segunda-feira, 26 de março de 2018

Amiano Marcelino: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Escultura entalhada em madeira representando o historiador Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.). Alfeld, Alemanha, século XVII.

Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.) foi um militar e historiador nascido na cidade de Antioquia, atual Antáquia, na Turquia. Considerado um dos últimos grandes historiadores romanos (embora fosse grego de nascimento) e o último historiador pagão, escreveu em um período de profundas transformações do Império Romano, com destaque para a ascensão e oficialização do Cristianismo como religião de Estado através do Édito de Tessalônica, decretado pelo imperador Teodósio I em 380 d. C.

Tendo vivido nessa época, século IV, nos oferece, através de sua principal obra, Res Gestae (Os Feitos), que acredita-se ser uma tentativa de continuar a obra de Tácito, um panorama, ainda que de forma fragmentada (dos 31 livros que compunham a obra apenas 17 foram preservados), do processo de conturbação e decadência do Império. De acordo com Bruna Campos Gonçalves, "seu relato começa em 96 d. C. com o reinado do imperador Nerva (96 - 98 d. C.) e perpassa por todos os imperadores terminando sua narrativa com o governo de Valentiniano II (378 - 383 d. C.)" (GONÇALVES, 2008, p. 97). O grosso que sobreviveu de Os Feitos cobre os reinados de Constâncio II, Juliano, o Apóstata, e Valentiniano II.

O primeiro livro sobrevivente, de número 14, é dedicado, em um primeiro momento, às ações de César Galo, primo de Constâncio II. Galo foi um César extremamente cruel e violento, assim como seu primo, sobre quem recaem as atenções do historiador posteriormente. Além das descrições sobre Galo e Constâncio II, também é feita uma digressão sobre os costumes dos sarracenos. Roma, para Amiano, era uma cidade que atravessara todos os estágios da vida, passando do estado pueril para a maturidade, chegando à velhice com grande sabedoria. Os romanos do passado eram simples, desprendidos da ganância. A partir dessa imagem da cidade é apresentada uma outra, a da luxúria e ostentação de alguns habitantes, elementos já criticados por poetas e historiadores de tempos mais remotos. Alguns tem apelidos como "Barril", "Linguiça" e "Barriga de Porco". Esse é, de acordo com John Burrow, 

"o velho tema da luxúria contrastada com a virtude e a venerabilidade romanas antigas, mas apresentado aqui com vivacidade e riqueza de detalhes excepcionais, e uma forte sugestão de lembranças de desfeitas pessoais; é decerto particularmente penoso que, por ocasião de uma ameaça de escassez de alimentos, quando os estrangeiros foram expulsos da cidade, não tenha sido feita exceção aos professores de artes, mas sim a dançarinos e professores de dança" (BURROW, 2013, p. 190).

Ainda falando sobre Galo, Amiano utiliza metáforas animais para descrever esse César, que ora era como "uma cobra ferida por uma lança ou pedra" ou "um leão que experimentou o gosto da carne humana". São feitas algumas digressões sobre as Províncias do oriente. Por último, Galo teve um destino semelhante ao de muitos príncipes e imperadores predecessores: foi executado. Amiano invoca a justiça divina, Adrastia (Nêmesis), "que pune a maldade e recompensa as boas ações [...] Rainha das causas, árbitra e juíza de todas as coisas, ela controla a urna de onde se retira a sorte dos homens e regula suas vicissitudes de fortuna" (BURROW, 2013, p. 191). 

Boa parte dos elementos do pensamento histórico e prática historiográfica vistos no livro 14, segundo John Burrow, voltarão a aparecer nos fragmentos posteriores: 

"desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita e o acréscimo de imagens de bestas selvagens" (BURROW, 2013, p. 192).

Outro elemento marcante é a crença de Amiano em presságios e adivinhações, para ele conhecimentos inexatos e muitas vezes utilizados de forma indevida ou exagerada. Os deuses, a exemplo dos sinais dados por pássaros, controlavam esses animais para revelar aos homens diferentes tipos de acontecimentos. Na condição de militar, ficou ligado ao exército até 363 d. C., tendo sido testemunha ocular de inúmeras batalhas, acompanhando as campanhas dos imperadores no Oriente, na Gália e na Germânia. Nas campanhas de Juliano, observa e descreve as cenas dos campos de combate.

