segunda-feira, 30 de abril de 2018

Anúncios diversos da Província do Amazonas (1857-1884)

No presente texto selecionei alguns anúncios de jornais que circularam no Amazonas no período provincial, entre 1857 e 1884. São recortes de casas comerciais, de grande e médio porte, de recompensas para captura de escravos, de serviços oferecidos por particulares, de produtos importados etc. A partir desses anúncios pode-se compreender parte da dinâmica comercial na Província do Amazonas, conhecer os produtos que circulavam na região e ter uma noção de como funcionava a publicidade no século XIX.

José Piranga, escravo negro e oficial de calafate, humilde e com 32 anos, fugiu do domínio de José Joaquim de França, no dia 9 de abril de 1857, levando consigo seu filho de nome Cipriano, de 13 anos de idade. Percebam como funcionava a circulação de escravos: José Piranga foi escravo do Capitão Thomaz, de Villa Bella, sendo posteriormente comprado por José Coelho do Itaituba, que o vendeu a José Joaquim de França, o anunciante. O proprietário oferecia uma gratificação a quem os trouxesse de volta, assim como a repressão àqueles que lhes dessem abrigo. Serpa (Itacoatiara), 10 de abril de 1857.

Mesquita e Irmãos, grandes comerciantes da época, estabelecidos na antiga rua do Imperador (Marechal Deodoro), anunciam para aluguel um escravo que entende de cozinha. O aluguel de escravos garantia uma boa renda aos proprietários. Manaus, 1866. 


O Major Tapajós, das 9 da manhã às 3 da tarde oferecia em sua casa serviços fotográficos, utilizando os mais diferentes sistemas. Também fazia retratos em casas particulares e tirava fotos de pessoas falecidas, revelando a existência da prática de fotografias mortuárias no Amazonas. Além de trabalhar com fotografias, concertava caixas de música. Manaus, 1866.

A Saboaria Vista da Alegre, de Amorim & Irmãos, foi premiada na II Exposição Nacional de 1866, no Rio de Janeiro. Além de comercializar na cidade, também exportavam seus produtos, sabões pretos e amarelos, para o interior da Província. O depósito ficava na rua Brazileira (Sete de Setembro), cuja referência era a loja de nove portas. Manaus, 1868.

José Joaquim Ribeiro Couto, proprietário da loja Ville de Pariz, localizada entre a Travessa da Matriz (Lobo D' Almada) e a rua dos Inocentes (Visconde de Mauá), investiu pesado na divulgação de seus produtos importados através de um rico e interessante trabalho artístico com motivos florais. As fazendas, perfumes, chapéus, cintos e outros objetos que anuncia formam uma ampulheta. Manaus, 1869.

Por 2 mil réis o quilo e meio (o pagamento deveria ser feito à vista) era possível encomendar gelo de Antonio Rodrigues Soares, estabelecido na Praça da Imperatriz (Praça da Matriz de Nossa Senhora da Conceição). Manaus, 1878.

Profissionais liberais também anunciavam seus serviços. O advogado Luiz Mesquita de Loureiro Marães atendia no escritório da redação do jornal Comércio do Amazonas, na rua Henrique Martins, N° 18. Manaus, 1880.

Todos os dias, das 5 às 7 da manhã, um certo 'Braga', morador da rua Henrique Martins, vendia leite de vaca, possivelmente ordenhado na hora. Esse tipo de comércio passaria a enfrentar grandes dificuldades a partir das décadas finais do século XIX, quando foram instituídos Códigos de Posturas mais rígidos em relação à comercialização de produtos naturais e a higiene envolvida nos processos. Manaus, 1880.

O doutor D. F. Deserbelles, cirurgião dentista, oferecia seus serviços em um gabinete dentário instalado em uma das casas do Barão de São Leonardo, no Largo de São Sebastião, após retornar de uma viagem pelo rio Purus. Manaus, 1884.


FONTES (PERIÓDICOS):

Estrella do Amazonas
Jornal  Amazonas
Jornal do Rio Negro
Comércio do Amazonas
Almanaque Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas (1884)

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Os Arquivos de Manaus

Arquivo Público do Estado do Amazonas, na rua Bernardo Ramos, no Centro.

Os arquivos, públicos ou particulares, são os locais onde estão abrigadas, em boas ou más condições, as fontes documentais que servirão de norte para o trabalho do historiador, fontes essas que serão analisadas, problematizadas e entrecruzadas para a produção de narrativas históricas.

