Algumas cabanas na Província do Pará. Desenho de E. Riou a partir de croqui de M. Biard. 1862.
No texto Cabanagem: percursos históricos e historiográficos, Luís Balkar Sá Peixoto, professor de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), identifica três momentos de interpretações historiográficas sobre o movimento Cabano: Um no século XIX; outro a partir da década de 1930; e um terceiro mais recente.
O primeiro momento, no século XIX, é marcado por uma abordagem conservadora do movimento, encabeçada e posta em prática por militares e membros das camadas ligadas ao poder imperial. Seu maior expoente foi o político e historiador Domingos Antônio Raiol (1830-1912), autor de Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835, escrito entre 1865 e 1890. Em sua obra, densa e metódica, assentada em farta documentação dos arquivos do Pará e do Rio Janeiro, Domingos Raiol, de perspectiva legalista, defensor do Estado Imperial, analisa o movimento Cabano como anárquico e homogêneo, comprometedor das estruturas econômicas e políticas do Império.
Seus agentes, para ele uma massa amorfa, ideologicamente homogênea, são frutos de um movimento universal verificado após o enfraquecimento de boa parte das monarquias ocidentais e da ascensão dos valores da Revolução Francesa. Interessante notar que, como salienta Balkar e também Magda Ricci, até a escolha da documentação feita por Raiol tem por objetivo depreciar os agentes do movimento, bem como as leituras mais densas partem das perspectivas dos anticabanos, membros de alta patente militar da resistência. Balkar afirma que isso é uma espécie de acerto de contas, pois ainda criança, com 5 anos, Raiol viu seu pai sucumbir diante de um ataque cabano. Sobre a composição cabana, diz o historiador paraense:
"Dominavam os turbulentos, os analfabetos, os homens sem conceito, para quem era indiferente a perturbação da ordem pública. Sem nada terem que perder, estes indivíduos estavam dispostos a entrar em qualquer aventura que se lhes deparasse. Os motins eram-lhes jogos de azar, nos quais poderia ser-lhes favorável".
O segundo momento, verificado na década de 1930, está relacionado ao contexto do (s) nacionalismo (s), à exaltação de uma natividade. O principal representante dessa fase foi Jorge Hurley (1882-1956), autor de Traços cabanos e A Cabanagem, ambos de 1936. Hurley, diferente de Domingos Monteiro Raiol, tinha uma visão positiva do movimento Cabano.
Em um período de exaltação de símbolos e da fabricação de mitos nacionais, Hurley via no movimento Cabano a oposição ao sistema colonial e o surgimento do sentimento de brasilidade na região Norte, tanto é que, cronologicamente, para o autor, a Cabanagem teria suas origens em 1823, quando o Grão-Pará jurou fidelidade ao Império Brasileiro. O nativismo é o cerne das discussões intelectuais e das produções historiográficas. Rogério Forastieri da Silva destaca 5 pontos de como este foi trabalhado ao longo da história do Brasil: "1) Luta contra a dominação estrangeira; 2) movimento precursor da emancipação política; 3) lusofobia; 4) reivindicações populares e 5) movimento precursor do nacionalismo ou sinônimo de nacionalismo". Além de suas obras sobre a Cabanagem, esses elementos também podem ser vistos em Belém do Pará sob o domínio português: 1616-1823, publicado em 1940.
Jorge Hurley era um homem ligado ao poder. Foi eleito desembargador após 1930 e Presidente do IHGpa (Instituto Histórico e Geográfico do Pará) em 1935. No centenário da Cabanagem, o movimento é transformado em festa cívica, em monumentos e os nomes de seus líderes batizam ruas e prédios públicos; e ele já não é mais uma ameaça à ordem pública, mas elemento aglutinador de um passado comum, manipulado, referenciado aos grandes personagens, supostamente nativo, que através dessa perspectiva endossava os sentimentos de um patriotismo historicamente fabricado pelas camadas dirigentes, vindo de Institutos Históricos e financiado pelo Estado, a quem mais interessa o controle e a ritualização do passado.
