domingo, 20 de maio de 2018

Entrevista: Prof. Me. Tiago José Cavalcanti Atroch



Tiago José Cavalcanti Atroch nasceu em Recife, Pernambuco, em 1982, tendo vindo para Manaus em 1999, onde graduou-se em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 2009) e titulou-se Mestre em História Cultural pela mesma instituição (2012). Teve passagens por várias escolas públicas, estaduais e municipais, atualmente ocupando os cargos de professor substituto na graduação em História na Universidade Federal do Amazonas e de professor de História na Escola Municipal Aristóteles Comte de Alencar.

- Professor, conte-nos um pouco da sua infância em sua terra natal, da sua família e do processo de mudança para Manaus.

- Eu já nasci dentro de uma universidade. Meu avô trabalhava na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Então há mais ou menos 60 anos minha família se mudou para o campus de Zootecnia para ficar próxima dele, que cuidava de galinhas, coelhos, porcos e outros animais de criação e também fazia bico de pedreiro. Ele colecionou livros sobre ciência, dos quais consegui salvar três das sombras do esquecimento e os conservo comigo. Atribuo quem eu sou academicamente à posse desses livros.

- E sua infância e adolescência?

- Foram boas, mas passei boa parte delas viajando por muitas cidades. Já vim para Manaus quase adulto, aos 17 anos. Vim de Minas Gerais para cá.

- Algum motivo especial para a realização de tantas viagens?

- Talvez o fato de meu pai ser engenheiro agrônomo e ter se especializado no cultivo do arroz, o que fez eu e minha mãe acompanhá-lo para morar no então Projeto Jari (Jari Florestal e Agropecuária). Depois fomos para Minas Gerais por conta do Mestrado de meus pais. Antes disso, o Projeto Jari faliu e meu pai passou no concurso da Embrapa, em Macapá. Viemos para Manaus porque nesse meio tempo meu pai mudou do cultivo de arroz para o de guaraná.

- Ao chegar em Manaus, o senhor teve algum impacto geográfico ou cultural?

- Acho que sair de uma média de 8 graus para 38. De resto, a Amazônia já era uma velha conhecida.

- Parece uma pergunta clichê, mas desde quando o senhor nutre interesse pela História? E como ele surgiu?

- Comecei com História Natural. Só depois me interessei pela história dos homens. Bem depois, no fim da adolescência.

- O vestibular, para a maioria dos jovens, é a fase decisiva da vida. Quando o senhor teve que escolher um curso a seguir, a história já estava em primeiro plano ou existiam outras áreas de interesse?

- Eu pensei primeiro em Filosofia, mas disseram que eu não ia arranjar emprego. Depois pensei na Psicologia, mas ficou 'cult', e na época eu não queria ser 'cult' (risos). Depois eu pensei na História. É que nesse tempo eu não curtia transformar paixão em trabalho, então história não poderia ser a minha primeira opção.

- O ambiente familiar, de alguma forma, influenciou na escolha pela graduação em História?

- Bom, não sei se pela escolha da História, mas me influenciou muito no amor que sinto pela ciência, apesar de existirem muitas historiadoras em minha família. Mas minha decisão foi independente pois eu nem sabia que minhas primas eram historiadoras (risos).

- Como foram suas passagens como professor de História no ensino público?

- Primeiro foi difícil. Depois eu consegui construir minhas estratégias para dar aula aos desinteressados, e hoje sinto que o que faço faz diferença positiva na sociedade. 

- Quais as principais semelhanças e diferenças, em sua opinião, entre os ambientes acadêmico e escolar básico?

- No ambiente acadêmico a pessoa está lá porque quer. No escolar, geralmente, porque os pais obrigaram. Isso faz toda a diferença.

- Infelizmente as escolas públicas, estaduais e municipais, ainda são vistas por boa parte das pessoas como depósitos de pequenos humanos.

- Isso, quase mini presídios. Nisso Foucault tem toda a razão: Os ensinamos a ficar atrás das grades desde pequenos. 

- Na Universidade o senhor já foi professor substituto de várias disciplinas, mas é mais conhecido pelas de História Medieval I e II, das quais tive a oportunidade de ser monitor. Quando e como o senhor decidiu se dedicar a essa área?

