terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Museu Botânico do Amazonas (1883-1890)

O antigo prédio do Museu Botânico do Amazonas, posteriormente transformado em Asilo Orfanológico Elisa Souto e Instituto Benjamin Constant. FONTE: The City of Manáos and the country of Rubber Tree, 1893/Instituto Durango Duarte.

O Museu Botânico do Amazonas, primeira instituição científica da Província, foi criado no governo de José Lustosa da Cunha Paranaguá em 18 de junho de 1883 através da Lei Provincial N° 629, sendo efetivamente inaugurado em 16 de fevereiro de 1884 já na administração de Theodoreto Carlos de Faria Souto. Surgiu por iniciativa da Princesa Isabel (1846-1921) e por intermédio do engenheiro, botânico e naturalista mineiro João Barbosa Rodrigues (1842-1909), pesquisador com larga experiência sobre a flora amazônica. No Relatório Provincial de 25 de março de 1883, o Presidente José Paranaguá destacou a proposta de Barbosa Rodrigues (feita em 1882) de ser construído um museu botânico na capital da Província e as bases para o seu funcionamento. Essas bases seriam formadas, dentre outras coisas, pelo estudo de todas as plantas da flora amazonense, de suas propriedades químicas, medicinais e econômicas, a construção de um ervário, um laboratório, a publicação de uma revista de caráter histórico, geográfico e etnográfico sobre a Província, distribuída nos estabelecimentos científicos nacionais e estrangeiros; e a troca de materiais com os museus da Europa mediante a existência de duplicatas no ervário. “Para cabal desempenho terá o museu um botanico, um chimico, quatro ajudantes, dous serventes e um porteiro”. Os ajudantes, quer do botanico, quer do chimico, um servirá tambem de secretario, outro de photographo, outro de desenhista, e outro de preparador.(AMAZONAS, 25/03/1883).

Barbosa Rodrigues também fez o orçamento da construção da sede do museu, da montagem do laboratório, da compra de livros, mobiliário e a manutenção anual com os funcionários, as gratificações e a impressão da revista. Todos os itens somados custariam a Província 120:000$000. A ideia de um museu voltado para a pesquisa botânica, histórica e etnográfica gerou debates na Câmara dos Deputados. O Deputado Passos de Miranda, representante da Província do Amazonas, apresentou um aditivo de 30:000$000 anuais para o estabelecimento do museu botânico durante uma discussão sobre o orçamento para a agricultura, o comércio e as obras públicas realizada em 24 de outubro de 1882, com a justificativa de que as pesquisas sobre as propriedades das plantas amazônicas seriam extremamente vantajosas para o engrandecimento da economia e medicina locais e nacionais. Passos de Miranda questionava-se sobre o estado de abandonado dos recursos naturais e a inexistência de uma entidade voltada para o estudo destes: “Ora, se n’aquella immensa região, n’aquella flora riquissima, pódem-se encontrar tantos recursos para o desenvolvimento das sciencias e das artes, da industria e do commercio, como se deixa completamente abandonada?” (AMAZONAS, 25/03/1883). Passos de Miranda recebeu o apoio do Deputado Adriano Pimentel, também representante do Amazonas, no levantamento do aditivo e na sugestão do nome de Barbosa Rodrigues para a direção da instituição.

O museu foi instalado inicialmente, conforme o Relatório Provincial de 25 de março de 1885, em uma casa alugada localizada na Ilha de Caxangá, onde ocorreu a inauguração em 16 de fevereiro de 1884. Posteriormente foi transferido para uma das propriedades do Barão de São Leonardo, o prédio que futuramente daria origem ao Instituto Benjamin Constant (1894) e que antes foi o hospital de variolosos. Seu último endereço foi o Liceu, o Gymnasio Amazonense Dom Pedro II. Pela Lei N° 749 de 17 de maio de 1887, ficou autorizada a transferência do Asilo Orfanológico para o prédio do Barão de São Leonardo, ocorrida em 6 de julho de 1888, sendo transferido o museu para o Liceu, ficando este reduzido a uma sala.

Em 1885, a notícia da inauguração do quadro do ex-presidente José Paranaguá nas dependências do Museu nos dá uma dimensão de sua organização e acervo. Na sala em que foi colocado o quadro, voltada para a etnografia, ficavam armas de caça, armas de guerra e remos, objetos de madeira e palha. Nela existiam quatro armários divididos em 2 seções alfabeticamente ordenadas. O primeiro era formado por flechas, tangas, maracás, sandálias e colares de diferentes tribos. Tigelas de barro, panelas e alguidares poderiam ser vistos na parte inferior. O armário número dois possuía objetos de pedra do Amazonas e de Minas Gerais. No terceiro armário, vestimentas e máscaras tikunas, uma máscara do jurupary, pequenas panelas cheias de curare e flechas dos campás e mahuxacas (sic). Na parte superior, uma igaçaba vinda de Carvoeiro e um forno do rio Uaupés. No quarto, crânios encontrados no rio Purus e panelas do rio Jutaí. As portas do museu eram encimadas por flechas colocadas em rosetas e o teto era adornado com redes e flechas de várias tribos. A segunda sala era a de Botânica, onde ficavam armazenadas as coleções de diferentes plantas nativas e importadas. Por último, a terceira sala era ocupada pela biblioteca do diretor. Esperava-se que “[…] nossa população seja despertada pelo desejo de ver o que é nosso e que está alli colleccionado cuidadosamente em numero superior a 1000 objectos diversos”. Apesar de todo o entusiasmo, não se deixou de notar como o funcionamento do museu era deficitário, estando “hoje com seu pessoal reduzido a um director e secretario. Nem ao menos ha alli um servente para conservar as salas” (A PROVÍNCIA, 06/08/1885). Através da Lei N° 689, de 10 de junho de 1885, foram extintos os cargos de ajudante de químico, desenhista e porteiro, “[…] que nunca foram preenchidos, e cujos ordenados importavam, por anno, em 9:600$” (AMAZONAS, 21/09/1885). Foi uma constante na trajetória do museu a falta de mão de obra especializada para preencher seu quadro de funcionários. Foi nomeado secretário o jornalista fluminense Joaquim Augusto do Campos Porto (1855-1908). Deve-se esclarecer que boa parte do acervo era composto por coleções pessoais de Barbosa Rodrigues adquiridas na época em que comandou o Ministério da Agricultura e esteve no Vale Amazônico, entre 1872 e 1875.