Contemporâneo de Jorge Hurley, Ernesto Cruz, também do IGHPa, autor de Nos bastidores da Cabanagem (1942), faz uma análise político-social do movimento. A análise política é feita a partir da recuperação de documentos escritos pelos presidentes cabanos Clemente Malcher, Francisco Vinagre e Eduardo Angelim durante as disputas por poder. Na leitura dessa documentação, Ernesto percebeu que em nenhum momento os líderes se identificavam como cabanos, mas antes utilizavam os termos patrícios, patriotas paraenses e brasileiros natos, defensores da liberdade e do Império.
O terceiro momento identificado por Luís Balkar é por ele nomeado como fase crítica, influenciada pela abordagem da Caio Prado Júnior. Ainda guardando alguns traços do nativismo da segunda fase, Caio Prado foi o primeiro autor a destacar a Cabanagem como um movimento social de grandes proporções, se não o maior do país, no qual, por um relativo período de tempo, um grande contingente das camadas populares de Grão-Pará conseguiu chegar ao poder. Balkar salienta que, mesmo permanecendo alguns traços nativistas, pela primeira vez esse movimento foi visto da perspectiva social, de luta de classes, o que abriu caminho, a partir da década de 1970, para análises sobre sua configuração (revolta, rebelião, revolução) político-ideológica e seus elementos dinâmicos (líderes, camadas populares, estratégias de resistência e desdobramentos).
Em 1984, José Júlio Chiavenato escreveu Cabanagem: o povo no poder, trabalhando o conceito de revolução. Importante destacar a diferença deste para a rebelião, pois enquanto a primeira tenta subverter as condições sociais vigentes, o status quo, a rebelião tem origem na insatisfação dos homens com os homens, uma revolta de indivíduos, um levante que não leva em conta as consequências que pode trazer (STIRNER, s.d.). Para Chiavenato, a Cabanagem tinha potencial revolucionário, mas perdeu-se por não ter um projeto político e estar essencialmente baseada na vingança social. Para Nelson Werneck Sodré, existia vigor nas ações cabanas, mas isso contrastava com a debilidade de sua organização e ausência de um conjunto de ideias, de uma subordinação governamental.
As produções historiográficas que se seguiram pela segunda metade da década de 1980 e a década de 1990, foram marcadas pela pluralidade de análises e atenção a elementos até então desconsiderados. Destacam-se as obras de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, Magda Maria de Oliveira Ricci e Pasquale Di Paolo. Passou-se a dar destaque a multiplicidade de ações, de interesses que formavam, diferenciavam e algumas vezes complementavam as camadas populares do movimento. Se opõe à ideia de que ele foi um movimento anárquico, sem objetivo aparente, mostrando que entre seus participantes existia a consciência de classe, formada por uma relação antiga da estrutura social excludente.
Foram estudadas a participação de mulheres, indígenas, escravos, analisadas listas de prisioneiros, táticas de combate, tortura e resistência. A nova historiografia da Cabanagem preza um movimento dinâmico, alicerçado na consciência de classe e que, mesmo não tendo galgado maiores desdobramentos, marcou as relações sociais na região Norte.
BIBLIOGRAFIA:
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Cabanagem: percursos históricos e historiográficos. In: DANTAS, Monica Duarte (org). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Nos subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e tensões na Cabanagem. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998. (Tese de doutorado).
Revolução e Rebelião não tem o mesmo significado! Rebelião e Revolução não são sinônimos! 2013. Disponível em:http://www.anarquista.net/revolucao-e-rebeliao-nao-tem-o-mesmo-significado-rebeliao-e-revolucao-nao-sao-sinonimos/ Acesso em 05/011/2017.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Acervo da Biblioteca Nacional - RJ
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