Em Manaus, essas instituições têm suas origens localizadas na segunda metade do século XIX, quando foi criada a Província do Amazonas, o que fez surgir, consequentemente, um sistema burocrático de emissão de documentos de diferentes tipos. O mais antigo e ainda em funcionamento é o Arquivo Público do Estado do Amazonas, fundado em 1897.

Nos últimos anos, algumas instituições como a anteriormente citada passaram por reformas em suas estruturas, tiveram seus documentos organizados, catalogados por historiadores e arquivistas, além de receber um corpo de funcionários capacitados para auxiliar os pesquisadores.

Listei abaixo alguns arquivos disponíveis para pesquisa na cidade. Confiram:

Arquivo Público do Estado do Amazonas

Rua Bernardo Ramos, N° 265, Praça Dom Pedro II, Centro.

Arquivo Público Municipal

Av. Desembargador João Machado, quadra 5, casa 20 - Conjunto Jardim Belvedere, Alvorada III.

Arquivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)

Rua Frei José dos Inocentes, N° 132, Centro.

Museu Amazônico

Av. Ramos Ferreira, N° 1030, Centro.

Centro Cultural dos Povos da Amazônia

Praça Francisco Pereira da Silva (Bola da Suframa), Distrito Industrial/Crespo.

Cúria Metropolitana

Av. Joaquim Nabuco, N° 1023, Centro.

Arquivo Central do Poder Judiciário do Amazonas (TJAM)

Av. Constantino Nery, Flores.

Biblioteca Pública do Amazonas

Rua Barroso, N° 57, Centro.

Cartório Rabelo, 1° Ofício de Notas¹

Avenida Djalma Batista, N° 327, São Geraldo/Av. Eduardo Ribeiro, N° 647, Centro.

Imprensa Oficial do Estado do Amazonas

Rua Dr. Machado, N° 86, Centro.

MISAM (Museu da Imagem e do Som do Amazonas)

Centro Cultural Palacete Provincial, Praça da Polícia, Centro.

Museu Tiradentes

Centro Cultural Palacete Provincial, Praça da Polícia, Centro.


NOTAS:

¹ A pesquisa no Cartório Rabelo é paga, ficando entre 70 e 100 reais por pesquisador.


CRÉDITO DA IMAGEM:

SEAD, 2018.

Políbio de Megalópolis: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Políbio de Megalópolis (200 a. C. - 118 a. C.). Estátua localizada no Parlamento de Viena, na Áustria.

Políbio de Megalópolis (200 a. C. - 118 a. C.) foi um historiador grego nascido na cidade de Megalópolis, na região da Arcádia. O período em que viveu, de derrocada do mundo helenístico e hegemonia do Império Romano, influenciou grandemente sua produção historiográfica, representada pela obra Histórias, formada por 40 volumes (cobre o período que vai de 220 a. C até 167 a. C.) e cuja análise central recai sobre diferentes aspectos da dominação romana e suas instituições políticas.

Feito prisioneiro pelos romanos, conheceu diretamente suas instituições políticas e como estas funcionavam. O principal elemento do pensamento histórico desse historiador grego diz respeito à história pragmática. A produção de uma narrativa histórica deveria ter uma utilidade, e para Políbio a utilidade da história seria a de que esta possibilitaria a compreensão do tempo presente das sociedades auxiliando nas formas de agir sobre estas. Por formas de agir, entende-se a prática política. Políbio trazia algumas concepções anteriormente vistas em historiadores como Heródoto e Tucídides, da história com um sentido pedagógico para as futuras gerações, mas inovava em certos aspectos:

"[...] Resolvi escrever uma História do gênero pragmático, primeiro porque há sempre uma novidade digna de tratamento novo - não seria possível aos antigos narrar eventos posteriores à sua própria época - e, em segundo lugar por ser considerável a utilidade prática de tal gênero de História, tanto no passado quanto - e principalmente - no presente, numa época em que o progresso das artes e das ciências tem sido tão rápido que as pessoas desejosas de aprender são capazes - digamos assim - de submeter a uma análise metódica quaisquer circunstâncias passíveis de exame. Sendo então o meu objetivo não tanto entreter os leitores quanto beneficiar os espíritos afeitos à reflexão [...], me dediquei a escrever este gênero de História" (POLÍBIO, Histórias, 9, 2).