No relatório de 1886 do museu, o diretor informava que o herbário possuía 1281 espécies vegetais, de 78 famílias e 322 gêneros, sendo classificadas e catalogadas mais de 5000 espécimes. Destes eram novos 56. O acervo botânico seria aumentado com coleções dos Estados Unidos, México e Chile. Do primeiro país viriam 800 espécies ofertadas pelo botânico John Donnell Smith. A seção etnográfica era formada por 1103 artefatos indígenas de 60 tribos do vale amazônico. Foi contratado, para auxiliar na montagem do laboratório de química, o bacharel Joseph Eugenio Aubert, que atuou entre 24 de novembro e 29 de dezembro de 1885. Esperava-se para maio de 1886 a chegada do químico Francisco Pfaff, “muito conhecido na Europa, professor da Universidade de Genebra e 1° ajudante do celebre Graëbe” (AMAZONAS, 25/03/1886). Nesse documento Barbosa Rodrigues expõe as dificuldades enfrentadas pelo museu desde sua fundação:

O museu que até agora tem tido uma existencia anormal, o que impede a sua organisação regular, de modo a satisfazer seus afins, apesar de repetidos pedidos e exigencias como que vai entrar em novo caminho para encetar trabalhos que produzirão os resultados que se tem em vista, com sua creação. Apezar porém, da falta quasi absoluta de meios de prosperidade, tem elle marchado, e, ainda que vagarosamente, dando resultados que vão além da expectativa de nacionaes e estrangeiros que visitam” (AMAZONAS, 25/03/1886).

Com todas as dificuldades, com materiais pagos pelo próprio Barbosa Rodrigues e que muitas vezes chegavam atrasados, o laboratório químico foi inaugurado em 16 de fevereiro de 1886 em comemoração aos dois anos de sua inauguração. Nesse ano o museu participa da Exposição Sul-Americana em Berlim. Em 29 de julho desse mesmo ano é realizada a primeira exposição sobre a História do Amazonas. Sobre esse evento, publicou-se o seguinte na imprensa: “[…] aplaudimos de coração a exposição do museu botanico, ao mesmo tempo que damos parabéns á província, por ter occasião de encontrar reunidos elementos que fallam de sua existencia no decorrer dos annos, elementos que são subsidio forte para historiadores e homens de sciencia” (JORNAL DO AMAZONAS, 29/07/1886). Percebe-se nessa fala que, além de ser um centro de pesquisas na área da botânica, o Museu de Barbosa Rodrigues foi responsável pela constituição de uma história oficial da província, recuperando os elementos materiais que atestariam sua antiguidade.

O surgimento do Museu Botânico do Amazonas está inserido no contexto da expansão do positivismo e do cientificismo evolucionista na segunda metade do século XIX. Institutos Históricos, Academias de Belas Artes e Museus surgem nas províncias brasileiras, ao molde das instituições europeias, formadas por membros vindos da elite intelectual, como núcleos de consolidação da soberania nacional, de debates da formação do Império, de seus elementos sociais e naturais e de propagação dos ideais de progresso e civilização. Como pôde ser visto em alguns pontos destacados por Barbosa Rodrigues, o museu manteria fortes relações com pesquisadores e instituições europeias. De acordo com a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, quando surgem, “[…] os estabelecimentos locais se constituem em espécies de home lands para viajantes financiados por instituições estrangeiras, e principalmente para a Antropologia que se iniciava enquanto disciplina no Brasil” (SCHWARCZ, 1989, p. 38).

De 1885 a 1891 Barbosa Rodrigues publicou os seguintes trabalhos: A Pacificação dos Krichanas (1885), Relação dos productos enviados enviados para a Exposição de Berlin (1886, folheto), O Tamakuaré (1887), O Muirakaty (1889) e Poranduba Amazonense (1891). “Juntem-se a essa relação pequenos folhetos sobre plantas novas, artigos de jornaes sobre historia natural e um vocabulario completo da língua tupy e mais de 20 de differentes dialectos (inedito) e ver-se-ha que, em sete annos de trabalho, o resultado é realmente suprehendente” (CAMPOS PORTO, 1891, p. 76).

A revista, Vellosia, só veio a luz nos anos finais, sendo publicado um único número dividido em dois volumes, entre 1888 e 1891, este último reeditado no Rio de Janeiro pelo ex-secretário Campos Porto, período em que a instituição já havia sido desativada. Ela trazia descrições de plantas descobertas no Amazonas, estudos de Paleontologia, Arqueologia e Etnografia. Sua aparição tardia, sem atingir a meta pretendida (uma revista trimensal), explica-se pelas dificuldades financeiras em garantir sua impressão. No Relatório de 1888 do museu, Barbosa Rodrigues escreveu que o “[…] volume de Revista, relativo ao anno passado está no prelo desde julho do mesmo anno, não tendo sido possível, apesar de todos os exforços fazel-o apparecer” (AMAZONAS, 05/09/1888).

Os anos finais do museu foram os mais críticos. O orçamento de 1887, que era de 28:700$, foi para 13:400$000. O de 1889 não foi sancionado, mas, mesmo assim, reduzido novamente para 24:900$000. Na administração de Joaquim de Oliveira Machado a verba foi reduzida para 22:500$000. O então secretário Joaquim Campos Porto, em histórico traçado em 1891, expressa seu descontentamento: “Ao passo que se regateavam verbas minimas, as leis orçamentarias vinham cheias de gratificações, licenças por dous annos com vencimentos integraes, subscripções, concertos de escolas, igrejas, etc., tudo de uma imoralidade revoltante” (CAMPOS PORTO, 1891, p. 73). Quando da instalação da República em 15 de novembro de 1889, Barbosa Rodrigues foi nomeado pelo Governo Federal para assumir o cargo de Diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, posição que a muito almejava, em 25 de março de 1890. Perdia o Museu Botânico do Amazonas a única pessoa especializada na flora amazônica capaz de dirigi-lo. Dessa forma, o Governador Augusto Ximeno Villeroy, em 25 de abril de 1890, declarou extinto o Museu Botânico do Amazonas:

O Governador do Estado do Amazonas, tendo em vista o decreto n. 42 desta data, que extinguiu o Museu Botanico, resolve dispensar o cidadão João Barboza Rodrigues de director e o cidadão Philadelpho Camillo Pessôa de porteiro do mesmo museu.

O Governador aproveita esta occasião para agradecer ao cidadão João Barboza Rodrigues os eminentes serviços que prestou á Patria enriquecendo a sciencia com colossaes trabalhos sobre a flora indigena. Seus vastos trabalhos sobre as Orchideas attestam que este judicioso investigador é o legitimo herdeiro do laborioso Martius.

