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domingo, 28 de janeiro de 2024

A ocupação da Amazônia

Artefatos expostos no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Foto: Bruno Kelly.

Os cronistas europeus que passaram pela Amazônia entre os séculos XVI e XVII deixaram interessantes e importantes relatos sobre as populações indígenas, auxiliando na reconstituição da demografia amazônica antes e durante a conquista. Frei Gaspar de Carvajal viu na província de Machifaro, ou Machiparo, na margem direita do Solimões, "[...] muitas e grandíssimas povoações que reúnem cincoenta mil homens, entre os trinta e setenta anos". A abundância de comida -  tartaruga, carne, peixe e biscoito - era tanta que "[...] daria para sustentar um batalhão de mil homens durante um ano".

Esses relatos demonstram que a Amazônia foi uma região densamente povoada, sofrendo um catastrófico decréscimo populacional nos dois primeiros séculos da colonização, causado pela violência da escravidão e pela letalidade das doenças. Quando começou a ocupação do território?

Segundo o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a região começou a ser ocupada há cerca de 11 mil anos, mas essa presença pode ser ainda mais antiga. Na caverna de Pedra Pintada, localizada em Monte Alegre, no Pará, foram encontrados indícios datados de 9.200 a. C. Na gruta Lapa do Sol, na bacia do Guaporé, no Mato Grosso, foram encontrados resquícios de 12 mil a. C. O pesquisador explica que "De qualquer modo, diferentes partes da Amazônia já eram ocupadas em torno de 7000 a. C. As evidências vêm de locais tão diversos como a serra dos Carajás, no Pará; a bacia do rio Jamari, em Rondônia; a região do rio Caquetá (Japurá), na Colômbia; o baixo Rio Negro, próximo a Manaus, e o alto Orinoco, na Venezuela".

Apesar de os grupos nativos terem diferentes culturas e formas de sociabilidade, eles compartilhavam entre si a exploração sustentável da fauna e da flora, pescando, coletando, cultivando o solo e caçando animais de pequeno porte. De suas atividades restaram artefatos de pedra polida, fragmentos de pontas de lança, potes e vasilhames.

A arqueóloga estadunidense Betty Meggers defendia a tese de que o ambiente amazônico, pobre em nutrientes e sem animais de grande porte, teria impedido a formação de grandes contingentes populacionais, contribuindo para a "degeneração" de seus habitantes. Em contrapartida, a também arqueóloga estadunidense Anna Roosevelt defende que as terras baixas da região (várzeas), ricas em nutrientes e com grande fartura, foram o polo irradiador da povoação da Amazônia, abrigando cacicados complexos e sofisticados:

"Desta forma, enquanto habitat da ocupação humana pré-histórica, a Amazônia surge como mais rica, complexa e variada do que pensávamos. Mais significativo para a compreensão dos padrões da adaptação nativa e desenvolvimento cultural é, provavelmente, o fato de que existiram determinadas áreas nas quais a abundância de recursos sustentava populações caçadoras-coletoras, horticultoras e agricultoras durante longos períodos, e que nestas áreas se desenvolveram grandes populações indígenas".

Diferente da tradicional periodização da Pré-História europeia, dividida em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico, a Pré-História da Amazônia é dividida em três fases distintas das propostas por Thomsem, Lubbock e Mortillet: fase Paleoindígena, fase Arcaica e fase da Pré-História Tardia. Isso se dá pelo fato de a Pré-História da região ainda não ter sido plenamente estudada e possuir suas próprias particularidades.

A fase Paleoindígena vai de 11.000 a 7.500 a. C. Os primeiros habitantes da Amazônia eram nômades, e sobreviviam da coleta de frutos, moluscos, da agricultura rudimentar e da caça de animais de pequeno porte. Nas regiões do norte do Rio Orenoco, no escudo e na costa da Guiana e no Rio Galera, no Mato Grosso, foram encontradas ferramentas de pedra como machados, pontas de lanças e raspadores. Apesar de as pontas de lanças terem sido encontradas, a caça de grande porte era rara. As gravuras rupestres desse período, segundo Anna Rosevelt, "[...] abrangem círculos rajados, faces humanas estilizadas ou máscaras, triângulos púbicos femininos, motivos baseados nos pés humanos, quadrúpedes, motivos geométricos sombreados e cavidades para trituramento e raspagem".