- Foi com o Mestrado, quando comecei a estudar o Giordano Bruno e não conseguia entender o que ele estava dizendo ou criticando sem uma base muito boa de História Medieval. Eu sempre gostei de História Medieval, mas até então ainda não conhecia o Professor Sínval. Só no Mestrado o conheci, aí ele me ajudou a construir uma base, Antiguidade-Medieval-Moderna.

- Aproveitando que o senhor citou o professor Sínval, boa parte do corpo docente atual da graduação é o mesmo que formou a sua geração. Qual ou quais professores influenciaram ou continuam influenciando sua trajetória intelectual/profissional?

- (Risos) Acho que todos contribuíram, por exemplo o professor Auxiliomar sempre deve ser citado, mas os fundamentais para mim foram o Sínval, o Morga, o Almir e a Maria Eugênia. A professora Márcia também ajudou muito, mas estes três aí me ajudaram a procurar um campo de estudo. Também devo citar o professor Aloysio Nogueira, pois sem ele eu nem entenderia o que é dialética.

- Pelos nomes que o senhor citou, com exceção de alguns, dá para perceber o peso da História Cultural em sua formação, na qual o senhor foi titulado Mestre em 2012.

- É, eu acho que desde o início do curso eu me atraí pela História Cultural, pela Antropologia.

- Acredito que nós, voltados para a História Cultural, temos uma relação mais profunda com a Antropologia do que outras áreas da História. Quais autores foram influentes em seus estudos?

- Sim. Muitos, mas destaco o Gilbert Durand, autor de 'As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral', e também Mircea Eliade, com 'O Sagrado e o Profano', que já vai na vertente da Filosofia das Religiões.

- Sua dissertação de Mestrado versa sobre uma obra de Giordano Bruno (1548-1600). Como ocorreu o contato com os escritos do frade dominicano italiano?

- Devo confessar que foi obra do acaso. Eu comprei o livro e achei interessante a ponto de tentar desvendá-lo. O professor Sínval me incentivou, pois no Brasil o 'Tratado da Magia' era quase desconhecido.

- Então pode-se dizer que seu trabalho é uma das contribuições recentes para a compreensão do pensamento desse autor italiano no Brasil?

- Sim, ao menos no que diz respeito ao 'Tratado da Magia' em nosso país. Eu apenas tentei organizar o conhecimento que encontrei para auxiliar o iniciante. Nosso país tem estudiosos sobre Giordano Bruno. Patrícia Lessa, professora da Unicamp, escreveu sobre ele, e também Luiz Carlos Bombassaro, professor da UFRGS. Minha intenção era colocar a magia em foco durante o surgimento da ciência, utilizando o livro de Giordano, e assim captar alguns ecos de permanência medieval na Europa do final do Renascimento.

- Permanências me fazem lembrar a História de Longa Duração, a estrutura temporal inaugurada por Fernand Braudel e que se tornou uma tendência marcante nos estudos de História Medieval. Acredito que seja a melhor forma de se encontrar a continuidade de certos elementos na estrutura social ao longo do tempo.

- Eu também acho.

- Nas conversas que já tivemos, o senhor mostra ter uma grande preferência pela escrita de ensaios em relação aos textos monográficos acadêmicos. Isso se dá pela maior liberdade que o ensaio oferece ou por outros motivos?

- É porque quando passo artigo para os alunos acabo reprovando muitos pela ausência das regras da ABNT, e parece não adiantar advertir sobre isso (risos).

- Por falar em artigos, ano passado, em História Medieval II, tivemos algumas surpresas ao passar a produção de artigos como uma das notas da disciplina. No geral, o que o senhor achou do que foi produzido?

- Achei que li muita coisa com potencial para virar pesquisa.

- Os alunos que decidiram adiantar a disciplina, na minha opinião, apresentaram os artigos mais interessantes. Isso seria o reflexo de uma precocidade para a escrita ou uma guinada voltada mais para o caráter de pesquisa do curso?

- Talvez seja as duas coisas.

- O senhor percebe isso nas turmas pelas quais passou a partir de 2017?

- Não em todas. A sua turma e a de História Antiga, assim como a turma passada, eram muito boas, enquanto outras são menos interessadas.

Além de historiador, o senhor também é artista plástico. São duas áreas que possuem uma relação mais do que próxima, se vermos o historiador como um criador de narrativas, ou “tecelão dos tempos”, como diria Durval Muniz; e o artista plástico como alguém que dá forma à diferentes matérias. Os dois têm a capacidade de “dar vida”.