Nessa passagem, fica claro que a história pragmática, para Políbio, era um gênero à parte de outras formas de trabalho histórico. O historiador grego não pretende entreter seus leitores. Isso está relacionado à prática de antigos historiadores que escreviam genealogias de famílias nobres e realizavam estudos sobre a origem de cidades, gêneros que, para Políbio, estavam voltados mais para o entretenimento do que para a reflexão. Tendo experiência em assuntos militares, interessava-se pela descrição das campanhas, aderindo ao militarismo cívico em oposição ao militarismo tirânico. Políbio realizou um trabalho metódico, pautado no exame crítico das fontes, no conhecimento dos lugares que cita em seu trabalho (o que evidencia a relação entre história e geografia) e na experiência com a política (em sua terra natal, foi eleito hiparco, comandante da cavalaria).

Também relaciona-se à sua história pragmática a ideia de que a história do mundo até então habitado e conhecido, o ecoumene, estava conectada a partir da Segunda Guerra Púnica:

"Até essa época os eventos mundiais tinham sido por assim dizer dispersos, pois não eram interligados por uma unidade de iniciativa, de resultados ou de localização; desde essa época, porém, a História passou a ser um todo orgânico, e os eventos na Itália e na Líbia interligaram-se com os da Hélade e da Ásia, todos convergindo para um único fim. Por isso a nossa História pragmática inicia-se nessa época" (POLÍBIO, Histórias, 1, 3).

As ações humanas, para o historiador, possuem início, causa e pretexto. Os dois últimos elementos de causalidade (causa e pretexto), seriam o fio condutor do primeiro (início). Sobre a Fortuna ou a intervenção divina, Políbio tem uma concepção interessante: Só se devem atribuir as causas aos desígnios divinos quando estas não podem ser explicadas dadas suas complexidades. Caso sejam naturalmente compreensíveis e alcançáveis pela razão, devem ser entendidas como eventos decorrentes da ação humana.

Sobre a concepção de história de Políbio, cujo cerne é a política, diz o professor de História Antiga da Unb, Henrique Modanez de Sant' Anna:

"Há, no tempo do nosso autor, uma versão estoica acerca da sucessão cíclica das formas de governo, a qual Políbio incorpora numa sequência curiosa de mudanças políticas vistas na história: da monarquia, a primeira forma de organização conhecida (para Políbio, ao menos), passando pelas revoluções e etapas intermediárias do processo (tirania, aristocracia, oligarquia e democracia), à democracia anárquica ou eclocracia, que conduz toda a sociedade novamente ao ponto de sua teoria cíclica, vale dizer, ad infinitum"(SANT' ANNA, 2012, p. 147).

João Emiliano Fortaleza de Aquino, professor de filosofia da Uece, em contrapartida, afirma que deve-se distinguir a noção de história cíclica das instituições políticas da concepção da prática historiográfica de Políbio, o que seria contraditório, tendo em vista ser ela uma "história pragmática, contemporânea e útil" (AQUINO, 2006, p. 66).

Para Políbio, o sucesso de Roma na dominação de vastas áreas do mundo conhecido explicava-se pela característica de sua constituição política, mista, constituída por monarquia (cônsules), aristocracia (senadores) e democracia (povo), o que evitaria que o sistema político se degenerasse em apenas uma forma de governo, com a união dos melhores elementos dessas formas de governar.

Políbio escreveu em dialeto ático, em prosa, sem recorrer a elementos estilísticos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AQUINO, João Emiliano Fortaleza. Memória e consciência histórica. Fortaleza: Editora Uece, 2006.

SANT' ANNA, Henrique Modanez. Políbio e os princípios de sua investigação histórica: algumas considerações. UFF: Revista Mundo Antigo, ano I, V. 01, N. 02 - dezembro de 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://mototurismo.alidays.it

terça-feira, 24 de abril de 2018

Críticas ao conceito de ciclo econômico: Os estudos de João Pacheco de Oliveira

Mucambos de Santo Amaro (Pernambuco).

O nascimento do Brasil e outros ensaios: "pacificação", regime tutelar e formação de alteridades (2016), de João Pacheco de Oliveira, é uma espécie de relançamento de seu texto clássico O caboclo e o brabo (1979), célebre na explicação dos processos históricos da Amazônia a partir de uma visão não economicista e cíclica, fazendo uma crítica a essa abordagem, crítica essa que continua ecoando na atualidade.

Cristalizou-se, a partir dos estudos de autores tanto locais quanto de outras regiões, e de diferentes áreas das ciências humanas, o conceito de 'ciclo econômico' como base das análises referentes à História da Amazônia. Em 1979 e, mais recentemente, em 2016, guardadas as diferenças temporais, João Pacheco frisa a necessidade de que seja superada essa visão determinista da História.