O Governador lembra ainda as interessantes pesquizas sobre os habitantes primitivos da America, e especialmente do Brazil, como um dos titulos de benemerencia do infatigavel Brazileiro; e ao desperdi-se de tão digno cidadão felicita-o pela elevada prova de apreço com que o distinguiu o Governo Provisorio (CAMPOS PORTO, 1891, p. 74).

Enfrentando problemas financeiros e técnicos desde sua criação, e agora sem um diretor especializado, terminava assim a trajetória de 7 anos do Museu Botânico do Amazonas, a primeira grande instituição científica do Amazonas. Nesses 7 anos, em meio a dificuldades as mais diversas, foram catalogadas plantas, fósseis, artefatos indígenas, realizados estudos históricos, etnográficos e antropológicos e produzidos folhetos, tratados e realizadas exposições que foram de extrema importância para os primeiros passos das atividades científicas genuinamente amazonenses.



FONTES (RELATÓRIOS E EXPOSIÇÕES):


Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial do Amazonas na abertura da segunda sessão da decima sexta legislatura em 25 de março de 1883 pelo presidente, José Lustosa da Cunha Paranaguá.

Exposição com que o ex-presidente do Amazonas exm. sr. dr. José Jansen Ferreira Júnior passou a administração da Província ao 1° vice-presidente exm. sr. Tenente Coronel Clementino José Pereira Guimarães, em 21 de setembro de 1885.

Relatorio com que o exm. sr. dr. Ernesto Adolpho Vasconcellos Chaves, presidente da Província do Amazonas, installou a 1° sessão da legislatura da Assemblea Legislativa Provincial no dia 25 de março de 1886.

Relatorio com que o exm. sr. dr. Joaquim Cardoso de Andrade abrio a 1° sessão da 19° legislatura da Assemblea Provincial do Amazonas em 5 de setembro de 1888.


PERIÓDICOS:

A Província, 06/08/1885.
Jornal do Amazonas, 29/07/1886.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


CAMPOS PORTO, Joaquim. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. In: Vellosia. Rio de Janeiro, 1891, p. 61-80.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O nascimento dos museus brasileiros, 1870-1910. In: MICELI, Sérgio. História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/IDESP, 1989.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

História da Criminalidade em Manaus: Caso Rebeca (1981)

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

 “Requintes de barbarismo
Foi que a desgraça pintou
Crimes dos mais horrendos
Manaus aqui registrou
Carlos Lobo o desalmado
Sua filha trucidou”.

(SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981)

No dia 30/04/1981, uma quinta-feira, o tradicional bairro Praça 14 de Janeiro ficou tumultuado por conta de um crime que por várias décadas ecoaria na memória de seus moradores: A jovem Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho, mais conhecida como Rebeca, de 13 anos, foi encontrada morta em sua residência, na rua Emílio Moreira, n° 1248, com várias perfurações de faca pelo corpo. Fazia pouco mais de 5 anos que a cidade tentava se recuperar das lembranças sombrias do ‘Monstro da Colina’, de São Raimundo. Mais uma vez um jovem era trucidado, constatando como esse tipo de crime, desde a década de 1960, estava se tornando mais frequente.

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho tinha 13 anos e era aluna do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na rua Silva Ramos. Nessa instituição gostava de praticar vários esportes, com destaque para o basquete. Apesar de ser jovem, se sobressaía sobre os demais estudantes por sua altura, 1,78 metros. Seus pais eram Carlos Lobo Carvalho, ex-secretário de Comunicação no Acre e comerciante proprietário de um escritório de representações comerciais, e Carmem Miguel Lobo, funcionária pública da SEMIC (Serviço de Medicina, Indústria e Comércio). A família Lobo Carvalho era conhecida no bairro Praça 14 de Janeiro, onde ficava o escritório de Carlos, por sua dedicação ao trabalho e cuidados dispensados aos filhos. Ninguém imaginava que um membro da própria família trucidaria Rebeca…

Carlos Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

Carlos Lobo Carvalho, o comerciante que era visto como um pai e trabalhador exemplar, matara a filha com cerca de 40 facadas (15 em algumas versões). De acordo com os depoimentos prestados por seu motorista e seu cunhado, todas as ações foram premeditadas. Pela manhã, horas antes de cometer o crime, Carlos encheu uma mala, duas bolsas e uma pasta com roupas e documentos, avisando a esposa que poderia “viajar a qualquer momento”. Feitas as malas, foi ao banco, onde sacou a quantia de 250 mil cruzeiros, deixando apenas 100 cruzeiros para trás. De tarde, por volta das 15:00 horas, quando seu cunhado e o motorista saíram de casa em direção ao Centro da cidade, trancou-se em seu quarto com Rebeca, onde a jovem foi encontrada morta. O depoimento de Carlos Lobo, prestado em uma segunda-feira, 04/05/1981, de pouco mais de uma página, é mais rico em informações, permitindo uma reconstituição precisa das horas que antecederam o assassinato de Rebeca; e confuso em algumas partes.

A mãe de Rebeca segurando a arma do crime, uma faca de caça. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