- Eu creio que sim. Acho que um acaba alimentando o outro, a Arte e a História.

- Professor, eu costumo dizer que se Eric Hobsbawm (1917-2012) ainda estivesse vivo ele já teria publicado a obra “O Ano dos Extremos”, dado os recentes acontecimentos na política nacional e internacional. Algumas pessoas acham que nós, historiadores, gostamos de ser os “sabe tudo”. No entanto, como partimos da relação presente-passado, não podemos deixar de analisar o contexto em que vivemos. Quais cenários o senhor vê sendo delineados em um futuro não muito distante?

- Olha, Fábio, se você leu os comentários do último texto que eu postei (risos), viu que o povo está em pé de guerra. Não sou otimista. O mundo está aplaudindo o massacre do povo palestino. Trump no poder nos Estados Unidos, Vladimir Putin na Rússia e Bolsonaro liderando as pesquisas no Brasil. Eu temo pela minha vida. Não quero acabar numa sala de tortura ou morto e jogado em uma vala comum. Mas, infelizmente, parece que é justamente isso que vai acontecer no futuro. Deus me livre! Eu não posso me calar, e não vou.

- Alguns autores sempre tentam nos lembrar do lado “doce” do ofício do historiador, mas sempre acabamos nos vendo diante da máxima do historiador iluminista britânico Edward Gibbon (1737-1794), autor de 'História do Declínio e Queda do Império Romano', de que a História é "pouco mais que o registro de crimes, loucuras e desventuras da humanidade".

- É por aí. Tento ter otimismo mas o mundo mostra que devo ter cautela. E muita!

- O senhor, diferente de outros professores, parece não ser o que poderíamos chamar de militante extremado. Esses extremos, em qualquer linha de pensamento ideológico, nunca terminam em coisas boas. O senhor crê em um atual colapso da esquerda no mundo Ocidental?

- Mais do que isso, Fábio. Eu vejo um colapso do Humanismo no mundo Ocidental. O que a direita chama de esquerda é o humanismo. Vejo as pessoas querer matar e ficando chateadas quando a lei não lhes permite fazer justiça com as próprias mãos. A esquerda enquanto tal entrou em colapso com a queda da URSS, mas a social democracia, um capitalismo mais humanizado, é o que vem sendo atacado sob o símbolo "esquerda".

- E sobre os recentes ataques à educação (devo dizer novos, pois ela sempre foi atacada), em especial às Ciências Humanas, o senhor também acredita em um futuro desolador?

- A curto prazo sim. Nós mostramos o que a sociedade não quer ver, mas a longo prazo, acho que essa volta à direita, à ditadura e esses ataques às Ciências Humanas vão acabar desacreditados, pois sempre levam à ruína do país e do mundo. O que me preocupa é por quanto tempo esse surto de loucura vai durar.

- Nessas últimas partes da entrevista, ficou fácil para os leitores identificarem sua vertente política/ideológica (risos). No que diz respeito ao conservadorismo, aos costumes e práticas de nossa sociedade, o senhor considera importante cultivar alguns dos elementos anteriormente citados?

- Claro que sim. Não sou um iconoclasta. Mas sempre na medida do bom senso. Perder as referências nunca foi bom para sociedade nenhuma. Mas, quanto à passagem do tempo, alguns valores devem ser adaptados, mas não acho que devemos desvalorizar as raízes da sociedade.

- Disciplina em sala de aula seria um desses elementos tradicionais que deveriam ser mantidos de forma atemporal (risos)?

- Com certeza. Autoridade é importante. Repare que eu falei autoridade, não autoritarismo (risos).

- Algum novo projeto de pesquisa ou planos para a carreira?

-
Estou escrevendo meu projeto de Doutorado. Vou voltar à fonte e ver se o meu plano é exequível (risos).

- Do que trata o seu projeto de Doutorado?

- Ainda estou analisando escrever sobre isso, mas trata-se do papel dos sonhos nos escritos herméticos da Renascença. Na realidade em dois escritos, no 'Tratado da Magia' e no extenso livro de Cornelius Agrippa (1486-1535).

- Então o senhor vai continuar seguindo a linha do imaginário e das representações?