O interesse de Amiano pelo reinado de Juliano diz respeito a sua tentativa de reviver os cultos pagãos, abandonando o Cristianismo, tentativa essa que lhe reservou a alcunha de Juliano, o Apóstata. As ações de Juliano são violentas, com a proibição aos cristãos de ministrarem aulas, destruição de igrejas e inúmeros sacrifícios. Esses atos eram criticados por Amiano, pois seu paganismo era "[...] de um tipo mais contido e genial" (BURROW, 2013, p. 195). Amiano, ao contrário de outros historiadores como Tácito, que tinha uma visão depreciativa dos cristãos, demonstrava certa tolerância com os praticantes dessa religião.

Após a morte de Juliano, os governos seguintes são marcados por dois acontecimentos considerados críticos: a permissão da entrada de godos via Danúbio em territórios romanos (376) e a derrota e morte do imperador Valente na batalha de Adrianópolis (378). Roma era assediada, mas não estava em declínio. Era, antes disso, o centro do mundo, a Cidade Eterna. Amiano, grego, escreve em latim. Bruna Campos, citando o professor Ronald Mellor, apresenta duas prováveis causas para essa escolha:

"A óbvia razão literária era continuar a obra de Tácito, enquanto que a razão política era escrever, como chamou o retórico grego Temístio την διαλεκτον κρατουσαν (‘a língua dos nossos governantes’). Diferentemente do cortesão Temístio, Amiano não estava tentando alcançar os favores imperiais, mas estava profundamente comprometido com Roma e com sua herança politica. Seu orgulho de sua cidadania romana é evidente em toda sua obra". (MELLOR, 1999, p.126). 

Amiano Marcelino, considerado um  dos últimos grandes historiadores romanos (de origem grega) da Antiguidade Tardia e o último historiador pagão, escreveu sua obra em latim, obra essa cujos principais elementos são a desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita; o acréscimo de imagens de bestas selvagens; e a crença em presságios e adivinhações. Res Gestae é mais uma obra do último século de existência do Império Romano, que oferece, ainda que de forma incompleta, um panorama da desestruturação da unidade imperial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, tradução de Nana Vaz de Castro, 2013.

GONÇALVES, B. C. . Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae: tratamento documental e os livros XXV, XXVI e XXVII. In: XXIII Semana de Estudos Clássicos / V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos Cultura Clássica: Inter-relações e permanência, 2008, Araraquara. Anais da XXIII Semana de Estudos Clássicos V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos. Cultura Clássica: inter-relações e permanência, 2008. p. 95-102.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Falkensteinfoto/Alamy Stock Photo

domingo, 18 de março de 2018

Francesco Guicciardini: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Francesco Guicciardini (1483-1540).

O historiador e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo de Nicolau Maquiavel (1469-1527), dedicou-se aos escritos políticos, produzindo História da Itália, obra de publicação póstuma que versa sobre a história contemporânea e recente das cidades-Estado italianas. Na introdução, o autor deixa claro quais foram as suas motivações e o ponto de partida para escrevê-la:

Eu decidi escrever sobre os eventos que ocorreram na Itália dentro de nossa memória, desde as tropas francesas, convocadas por nossos próprios príncipes, começaram a suscitar aqui grandes dissensões: um assunto mais memorável, tendo em vista seu alcance e variedade, e cheio dos acontecimentos mais terríveis; já que, durante anos, a Itália sofreu todas aquelas calamidades com as quais os miseráveis mortais costumam ser afligidos, às vezes por causa da justa ira de Deus e às vezes por causa da impiedade e maldade de outros homens. A partir de um conhecimento de tais ocorrências, tão variadas e tão graves, todos podem tirar muitos precedentes saudáveis tanto para si quanto para o bem público (1984, p. 3).

O livro de Guicciardini, que cobre um período que vai de 1490 a 1534, surge em um contexto de ebulição política marcada por conflitos militares entre os principais Estados da Europa e as cidades-Estado italianas, gestados pelas disputas de soberanos franceses interessados em garantir seus direitos hereditários sobre o Reino de Nápoles e o Ducado de Milão. Essa é a essência do trabalho de Guicciardini: a política, a relação entre os Estados europeus. De acordo com John Burrow, “ele entendia que a política era formada por configurações e circunstâncias únicas, e a história era o instrumento ideal para avaliá-las” (2007, p. 322).