A fase arcaica compreende o período de 7.500 a. C. a 1.000 a. C., sendo caracterizada pela existência de complexos pré-cerâmicos, evidenciando a transição dos grupos coletores para grupos mais complexos que praticavam a agricultura de subsistência. Os sambaquis, depósitos artificiais de conchas, são as principais fontes dessa época. No sambaqui de Taperinha, em Santarém-PA, foram encontrados instrumentos de pedra lascada (machados, moedores e quebradores de grãos), de ossos e alguns exemplares de cerâmica avermelhada com desenhos geométricos. O tamanho dos sambaquis indica o aumento demográfico e o surgimento de grupos humanos que passaram a se fixar em um único local. "Nesse sentido", explica Roosevelt, "este estágio parece representar uma fase de intensificação da subsistência e do crescimento populacional similar àquela do Mesolítico no Velho Mundo".

A Pré-História Tardia vai de 1000 a. C. a 1000. d. C. Se desenvolvem, à margem dos principais rios da Amazônia, sociedades indígenas bastante complexas em aspectos demográficos, econômicos e políticos. Ela são conhecidas como cacicados complexos. Por volta do ano 1000 a. C. surgiram as culturas dos construtores de tesos, aterros artificiais inundáveis onde eram erguidas as aldeias. Elas foram sucedidas por sociedades mais desenvolvidas, divididas hierarquicamente, apresentando uma cerâmica altamente refinada, cujos melhores exemplares são encontrados na Ilha do Marajó e na região de Santarém-PA.

Quantos eram os indígenas antes da conquista? O professor William M. Denevan, do Departamento de Geografia da Universidade de Wisconsin-Madison, estimou para a Grande Amazônia (bacia Amazônica, leste e sul dos Andes e Amazônia Legal) uma população de 6 milhões e 800 mil, dos quais 5 milhões habitavam a bacia Amazônica. O historiador John Hemming, no final da década de 1970, estimou a população da bacia Amazônica no período pré-colonial em 3 milhões 625 mil indivíduos.

O antropólogo Antônio Porro registra que os grupos linguísticos que compunham a Amazônia antes da chegada dos europeus eram oito: Aruak, Karib, Tupi, Jê, Katukina, Pano, Tukana e Xiriana. Os povos que formam esses grupos, cerca de 90, encontram-se distribuídos pela bacia hidrográfica da região.

Os povos da língua Aruak estão localizados nos afluentes do rio Solimões. No rio Jutaí encontramos os Wairaku; no Juruá os Marawá e Kulína; no Purus os Purupurú, Paumari, Yamamadí, Ipurinân e Kanamari; no Içá os Pasé e Wainumá; no Japurá os Kayuixâna e Yumana; nos rios Negro e Içana os Manáo, Baré, Warekúna e Baníwa. Entre a Serra de Parima e a de Acaraí encontram-se os Guinaú, Wapitxana, Atoraí e Maopituan. Na Ilha de Marajó e na região litorânea do Amapá estão os Palikur, Arawak e Aruân.

Encontram-se no maciço das Guianas e arredores, nos afluentes ao norte do rio Amazonas e a leste do rio Negro os povos do grupo Karib. Nos maciços temos os Purukotó, Makiritare, Makuxí e Taulipang; no rio Branco, os Pauxiânia e Parauiana; no rio Jauaperi, os Yauaperí e Waimiri-Atruahí; no rio Jatapu, os Bonarí; no rio Nhamundá, os Xauianá e Piranya; no rio Trombetas, os Kaxuiana, Pauxi e Pianakotó; no rio Paru, os Apalaí, Wayana e Tirió; e no sul do Amazonas, os Arara, entre o Xingu e o Tocantins.

Os tupi têm localização semelhante à dos Karib, entre o sul do médio e baixo Amazonas. No rio Madeira encontram-se os Kawahíb, Arikên, Tuparí e Tupinambarâna; na bacia do rio Tapajós, os Mundurukú, Mawé, Apiaká, Kawahíb, Parintintim e Kayabí; no rio Xingu os Jurúna, Oyanpík, Asuriní e Xipáya; no rio Tocantins os Pakayá, Parakanân e Amanayé; no extremo leste do Pará, até o Maranhão, os Tupinambá, Tembé, Guajajára e Tobajára; no rio Paru os Apama; no rio Nhamundá os Apoto; e na área de várzea do Solimões os Kokâma, Omágua e Yurimágua.