- Sim. Creio que com mais probidade. Quero levar o debate com o Malleus Maleficarum a um nível maior. Eu ensaiei isso no Mestrado, mas timidamente.

- Como disse em outras perguntas, o senhor é o professor do Departamento com o qual mais tenho contato. Em nossas conversas mais recentes, discutimos as condições de trabalho dos professores substitutos. O que o senhor tem a dizer para os leitores sobre esse trabalho?

- Para mim é sempre uma honra lecionar na UFAM. Mas sabendo que o leitor possivelmente é historiador, digo para perseverar em nossa disciplina. Acho que, nesse momento pelo qual o nosso país passa, temos um papel central a desempenhar, no caso como mantenedores da História e da Memória.


Manaus, 08/05/18 - 18/05/18


As fases de ocupação humana da Amazônia

Urna funerária marajoara.

Diferente do que ocorre com a Pré-História da Europa, dividida em Paleolítico,  Mesolítico e Neolítico, a Pré-História da Amazônia é dividida em três fases diferentes das propostas por Thomsem, Lubbock e Mortillet: fase Paleoindígena, fase Arcaica e fase da Pré-História Tardia. Isso se dá pelo fato de a Pré-História da região amazônica ainda não ter sido plenamente estudada e possuir suas próprias especificidades.


FASE PALEOINDÍGENA

A ocupação humana da Amazônia, de acordo com os estudos mais recentes, data de 11.000 a 7.500 anos a. C. Seus primeiros habitantes não possuíam habitação fixa, isto é, eram nômades, e praticavam a coleta de frutos e moluscos, bem como a caça de animais de pequeno porte (diferente dos primeiros povos da América do Norte, que caçavam animais da megafauna - preguiças gigantes, cervos e bisões). Nas regiões do norte do Rio Orenoco, no escudo e na costa da Guiana e no rio Galera, no Mato Grosso, foram encontradas ferramentas de pedra como machados, pontas de lanças e raspadores. Apesar de pontas de lanças terem sido encontradas, a caça de grande porte na região era algo raro.


FASE ARCAICA

A fase arcaica compreende o período que vai de 7.500 a.C. a 1000 a.C., estando caracterizada pela existência de complexos pré-cerâmicos, evidenciando a transição dos grupos coletores para grupos mais complexos que praticavam a agricultura de subsistência. Os sambaquis, depósitos artificiais de conchas, são as principais fontes de informações desse tempo. No sambaqui de Taperinha, em Santarém, no Pará, foram encontrados instrumentos de pedra lascada (machados, moedores e quebradores de grãos), de ossos e alguns exemplares de cerâmica avermelhada com desenhos geométricos. O tamanho dos sambaquis indica o aumento demográfico e o surgimento de grupos humanos que passaram a se fixar em um único local.


FASE DA PRÉ-HISTÓRIA TARDIA

A fase da Pré-História Tardia vai de 1000 a.C. a 1000 d.C. Surgem, à margem dos principais rios da Amazônia, sociedades indígenas bastante complexas em aspectos demográficos, econômicos e políticos. Essas sociedades recebem o nome de cacicados complexos. Por volta do ano 1000 a.C. surgiram as culturas dos construtores de tesos, aterros artificiais inundáveis onde eram erguidas as aldeias. Essas foram sucedidas por sociedades mais desenvolvidas, divididas em hierarquias, apresentando uma cerâmica altamente refinada, cujos maiores exemplos são as encontradas na ilha do Marajó e na região de Santarém.

Vale lembrar que, entre os antropólogos, historiadores e arqueólogos dedicados ao estudo da Pré-História Amazônica, principalmente no que diz respeito ao processo de ocupação humana na região, não existe um consenso sobre esse divisão e suas especificidades, sendo esse um esquema, até o momento, provisório.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° Ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.


CRÉDITO DA IMAGEM:

www.hak.com.br


quinta-feira, 17 de maio de 2018

Diálogos com Historiadores Amazonenses

Thomas Carlyle (1795-1881). Pintura de 1879 de Mrs. Helen Allingham.

Para este ano, colocarei em prática um projeto antigo, há tempos esboçado, para aproximar os historiadores, acadêmicos e de outras instituições como institutos históricos e academias de ciências, dos leitores do blog, sejam eles especializados (graduandos, graduados) ou apenas amantes de boas leituras. 

