domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ária Paraense Ramos (1896-1915)

Ária Paraense Ramos (1896-1915). Data desconhecida. FONTE: Acervo da família Ramos, cedida à escritora Sayonara Melo, autora de 'Bairro de São Geraldo, uma História em duas conjugações: Passado e Presente (2008)'.

No dia 17 de fevereiro de 1915, na antiga sede do Ideal Club, então localizado na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a rua Henrique Martins, a jovem violinista Ária Paraense Ramos era vítima de um disparo acidental, vindo a falecer horas depois na Santa Casa de Misericórdia por conta de uma hemorragia. Sua morte encerrou de forma trágica o Carnaval daquele ano, até aquele momento divulgado pela imprensa como um dos mais alegres já realizados.

Quem foi Ária Paraense Ramos? Como se deu sua morte? No presente texto tentarei esboçar brevemente sua trajetória até aquele fatídico 17 de fevereiro de 1915.


VIDA E MORTE DE UMA ÁRIA


Ária Paraense Ramos nasceu em 12 de agosto de 1896 no Estado do Pará (Jornal do Commercio, 18/02/1915 e O Paiz, RJ, 15/03/1915). Era filha de Carlota de Souza Ramos e do Major Lourenço Ramos. Tinha duas irmãs, Pátria Amazonense Ramos e Celeste Luso Ramos; e dois irmãos, Alyrio Ramos e Horizonte Ramos. Lourenço Ramos era português, tendo se mudado para o Pará no final do século XIX. Lá casou-se com Carlota. Posteriormente a família veio para Manaus, passando a residir na Avenida Joaquim Nabuco, no lugar conhecido como Canto do Quintela. Ária costumava apresentar-se em espetáculos e casas de família com a irmãs Pátria e Celeste, pianistas e professoras. Ária também fazia parte da orquestra do Cinema Odeon.

Dizer que Ária Ramos era uma mulher a frente de seu tempo por tocar um instrumento musical ou afirmar que esta era feminista é algo que não condiz com aquele contexto. Era algo comum que as jovens da classe média e da elite aprendessem a tocar algum tipo de instrumento, sobretudo o violino e o piano. Era uma questão de status social, de demonstração de poder aquisitivo e refinamento cultural. Pátria e Celeste, por exemplo, como foi dito, eram musicistas, dando aulas particulares, conforme consta em anúncio de 1913 publicado no Jornal do Commercio:

“PROFESSORAS – Celeste e Patria Ramos, diplomadas pelos Conservatorios e Lyceu de Lisbôa, comunicam aos srs. Chefes de família que, desejem tomar professoras, que acabam de installar na casa á avenida Joaquim Nabuco 75 (predio dr. Linhares), aulas de harmonia, piano, violino, bandolim, francez e portuguez, onde suas exmas.filhas poderão aprender mediante modica remuneração. Ainda por preços muito rasoaveis, acceitam alumnas que desejem ser leccionadas na própria residência” (Jornal do Commercio, 07/07/1913).

Também afirmar que Ária Ramos foi morta por “incomodar” a sociedade da época não é correto. Os periódicos e os textos memorialísticos dão nota de uma moça estimada pelo grande talento, beleza e elegância que possuía. Em 1914 ficou em segundo lugar em um concurso promovido pelo jornal A Lanceta sobre qual era a “[…] senhorita mais chic de Manáos” (A Lanceta, 07/10/1914).

Horas antes de sua morte, no dia 16 de fevereiro, uma terça-feira, Ária Ramos desfilava na Avenida Eduardo Ribeiro e adjacências em um carro alegórico dos Paladinos da Galhofa, bloco musical do qual fazia parte, acompanhada de sua irmã Celeste. Logo depois, já na parte da noite, o Ideal Club realizava o seu famoso baile de Carnaval, um dos mais aguardados pela alta sociedade naquela época.

Muitos jovens da elite manauara, incluindo Ária e os Paladinos, fantasiados, divertiam-se nos salões do clube. Em um deles estavam Mario Travassos de Souza, 16 anos incompletos, Ilydio de Carvalho Barroco, 25 anos, e outras pessoas. Ilydio Barroco, em uma brincadeira, tomou as luvas da fantasia de Mario Travassos, retirando-se daquele salão. Depois que terminou de conversar, Travassos procurou Ilydio para que devolvesse suas luvas. Já passava da meia-noite. Ilydio, que conversava com Ária, disse que ele poderia retirá-las da cartucheira de sua fantasia de cow-boy, onde as havia guardado. Ao colocar a mão na cartucheira, Travassos encontrou um revólver, o retirando da mesma. Ao tentar abri-lo para ver se estava carregado e desconhecendo seu mecanismo, acidentalmente efetuou um disparo. A bala atingiu Ária Ramos na artéria femoral, ficando alojada em seu baixo-ventre.