Carlos passou toda a manhã do dia 30/04/1981 trabalhando em seu escritório, que ficava ao lado de sua casa. 12:00 horas se reuniu com a família para almoçar. Terminada a refeição, levou a filha Raquel Miguel Lobo Carvalho para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e a esposa para a SEMIC e, posteriormente, retornou ao escritório. Às 15 horas foi para casa fazer um lanche. Encontrou sua filha, Rebeca, assistindo televisão na sala. Disse algumas palavras e foi para a cozinha. Encontrando a empregada no local, deu dinheiro para que ela comprasse pão, café e leite. Depois de comer, foi até o quarto onde pegou uma pasta com documentos que utilizaria para comprar uma passagem para Macapá, seu destino no sábado. Enquanto arrumava os documentos, Rebeca entrou no quarto e sentou-se na cama. Perguntou se o pai viajaria mesmo e, com ele afirmando positivamente, pediu que trouxesse de Macapá um macacão. A partir deste ponto seu depoimento fica um tanto confuso: “Depois fui possuído pelo demônio”, disse ao delegado. “Sabia que empunhava uma faca e atingia alguém. Só parei quando me vi refletido no espelho como uma figura monstruosa. Então me recolhi no chão, com a cabeça entre as pernas e fiquei ali, não sei por quanto tempo, até que ouvi a empregada batendo na porta da frente”. Carlos não lembrava se tentou esconder o corpo, mas antes de abrir a porta para a empregada, trocou a roupa, que estava toda ensanguentada. Ao abrir a porta, pediu que a empregada não abrisse a porta do quarto pois “Rebeca estava dormindo e não poderia ser incomodada”. Quando o motorista Carlos Henrique e seu cunhado Andenor Saraiva de Oliveira voltaram do Centro, Carlos Lobo pediu que o primeiro colocasse a bagagem arrumada pela manhã no carro e o levasse até a casa de seu irmão, Cleber, no bairro Japiim. Enquanto rodavam pelo bairro em busca da casa de Cleber, o motorista notou que Carlos estava estranho, inquieto e falando sozinho que “estava desgraçado”. E continuou: “Não tenho para onde ir. O único lugar seguro seria a casa do meu irmão e não sei mais onde é. Para o sítio eu não vou”. Encontrando a casa do irmão, saiu do carro chorando e foi ao encontro deste, com quem ficou conversando e pediu ajuda. Cleber pediu o carro do motorista, que ficou ao lado de Carlos sem entender aquela situação. O irmão de Carlos voltou acompanhado de uma filha e pediu que o motorista fosse embora. Ele, no entanto, disse que ficaria ao lado de seu patrão que, no entanto, disse que não seria preciso e o liberou dos afazeres naquele dia. Dispensado o motorista, Cleber e Carlos foram para um varadouro na AM-010, onde passaram a noite de quinta-feira e a manhã de sexta-feira. Voltando para Manaus, pararam em um bar à beira da estrada e viram um grupo de jovens jogando bola em um terreno. Perguntando de quem era a propriedade, descobriram que era do advogado Armando Freitas. Carlos decidiu procurá-lo e disse que sabia apenas que tinha matado a filha Rebeca. De alguma forma a polícia foi avisada de que ele procurou um advogado, e esta, prontamente, fechou todas as saídas da cidade.

Carmem Miguel Lobo. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

No dia em que prestava o depoimento, cerca de 1000 pessoas se dirigiram para o distrito de polícia em que ele estava, aos gritos de “lincha o monstro que matou a filha”. Pedras foram arremessadas na janela do distrito, sendo necessária a transferência de Carlos para outro local. Um policial, para dispersar as pessoas, fez disparos para o alto, sendo necessário reforços da Companhia de Choque da Polícia Militar para controlar a situação.

Mas o que levou Carlos Lobo a assassinar a própria filha, utilizando como arma uma faca de caça? O que teria ocorrido para que um homem de sua posição social, benquisto pela vizinhança e sem antecedentes criminais, cometesse um dos crimes mais conhecidos da cidade? Deve-se interrogar as fontes, os depoimentos, para tentar penetrar no psicológico de Carlos Lobo.

Quando Carmem Miguel Lobo, a mãe de Rebeca, encontrou o corpo da jovem enrolado em um lençol na noite de 30/04/1981, ela, de acordo com as informações colhidas nos depoimentos e nas matérias de jornal, afirmava não ter dúvidas de que o assassino era seu marido. Mas por que Carmen tinha tanta certeza, mesmo antes das primeiras investigações que confirmariam tal assertiva? Carmen, por várias vezes, afirmou que Carlos sempre foi um marido e pai exemplar, não fumava e não bebia, sendo desconhecidos quaisquer vícios. Era bastante protetor em relação aos filhos, mas com Rebeca era diferente. Com a jovem ele era protetor ao extremo, beirando a possessão. Os outros filhos sentiam ciúmes dessa atenção especial dispensada a Rebeca, pois todas as vezes que saia, Carlos a levava junto. Um ano antes do crime, em 1980, Rebeca começou a namorar um jovem chamado Valber José Santana Feitosa, morador da rua Nhamundá, no mesmo bairro. Carlos descobriu o namoro e ficou extremamente irritado, chegando mesmo a procurar o padrasto de Valber para proibir o namoro. Em depoimento, o padrasto de Valber, Francisco Augusto da Cruz, sub-tenente reformado da Polícia Militar, confirmou que foi procurado por Carlos, que pediu que ele tomasse providências pois Rebeca era muito jovem para se relacionar amorosamente. Meses depois, Carlos foi novamente a residência de Francisco Augusto, ameaçando “aplicar um corretivo em Valber” caso os dois não rompessem relações, quando lhe foi mostrada uma carta de Rebeca insistindo no namoro.

Acreditava-se que, além das facadas, Carlos tinha deflorado a filha. Correram boatos pela cidade e pela imprensa. Carmem Lobo também acreditava que isso tinha ocorrido. No entanto, o legista do Instituto Médico Legal não encontrou nenhum indício de violência sexual contra Rebeca no exame de necrópsia. Em seu próprio depoimento Carlos afirmava que em nenhum momento passou por sua cabeça o desejo de violá-la e, mais de uma vez, que estava possuído por um Demônio ou entidade semelhante. Questionado mais de uma vez por repórteres se Rebeca era sua filha legítima, sempre afirmou que sim. Sem antecedentes criminais, sem ato sexual durante o crime… O que aconteceu com Carlos Lobo naquele dia? Será que premeditara o crime algumas horas antes do dia 30/04/1981 ou já o tinha em mente desde 1980, quando Rebeca conheceu Valber? De alguma forma, utilizando aqui um pouco de Psicologia, o filicida Carlos Lobo ao matar a filha, tentava atingir a esposa Carmem? Se sim, por quais motivos? São muitas perguntas cujas respostas ficam no campo das suposições.

Após o tumulto no distrito policial, Carlos foi levado a um cartório para concluir seu depoimento. Sua esposa, a pedido do delegado, disse que queria vê-lo. Ficando frente a frente com o assassino de Rebeca, com quem constituiu família, enfureceu-se. Aos gritos, perguntava: “Carlos, o que é que você fez seu desgraçado? Porque mataste tua filha, rasgando-lhe o ventre? Não pensastes nos planos que fizemos juntos pensando no futuro dela? Minha vontade é matar-te pouco a pouco e engolir todo o teu sangue”. Carmem foi levada do cartório e Carlos Lobo enviado à Penitenciária Central do Estado, sendo condenado em 04/05/1981 a 25 anos de prisão.

A residência da família Miguel Lobo de Carvalho foi transformada na casa de drinks Anacondas, inaugurada seis meses depois do crime. De acordo com frequentadores, o ambiente desse bar era bastante pesado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981 (Cordel).

ZYLBERKAN, Mariana. Mortes em família: quando o assassino está dentro de casa. Revista VEJA, 21/09/2013.


FONTES:

JORNAL DO COMÉRCIO, 03/05/81, 05/05/81, 06/05/1981, 07/05/1981, 17/10/81.






quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Ruas de Manaus: Tabelião Lessa


Travessa Tabelião Lessa, 1985. FONTE: Manaus Sorriso/Acervo da PMM.