Através da série de postagens intitulada Diálogos com Historiadores Amazonenses, entrevistas informais produzidas com uma linguagem acessível (nem muito acadêmica, nem muito simples), pretende-se apresentar as trajetórias intelectuais desses profissionais da região, aspectos de suas vidas privadas (não tratam-se, no entanto, de textos biográficos), seus projetos de pesquisa, suas reflexões, visões de mundo e as formas como exercem o ofício de historiador, para assim aproximar as pessoas desses homens e mulheres que se dedicam ao ensino e à pesquisa, e que muitas vezes passam despercebidos pelo grande público.

A primeira entrevista, que em breve será publicada, foi realizada com Tiago José Cavalcanti Atroch, professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e professor da rede pública municipal de ensino. Pretendo, se possível, para uma primeira leva de publicações, entrevistar os demais professores substitutos da instituição. Posteriormente, os professores doutores e, por último, os historiadores de institutos históricos, academias de ciências e também os independentes.

Os leitores, ao terem contato com essas entrevistas, poderão identificar continuidades, rupturas, antigas e novas tendências historiográficas, bem como debates e críticas sobre o que foi produzido nos últimos anos na região no campo da História.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org


quinta-feira, 10 de maio de 2018

Analisando um periódico local


Jornal do Comércio, 01/01/1914.

Relatório de análise de documento (periódico) apresentado na disciplina Metodologia da Pesquisa Histórica, ministrada pela Professora Dra. Maria Luiza Ugarte Pinheiro, do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM):

O Jornal do Comércio é o jornal mais antigo ainda em circulação no Amazonas, fundado em Manaus em 02 de janeiro de 1904 pelo Major Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), português que veio para a capital do Amazonas em 1862, tendo ocupado os cargos de Delegado de Polícia, Deputado Estadual, Presidente do Congresso Amazonense, Deputado Federal, administrador do trapiche da Recebedoria do Estado e provedor da Santa Casa de Misericórdia.

O documento a ser analisado é uma edição de 01/01/1914 do referido jornal. Este possui oito páginas. A quantidade de laudas variou com o passar do tempo, tendo a primeira edição sido lançada com trinta e duas e, posteriormente, sendo publicadas diariamente edições de quatro e oito páginas. À época dessa publicação, o Jornal do Comércio tinha como proprietário o advogado Vicente Torres da Silva Reis, que o comprou da família de Rocha dos Santos em 1907. No canto superior direito da primeira página está estampada uma tabela de assinaturas, forma pela qual o jornal era comercializado. A assinatura anual, na capital, custava 50$000 réis, 60$000 para o interior do Estado e 70$000 para outros países. Semestralmente, a assinatura custava 25$000 réis na capital, 30$000 no interior do Estado e 35$000 para outros países. No canto superior esquerdo, o subtítulo: “No Estado do Amazonas o JORNAL DO COMMERCIO é a folha de maior circulação”.

Nota-se uma divisão logo na primeira página, estando o lado esquerdo destinado à publicação de anúncios, com o título ‘avisos úteis’ (vendas, aluguel de casas e produtos diversos); o centro para a publicação gravuras e fotografias, estas últimas mais comuns a partir de 1913; e o lado direito para a publicação de alguns artigos, de notas do colunismo social (aniversários, nascimento, visitas e óbitos), de notícias meteorológicas e dos principais eventos do dia. A partir de 1912-13, o artigo em destaque, na verdade uma série de publicações, era o Ouro Negro, publicado por Armindo R. da Fonseca, comerciante da praça de Manaus que acompanhava todos os desdobramentos do comércio internacional de borracha, instável naqueles últimos anos.

Na segunda página são publicados os informes sobre teatros, clubes e cinemas; a coluna ‘os buliçosos’, sobre furtos e roubos; as ‘Queixas do Povo’, reclamações dos mais variados tipos (críticas a serviços públicos, ao estado das ruas, das moradias etc) vindas de diferentes pontos da cidade; as ‘Várias’, publicações rápidas e resumidas; os ‘Ineditoriais’, parte do jornal vendida para a publicação de informações de terceiros; os ‘Actos funebres’, notas sobre velórios, enterros e missas de sétimo dia; e mais alguns anúncios de estabelecimentos comerciais. Na terceira página é publicada a coluna ‘Bastidores da política’, sobre os desfechos de administrações federais e estaduais, eleições, deposições e revoltas; e artigos diversos sobre acontecimentos internacionais e em outras partes do país, em sua maioria pitorescos. Essa página é dividida, sendo a parte de cima para as publicações anteriormente citadas e a debaixo para anúncios, poesias e contos. A quarta página é dedicada exclusivamente à publicação de anúncios de produtos e estabelecimentos comerciais, bem como para a continuação dos poemas e contos.

