, é elemento concreto das relações sociais, de manifestações públicas, o caminho que leva a diferentes locais e partes vitais da cidade.


CRÉDITO DA IMAGEM:

europeantrips.org

sábado, 24 de outubro de 2015

Lugares Pitorescos de Manaus

Toda cidade possui suas particularidades e lugares curiosos. Em Manaus, algumas pessoas diriam que é a alta temperatura, ou o "aroma" dos nossos igarapés; outras, mais "maldosas", diriam que é a "preguiça" do povo (algo que não passa de lenda, pois o manauara é muito criativo). Com uma carga histórica de 347 anos, a cidade guarda lugares de nomes curiosos, de origem popular, e paisagens bucólicas cheias de História. Alguns lugares já desapareceram, outros tiveram o nome alterado.

Bairro de São Vicente (Centro Antigo): Localizado no Centro antigo da cidade, essa região, compreendida entre as ruas 5 de Setembro, Bernardo Ramos, Frei José dos Inocentes, Visconde de Mauá, Monteiro de Souza, Tamandaré e Itamaracá, é o início da expansão e urbanização de Manaus. Em São Vicente estão muitas das edificações mais marcantes da cidade, como o Paço Municipal, o Palácio Rio Branco, o antigo Hotel Cassina, o antigo Hospital Militar, a Praça D. Pedro II e  a casa considerada a mais antiga da cidade (1819) e muitas outras edificações da segunda metade do século 19 e do início do século 20. Na atual rua Visconde de Mauá, ficava a capela de N. S. da Conceição, erguida em 1695. O primeiro teatro da cidade, o Éden Teatro, inaugurado em 1869, ficava na esquina da rua Bernardo Ramos com a Frei José dos Inocentes; e o primeiro arranha-céu da cidade, o prédio do IAPETEC, inaugurado em 1954, na Av. Sete de Setembro. O nome São Vicente é uma homenagem ao santo padroeiro de Lisboa, Portugal.

Rua Bernardo Ramos, no bairro de São Vicente. Acervo Jornal A Crítica.

Rua da Bosta (atual Rua São Francisco, bairro de São Raimundo): O nome, um tanto engraçado, é de origem popular. Segundo a pesquisadora e antiga moradora do bairro de São Raimundo, Elza Souza, alguns moradores das redondezas criavam porcos e cabritos aos ar livre. Esses animais, que pastavam pela rua, acabavam por fazer suas necessidades ali mesmo. Em pouco tempo "Rua da Bosta" se tornou referência para localizar a via.

Boca do Emboca (atual bairro Santa Luzia): O bairro de Santa Luzia, criado oficialmente em 1951, já vinha sendo ocupado desde 1920. De acordo com o historiador Mário Ypiranga Monteiro, o nome Emboca foi dado pelo guarda de 1° Classe do Corpo de Segurança Pública do Amazonas, Sebastião Feliciano de Oliveira, morador do local. Este é uma alusão à embocadura (foz de rios) dos igarapés do Mestre Chico e o da Pancada, que formavam um maior, o Igarapé de Educandos. A referência são os fundos da Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa.

Planeta dos Macacos (Atual bairro da Redenção): Surgido de uma invasão de operários em 1974, o bairro da Redenção, na Zona Centro-Oeste, quando ainda era uma simples comunidade, era conhecido como Planeta dos Macacos. Existem duas versões para a origem desse nome. Para alguns, o nome é uma referência à presença de diferentes espécies de macacos na região, que tinha bastante área verde quando foi criada. Outra, talvez mais coerente, diz que o nome foi uma homenagem ao universo da franquia de filmes "Planeta dos Macacos", criada no final dos anos 60 e que passou a fazer enorme sucesso nos anos 70.

Vista aérea do bairro de Santo Antônio. Acervo Skycrapercity.

Morro do Bode (atual bairro de Santo Antônio): Localizado na Zona Oeste da cidade, o bairro de Santo Antônio foi, durante os anos 50, conhecido como Morro do Bode. O nome é de origem popular. Um morador de nome Sabino criava bodes e cabras em um morro perto da atual Rua Presidente Dutra, que liga o bairro de Santo Antônio ao bairro da Glória. O nome não agradou nem um pouco os moradores do bairro nascente que, em reunião com o padre da região, decidiram mudar o nome do local para Santo Antônio, exatamente no dia do santo em que a reunião foi realizada.