Localizada entre as ruas dos Barés e Barão de São Domingos, do lado do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, na zona portuária do Centro da cidade, a Travessa Tabelião Lessa passa quase que despercebida pelos milhares de transeuntes que todos os dias frequentam aquela área. Não fosse uma placa com letras brancas e fundo azul, já teriam esquecido por completo que aquela pequena via possui nome.

Sua história começa em 1918. Em 19 de março daquele ano, em sessão no Conselho Municipal, o Intendente Dr. Fulgêncio Martins Vidal apresentou um projeto de lei que dava o nome de “[…] Tabelião Lessa á rua que fica ao lado leste do Mercado Público, até hoje sem nome” (IMPARCIAL, 19/03/1918). Até aquele momento, o pequeno trecho ao lado do Mercado Público não possuía nome, sendo um mero caminho de acesso à praia que se formava com a vazante do rio. O projeto foi aprovado e transformado em “Lei N° 923 de 20 de março de 1918” (IMPARCIAL, 20/03/1918).

Um mês antes, em fevereiro de 1918, falecera o homenageado, Coronel Manoel Antonio Lessa, popularmente conhecido como Tabelião Lessa. Maiores informações nos são apresentadas em seu necrológio (elogio fúnebre): Manoel Antonio Lessa nasceu em 16 de fevereiro de 1845 na Província do Ceará, sendo seus pais José Antonio Lessa e Lauredana Corrêa Lessa. Veio jovem para a região amazônica, indo primeiramente para a cidade de Óbidos, no Grão-Pará, matriculando-se no Colégio S. Luiz de Gonzaga. Desempenhou, em 1863, então com 18 anos, os cargos de porteiro do Inspetor da Tesouraria da Fazenda e de escrivão da Coletoria de Rendas Federais. Um ano depois foi nomeado auxiliar de expediente do Selo. De 1867 a 1868, atuou naquela cidade como escrivão interino da Mesa de Rendas. Em 1868, mais uma vez através de nomeação, atuou como escriturário. Em 1869 foi nomeado praticante de Tesouraria da Fazenda e auxiliar do 2° escriturário Euphrasio Paes de Azevedo, na Flotilha do Amazonas. Serviu no Correio Geral e, em 7 de julho de 1870, foi nomeado Tabelião de Notas de Manaus, cargo no qual construiu sua carreira. Faleceu em 16 de fevereiro de 1918 aos 73 anos, “[…] na mesma data de seu nascimento, com a diferença de 1 hora e 20 minutos” (A CAPITAL, 17/02/1918).

Antiga mercearia 'Porta Larga'. FOTO: Robson Franco, 2014.

Alguns anos depois da nomeação daquela pequena via, já aparecem estabelecimentos comerciais endereçados com o nome de rua, posteriormente travessa, Tabelião Lessa: “Hotel Popular”, do espanhol José Rodriguez González (EL HISPANO AMAZONENSE, 29/07/1922), “Mercearia Sempre Viva (JORNAL DO COMÉRCIO, 03/02/1923), eTabacaria Nova Estrela”, de M. Pinto (JORNAL DO COMÉRCIO, 07/09/1944). O mais conhecido, sem dúvida, é o prédio da antiga mercearia Porta Larga, que chama a atenção por sua arquitetura. O prédio, pouco largo, possui uma entrada consideravelmente grande se comparada com o resto da obra.

A Travessa Tabelião Lessa recebeu, em 1956, o serviço de “pavimentação com alvenaria poliédrica e revestimento de asfalto” (MENSAGEM À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA APRESENTADA PELO GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS POR OCASIÃO DA ABERTURA DA SESSÃO LEGISLATIVA DE 1956). Mais recentemente, em 2014, a Prefeitura instalou um portão de ferro na travessa para impedir a comercialização irregular de pescados e o trânsito de moradores de ruas e usuários de entorpecentes.


FONTES:

Imparcial, 19/03/1918.
Imparcial, 20/03/1918.
A Capital, 17/02/1918.
Mensagem à Assembleia Legislativa apresentada pelo Governador do Estado do Amazonas, Plínio Ramos Coelho, por ocasião da abertura da Sessão Legislativa de 1956.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso/Acervo da PMM.
Robinson Franco.

sábado, 24 de novembro de 2018

Ruas de Manaus: Lauro Cavalcante

Casario antigo da rua Lauro Cavalcante. FOTO: Jayme Arthur Souto Loureiro, 2018.

Com início na Avenida Getúlio Vargas, passando pela Avenida Joaquim Nabuco e terminando na rua Igarapé de Manaus, a rua Lauro Cavalcante é uma pequena e tradicional via pública do Centro Histórico de Manaus. O presente texto será o primeiro de uma série de postagens sobre a história das ruas da cidade.

Sua história tem início em 1917. Até esse ano ela era a continuação da rua Henrique Martins. Com o falecimento do médico Lauro E. Cavalcante nesse mesmo ano, o Superintendente Municipal Sérgio Rodrigues Pessoa, em sessão de 24 de outubro de 1917, em reconhecimento aos feitos desse profissional, decidiu o seguinte:

A Intendencia Municipal de Manáos resolve dar a denominação de rua Dr. Lauro Cavalcante ao trecho da rua Henrique Martins, comprehendido entre a Avenida 13 de Maio e Igarapé de Manáos visto não ser o referido trecho um prolongamento da dita rua.
Art. 1° - Fica o trecho da rua Henrique Martins entre a Avenida 13 de Maio e o Igarapé de Manáos denominado rua Dr. Lauro Cavalcante.
Art. 2° - Revogam se as disposições em contrário.
S. S. do Conselho Municipal de Manáos, de 24 de outubro de 1917
(a) Sergio R. Pessoa” (Terceira reunião ordinaria, triennio de 1917 a 1919, Sessão em 24 de outubro de 1917 In: A CAPITAL, 25/10/1917).

O projeto, transformado em Lei Municipal N° 915, foi aprovado em 26 de outubro daquele ano. Em registros fotográficos da década de 1920, como o que vem a seguir, de 1929, é possível ver esse antigo trecho da rua Henrique Martins, transformado em rua Lauro Cavalcante, sem nenhum tipo de calçamento. Ela só viria a receber esse serviço em 1938 na administração municipal de Antônio Botelho Maia, conforme pode ser visto nos “Topicos da Mensagem que o Prefeito de Manáos, agronomo Antonio Botelho Maia dirigiu ao dr. Alvaro Botelho Maia, Interventor Federal” (JORNAL DO COMÉRCIO, 28/08/1938).