De acordo com João Pacheco de Oliveira, a noção de ciclo econômico já está a um bom tempo ultrapassada, ainda que permaneça seu uso. O ciclo é generalizante, sintetizador, fechado em si mesmo. Estudar a região a partir desse modelo fechado faz com que não se dê conta de uma gama de relações sociais, de trabalho, de outros modos de produção que não o gomífero, mas paralelos e de certa forma a ele relacionados, pois além do produto rei, no topo da pauta de exportação, existem outros que demandam diferentes trabalhadores e formas de trabalho.

Como consequência, esse modelo obscurece tipos sociais, mascara conflitos e realidades distintas, servindo satisfatoriamente como forma de explicação para os que formam o topo das relações de poder econômicas. Pode-se pensar, teoricamente, na divisão feita pelo economista e cientista político liberal austríaco Joseph Schumpeter, segundo a qual o ciclo econômico está dividido da seguinte forma: boom, recessão, depressão e recuperação. Ou ainda no marxismo estruturalista, dogmático, aquele criticado por Edward Palmer Tompson, no qual seus teóricos dão mais atenção ao economicismo e não aos fatores humanos, culturais, como propulsores da luta de classes.

Com influências tanto do liberalismo quanto do marxismo economicista, o modelo cíclico não dá conta da complexidade, da heterogeneidade, das relações, dos modos de produção e da configuração histórico-social da região.

Formuladas e apresentadas as críticas, o autor sugere os estudos a partir do conceito de 'fronteira', aqui entendido não do ponto de vista geográfico, material, mas como uma categoria, um ponto de análise abstrato, representado pelas relações sociais, pelos conflitos, pela formação identitária.

O seringal, tomado como exemplo, entre o final do século XIX e o início do século XX, é o local da fronteira amazônica, palco de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de diferentes modos de produção. Outro exemplo são os mucambos, onde a fronteira é marcada pela unicidade e pela heterogeneidade. Nesses agrupamentos existem tipos sociais marginalizados diversos, como escravos fugidos, ex-escravos, indígenas e brancos pobres. Essa é a heterogeneidade. No entanto, esses tipos sociais se unificam, tornam-se homogêneos, quando precisam resistir às agressões de particulares ou do Estado. No seringal e nos mocambos está representada a fronteira de relações sociais.

O estudo da região amazônica a partir da (s) fronteira (s) abarca um número variado de tipos sociais, de modos de produção interligados, de peculiaridades locais, mostrando-se mais abrangente que o modelo determinista e fechado de ciclo econômico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

OLIVEIRA, João Pacheco. O 'caboclo' e o 'brabo': notas sobre duas modalidades de incorporação da força de trabalho na expansão da borracha no vale amazônico no século XIX. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v.11, p.101-140, 1979.

_____________________. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

CRÉDITO DA IMAGEM:

FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste: Algumas notas sobre o typo de casa popular mais primitivo do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, s. d.

domingo, 22 de abril de 2018

Nossos Combates pela História

'A greve de Youngstown', pintura de 1937 de William Gropper.

Acabo de sair de uma aula que ecoará por um bom tempo em minha mente e acredito que também na de meus amigos de curso. Debatemos, em grupo, um capítulo do livro Combates pela História, do historiador francês Lucien Febvre (1878-1956). Leitura bastante pertinente, pois relaciona-se ao tempo em que vivemos, de constantes ataques à educação e, em especial, às ciências humanas. Ela reacende a chama que, pelos entraves acadêmicos ou por problemas externos, estava se apagando (algo bastante comum na reta final da graduação). Nos vemos diante de um autor apaixonado pelo que fez:

"Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas - algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história - e é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo". (FEBVRE, 1989, p. 28).

Por mais que o que chame nossa atenção seja esse tom romântico, Combates pela História deve ser entendido como uma crítica direcionada à escola Metódica Francesa e seus membros. Na época da produção do texto, 1953, Lucien Febvre há muito era um historiador consagrado nos meios acadêmicos franceses, mas remorava  seus combates teóricos e metodológicos travados ora como aluno, ora como professor, pela renovação do campo histórico.