Deve-se destacar que, conforme matéria de 18/02/1915 do Jornal do Commercio, Ária Ramos não foi atingida enquanto executava a valsa ‘Subindo aos Céus’, estando conversando, como foi dito no parágrafo anterior, com Ilydio Barroco. Ela pediu, sim, mas bem antes do acidente, que a orquestra presente no Ideal executasse a música, lhe acompanhando. Textos memorialísticos posteriores, em uma tentativa de mitificar o acontecimento, distorcendo as fontes contemporâneas ao fato, insistem na afirmação de que ela tocava essa valsa no violino quando recebeu o disparo.

O pânico se instalou no Ideal, com pessoas correndo e gritando. A polícia fechou o clube, proibindo a saída dos foliões e prendendo Mario Travassos e Ilydio Barroco. Ária Ramos, com uma grave hemorragia, foi socorrida pelos médicos Turiano Meira e Xavier de Albuquerque, presentes na festividade. Este último realizou a compressão da artéria femoral. Uma ligação foi feita para o médico Jorge de Moraes, que se dirigindo ao local e vendo que o sangramento havia cessado, recomendou a remoção de Ária para a Santa Casa de Misericórdia para que fosse feita a ligação da artéria atingida.

No hospital, Ária Ramos foi operada pelos médicos Jorge de Moraes, Theogenes Beltrão, Xavier de Albuquerque e Turiano Meira. Sua artéria femoral foi ligada a cerca de 2 centímetros do lugar de origem e a 6 do projétil. No entanto, o sangue que perdera no Ideal Clube foi suficiente para que viesse a falecer, às 5 da manhã do dia 17, durante as intervenções médicas. Tinha 18 anos. Estavam presentes em seu leito seus pais, membros do bloco Paladinos da Galhofa e outras pessoas que acompanharam sua remoção para a Santa Casa. Seu corpo foi levado para a residência da família, onde grande número de pessoas começou a afluir.

Após o velório o cortejo fúnebre em direção ao Cemitério de São João Batista saiu às 16 horas. O caixão, azul-claro, confeccionado pela casa Neves & Correia e oferecido pelo Major Almir Neves, foi carregado até o coche fúnebre por amigas da falecida. Posteriormente o coche foi deixado de lado, sendo o caixão carregado a mão. O cortejo passou pela rua Municipal, Avenida Eduardo Ribeiro, rua 10 de Julho, Avenida Joaquim Nabuco, Estrada Dr. Moreira, Praça de São João e Avenida 13 de Maio. 40 veículos (carros, charretes etc) acompanharam o cortejo, sendo vistas as seguintes coroas fúnebres:

“A Aria, gratidão dos Paladinos da Galhofa; Saudades de Longa; A’ Aria, em testemunho da profunda dor, saudades do Ilydio; Saudades de sua madrinha; A’ Aria, saudades de Fontenelle & Cia; Saudades de Cecilia e Diniz; Saudades de Conrado Garcia e família, e “Affectueux souvenir” (O Paiz, 15/03/1915).

Ao chegar no Cemitério de São João Batista, a encomendação do cadáver foi realizada pelo Monsenhor Antero José de Lima. Discursaram os senhores Generino Maciel, pelos Paladinos da Galhofa, José Francisco de Araújo Lima e Ildefonso Pereira pelos musicistas da cidade. O Jornal do Commercio foi representado por Abelardo Araújo e Serafim Sobrinho. O corpo de Ária Ramos foi sepultado às 18 horas. Todas as despesas do funeral foram pagas pelos membros do Paladinos da Galhofa. O Cinema Odeon, em sua homenagem, não abriu as portas.

Mario Travassos (N° 10), então acadêmico de Odontologia na Universidade de Manáos. Foto de 1917. FONTE: A Capital, 27/11/1917.

Como tratou-se de uma morte acidental, um homicídio culposo, Mario Travassos (1900-1928) e Ilydio Barroco (1890-1916) foram julgados e considerados “inocentes”. Descobriu-se que em 1917 Mario Travassos era aluno do curso de Odontologia da Universidade de Manáos (A Capital, 27/11/1917). Também atuou como jogador de futebol do Atlético Rio Negro Clube (Jornal do Commercio, 21/10/1917). Faleceu em 1928 (Jornal do Commercio, 11/08/1928). Ilydio Barroco, de naturalidade portuguesa, era funcionário e sócio da firma Adrião Barroco & Cia e também jogador do Atlético Rio Negro Clube. Faleceu em 12 de agosto de 1916 aos 26 anos vítima de uma “congestão cerebral” (Jornal do Commercio, 13/08/1916).


O MAUSOLÉU


O mausoléu de Ária Ramos nos dias atuais. FOTO: Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, 15/02/2019.

A morte de Ária Ramos comoveu a sociedade manauara. De forma a perpetuar sua memória, uma comissão formada pelos senhores João Maranhão, Celino Menezes e Abelardo Araújo tratou de angariar, entre fins de fevereiro e início de março, fundos para a construção de um mausoléu no Cemitério de São João Batista. O dinheiro foi arrecadado através da exibição de filmes e espetáculos no Cine Polytheama.