Início da rua Lauro Cavalcante, 1929. FONTE: Manaus de Antigamente.

A rua após o serviço de calçamento realizado em 1938. FONTE: Jornal do Comércio, 28/08/1938.

Na recém-inaugurada Lauro Cavalcante passou a funcionar o Colégio Santa Clara, destinado ao ensino primário e dirigido “pelas professoras normalistas Anna e Francisca Rebouças” (JORNAL DO COMÉRCIO, 01/01/1919); o Escritório de Advocacia de “Bernardino Paiva e Castro Monte” (JORNAL DO COMÉRCIO, 04/10/1921); o consultório do médico Avelino Pereira, especialista em “doenças dos olhos, ouvidos, nariz e garganta”, no final da década de 1930 (JORNAL DO COMÉRCIO, 07/09/1939); e a Fábrica de Móveis Teixeira & Couteiro, na década de 1950. 

Vila Georgete (Jorgete). FOTO: Roberto Mendonça, 2015.

Outros estabelecimentos eram de longa data, desde o início do século XX, quando aquela parte ainda era conhecida pelo nome Henrique Martins, como a Mercearia Castelo de Ouro, posteriormente Bar e Restaurante Castelo de Ouro, na esquina com a Avenida 13 de Maio (futura Getúlio Vargas); e a histórica Vila Georgete (Jorgete), existente até os dias de hoje. Além da Georgete, existiram as vilas Teixeira e Valente. No casarão existente na esquina com a Avenida Joaquim Nabuco, foi instalada em 1968, no governo de Danilo Duarte de Mattos Areosa, a Secretaria de Assistência e Saúde do Estado. Devem ser citadas, ainda, as sedes do INOCOOP (Instituto de Orientação das Cooperativas Habitacionais), da SEMEC (Secretaria Municipal de Educação e Cultura), posteriormente SEMED (Secretaria Municipal de Educação), a Central de Voluntários, instalada no governo de José Lindoso, 

Lauro E. Cavalcante, 1916. FONTE: Correio Sportivo, 15/04/1916.

Quem foi Lauro Cavalcante? Lauro E. Cavalcante foi médico legista da Polícia do Estado do Amazonas, cirurgião, professor normalista, presidente da Liga Amazonense de Esportes Atléticos e do Atlético Rio Negro Clube (1915-1916). Idealizou o Instituto de Proteção e Assistência à Criança do Amazonas, que não foi plenamente instituído dada a sua morte prematura. Lauro Cavalcante foi interno da Casa de Saúde Dr. Eiras e da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, especializando-se, nesses estabelecimentos, no tratamento da sífilis. Em Paris realizou um curso de tratamento de crianças no ‘Hospital des Enfants Malades’ e especializou-se no trato de moléstias do fígado, baço e pulmões. Em Manaus, assim como os médicos de outras cidades do país, realizava consultas em farmácias. Atendia na Verne, localizada na Praça Tamandaré, das 7 às 9 horas; e na Barreira, na Avenida Eduardo Ribeiro, das 15 às 17 horas. Os que desejassem comodidade também poderiam ser atendidos em sua residência na Avenida Joaquim Nabuco. Costumava não cobrar as consultas e qualquer auxílio prestado a pessoas de baixa renda.


FONTES:

Correio Sportivo, 15/04/1916.
A Capital, 25/10/1917.
Jornal do Comércio, 01/01/1919.
Jornal do Comércio, 04/10/1921
Jornal do Comércio, 28/08/1938.
Jornal do Comércio, 07/09/1939.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jayme Arthur Souto Loureiro
Manaus de Antigamente
Jornal do Comércio
Roberto Mendonça
Correio Sportivo

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

'Homens, Cousas e Fatos' – Etelvina D’ Alencar (1956)

Mausoléu de Etelvina D' Alencar (1884-1901). FOTO: Fábio Augusto de C. Pedrosa, 2018.

A História da jovem Etelvina D’ Alencar (1884-1901), popularmente conhecida como Santa Etelvina, até hoje, passados 117 anos de seu assassinato, desperta a curiosidade de leigos e pesquisadores. Seu mausoléu no Cemitério São João Batista, para onde concorre grande número de católicos em busca de graças ou agradecimentos ao que já foi alcançado, seja a aprovação em um concurso ou a cura de uma enfermidade, é o mais visitado daquela necrópole. Reproduzo, abaixo, o texto referência sobre o caso, escrito pelo jornalista Julio Uchôa em 1956 e publicado no Jornal do Comércio.


HOMENS, COUSAS E FATOS

Julio UCHÔA
(Da Asoc. Amaz. de Imprensa)


Escrevemos, em 1947, algumas notas sôbre Etelvina de Alencar, jovem nordestina, de 17 anos de idade, sacrificada às mãos de um conterrâneo seu, o qual se deixou dominar por estranha e mórbida paixão. Isso em princípios de 1901. Descreveu o doloroso acontecimento, de extraordinária repercussão em todo o país, um inspirado bardo popular que enfeixou, em um folheto, sua magnífica produção. Muitos anos volvidos, após sua divulgação, caiu sob nossas vistas um exemplar dêsse livrinho1. E, foi, assim, que ao historiador forneceu o poeta os elementos indispensáveis à elaboração do citado trabalho, conservando aquêle, desta feita, como da vez anterior, o mesmo sentido trágico e humano, dado por êste à sua impressionante narrativa.

Filha de Cosme José de Alencar e de dona Antônia Rosalina de Alencar, Etelvina nasceu em Boa Vista do Icó (Ceará), em 1884, vindo para Manaus em companhia de sua genitora, já, então, viúva, e de três irmãs, sendo uma destas casada. Desta capital se transportou a família à Colônia “Campos Sales”, inaugurada dois anos antes, onde se ia dedicar aos labores agrícolas.

Na Colônia, Etelvina veio a conhecer o colono de nome José, que logo a primeira vista por ela se apaixonou, seguindo-se o ajuste de casamento. Cedo, porém, a desilusão: a jovem fez saber a José não mais desejava casar-se com êle, desfazendo-se, dêste modo, os compromissos assumidos anteriormente.

Grande abalo produziu no espírito de José o rompimento do noivado. Meio pequeno, constituído como que de uma família, a notícia provocou sensação. Houve mesmo quem afirmasse que Etelvina possuía três namorados: Antônio, Estevam e Henrique. Tudo isso ouvira José, e dando crédito às intrigas que lhe contavam, jurou vingar-se, não só da ex-namorada, mas, igualmente, dos três rapazes que imaginava causadores de sua infelicidade. E tudo planejou, fria demoradamente.