Ladeira do Quebra C* (parte da rua Saldanha Marinho, que desemboca na rua da Instalação, Centro): O nome, engraçado, é de origem popular. No final dos anos 1930, segundo Mário Ypiranga Monteiro, esse nome se tornou referência para aquela parte da rua Saldanha Marinho. Mário afirma ainda que esse nome se dava pelo fato de que, na época das chuvas, as pessoas escorregavam nos paralelepípedos que calçavam a ladeira, e acabavam caindo sentadas. Tombos e mais tombos no final dos anos 1930 popularizaram o nome.

Rua Saldanha Marinho, no Centro, em 1890. Registro do alemão George Huebner. Acervo Brasiliana Fotográfica.

Travessa dos Inocentes (rua Visconde de Mauá): Na época colonial, essa rua ficava na parte de trás da Matriz velha, destruída em um incêndio. Nesse local eram enterradas as crianças que morreram de forma prematura, sem a oportunidade de serem batizadas e por isso consideradas pagãs. O historiador Antônio Loureiro afirma que, na tradição popular, é possível ouvir, de noite, o pedido de ajuda delas ou o choro de suas mães.

Rua Visconde de Mauá, no Centro antigo da cidade.

Vila Mamão (entre os bairros da Cachoeirinha, em frente ao antigo Cine Ipiranga, até a beira do Igarapé, e São Francisco): A Vila já existia nos anos 1940, ocupada por nordestinos que vieram para cá durante a Segunda Guerra. A fama desse lugar surge no início da década 1950, quando passou a receber parte das meretrizes do Cabaré Chinelo, expulsas por ordem do interventor Álvaro Maia, em 1951. Segundo o pesquisador Marçal, as meretrizes ficaram na Vila Até 1970, quando esta desaparece com a construção do Hospital Adriano Jorge.

Muitos desses lugares já desapareceram ou mudaram de nome. Nesses 346 anos, Manaus é uma cidade que ainda guarda muitas surpresas, que estão esperando para serem encontradas. Existem muitos outros (Buraco do Pinto, Beco da Marreca, Vila Mamão... vai ficar para o ano que vem). Nesses 5 anos em que me interesso por História, Manaus faz eu me sentir vivo, quando escrevo ou quando a cito. Não me imagino vivendo em outra cidade ou em outro bairro. Me imagino findando meus dias em Manaus, essa cidade de desigualdades gritantes, de sol escaldante, de problemas seculares, onde o homem, com toda a sua genialidade moldada em milênios, soube estabelecer a civilização que deu origem à essa metrópole, que me abriga e que me conforta. Parabéns Manaus, 347 anos.


Este texto foi produzido com informações dos historiadores Roberto Mendonça, Aguinaldo Nascimento Figueiredo, Marçal, Antônio Loureiro, Elza Souza e Ed Lincon.




sábado, 4 de julho de 2015

O que diferencia a História das demais Ciências Humanas?



Essa foi uma das perguntas da prova de Teoria da História, matéria lecionada pelo prof Almir de Carvalho Júnior. É uma pergunta interessante, se levarmos em conta que no centro das Humanidades, está o homem. Compartilho aqui com vocês a minha resposta.

Primeiro, devemos tomar conhecimento de que cada campo disciplinar possui sua singularidade, isto é, um aspecto que lhe torna único. O Direito, por exemplo, estuda o funcionamento das leis em sociedade. Essa é a singularidade desse campo. O objeto de estudo do Direito são as leis.

A História como ciência tem por objeto de estudo o homem. O sujeito é, ao mesmo tempo, objeto de estudo. Mas outras Ciências Humanas, como a Antropologia e a Sociologia, também possuem o mesmo objeto de estudo.

O que torna a História diferente das demais Ciências Humanas é a forma como esta explora e analisa seu objeto: A História estuda as ações do homem no tempo, utilizando como fontes os vestígios por ele deixado - materiais, imateriais etc; e utiliza para a construção de seu discurso um variado arcabouço de Teorias.