A sepultura de Ária Ramos foi declarada perpétua pela Prefeitura, estando isentos de pagamento de impostos os construtores do monumento fúnebre. Quando o valor necessário à construção foi arrecadado, o trabalho foi encomendado à Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi. A escultura em tamanho natural de Ária Ramos foi produzida em Carrara, na Itália, pelo professor Augusto Franzoni, natural de Carrara, membro da Academia de Belas Artes daquela cidade e da Comissão de Arqueologia de Roma (Jornal do Commercio, 23/07/1916). Por conta de dificuldades de navegação entre Gênova, de onde a estátua seria embarcada, para Lisboa, o mausoléu não foi inaugurado na data prevista pela comissão, 17 de fevereiro de 1916.

Primeira imagem do mausoléu de Ária Ramos. FONTE: Jornal do Commercio, 23/07/1916.

A inauguração ocorreu às 9 horas do dia 23 de julho de 1916. Um grande número de populares compareceu à cerimônia. O Major Lourenço Ramos retirou o manto que cobria o mausoléu, e Abelardo Araújo o declarou inaugurado. O professor e médico Adriano Jorge fez um discurso em memória de Ária Ramos. Uma orquestra dirigida pelo professor João Donizetti executou a marcha fúnebre composta por Mozart Donizetti.

O mausoléu de Ária Ramos foi construído com mármores de Carrara e Cintra. A jovem foi representada segurando seu violino, trajando as vestes e a cruz no pescoço que utilizava no dia de sua morte, apoiada sobre um tronco de árvore, tendo atrás uma grande cruz sustentada por duas colunas (Jornal do Commercio, 24/07/1916). Seu túmulo possui dois epitáfios: “Diante de sua graça, que a doce alegria de viver tornava ainda mais radiosa, em face do genio que no explendor de sua mocidade alvorescia, a própria morte estacou, maravilhada, e, em vez de a prostrar com a arma sinistra e brutal que traz ao hombro a tocou de leve, subtilmente, com um beijo fulminador...” e “A Aria Ramos nascida a 12 de agosto de 1896 e fallecida por effeito de um accidente em 17 de fevereiro de 1915. Commovida homenagem posthuma da sociedade manauense”.

A História de Ária Ramos, como supõe alguns, não é repleta de mistérios. Ao longo de mais de 100 anos de sua morte foram criadas versões fantasiosas, como as que dizem que ela foi morta por um ex-namorado, ou que tinha dois companheiros ao mesmo tempo. Essas versões não se sustentam diante da documentação existente. Tratou-se apenas de uma morte acidental, um trágico acontecimento que deixou lembranças nos que estavam presentes naquele Baile de Carnaval de 1915 e também nos que apenas ouviram boatos, dando asas à imaginação popular.


FONTES:

Jornal do Commercio, AM, 07/07/1913.

A Lanceta, 07/10/1914.

Jornal do Commercio, AM, 18/02/1915.

O Paiz (RJ), 15/03/1915.

A Capital, 27/11/1917.

Jornal do Commercio, 13/08/1916.

Jornal do Commercio, 23/07/1916.

Jornal do Commercio, 24/07/1916.

Jornal do Commercio, 21/10/1917.

Jornal do Commercio, 11/08/1928.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O Carnaval Manauara de 1905


Um dos vários registros do Carnaval manauara de 1905. FONTE: Acervo do pesquisador Ed Lincon.

O Carnaval manauara de 1905 foi um dos mais famosos da História da cidade, sendo amplamente divulgado e elogiado em jornais locais e também de outros Estados. O Jornal do Commercio, a par dos preparativos, afirmou que “[…] não houve até hoje carnaval assim em Manáos, nem tão rico, nem tão espirituoso, nem tão artístico” (Jornal do Commercio, 08/02/1905).

Os carros alegóricos encomendados de Paris foram a grande novidade. Eles eram montados em charretes, tendo diferentes formatos, indo de pássaros à dirigíveis (zeppelins). O ‘Club dos Terríveis’, sob a Presidência do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, contratou para a montagem de seus carros os artistas Dionísio e Centofanti, famosos pelo trabalho que faziam no Carnaval do Rio de Janeiro.