Veio à cidade, onde adquiriu um rifle e farta munição. Mataria a todos, dissera ele a amigos. Estávamos em março de 1901.

E, assim, aconteceu. Mal entrava na área da Colônia, alvejava a tiro a Estevam, que descuidado não esperava a agressão; ao primeiro disparo êle corre, procurando desvencilhar-se do assassino; um segundo tiro, porém, prostrou-o sem vida. Mais adiante estava Henrique, com quem José trava violenta luta corporal; subjugado o adversário, abateu-o a tiro. Um pobre caboclo que dormia à sombra de uma árvore próximo à casa da Administração, é a terceira vítima da fúria sanguinária do celerado…

Cometidos os três crimes, José se dirige à residência de Etelvina, e, valendo-se do coice do rifle, pôs abaixo a porta da casa. Nessa ocasião aparece-lhe Versoli, administrador da Colônia, que procura interceptar a entrada do criminoso, sendo morto, por êste. Suspeitando das intenções do bandido, a moça tenta fugir, no que é obstada por êle que conseguiu alcançá-la e “quase nua, pés descalços em camisão” (diz o poeta), a desventurada Etelvina é arrastada para a densa floresta que se estendia às proximidades da casa.

Infrutíferas foram as buscas nos primeiros dias. E, somente a 8 de março é encontrado o local, em que se consumara o derradeiro ato do imenso drama, misto de amor e ódio. Os urubús, em grupos simétricos, voejavam alto, sinal evidente de que lauto fôra o repasto. E, ali, o quadro punjente, que a todos estarreceu: duas caveiras se defrontavam, numa evocação sinistra dos últimos instantes, de pavor e de alucinação, que viveram aquelas duas criaturas. O rifle, entre os dois esqueletos, explicava a cena final: José matara a infeliz Etelvina, suicidando-se, a seguir.

Repousam os restos mortais de Etelvina de Alencar, ou “Santa Etelvina”, como é por todos reverenciada, no cemitério de São João, em sepultura perpetuada por lei municipal n° 233, de 30 de agôsto de 1901, à sombra do jazigo que o Povo Amazonense ergueu à sua memória. E, desde então as visitas ao seu túmulo se sucedem, ininterruptamente, durante o dia: são os devotos da meiga “Santinha”, que ali vão levar suas oblatas, ou acender um círio votivo pelo atendimento às suas súplicas e orações…


FONTE:


JORNAL DO COMÉRCIO, Ano 52, N° 13.971, 15/01/1956.


NOTAS:

1 Julio Uchôa refere-se ao livreto ‘Os Horrores de Manaus’, do poeta popular potiguar Antônio Mulatinho. Com primeira edição possivelmente publicada em 1905, foi produzido em homenagem a Etelvina D’ Alencar. O dinheiro arrecadado com a venda desse trabalho foi utilizado em melhoramentos no seu túmulo. Além do assassinato da jovem, que leva o título ‘A infeliz Etelvina em março de 1901’, Antônio aborda mais três crimes, todos narrados em forma de prosa: 'Tiroteio de 26 e 27 de fevereiro, em 1893'; 'A morte de 4 creanças no bairro do Mocó, em setembro de 1895'; e 'O crime do Barba Azul, em junho de 1901'. A trova final, ‘Saudades do meu sertão’, é um poema saudosista em lembrança ao Nordeste, região de onde o autor veio.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

Resenha: Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências, de Agnello Bittencourt (1969)


Em 1969, ano que ficou consagrado pelos festejos do tricentenário de Manaus, o renomado geógrafo, historiador e professor amazonense Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou o trabalho ‘Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências’, uma síntese da história da cidade de seus primeiros anos até a década de 1960.

Agnello Bittencourt inicia seu texto abordando os empreendimentos espanhóis e portugueses na América entre fins do século XIV e início do século XV, ou como ele diz, “o estado de espírito dos conquistadores lusos e espanhóis” (BITTENCOURT, 1969, p. 23). Por estado de espírito ele não se refere apenas à conquista territorial e material, mas, principalmente, à influência dos mitos e lendas na mentalidade daqueles homens recém-saídos do período medieval. Para o historiador a penetração do território que viria a ser conhecido como Amazonas é fruto da “cobiça europeia embalada nos mitos que se divulgaram” (BITTENCOURT, 1969, p. 24). A Expedição de Pedro Teixeira, realizada em 1637, durante o domínio da Coroa Espanhola sobre Portugal, foi de extrema importância para uma ocupação mais efetiva dos lusitanos na Amazônia.

Como um dos historiadores de Manaus da geração mais tradicional, Agnello Bittencourt não pôde deixar de citar o célebre episódio da construção, em 1669, pelo Capitão Francisco da Mota Falcão, da Fortaleza de São José do Rio Negro, vinda à luz para pôr fim às pretensões conquistadoras de ingleses, franceses e holandeses na região, bem como para estimular o povoamento daquela parte da Amazônia. Ao redor da construção fixaram-se indígenas das tribos Manaus, Barés, Banibas e Passés. Como vestígio da Fortaleza, o autor cita o Cemitério Indígena encontrado durante as obras realizadas na Praça Dom Pedro II, afirmando que “a atual geração que hoje habita Manaus ignora o fato, mal podendo avaliar que ali foram sepultados muitos antepassados nossos, de raça e mesmo de sangue” (BITTENCOURT, 1969, p. 34).

Seguiu-se à criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1755, a mudança de sua sede, até então em Mariuá (Barcelos), para o Lugar da Barra, ocorrida em 1791 durante a administração do Brigadeiro e engenheiro militar Manuel da Gama Lobo D’ Almada. A mudança foi gestada pela melhor localização, na confluência dos rios Negro e Amazonas, daquele tímido burgo. A medida não agradou D. Francisco de Souza Coutinho, Capitão-General do Grão-Pará, temeroso do prestígio que tal mudança garantiu a Lobo D’ Almada, pois este, em seu governo, dinamizou o Lugar da Barra, introduzindo nele várias melhorias como fábricas, olarias, padarias etc. Com a ajuda de seu irmão, Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro em Portugal, iniciou “[…] sua campanha contra a nova sede da Capitania e, como consequência, em 1799 retorna esta para Barcelos, nos têrmos da Carta Régia de 22 de agôsto de 1798” (BITTENCOURT, 1969, p. 35-36). O Lugar volta a ser sede da Capitania de São José do Rio Negro em 1808, passando a categoria de Vila em 1832, com o nome de Manaus, sendo elevada à Cidade da Barra do Rio Negro em 1848 e, em 1856, “recebeu a designação definitiva de Cidade de Manaus, já então com 4.000 habitantes” (BITTENCOURT, 1969, p. 37).