Os povos da língua Jê são encontrados nas bacias do médio Xingu, Araguaia e Tocantins. São eles os Kayapó, Gorotíre, Gaviões, Apinayé e Timbíra. Nos rios Tapajós e Madeira os Nambikuára, Torá e Pakaánovas.

Segundo Edilene Coffaci de Lima, "Desde a primeira metade do século passado, os registros históricos produzidos por missionários, viajantes e agentes governamentais sobre as populações indígenas do rio Juruá fazem referência a grupos indígenas conhecidos pelo nome de Katukina". Os povos do grupo Katukina estão localizados entre os rios Purus e Juruá. São eles os Katukína, Katawixí e os que levam o sufixo Diapá.

Os povos do grupo Pano encontram-se entre os rios Juruá, Javari, Içá e Japurá. Entre os rios Juruá e Javari estão os Kaxinawá e Mayorúna. Entre os rios Içá e Japurá, os Tukúna, Yurí, Mirânia e Koerúna. Esses povos, no final do século XIX, foram obrigados a se refugiar em locais distantes na floresta por conta da invasão de suas terras durante a extração do látex das seringueiras. Muitos morreram em conflitos e outros foram escravizados.

No rio Uaupés estão localizados os grupos dos Tukána, que são os Takána, Desàna e Wanâna. Os antropólogos Stephen Hugh-Jones e Aloisio Cabalzar explicam que "Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e a coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a "mandioca brava" o principal produto".

Em Roraima são encontrados os representantes do grupo Xiriâna, que são os Xiriâna e Waiká. De acordo com Otto Zerries, trata-se de um subgrupo Yanomami. Waiká significa "pessoa braba" e Xiriana "pessoa mansa". Essas nomenclaturas, vistas pelos indígenas como apelidos, não são aceitas pelos Yanomami.

Como podemos ver, Amazônia, até 1500-1600, abrigava grandes populações indígenas organizadas em grupos linguísticos com culturas distintas que habitavam a igualmente rica bacia hidrográfica da região. Aqui exploraram as matas e os rios, cultivaram o solo e produziram uma refinada cerâmica que impactou cronistas e arqueólogos por sua qualidade e riqueza de detalhes. O primeiro tiro de espingarda deu início à ruína dessas sociedades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVAJAL, Frei Gaspar de. Descobrimento do Rio das Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-Leitão. São Paulo; Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.

FREIRE, José Ribamar Bessa (org.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima da. A Amazônia Colonial (1616-1798). 4° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

HUGH-JONES, Stephen; CABALZAR, Aloisio. Tukano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tukano.

LIMA, Edilene Coffaci de. Katukina Pano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Katukina_Pano.

NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

ROOSEVELT, Anna Curtenius. Arqueologia Amazônica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.

ZERRIES, Otto. Los Waika (Yanoama), indígenas del Alto Orinoco 1954-1974. Indiana 3: 147-150, 1975.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Inscrições e tradição da América Pré-Histórica, especialmente do Brasil: O Champollion amazonense


Reproduzo, a seguir, um texto publicado em 1927 na revista 'O Acadêmico', da antiga Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Manaus, que aborda o trabalho de tradução de epígrafes antigas no Brasil e em outros países pelo arqueólogo, linguista e numismata amazonense Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858-1931), referido 'Champollion amazonense', lembrando assim o trabalho de Jean-François Champollion (1790-1832), o famoso linguista e egiptólogo francês.


O CHAMPOLLION AMAZONENSE

O Amazonas, grande em tudo, possui em seu seio uma alta individualidade que uma vez conhecida nos grandes centros científicos, tornar-se-a uma celebridade mundial.

Queremos nos referir ao sábio amazonense coronel Bernardo Ramos, tradutor das inscrições lapidares, não só do Brasil, como de diversas partes do mundo. 

E como o grande cientista chegou a desvendar tão precioso mistério?

O coronel Bernardo Ramos, dando-se ao fatigante trabalho de colecionar moedas, organizou a terceira coleção numismática do mundo, hoje de propriedade do Estado, e, findo esse trabalho, verificou que entre as diversas moedas, anteriores à nossa era cristã, muitas de suas inscrições eram semelhantes às que se encontravam em rochedos e pedras do nosso país.