As festividades ocorriam na Avenida Eduardo Ribeiro, a principal artéria da cidade naquele período e onde por muitas décadas seria realizado o Carnaval de Manaus. O Club dos Terríveis se organizava na Avenida de forma que um grupo de foliões fosse acompanhado por um carro alegórico de forma sucessiva: “1° grupo: Banda de clarins. 1° carro: Euterpe. 2° grupo: Guarda de Couraceiros Nubios. 2° carro: Mephistopheles” (Jornal do Commercio, 25/02/1905). O ponto alto era a Batalha de Flores, ao estilo francês e austríaco, em que uma comissão de jurados julgava os melhores e mais floridos carros alegóricos. Na avenida obedecia-se uma rigorosa organização para o trânsito de carros alegóricos e foliões:

"De ordem do exm. sr. coronel superintendente municipal da capital, faço publico para conhecimento dos interessados, que toda a especie de vehiculos durante as horas de movimentos carnavalescos na avenida Eduardo Ribeiro, nos 2 domingos proximos, segunda e terça-feira de carnaval, só poderão sahir pelo lado occidental, lado esquerdo, e descer pelo lado opposto, sendo linha divisoria a que é formada pelos postes de illuminação do centro da mesma avenida.

Outrosim não será permettido o transito e ajuntamento de pessoas no local do movimento dos carros e sobretudo nos cantos da avenida com a rua municipal.

Manáos, 20 de fevereiro de 1905. O Fiscal geral. Joaquim Antunes da Silva" (Jornal do Commercio, 25/02/1905).

Carro alegórico do Sr. Dr. Arthur Araújo. Lembrança do Carnaval de 1905 em Manáos. FONTE: Cartão postal.

Na rua o Carnaval era aberto à população, participando ricos e pobres. Os bailes à fantasia tinham caráter mais elitista, sendo realizados no Ideal Club, no Club dos Terríveis, no Club Internacional, no Philoscenica Amazonense e no Triumvirato Club, ambos organizados por membros da alta sociedade local. Além dos clubes, também eram realizados bailes em casas particulares.

Além da diversão, a economia também era movimentada. Os estabelecimentos comerciais especializados em roupas importavam máscaras, fantasias, lança-perfumes e confetes da França, Alemanha, Londres e Rio de Janeiro. Madame Schianetti, modista estabelecida na rua Joaquim Sarmento, informava ter recebido “[…] um grande sortimento de pellucia de todas as cores, próprio para o Carnaval. Vende-se a preços baratissimos” (Jornal do Commercio, 28/02/1905).

Anúncio de roupas para Carnaval. FONTE: Jornal do Commercio, 28/02/1905.

Como já vinha ocorrendo desde o século XIX, o Carnaval era fiscalizado através dos Códigos de Posturas Municipais. Brincadeiras como o entrudo eram proibidas, sob pena de prisão ou multa. No Carnaval de 1905 algumas pessoas foram multadas por estarem reaproveitando confetes usados, pegando-os do chão, embalando novamente e vendendo como se fossem novos (Jornal do Commercio, 28/02/1905).

Com exceção de algumas ocorrências, o Carnaval de 1905 foi, nas palavras de um articulista do Jornal do Commercio, "animadissimo e civilisado" (Jornal do Commercio, 08/03/1905). O entrudo dos tempos da Província só aparecia esporadicamente, não oferecendo mais tantos riscos quanto em outros tempos. A civilização, aparentemente, vencera o que era considerado a "barbárie".

O Carnaval de 1905 deixou fortes lembranças em seus foliões. O empresário português Francisco Vieira da Rocha (1887-1966), em entrevista concedida ao Jornal do Commercio em 1948, lembra dele da seguinte forma: “[…] até as roupas das moças vieram de Paris. Foi uma coisa nunca vista. Verdadeiro sonho ou conto de fadas. O dinheiro rolava como rolam […] as águas eternas do rio Amazonas” (Jornal do Commercio, 18/07/1948).


FONTES:

Jornal do Commercio, 08/02/1905.

Jornal do Commercio, 25/02/1905.

Jornal do Commercio, 28/02/1905.

Jornal do Commercio, 08/03/1905.

Jornal do Commercio, 18/07/1948.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O avião DC-3 da Praça da Saudade, em Manaus

O avião DC-3 da Praça da Saudade, em Manaus, no ano de 1981. FOTO: Hélio Bastos Salmon (Airlainers.net).

Quem viveu entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, em Manaus, deve se lembrar do avião que existia na Praça da Saudade, no Centro da cidade.

O avião, modelo DC-3 doado pela Varig/Cruzeiro (Viação Aérea Rio-Grandense), foi colocado na Praça da Saudade no dia 24 de dezembro de 1977 durante a administração do Prefeito Jorge Teixeira de Oliveira. Nele existia uma placa com as seguintes inscrições:

"A presença discreta e silenciosa desta aeronave na principal Praça de Manaus, com a sua prôa significativamente voltada para os céus, servirá também para lembrar o sentido mais alto das realizações que não só a Cruzeiro mais também as suas co-irmãs Varig e Tropical de Hotéis, igualmente vindas do sul longínquo, fizeram na Amazônia, o sentido que tem os atos de amor e solidariedade humana, tão propícios de serem evocados. Nesta véspera de natal, data com felicidade escolhida pela dinâmica administração da Prefeitura de Manaus, para a solenidade desta inauguração. Da mensagem da diretoria da Cruzeiro na entrega do DC-3, em 24 de dezembro de 1977". (A Crítica, 24/05/1984).