Reconhecendo que as mudanças de status (Lugar, Vila e Cidade) não alteram profundamente, de forma imediata, os aspectos de Manaus, e que essas transformações dependem de fatores econômicos e sociais que se processam lentamente ou em surtos, Agnello Bittencourt propõe três etapas em que se pode observar, do ponto de vista dos aspectos físicos, a cidade de Manaus: “a primeira, que vai da fundação do Forte até meados do último quartel do século passado; a segunda, indo dessa época até quase da Segunda Guerra Mundial; e a terceira, a Manaus de hoje” (BITTENCOURT, 1969, p. 38-39).

Da primeira fase, entre fins do século XVIII até a segunda metade do século XIX, o historiador recupera os relatos dos viajantes que, durante suas expedições, passaram por Manaus, e os relatórios dos primeiros Presidentes da Província do Amazonas: Alexandre Rodrigues Ferreira (1787), Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius (1819), Alfred Russel Wallace (1849), Richard Spruce (1850-51), Lourenço da Silva Araújo e Amazonas (1852), João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1852), Herculano Ferreira Pena (1853), A. Belmar (1860), Louis e Elizabeth Agassiz (1865) e Franz Keller-Leuzinger (1867). É do casal Agassiz a famosa impressão de que “insignificante hoje (1865), Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e navegação(AGASSIZ, 2000, p. 196). Esses diversos relatos e impressões dão notícia de uma cidade com população diminuta, sem maior expressão econômica e com seus limites urbanos definidos pelo terreno tortuoso, pelas matas e igarapés. A partir do final do século XIX, a narrativa se torna mais pessoal, baseada no que o autor viu ao longo de 92 anos de vida, “setenta dos quais passados em Manaus” (BITTENCOURT, 1969, p. 55). São frequentes os termos ‘vi’, ‘andei’, ‘conheci’: “Esta Manaus que conheci era limitada ao norte pela rua Monsenhor Coutinho, ao Sul pelo Rio Negro, a leste pela rua Joaquim Nabuco e a oeste pelo igarapé de São Vicente. Além daí era os bairros de Educandos, Cachoeirinha, Campinas e São Raimundo” (BITTENCOURT, 1969, p. 63-64).

Ao fim do período provincial surgem prédios de arquitetura mais refinada, destacando-se o Paço Municipal, a Catedral de Nossa da Conceição, a Santa Casa de Misericórdia, o Gymnasio Dom Pedro II, o Asilo Elisa Souto, o Mercado Público, o Quartel de Artilharia, a Cadeia Pública, a Assembleia Legislativa e a Delegacia Fiscal. “Era assim a cidade que, a 3 de junho de 1889, recebeu a visita de S. A. I. o Conde d’Eu, a cujo desembarque tive a oportunidade de assistir” (BITTENCOURT, 1969, p. 64). Findada a Monarquia e instalada a República, tem início a segunda etapa de Manaus, que será marcada pelo frenesi da economia gomífera.

Agnello Bittencourt foi testemunha dessas mudanças, vendo de perto as administrações de Eduardo Gonçalves Ribeiro, Fileto Pires Ferreira, José Cardoso Ramalho Júnior, Silvério Nery, Constantino Nery e Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, apenas para ficarmos no período que vai de 1890 a 1912, do apogeu ao início da desestruturação do sistema gomífero. De forma saudosista, lembra que a cidade atingiu “[…] o apogeu da (também muito sua) “belle époque” - lindos prédios, ruas bem pavimentadas com seus batentes e calçadas em mármore de Lioz, iluminação feérica, luxo e até esbanjamento” (BITTENCOURT, 1969, p. 69). Tais afirmações reforçaram a ideia de uma cidade plenamente próspera, também presente em outros autores da mesma geração, quando já se sabe, por estudos feitos desde a década de 1980, que paralelamente a esse enriquecimento houve um forte processo de exclusão das camadas populares. Como membro de uma família tradicional da elite local, tendo ele próprio estado a frente da Prefeitura de Manaus entre 1909 e 1910, não é estranho que faça afirmações como a de que, em Manaus, “a população vivia à europeia, viajando para o Velho Mundo, especialmente Paris” (BITTENCOURT, 1969, p. 69).

A partir de 1913 até a Segunda Guerra Mundial, com exceção da expansão ao Norte pela criação do bairro da Vila Municipal (Adrianópolis), em 1912, a cidade pouco cresceu materialmente. Agnello Bittencourt cita a compra, pelo Estado, do Palacete Scholz, transformado em Palácio Rio Negro (1918) e a construção do Relógio da Avenida Eduardo Ribeiro durante a administração municipal de Araújo Lima (1926-1930). Termina assim a segunda etapa.

A cidade começa a ganhar novo fôlego a partir da terceira etapa. Entre o final da década de 1930 e início da década de 1940 surgem o Parque 10 de Novembro (1938-1943), vários grupos escolares, o Departamento de Saúde Pública e o Instituto de Educação do Amazonas. Nos governos de Leopoldo Amorim da Silva Neves, Plínio Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo, “novas estradas e avenidas rasgaram a cidade, muitas ruas foram asfaltadas e solucionou-se o problema crucial que havia anos afligia a população: voltou a haver iluminação elétrica” (BITTENCOURT, 1969, p. 81). Vale lembrar que, apesar dessa aparente recuperação, o município, ao longo de toda a década de 1950, enfrentaria sérios problemas de déficit orçamentário.

A terceira etapa, a Manaus de hoje (1960), é coroada com a criação e instalação da Zona Franca. Esse novo modelo econômico possibilitou a entrada da cidade em uma nova era de crescimento, expansão e integração. Agnello Bittencourt finaliza seu texto desejando um bom futuro para a cidade e para seus administradores naquele momento do tricentenário, o Governador Danilo Duarte de Mattos Areosa e o Prefeito Paulo Pinto Nery.

Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências’, é um singelo trabalho de síntese histórica comemorativa ao aniversário da cidade, produzido, em grande parte, através de reminiscências da Manaus que o autor viu crescer aos poucos, atravessando surtos econômicos e crises. O livro se tornou um clássico que não deve ser olvidado por aqueles que desejam conhecer melhor a cidade e analisar criticamente sua historiografia tradicional, da qual este faz parte.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília, DF: Senado Federal, 2000, p. 196. (Coleção o Brasil visto por estrangeiros). [original: 1868].

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.



CRÉDITO DA IMAGEM:

estilousado.com.br