Há mais de vinte anos que o coronel Bernardo Ramos vem empreendendo novas investigações, chegando afinal, depois de muito estudo e paciência, a decifrar as inscrições lapidares existentes no território nacional, passando as suas indagações a outros países da América do Sul, da América do Norte, da América Central, como da Europa, da Ásia e da África.

Assim como Champollion, célebre orientalista francês, que em 1821 após várias tentativas de sábios em pesquisas para traduzir os hieróglifos, escrita pela qual "os egípcios exprimiam tudo que respeitava às ciências e às artes, ou para representar ideias misteriosas de sua religião", conseguiu desvendar o segredo daquele povo, Bernardo Ramos, o notável cientista amazonense, decifrou as inscrições lapidares do Brasil.

Descoberta a chave da escrita de nossas pedras, o coronel Bernardo Ramos lançou as suas vistas para outros países, encontrando sempre semelhança, nas nossas inscrições, com as de outras nações.

Pelos estudos do paleógrafo amazonense, ficamos sabendo que muito anterior à Cristo passou pelo nosso Continente uma grande civilização.

Entre as decifrações do Brasil, figuram como muito importantes as da Gávea, no Rio de Janeiro, dando notícia da passagem por ali de navegantes fenícios, (887-856 antes da nossa era) e da Pedra Lavrada, na Paraíba do Norte, cuja inscrição em grego antigo datando cerca de mil anos a.C., representa 708 signos, emblemas, astros, constelações, etc.

Além disso, o reputado sábio amazonense tem traduzido outras inscrições que se encontram em pedras do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Destaca-se ainda a decifração de algumas inscrições lapidares existentes na Colômbia, Guiana Inglesa, Venezuela, Guatemala, México, Argentina e Chile, como uma infinidade em várias regiões dos Estados Unidos da América do Norte.

Computando as inscrições lapidares do Continente americano com as conhecidas na Escócia, em Leon, da Espanha, na França, em Creta, na Índia e na África Austral, o coronel Bernardo Ramos encontrou absoluta identidade de caracteres alfabéticos, como de conceitos, tudo provando afinidade existente para o entendimento entre povos antiquíssimos, por meio de uma escrita seguida nos diversos continentes.

A esse tempo, o nosso continente era conhecido pelo nome Croniano, segundo as descobertas do coronel Bernardo Ramos.

Em 1922, o nosso ilustre coestaduano transportando-se ao Rio de Janeiro, fez ali diversas conferências sobre este importante assunto, conferências essas que foram presididas pelo preclaro senador Epitácio Pessoa, então Presidente da República.

Já anteriormente, o coronel Bernardo Ramos, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, numa sessão presidida pelo então Bispo da Diocese, D. João Irineu Joffely, apresentara a sua tese sobre as inscrições lapidares existentes em diversos pontos do país.

Diante do sucesso alcançado na Capital da República, o deputado Daniel Carneiro, então representante cearense, apresentou, juntamente com a bancada paraibana, um projeto autorizando o governo a mandar imprimir a valiosa obra do coronel Bernardo Ramos.

Recebendo o respectivo projeto algumas emendas no Senado, voltou à Câmara, onde ainda se acha, a fim de que esta tomasse conhecimento das alterações daquela casa do Congresso.

A obra aludida compõe-se de quatro volumes com mais de duas mil inscrições lapidares, devidamente traduzidas, sem falar num grande número de cerâmicas, em que o cientista coestaduano prova que a escrita usada pelos assírios e babilônios, etc, era da mesma forma seguida pelos gregos.

A publicação dessa obra virá a ser o maior acontecimento do século, porque, desvendando um segredo sepultado em milênios, nos colocará em contato com uma remota civilização, cuja notícia se perde na noite dos tempos.

Devido a esses estudos em escavações de um passado longínquo, nós amazonenses, ficamos sabendo que, muito anteriormente à era cristã, existiu no Uatumã, do Estado, uma Assembleia ilíada, encontrando o erudito conterrâneo vestígios de leis de Sólon.

O professor Ludovico Schewennehagen, um estudioso também do assunto, publicou na 'A União', do Estado da Paraíba, de 15 de março último, um magistral artigo, em que analisando o trabalho do nosso ilustre coestaduano, o considerou como digno de ser "colocado na primeira linha das coleções epigráficas".