Jorge Teixeira tinha como objetivo tornar o avião uma atração turística, como ocorria com o mesmo modelo exposto desde o início de 1970 no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro (Jornal do Commercio, 25/08/1977).

O objetivo foi alcançado, pois o avião tornou-se a principal atração daquela praça do Centro. Nos finais de semana o local ficava lotado de crianças, jovens e adultos interessados em conhecer o DC-3, entrar nele e tirar fotos.

Apesar do sucesso, o avião e a praça começaram a sofrer com problemas típicos das metrópoles brasileiras das décadas de 1970 e 1980: o crescimento desordenado e o aumento da violência. A atração da praça começou a ser danificada e pilhada por vândalos (os principais alvos eram as poltronas e algumas peças). Nos momentos mais extremos a entrada deixou de ser permitida.

Em 1984, na administração municipal de Amazonino Armando Mendes, a Varig/Cruzeiro, em acordo com a Prefeitura de Manaus, decidiu retirar o avião da Praça da Saudade, pois a cada ano, por conta dos danos causados à aeronave, a manutenção tornava-se mais dispendiosa. Foi estimado que o custo ao longo de 1984 seria de 3 a 4 milhões de cruzeiros (Jornal do Commercio, 04/05/1984).

Que fim levou o DC-3 da Praça da Saudade? Foi vendido pela Varig para a empresa Rio Táxi Aéreo, que aproveitou somente o trem de aterrissagem e as rodas. O avião foi retirado da praça a base de marretadas e machadadas por cerca de 10 homens contratados por oficinas de ferro velho, conforme matéria do jornal A Crítica (A Crítica, 24/05/1984). Tinha fim, após 7 anos, a principal atração da Praça da Saudade, deixando inúmeras lembranças naqueles que puderam lhe ver de perto.


FONTES:

Jornal do Commercio, 25/08/1977.

Jornal do Commercio, 04/05/1984.

Jornal A Crítica, 24/05/1984 (via Blog do Durango Duarte).


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Bairro Praça 14 de Janeiro, em Manaus


Vista parcial do bairro. FOTO: Daniel Landazuri (Em Tempo, 2017).

Localizado na zona Sul de Manaus, o bairro Praça 14 de Janeiro é um dos mais antigos da cidade, tendo sido fundado em 1892.

Ao longo de 128 anos de História o bairro teve diferentes nomes. Nos primórdios era conhecido como Praça da Conciliação. Em 1892, por proposta do Intendente Sérgio Pessoa, passou a se chamar Praça Fernandes Pimenta. Nesse mesmo ano, através de nova proposta, dessa vez do Intendente Antônio Dias dos Passos, recebeu o nome de Praça 14 de Janeiro.

Esses três nomes, Conciliação, Fernandes Pimenta e 14 de Janeiro, fazem alusão à Revolta de 14 de Janeiro de 1892, que teve como causa as disputas políticas entre os partidos Democrático e Nacional. O conflito, armado, culminou na deposição do Governador Gregório Thaumaturgo de Azevedo e na ascensão de Eduardo Gonçalves Ribeiro ao poder. Houve uma única baixa, a do soldado do Batalhão Militar de Polícia João Fernandes Pimenta, cujo nome brevemente homenageou o bairro. Conciliação lembrava o fim do conflito e 14 de Janeiro o dia em que ele ocorreu.

Em 1917, o Intendente Sérgio Pessoa, novamente, propõe um novo nome para o lugar, dessa vez Praça Portugal, uma homenagem à colônia portuguesa residente em Manaus. Sérgio Pessoa não considerava digna a lembrança de uma revolta armada, conforme deixou registrado no decreto:

“Considerando que, em todos os paizes, especialmente nos mais adeantados, existem logares, ruas, praças com denominações próprias, de outros que lhes são considerados amigos, como um preito de real e sincera homenagem e confiança reciproca;

Considerando que, uma denominação feita nestas condições não constitue exagero de sympathia por um povo ou paiz, por quanto em quasi todos os Estados do Brasil ha um exemplo, um precedente;

Considerando que, mesmo nesta capital foram dados as diversas ruas da Villa Municipal os nomes das capitaes dos nossos Estados;

Considerando que, sem ferir as susceptibilidades de outrem, é o povo portuguez que mais serviços ha prestado relativamente ao desenvolvimento material e economico do Brasil, especialmente ao Amazonas;

Considerando que, a Praça 14 de Janeiro não tem uma significação digna de ser perpetuada.

A Intendencia Municipal de Manáos, resolve apresentar o seguinte decreto:

Art. 1° - A Praça que se denomina 14 de Janeiro passa a ter a denominação de Praça de Portugal.

Art. 2° - Fica aberto no orçamento vigente o credito para a collocação das placas respectivas, etc.

Art. 3° - Revogam-se as disposições em contrario.