Ainda conforme Burrow, Guicciardini era comprometido com o esmiuçamento dos fatos históricos, buscando explicações múltiplas para os acontecimentos. “Ele raramente oferece um único motivo para uma ação se puder pensar e três os mais” (2007, p. 322). Analisando a Itália e seu bom aspecto político e social no final do século XV, o autor escreveu:

Muitos fatores a mantiveram nesse estado de felicidade, que foi a consequência de várias causas. Mas foi mais comum concordar que, entre estes, nenhum pequeno louvor deve ser atribuído à indústria e habilidade de Lorenzo de Medici, tão eminente entre as classes ordinárias de cidadãos na cidade de Florença, que os assuntos dessa República foram governados de acordo com seus conselhos (1984, p. 4).

Esse interesse pelos detalhes, pelo íntimo das causas, segundo John Burrow, tem duas consequências importantes. “A primeira, da qual ele tem total consciência, é a advertência contra o excesso de confiança de comentadores e, mais importante, de estadistas: arrogância é insensatez. A segunda, que permeia toda a sua obra, é o comprometimento com a explicação através da narrativa, contando a densa particularidade de cada momento histórico relevante” (2007, p. 328).

No contexto cultural e historiográfico desse período de transição do mundo medieval para o moderno, Guicciardini, embora menos conhecido que outros humanistas italianos, possui um lugar de destaque. Com sua História da Itália, rompe com a tradição do estudo localizado, da escrita individual sobre as diferentes cidades-Estado, abordando a Itália de uma forma geral, além de fazer digressões sobre as outras nações beligerantes. Vale lembrar que Guicciardini, entre 1508 e 1509, publicou História de Florença, obra de estudo local sobre sua terra natal, que vai de 1378, com a Revolta dos Ciompi, até 1509, com a Batalha de Agnadello, uma das maiores das Guerras Italianas.

O professor Maurício Parada, autor de Os historiadores clássicos da História, em um capítulo dedicado a Guicciardini, recupera alguns estudos historiográficos que servem de norte para compreender o pensamento histórico e a prática historiográfica desse historiador italiano. Eduard Fueter (1876-1928) afirma que Guicciardini não se interessava pela filosofia da história, prendendo-se à realidade, mas era extremamente preciso em suas análises empíricas, penetrando-as psicologicamente. Soma-se a isso a sua independência quase absoluta do juízo e o “egoísmo político”, que serve para apresentar as personagens como elas são, não de forma idealizada. Para Fueter História da Itália tem duas importantes inovações, a já citada abordagem geral (a Itália não é vista como uma unidade, mas um conjunto de diferentes povos que possuem certos elementos que garantem um certo grau de “união”) e o pessimismo político; e a pesquisa em arquivos públicos e familiares.

Felix Gilbert (1905-1991) segue a mesma trilha de Fueter, destacando o exame psicológico da história e a metodologia da pesquisa em arquivos públicos e familiares. Para ele essa é a última produção histórica escrita segundos os padrões clássicos e a primeira da historiografia moderna. Peter Bondanella (1943-2017) destaca a pesquisa documental feita por Guicciardini, chegando a afirmar que História da Itália foi precursora das histórias filosóficas de Voltaire, Gibbon, Montesquieu e Heggel. Para Mark Salber Phillips (1946) o diferencial de Guicciardini estaria na psicologia e no auto-interesse que guiavam os eventos de sua História. Eric Cochrane (1928-1985) considera que Guicciardini não era um anti-humanista, mas um herdeiro da escola historiográfica surgida no século XIV. A novidade de seu livro estaria na passagem da história das cidades para a história da nação, na conexão entre as narrativas das histórias das diferentes entidades políticas italianas.

Em síntese, ainda que com leves diferenças entre as análises de Fueter, Bondanella, Mark Salber e Eric Cochrane, Francesco Guicciardini realizou pesquisas empíricas em arquivos públicos e familiares, buscando nas fontes elementos das ações humanas que desencadearam os processos políticos da história recente das cidades-Estado italianas no período em que vivia. Guicciardini pode não ter rompido totalmente com a tradição humanista dos séculos XIII, XIV e XV, mas procurou inovar no que tange a abrangência temporal, ainda que em um intervalo curto de tempo se comparado, por exemplo, com a Nuova Crônica de Giovanni Villani, que vai da fundação da cidade de Florença até a segunda metade do século XIV.