A página cinco tem a mesma divisão da primeira página, sendo diferentes apenas alguns elementos. Do lado esquerdo, anúncios de vendas, de aluguel de casas e de produtos variados. Do lado direito, mais alguns anúncios, só que agora trabalhados iconograficamente. No centro, as informações telegráficas ‘O que vae pelo mundo’, trazendo notícias sobre a capital federal e outros estados, e de países como Portugal, França e Reino Unido, e a entrada e saída de embarcações. Na parte de baixo, mais anúncios e a continuação de contos de edições passadas.

Na sexta página são publicadas informações detalhadas sobre o comércio, a indústria, as finanças e a navegação, a cotação de gêneros alimentícios, a cotação da bolsa, das taxas de câmbio de instituições financeiras como o London Bank, o Banco do Brasil e o Banco Amazonense, as pautas estabelecidas pela Alfândega, pela Associação Comercial e pelo Tesouro do Estado, os preços das estivas, a arrecadação da alfândega, a variação de preços da borracha, a relação de funcionários em serviço na Alfândega, o boletim da Associação Comercial, o movimento de embarcações no porto e a entrada e saída de passageiros. As páginas sete e oito são voltadas exclusivamente para a publicação de anúncios.

Para uma análise mais teórica desse periódico, destaca-se, em um primeiro momento, a divisão espacial das matérias. É fácil perceber o peso dos anúncios dos estabelecimentos comerciais da capital no jornal, estando estes dispostos do lado esquerdo e do lado direito das páginas, quando não utilizados em páginas inteiras, tornando-os bastante visíveis aos leitores. Isso revela o forte caráter comercial do periódico. No centro, em tamanho grande, uma fotografia, elemento visual que também auxilia a dar destaque ao periódico.

Quanto ao conteúdo jornalístico, o maior artigo é o do comerciante Armindo R. da Fonseca, ‘Ouro Negro’, no qual o autor trata da situação da borracha brasileira e do cenário desolador que o comércio desta estava enfrentando frente aos preços praticados por negociantes do Reino Unido. O desta edição era o 18° artigo sobre a mesma temática, comércio gomífero, todos assinados por Armindo R. da Fonseca. O plano 'Defesa Econômica da Borracha', criado em 1912, ficou sediado no Rio de Janeiro, distante da região problema. Foram feitos gastos exorbitantes em compras e pesquisas desnecessárias, o que fez o Congresso dar fim ao plano em 1913. Armindo faz críticas a esse projeto. Quando do início da Primeira Guerra Mundial, quando algumas rotas comerciais foram temporariamente fechadas e os preços caíram mais bruscamente, os artigos ganhariam um tom mais dramático.

A historiadora Maria Helena Capelato chama a atenção para a utilização desses artifícios, que eram “empregados tanto com objetivos de lucro, como para fins políticos” (CAPELATO, 1988, p. 16). Dessa forma, deve-se refletir sobre o uso, em boa parte do periódico, de anúncios e propagandas de produtos e casas comerciais, uma das possíveis fontes de lucro do Jornal do Comércio, assim como de outros periódicos, revelando também sua teia de relações com a elite política e empresarial da região, bem como o impacto das publicações dos artigos sobre a crise do mercado gomífero.

Das cinco grandes linhas da imprensa brasileira ao longo dos séculos, o Jornal do Comércio aparenta estar inserido entre as linhas do jornalismo político e do jornalismo informativo, surgidas entre fins do século XIX e início do século XX. Sobre esse período no Amazonas e a influência na imprensa, diz Santos et al:

Na medida em que o Amazonas vai aumentando o volume produzido de borracha exportada para a Europa e os Estados Unidos, equipamentos mais modernos de impressão são importados, e com eles, tipógrafos, sobretudo portugueses. Mas a imprensa nem sempre correspondeu plenamente à velocidade da informação que a nova situação exigia. O “fumaréu” de incenso continuava “turibulando muitos governos”, com o surgimento de jornais – em geral de edição única – destinados a homenagear as autoridades (SANTOS, 1990, p. 19)

O Jornal do Comércio, por suas articulações políticas com as elites locais e pelo caráter político e informativo, rompeu com essa linha de elogios particulares dispensados diretamente às autoridades políticas da região. No entanto, como todo periódico e outro tipo de fonte, deve ser visto a partir da luz da crítica interna, sem ser tomado como uma parte objetiva do passado, uma informação que vale por si mesma, devendo ser buscada as relações no momento em que essa documentação foi produzida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988.