S. S. do Conselho Municipal de Manáos, 24 de Outubro de 1917.

(a) Sergio R. Pessoa”. (A Capital, 25/10/1917).

Essa nomenclatura, apesar de ter passado a ser utilizada, não caiu no gosto dos moradores do bairro, que continuaram a chamá-lo de Praça 14 de Janeiro.

A presença portuguesa se faz presente no bairro pela forte devoção a Nossa Senhora de Fátima, cujos registros mais antigos datam da década de 1930. Como ainda não existia uma paróquia própria, as atividades religiosas da Praça 14 eram realizadas pela Paróquia de São Sebastião, no Centro. Em 1942 começou a ser erguido o templo dedicado à Nossa Senhora de Fátima, sendo concluído em 1975.

No período em que o bairro surgiu, final do século XIX, Manaus começou a receber um contingente de trabalhadores oriundos do Maranhão – terra natal do Governador Eduardo Ribeiro – em sua maioria ex-escravos, para atuar nas grandes obras de melhoramento urbano que estavam sendo executadas. Esses operários passaram a residir na região da Praça 14 de Janeiro, imprimindo, até hoje, sua identidade através de manifestações artísticas e religiosas afro-brasileiras. Foi nele que surgiu a primeira escola de samba de Manaus, a Escola Mixta de Samba da Praça 14 de Janeiro (1946-1962).

As primeiras melhorias na paisagem urbana da Praça 14, o asfaltamento de ruas, a luz elétrica, postos médicos, uma maternidade, postos policiais, escolas, feiras, linhas de ônibus, surgiram na década de 1950, nos Governos de Plínio Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho. As fontes jornalísticas nos revelam que o bairro era habitado, em sua maioria, por trabalhadores urbanos, como fica indicado em matéria de 1946 do Jornal do Commercio:

“[…] O populoso bairro da Praça 14 de Janeiro, onde mora grande parte de proletariados e trabalhadores, dentre estes estivadores, os quais empregam suas atividades no serviço noturno de estivas, como tambem moças e senhoras pobres na Uzina de Castanhas” (Jornal do Commercio, 14/05/1946).

O bairro possui construções e lugares marcantes como o Santuário de Nossa Senhora de Fátima, construído entre 1942 e 1975; o Santuário Paróquia de São José Operário, construído entre 1949 e 1967; a Escola Estadual Plácido Serrano, a Comunidade do Quilombo do Barranco de São Benedito, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia, fundado em 1975.



FONTES:


Jornal A Capital, 25/10/1917.

Jornal do Commercio, 14/05/1946.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Palacete Guabiraba, em Manaus

Palacete Guabiraba, na rua Leonardo Malcher, Centro de Manaus. FONTE: Google Maps, 2014.

Apesar de ser bastante imponente e estar localizado em uma rua movimentada do Centro Histórico de Manaus, o palacete Guabiraba é pouco conhecido pela população. Tentarei traçar um breve histórico da construção.

Seu nome é uma homenagem a Pedro Guabiraba, Promotor Público, Chefe de Polícia da capital e seu primeiro proprietário no início do século passado. As referências mais antigas de sua construção datam de 1911.

Posteriormente, em 1913, conforme as referências mais antigas (Jornal do Commercio, 02/08/1913), o Palacete Guabiraba passou a funcionar como Colégio Nossa Senhora de Nazaré, da professora Elvira de Paula Gonçalves e, mais tarde, de Maria Theodora Gonçalves Angarita. Além de escola, o prédio também era residência da família Paula Gonçalves.

O Palacete Guabiraba antigamente. FONTE: Acervo de Otoni Mesquita.

Em 1957, no Governo de Plínio Ramos Coelho, foi adquirido para funcionar como sede da Imprensa Oficial do Estado. Para receber o maquinário necessário para o funcionamento, foi construído um pavilhão na parte de trás do prédio (MENSAGEM, 1958, p. 07). Com entrada pela rua Doutor Machado, funciona há mais de seis décadas como sede desse órgão.

Com exceção do pavilhão construído no final dos anos 1950 e do antigo portão, retirado e transformado em muro, o palacete continua com as características originais da fachada preservadas, apesar de, há um bom tempo, necessitar de reparos e uma nova pintura. 

É um dos poucos exemplares de arquitetura Neogótica em Manaus, chamando a atenção pelo seu telhado ornamentado com pontas de lança, os croché, de acordo com a historiadora da Arte Pollyanna D' Avila Gonçalves Dias (DIAS, 2013, p. 53).


FONTES:

Jornal do Commercio, 02/08/1913.

Mensagem à Assembleia Legislativa apresentada pelo Governador do Estado do Amazonas por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1958. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


DIAS, Pollyanna D' Avila Gonçalves. A arquitetura Neogótica no Período da Borracha: um estudo tipológico das construções de Manaus. Dissertação (Mestrado). PPGLA - UEA, 2013.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O prédio do Bar do Armando, em Manaus

Bar do Armando, na rua 10 de Julho, no Largo de São Sebastião, Centro de Manaus. FOTO: Google Maps, 2014.