O elemento que permeia a sua obra é a Fortuna (a boa ou má sorte). A Fortuna, para ele, é de grande importância na vida dos homens, no caso, dos políticos italianos e de outras nações, pois por mais que estes façam diferentes tipos de planos, projetos, são sempre atingidos por eventos favoráveis ou catastróficos que escapam de suas idealizações, restando a Fortuna, que lembra os homens de estes não podem controlar o destino. Como escreve em um período marcado por conflitos, também faz descrições das batalhas, das táticas de combate e dos materiais bélicos empregados; além de análises diplomáticas.

Em uma última análise, John Burrow afirma que a história de Guicciardini não foi uma imitação dos modelos humanistas. Ela, em parte, traz elementos que os lembram, como a produção de discursos para análises políticas, mas é original nas descrições das “complexas redes de relações diplomáticas”, e a “mudança de um centro de poder para outro é excepcionalmente rápida e por vezes, há de se admitir, confusa” (2007, p. 330). Os humanistas, em contrapartida, prezavam por modelos bem estruturados. Francesco Guicciardini, estadista, foi um historiador político, interessado nos eventos que sacudiam a Península Itálica desde fins do século XV e, mais ainda, no comportamento humano, guiado por interesses pessoais, com a Fortuna sempre a modificá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro: Record, 2013. Tradução Nana Vaz de Castro.

GUICCIARDINI, Francesco. The History of Italy. Princeton University Press; New Edition, 1984. Translated by Sidney Alexander.

PARADA, Maurício. Os historiadores clássicos da História, Vol. I - de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://omneslitterae.it


sexta-feira, 2 de março de 2018

A última sessão do Cine Guarany

Os portões do Cine Guarany sendo fechados após a última sessão. Foto de João Rodrigues.

O Cine Guarany foi um dos cinemas mais icônicos de Manaus, construído em 1907 e tendo as atividades encerradas em 1984. Na Avenida Floriano Peixoto, fazendo esquina com a Avenida Sete de Setembro, destacava-se por sua arquitetura mourisca, marcando várias gerações do século XX. Do antigo local restam fotografias e memórias de seus antigos frequentadores. No texto de hoje, o pesquisador Ed Lincon, revelando seu talento literário, nos transporta para a última sessão do Guarany, na noite de 31 de agosto de 1984:


A Última Sessão do Cine Guarany

Ed Lincon Barros da Silva

É noite de sexta-feira, 31 de agosto de 1984. O local é o prédio construído em 1907 em estilo mourisco localizado na av. Floriano Peixoto n° 54, esquina com a Sete de Setembro, onde funciona o cinema mais antigo de Manaus ainda em atividade, o Guarany. Em sua tela, dois filmes em exibição: Moças Sem Véu, das 21 às 22 horas e A Ilha dos Mil Prazeres, das 22 às 23 horas. É a última sessão dupla deste cinema, que nesta noite encerra as suas atividades cinematográficas exibindo filmes de sexo explícito, predominantes nos últimos tempos. Durante toda a semana, a Empresa Bernardino, arrendatária do prédio do Cine Guarany, publicou nos jornais da cidade o seguinte aviso: "A Ilha dos Mil Prazeres será o último filme deste cinema que funcionará até 6° feira. Aos distintos espectadores que frequentam esta casa de espetáculo muito obrigado. Empresa de Cinemas Bernardino Ltda". Há alguns meses, em entrevista aos jornais locais, Adriano Bernardino Filho, que há anos explora o cinema, disse que o prédio pertence aos herdeiros de J. G. Araújo, que não quiseram mais renovar o contrato de arrendamento, preferindo vende-lo para o Banco Itaú de São Paulo que construirá no lugar um prédio moderno para abrigar mais uma de suas agências.

Na platéia do cinema não mais que 15 pessoas assistem a sessão de encerramento. No corredor central andando nervoso de um lado para o outro, está o seu gerente Antonio Pereira da Cunha, 53 anos, conhecido pelos frequentadores como "Português". O seu nervosismo é devido ao fechamento do cinema: - "Hoje é o fim dele!" Repete várias vezes agitando as mãos e questionando os repórteres de um matutino local: "O que nós podemos fazer? Esse é o único cinema em Manaus "popular com todo mundo" apesar da falta de conforto. Todo mundo entra aqui como quer, de bermuda, sandália". Na terça-feira, 28 de agosto, em plena praça Heliodoro Balbi ou popularmente da Polícia, um grupo de 35 frequentadores do Guarany fizeram um protesto tardio contra o seu fechamento.