O que diferencia, enfim, a História das demais Ciências Humanas, é o pano de fundo em que seu objeto de estudo (o homem) está inserido, nesse caso, o Tempo.

Um dos livros lidos para a realização da prova e que também recomendo é: Teoria da História - princípios e conceitos fundamentais (Vol. 1), de José D' Assunção Barros.


CRÉDITO DA IMAGEM: curiososlinks.com.br



sábado, 20 de junho de 2015

A Insustentável Leveza de Tanta Primavera (crônica de Ellza Souza)


Velhice. Um estágio, uma etapa. Não tem para onde "correr", ela sempre nos alcança. Não é um bicho de sete cabeças, mas sim uma primavera, como bem expressa a crônica da leitora e amiga Ellza Souza, que trata essa etapa da vida com muito humor e energia. Sobre a História da velhice, recomendo o livro História da Velhice no Ocidente, do historiador francês Georges Minois (edição em português, 1999). Leiam abaixo a crônica de Elza Souza.

Fazia tempo que meu aniversário não "caía" no domingo, um dia que adoro, que é azul, em que o mato é mais verde, em que o mundo é mais calmo. Agora que o Celdo me confirmou que na Amazônia tem sim primavera, posso me regozijar com as minhas também e distribuir com vocês para não ficar tão pesado esse buquê. Convenhamos que mesmo sendo primavera que implica em beleza e flores, que pesa, pesa.


Amanheci com a sensação do peso de tantas primaveras. Com a sensação de quem está mais pra lá do que pra cá. Lógico que é assim e tem que ser assim pois o tempo não para e precisamos subir aos céus para dar lugar a outros, quem sabe nós mesmos em outra configuração.

Ao chegar na 61ª. primavera da minha existência percebo com clareza o que chamam por aí de “melhor idade”. Apesar de estar apenas começando uma nova etapa de vida, todos já te olham como se estivesse no fim. E o pior como se não tivesse mais capacidade de pensar e de ser feliz. Claro que não me refiro aos parentes e amigos mas aos que correm por fora. No ônibus, por exemplo, quando precisamos correr com a carteirinha para provar o que está na cara e no corpo todo. É meus amigos, a pele afrouxa, o bucho cresce, o braço engrossa, as pestanas acho que já eram. O olhar perde a tonalidade, o viço. Aí lascou-se. Vai-se formando todo o jeitinho de uma simpática velhinha bondosa, mas gagá, segundo os “por fora” como disse antes.

As dificuldades são muitas e precisa de grande esforço para continuar. Ao fazer 50 anos escrevi por aí que nunca ia usar uma bata pois achava que era roupa de velha. Mas confesso que tenho reavaliado as ditas vestimentas. E estou olhando-as com outros olhos e dando preferência as de manga longa e gola role. Captou? Não que ache feia a velhice. Acho que existe beleza numas preguinhas bem feitas mas que pesa, pesa e vou me preparar para a minha primeira bata, que ninguém é eterno.

De tudo que vivi até aqui o melhor foi o amor que tenho pelos meus filhos, Suzana e Eduardo, o convívio com meus familiares e esses encontros que de vez quando fazemos com as pessoas que gostamos e admiramos. Vocês. Uns mais outros menos na “melhor idade” e como a melhor idade é a idade que cada um vive vamos mesmo é aproveitar momentos como esse e enriquecer a VIDA de boas histórias.

Desculpem a xaropada...mas é o que gosto de fazer: escrever. E na melhor idade ganhei o direito de fazer o que gosto nem que os que correm por fora achem que “velho não faz isso ou aquilo”. Não faz se não quiser, amigos.  Vamos fazer: amor, amizade, solidariedade, bondade. Vamos dançar, rebolar, contar piada, rezar, conversar, ler, ouvir música. Pronto já nem estou sentindo mais o peso das 61 primaveras e sim estou envolvida na leveza das 16. Essa é a leveza que devemos preservar até a primeira bata.




Ellza Maria Pereira Souza é Jornalista formada pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), com vários cursos na área de produção de rádio, Televisão e roteiro para cinemas. É autora do livro São Raimundo: Do "alto" da minha colina - sem os bucheiros o bairro de São Raimundo perdeu o encantamento, publicado em 2008.