Essa renovação estava há tempos sendo delineada no horizonte, eclodindo com a Escola dos Annales, fundada por Febvre e seu amigo Marc Bloch (1886-1944). François Simiand (1873-1935), sociólogo francês, já tecia críticas à prática historiográfica empreendida pela Escola Metódica, cujos principais pilares, em síntese, eram a crença na neutralidade do trabalho do historiador; na leitura dos documentos como transmissores do passado tal como este teria ocorrido (que juntando-se ao primeiro pilar levaria à "objetividade histórica"); a atenção às grandes personagens e aos aspectos políticos das nações. Para Simiand, os historiador deveriam estudar aspectos sociais, buscar diálogos entre o presente e o passado, refletir sobre as fontes e buscar aportes teóricos.

As ciências, no geral, vinham passando por uma crise desde o século XIX, crise essa de métodos e teorias. Novas descobertas abalavam antigas estruturas, antigas premissas tomadas como verdadeiras e universais. Ocorreram renovações na Sociologia, na Geografia, na Psicologia e em outras áreas. Diante desse quadro de crise e renovação, Febvre perguntava, sobre os postulados da Escola Metódica, se seriam "[...] nós, historiadores, os únicos a continuar a tê-los como válidos?" (FEBVRE, 1989, p. 39).

A noção de história de Lucien Febvre relaciona-se a essa crise das ciências humanas. O autor faz uma crítica à utilização dos epítetos econômica e social no título da revista que criou com Marc Bloch, afirmando que a utilização desses termos não é uma exclusividade, mas surgiu como uma necessidade, pois desejava-se que a história se irradiasse por outras áreas do conhecimento. Para ele não existe uma história econômica e social. A história é, em suma, completamente social, constituindo-se em um estudo

"[...] das diversas actividades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas com as outras [...], com as quais encheram a superfície da terra e a sucessão das épocas" (FEBVRE, 1989, p. 30).

Os objetos de estudo da história são os homens, os homens que estão em constante mudança, alterando o meio e as sociedades das quais fazem parte em determinadas épocas. Podemos nos interessar por áreas distintas como a história econômica, a história política, diferentes áreas da vida humana, mas com a condição de "[...] nunca esquecer que elas o põem (o homem) em causa inteiro, sempre - e no âmbito das sociedades que criou" (FEBVRE, 1989, p. 31). Dessa forma, não devemos estudar os aspectos da vida humana de forma isolada, mas antes compreendê-los como parte de um todo da criação dos grupos humanos em diferentes temporalidades.

Três elementos são importantes para compreender a renovação historiográfica empreendida por Febvre: A interdisciplinaridade, a história-problema e a história como conhecimento cientificamente conduzido.

Uma história interdisciplinar mantém contato com outras áreas do conhecimento que tem o homem como objeto de estudo. Febvre afirma que devemos ser geógrafos, juristas, sociólogos e psicólogos, de forma a ampliar os horizontes do historiador. Pede, também, que não fechemos "[...] os olhos ao grande movimento que, à vossa frente, transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico" (FEBVRE, 1989, p. 40). "O problema, diz Febvre, é o começo e o fim de toda a história". Se o historiador não propõe problemas e não formula hipóteses para resolvê-los em suas investigações, ele será um mero produtor de compilações. Por cientificamente conduzido, compreendo que Lucien Febvre apresenta a história problema como até hoje conhecemos, na qual o historiador problematiza os elementos históricos, tece hipóteses, faz críticas aos documentos, reflete as subjetividades das ações humanas, o que difere do anseio de cientificidade dos historiadores metódicos, no sentido puro da palavra, de uma ciência na qual existe um único direcionamento.

Lucien Febvre pede uma coisa que nós, historiadores, às vezes nos esquecemos de fazer: ele pede que vivamos, vivamos academicamente, familiarmente, amorosamente. Somos humanos. Lutemos por nossos ideais, seja escrevendo ou indo para a rua. Lutemos por melhores condições de trabalho, de educação. Por condições dignas de humanidade! Não devemos "separar a ação do pensamento, a vida do historiador da vida do homem" (FEBVRE, 1989, p. 40). Isso vale para qualquer profissão. Lutemos para continuar renovando a historiografia, mantendo um diálogo entre o presente e o passado. É preciso que deixemos de ver a história, enuncia Febvre, "como uma necrópole adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância" (FEBVRE, 1989, p. 40). Como os cavaleiros medievais, ainda seguindo as alegorias do historiador francês, devemos penetrar o castelo e despertar com a nossa vida a princesa adormecida (a história).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FEBVRE, Lucien. Viver a História. In: Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, Lda. 1989.

CRÉDITO DA IMAGEM:

http://teachgreatjewishbooks.org