O Bar do Armando, ponto de encontro tradicional da boemia manauara, está localizado na rua 10 de Julho, no Largo de São Sebastião, Centro de Manaus. Foi fundado em 1963 como Casa Nossa Senhora de Nazaré pelo Sr. Henrique, cunhado de Armando Dias Soares (1935-2012), que chegou a Manaus em 1953.

No início do século passado, o prédio que abriga o bar funcionava como mercearia de Pinheiro Vieira & Gil. Em 1909 ele é vendido a Soares & Rattes, que batizam o empreendimento de mercearia e botequim "Tentadora do Bairro".

Mercearia e botequim "Tentadora do Bairro". Foto de 1913. FONTE: Jornal do Commercio, 07/05/1913.

A mercearia e botequim é vendida em 1912 a Bento & Nápoles, que por motivo de viagem a vendem em 1914. Foi adquirida no mesmo ano por João da Silva Santos, que a renomeia de mercearia "Boa Vista". Por motivo desconhecido, a mercearia é rapidamente vendida nesse ano, sendo seu novo proprietário Maximino Ferreira do Amaral.

Posteriormente funcionou como uma casa de bicicletas, leiloada em 1917. Antônio Mendonça a arrematou mas, possivelmente, por motivo de dívidas ou viagem, ela veio a leilão pouco tempo depois, em 1919.

Por último, ao que se sabe, antes de abrigar o Bar do Armando, funcionou como "Mercearia Casa Nossa Senhora de Nazaré", propriedade de Henrique, irmão de Maria de Lourdes Soeiro Soares, esposa de Armando Dias Soares, futuro proprietário do Bar do Armando. A filha de Armando, Ana Cláudia Soeiro Soares, explica que "Bar do Armando" é o nome de fantasia, sendo o verdadeiro nome "Casa Nossa Senhora de Nazaré Ltda".

O prédio possui linhas arquitetônicas simples, tendo sido projetado unicamente para fins comerciais, característica essa bem expressa na ausência de janelas, de um segundo andar para abrigar a família dos proprietários e na existência de três belas portas em arco perfeito.


FONTES:

Jornal do Commercio, edições de 1907 a 1919.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Google Maps.

Jornal do Commercio.




sábado, 7 de dezembro de 2019

O fim dos enterros nas Igrejas e a construção do Cemitério de São José, em Manaus (1848-1859)

Artigo originalmente publicado no sexto número da Revista Discente Ofícios de Clio, dos cursos de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com o título 'A terra dos mortos na cidade do Rio Negro: Mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus e a construção do Cemitério de São José (1848-1859)'.

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Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, UFAM¹

Resumo

Até determinado período do oitocentos, vivos e mortos conviviam no mesmo espaço, mantendo relações bastante diretas. Essa relação estava a séculos arraigada no cotidiano. Os discursos higienistas e as práticas de normatização do espaço público, com a construção de cemitérios públicos e a proibição do contato tradicional com os cadáveres, distanciaram cada vez mais esses dois. Dessa forma, pretende-se analisar como se deram as mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, partindo das primeiras discussões presentes no Código de Posturas Municipais de 1848. Nesse período os discursos médicos penetraram na região, sendo reforçados pelas graves epidemias que atingiram a capital entre 1855 e 1856, que culminaram na construção do Cemitério de São José (1856-59), que marcou o início de uma nova forma da população manauara relacionar-se com a morte e os mortos. 

Palavras-chaves: Morte, Práticas Funerárias, Cemitério.


Abstract 

Until a certain period of the eight hundred, living and dead lived in the same space, maintaining fairly direct relations. This relationship was rooted in the centuries. The hygienist discourses and practices of standardization of the public space, with the construction of public cemeteries and the prohibition of the traditional contact with the corpses, have distanced more and more these two. In this way, the aim is to analyze the changes in funeral practices in the city of Manaus in the second half of the 19th century, starting from the first discussions in the Code of Municipal Postures of 1848. During this period medical discourses penetrated the region and were reinforced by the serious epidemics that hit the capital between 1855 and 1856, culminating in the construction of the São José Cemetery (1856-59). 

Keywords: Death, Funeral Practices, Cemetery. 


Introdução

As atitudes dos vivos diante da morte e dos mortos, no Ocidente, sofreram grandes variações ao longo dos séculos, ainda que operadas lentamente. De acordo com Philippe Ariès (1989), autor do clássico História da Morte no Ocidente, no período da Alta Idade Média existia uma relação de convívio com a morte, sendo ela considerada um processo natural para o qual se preparava durante a vida. Aguardava-se a morte no leito, rodeado por familiares e conhecidos. Enterrados no interior das igrejas ou em seus terrenos, os mortos faziam parte do cotidiano de todas as classes sociais. A morte era domesticada. 