Na bilheteria, D. Ana Rocha Leão, uma das primeiras mulheres a ser admitida pela Empresa A. Bernardino onde trabalha há mais de 12 anos, vendeu o último ingresso de n° 676927453, a um antigo frequentador assíduo do Guarany que preferiu permanecer no anonimato. As galerias cujos ingressos eram mais baratos estão vazias. Na tela o filme chega ao fim, acendem-se as luzes e, os últimos e poucos espectadores saem da sala de espetáculos em silêncio. Na cabine de projeção, após desligar um dos gigantescos projetores à carvão, está José Soares Sobrinho, funcionário da Empresa Bernardino desde 1976 e no Guarany onde trabalha desde 1981, mexe na "Enroladeira" que como o próprio nome diz, é a máquina que enrola ou rebobina o filme para a sua próxima exibição que infelizmente não vai mais acontecer. José Soares, e mais quatro funcionários irão trabalhar em outro cinema da empresa. Chorando, Antonio Pereira ocupando a gerência do cinema desde a morte em agosto de 1969 de Vasco José de Faria (o querido e popular vovô Vasco da criançada pobre de Manaus), com um martelo e um formão, dá início a desmontagem das cadeiras da platéia. Lá fora, um caminhão as espera para levá-las ao depósito em que foi transformado o prédio do ex-cine Ipiranga, localizado na praça General Carneiro no bairro da Cachoeirinha e também vendido pela A. Bernardino (atualmente funciona no local uma loja de eletrodomésticos da TV Lar). Alguns ex-frequentadores entram no prédio à procura de coisas raras: cartazes, fotos, pedaços de celuloides etc. Outros pedem permissão para levar algumas das cadeiras da platéia para casa. Todos querem guardar consigo uma lembrança do velho cinema. A tela que outrora exibira grandes filmes está vazia e em silêncio. O que se ouve apenas é o barulho dos carros que passam pela rua.

Entretanto, o último e triste filme do Cine Guarany, ainda não havia sido exibido: o da sua destruição total. E ele não tardou a chegar. O local onde várias gerações costumavam se divertir, principalmente nas tardes de domingo iria virar ruínas. Na esquina da av. Getúlio Vargas com a Sete de Setembro, seu rival e vizinho, o prédio do ex-cine Teatro Politeama (1912-1973), depois de alguns anos funcionando como loja de eletrodomésticos, seria reformado para transformar-se também em agência bancária. As sereias da fachada do Politeama testemunham silenciosas, a queda do companheiro de muitos anos e ficam quietas para também não serem notadas e destruídas. O progresso é implacável com as coisas antigas da cidade. O engenheiro responsável pela demolição do Guarany, disse em tom de deboche que o prédio era feio e que não valia a pena ser restaurado porque estava caindo aos pedaços.

No dia 23 de setembro, quando a demolição do Cine Guarany começa pra valer e com a poeira tomando conta do local, já é possível vislumbrar pedaços de madeira entulhadas de um lado, as telhas de barro português que antes recobriam o teto amontoadas do outro, algumas estão empilhadas na escada de ferro rusticamente trabalhada, onde muitas vezes nas festas de aniversário do Guarany, a criançada subia fazendo tremenda algazarra. Em outro canto, um monte de latas contendo filmes de todos os gêneros: bang-bang, seriados, paixões de Cristo, entre outras, encontram-se espalhadas pelo chão, não servindo mais para projeção, nem como entretenimento. Os operários responsáveis pela demolição são impiedosos e implacáveis, e com suas marretas e picaretas destroem tudo o que vêem pela frente. Alguns fotógrafos registram em suas máquinas os últimos momentos do Guarany, cuja agonia dentro de poucos dias chegaria ao fim, como de fato chegou.

No dia 8 de outubro de 1984, depois de 77 anos de existência, o que restava do prédio do Julieta, do Alcazar e do Guarany era um amontoado de entulhos removidos pelos tratores. Não havia mais nada a fazer. A última sessão do Cinema Guarany chegara ao fim. Hoje, neste ano de 2007, se ainda estivesse existindo, estaria completando 100 anos. Evoé, Guarany!


CRÉDITO DA IMAGEM:

João Rodrigues/Acervo do pesquisador Ed Lincon