SANTOS, Francisco Jorge et al. Cem Anos de Imprensa no Amazonas (1851 – 1950) – catálogo de jornais. Manaus, 1990.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Acervo da Prof. Dra. Maria Luiza Ugarte Pinheiro


Conhecendo o Arquivo Público do Estado do Amazonas


Prédio do Arquivo Público do Estado do Amazonas, na rua Bernardo Ramos, Praça Dom Pedro II, Centro.

O Arquivo Público do Estado do Amazonas, localizado na rua Bernardo Ramos, na Praça Dom Pedro II, bairro Centro, foi fundado em 19 de agosto de 1897 através de um decreto do então governador Fileto Pires Ferreira (1896-1898), tendo como objetivo guardar e conservar os documentos oficiais emitidos pelo governo. Antes, quando da instalação da Província do Amazonas em 1852, já é citada a organização do Arquivo Provincial1.

A estrutura atual do arquivo foi definida pelo Decreto n° 19.670, de 23 de fevereiro de 1999, tornando-o uma Coordenadoria subordinada à Secretaria de Estado da Administração, Coordenação e Planejamento (SEAD), que recolhe, organiza e divulga os documentos de valor histórico oriundos de diferentes esferas do poder público do Amazonas. Entre 2015 e 2017 essa instituição passou por reformas em sua estrutura física e administrativa, com recuperação da fachada, organização e catalogação dos documentos feita por historiadores e arquivistas Em 23 de maio de 2017 foram aprovados o Plano de Classificação e a Tabela de Temporalidade de Documentos das Atividades-Meio produzidos pela Administração Pública do Estado do Amazonas; e o Sistema de Arquivos e Gestão de Documentos do Estado do Amazonas (SAGED-AM). Em junho do mesmo ano foram instituídas a Comissão Central de Avaliação de Documentos e as Comissões Setoriais de Avaliação de Documentos.

A Tabela de Temporalidade de Documentos das Atividades-Meio é o instrumento que passa a determinar os prazos de permanência de cada documento em sua fase de vida2 e o tipo de arquivo ao qual será destinado, podendo ser arquivo corrente, arquivo intermediário ou arquivo permanente. O Sistema de Arquivos e Gestão de Documentos do Estado do Amazonas (SAGED-AM) dinamizou o trabalho sobre os arquivos, pois antes tratava-se apenas do destino dos documentos que já existiam. Agora o documento recebe tratamento desde sua criação, passando pelo uso, avaliação e arquivamento.

Os documentos do Arquivo Público do Estado do Amazonas são de natureza político-administrativa: Edições da Imprensa Oficial, edições do Diário da União, edições do Jornal do Comércio, Leis, Decretos, Constituições do Estado, Atas da Assembleia Legislativa, Falas e Exposições dos Presidentes da Província, documentos variados da Casa Civil e Atas da Polícia Militar do Amazonas. Os documentos originais mais antigos são datados de 1848, dos tempos da Comarca do Alto Amazonas, enquanto que em formato digital, através de cópias adquiridas em arquivos de Lisboa (Portugal) e Belém (PA), existem mapas, cartas e gravuras da Capitania de São José do Rio Negro. Além dessas fontes primárias, existe uma biblioteca de obras locais, nacionais e estrangeiras, com exemplares raros e há muito tempo esgotados, que está sendo organizada aos poucos, necessitando de um bibliotecário.

Ainda em fase de reorganização e de melhor catalogação, é difícil precisar a quantidade dos documentos em geral. Das informações obtidas na sondagem, sabe-se o seguinte: Do Diário Oficial do Estado já são mais 35. 532 exemplares (em circulação de 1893 aos dias de hoje), e de dossiês administrativos 21 mil.