FONTE:

O Acadêmico: Órgão do Centro Acadêmico da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Manaus. 31/10/1927


domingo, 6 de março de 2016

Antiquarismo: O gosto por Antiguidades e a reconstituição do passado

O artista comovido diante da grandeza dos fragmentos antigos, Johann Heinrich Füssli, 1778-1780. 

Na Antiguidade, os romanos mais ricos tinham um grande interesse por ruínas, esculturas, monumentos e fragmentos de civilizações passadas, especialmente dos gregos. Esses materiais eram utilizados como decoração para suas residências, símbolo de poder e exaltação política e étnica. Durante o Humanismo dos séculos XIV e XV, o gosto pelas antiguidades continuou sendo um interesse dos sábios, que recuperavam textos, moedas, esculturas, leis, e, deles, tiravam exemplos políticos e morais. Nos séculos XVII e XVIII, com uma Europa abalada por uma crise espiritual travada desde o século XVI entre protestantes e católicos, surge um ceticismo em relação à credibilidade das ciências e das criações humanas. Em oposição à essas dúvidas, filósofos criaram métodos científicos para validar as ciências naturais. Os métodos por eles criados eram empíricos matemáticos. A História, por ser propensa a diferentes pontos de vista e análises, não poderia ser comprovada através de métodos matemáticos e pelo empirismo. A escrita da História ficou relegada à condição de mero registro de fatos duvidosos, utilizados apenas para leitura agradável e exaltação política.

Com a História relegada a uma posição inferior, restou aos colecionadores e donos de antiquários, que não eram necessariamente historiadores, dar continuidade à produção histórica. Nos antiquários, eram recuperados documentos, bulas papais, esculturas, moedas, insígnias e fragmentos de ruínas, como foi o caso da redescoberta, no século XVIII, das cidades de Herculano (1738) e Pompéia (1748). Dessa atividade de recuperar objetos antigos, surge a Arqueologia no século XIX, que se torna uma das ciências auxiliares da História. Os antiquaristas dedicavam sua atenção para a reconstituição dessas peças, que tinham muito a dizer sobre a época em que foram produzidas. Essa atividade era somada ao método de analisar criticamente documentos oficiais e outros registros. Dessa forma, o antiquário não precisava "prestar" contas para os métodos matemáticos, pois seus objetos de estudo eram físicos, testemunhos vivos de uma época passada e com pouca possibilidade de terem sido falsificados. No entanto, devemos pontuar as diferenças entre o antiquário e o historiador nos séculos XVII e XVIII: O antiquário preserva, analisa empiricamente suas peças, e delas tira informações sobre o passado. O historiador presa a narrativa e as lições morais e políticas que dele podem ser retiradas. O antiquário não tem um interesse moral ou político, apenas a curiosidade pelo passado como ele pode ser desvendado.


Sobre as obras dos antiquários, podemos citar duas: A História Universal Demonstrada com Monumentos e Ilustrada com Símbolos dos Antigos (1697), de Francesco Bianchini; e A História e Antiguidades do Erário dos Reis de Inglaterra (1711), de Thomas Madox. Da obra de Madox temos mais informações. Esse antiquário inglês, utilizando documentos desde a época da conquista Normanda, traçou, como o próprio título de sua obra diz, as origens das riquezas do estado inglês. Madox, em uma análise crítica, utilizou documentos oficiais, assinados por funcionários, e que, em sua opinião, eram mais confiáveis que outras formas de registro, como cartas ou relatos de terceiros.


A História, desde que começou a ser escrita, sempre foi posta a dúvida, seja por seus praticantes ou por cientistas de outras áreas. O debate sobre os métodos para escrevê-la existem desde os tempos de Heródoto e Tucídides, quando se discutia a utilização de relatos de terceiros ou a observação pessoal dos fatos. A historiografia sobre a contribuição dos antiquários para a história ainda está, segundo o professor Auxiliomar Ugarte, por fazer. Talvez o pontapé inicial dessa pesquisa seja registrar a importância da metodologia dos antiquários para a história como ciência, pois podemos perceber que os métodos críticos, empíricos e arqueológicos desses profissionais tem certa semelhança nas metodologias utilizadas por historiadores da área da História Antiga.



FONTES:

HADDOCK, B.A. Uma Introdução ao Pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco. Lisboa: Gradiva, 1989.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Warburg - Banco Comparativo de Imagens (warburg.chaa-unicamp.com.br)