O corpo de funcionários do Arquivo é formado por 11 pessoas, com formações variadas (Direito, Administração, Gestão Pública, Tecnologia da Informação, Serviço Social etc), efetivas ou que circulam por diferentes órgãos como a Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (SEC-AM), que cuidam da catalogação e preservação dos documentos, da recepção aos visitantes e da conservação do espaço. Salienta-se que nenhum deles possui formação em História ou Arquivologia.

O Arquivo Público do Estado do Amazonas, assim como outras instituições que guardam documentos históricos, têm uma trajetória marcada mais por “baixos” do que por “altos”. O antropólogo Geraldo Pinheiro, em texto de 1949 publicado no Jornal do Comércio, afirma que naquela época os documentos apodreciam “nos velhos e desaparelhados arquivos da cidade”3, o que nos revela um histórico de descaso com esses lugares. Até 2014, a situação do Arquivo Público era de se lamentar: Infiltrações e rachaduras no prédio, documentos amontoados em péssimas condições em depósitos, em avançando estado de deterioração e ausência de lugares apropriados para o trabalho dos pesquisadores. No entanto, o processo de recuperação entre 2015 e 2017 abriu novos horizontes para o trabalho do historiador na região, assim como permitiu o delineamento de projetos promissores.

A Secretaria de Estado da Administração, Coordenação e Planejamento (SEAD) está pondo em prática projetos para dinamizar o Arquivo Público. O Arquivo da rua Bernardo Ramos não recebe mais os documentos das várias secretarias do Estado, de forma a não sobrecarregar o local. Cada uma das instâncias do Estado, agora, fica responsabilizada pela preservação de seus documentos. Aos poucos os documentos do Arquivo estão recebendo tratamento e sendo digitalizados (estima-se que desde a reforma 30% dos documentos já receberam algum tipo de tratamento). A eliminação dos documentos, até o momento, é feita a partir de trocas e doações à outras instituições ou particulares.

Com as amigas Luana, Evellyn e Larissa, do curso de História, no final da visita. À esquerda, a gerente Thâmara Pereira, que aos poucos vai implementando mudanças significativas na instituição.

É de suma importância destacar o papel de Thâmara Pereira, servidora pública e atual gerente desse arquivo. Formada em Direito, Administração, Serviço Social e Gestão Pública, e enfrentando a resistência e o descaso de uma antiga administração de quase 30 anos, que acumulava péssimos resultados, conseguiu empreender reformas e projetos jamais antes vistos na instituição. Seu principal objetivo é abrir o Arquivo Público não somente aos pesquisadores, mas à comunidade como um todo, pois as pessoas, em suas palavras “devem ocupar esse espaço e vê-lo como parte de um rico patrimônio histórico”.

Visitar o Arquivo Público do Estado do Amazonas, conhecer sua estrutura, documentação e funcionários, além de seu caráter metodológico, nos faz refletir sobre o processo e as condições de trabalho dos historiadores, sobre os caminhos, nem sempre planos mas por vezes tortuosos, por nós percorridos. Só podemos fazer as fontes falar, dar vida aos documentos, construir narrativas, se espaços como os arquivos públicos estiverem em perfeitas condições de uso.


NOTAS:


1 ANJOS, José Geraldo Xavier dos. Cronologia do Arquivo Público. Disponível em: servicos.sead.am.gov.br/arquivopublico/institucional/cronologia-do-arquivo-publico. Acesso em 02/05/2018.

2 “O ciclo de vida dos documentos está dividido em três arquivos ou idades: 1° - arquivo corrente ou de 1° idade, formado por documentos de uso exclusivo das instâncias que os geram e somente por elas consultados. 2° - arquivo intermediário ou de 2° idade, formado por documentos que deixaram de ser consultados, mas que podem ser solicitados caso surja alguma necessidade pelas unidades geradoras. A permanência destes em arquivos é temporária. 3° - arquivo permanente ou de 3° idade, formado por documentos que já cumpriram suas funções originais, e que agora são preservados em relação ao valor histórico-cultural que possuem, podendo ser consultados por instituições ou terceiros”. AMAZONAS (ESTADO). SECRETARIA DE ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO. Manual Técnico do Sistema de Arquivos e Gestão de Documentos do Estado do Amazonas. Manaus: ed, 2017, p. 11.

3 Manaus e seus historiadores. Jornal do Comércio, 26/02/1949.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Larissa Leite, 2018.