A partir dos séculos XI e XII, começam a se verificar mudanças sutis. A morte, enquanto um processo comum a todos os homens e mulheres, de diferentes faixas etárias e classes sociais, passou a ser encarada do ponto de vista individual, isto é, surgiu a preocupação com o destino da alma, com a prestação de contas em outro mundo. Esse é o Dogma católico do Purgatório, local sobrenatural que o historiador francês Jacques Le Goff definiu como “[…] um além intermédio onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada pelos sufrágios – a ajuda espiritual – dos vivos” (LE GOFF, 1995, p. 18-19).

É entre os séculos XVIII e XIX que ocorrem as mudanças mais marcantes e que nos interessam. No século XVIII, a morte torna-se romântica, envolta de dramas. Ela assusta e ao mesmo tempo impressiona, chegando mesmo a ser exaltada. Interessa não a própria morte, mas a do próximo, sobre o qual cria-se uma memória post-mortem, um verdadeiro culto à personalidade do falecido. Essa é a morte do outro. Por último, surgida entre fins do século XIX e verificada até os dias de hoje, está a morte interdita, medicalizada. A morte tornou-se um tabu, assim como os mortos tornaram-se elementos repugnantes. Não se fala e nem se convive mais com a morte, como se esse processo e seus resultantes (os mortos) tivessem tornado-se indesejáveis.

O objeto de estudo do presente artigo, as práticas funerárias na cidade de Manaus, situa-se no século XIX, na transição entre a morte romântica e a morte interdita² . As atitudes diante da morte e as práticas funerárias sofreram mudanças profundas a partir da segunda metade do século XIX. Se até então vivos e mortos coexistiam no mesmo espaço, os primeiros utilizando uma série de ritos para que estes tivessem um bom destino final, nesse período começa a se verificar um distanciamento que se tornará cada vez maior entre os dois. Essa ruptura foi gestada por discursos higienistas e práticas de normatização do espaço público, elementos que, no Brasil, foram reforçados por epidemias verificadas em diferentes momentos - e com variações regionais - do século XIX. 

Dessa forma, buscou-se analisar como se deram as mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, quando os discursos médicos penetraram na região, estes corroborados pelas graves epidemias de cólera morbo e febre amarela que atingiram a capital entre 1855 e 1856 (BOTELHO, 1987), culminando na construção do Cemitério de São José (1856-59). Como fontes foram utilizadas falas de administradores locais, leis, decretos e jornais. Como referenciais teóricos, os estudos de Philippe Ariès (1989, 2012), João José Reis (1997) e Claudia Rodrigues (1997) foram de extrema importância.


Miasmas, epidemias e o Cemitério de São José 


Antigo Cemitério de São José (1856-1891). FONTE: Álbum O Estado do Amazonas (1899)/Instituto Durango Duarte.

Na Europa, no século XVII, foi desenvolvida pelos médicos Thomas Sydenham e Giovanni Maria Lancisi a teoria miasmática, segundo a qual os odores expelidos de matérias putrefatas poderiam causar graves doenças (SILVA; LINS; CASTRO, 2017, p. 174). Ao longo de todo o século XIX, a teoria miasmática dominaria as discussões sobre a urbanização das cidades, não sendo diferente no Império: No inciso 2 do artigo 66 da Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828, que reformulou as Câmaras Municipais, foram proibidos os enterros nas igrejas, assim como ficou a cargo da polícia a vigilância sobre

"[…] o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera" (LEI IMPERIAL DE 1° DE OUTUBRO DE 1828).

Percebe-se que, para o Estado, o contato com os mortos poderia trazer sérios riscos para a saúde e salubridade públicas, dada a emissão de odores na “atmosphera”.

Os enterros nas igrejas, no Ocidente, foram uma tradição com origem na Antiguidade Tardia. Philippe Ariés, em sua História da Morte no Ocidente, afirma que esse costume teve início nos cemitérios extra urbem (fora das cidades), onde foram enterrados os primeiros mártires cristãos. Templos foram sendo construídos onde esses santos eram enterrados, e a população cristã, de forma a se associar a esses “mortos especiais”, passou a querer ser enterrada ao lado destes. Deve-se destacar que, na Antiguidade greco-romana, existiam locais específicos para os vivos e os mortos, sendo estes últimos destinados aos cemitérios fora das cidades, construídos em zonas distantes. No entanto, destaca Ariés, “chegou um momento em que a distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu” (ARIÈS, 1989, p. 26-27). As cidades absorveram os subúrbios e, dessa forma, entraram em contato com os mortos.

A nível regional, as mudanças nas relações entre vivos e mortos chegaram ao Norte primeiro na Província do Grão-Pará, que se transformava no contexto de crescimento das atividades ligadas à extração do látex, passando por um intenso processo de urbanização em diferentes administrações provinciais. Os enterros nas vilas e cidades paraenses eram práticas que começavam a ser questionadas pelos médicos higienistas e pelas autoridades públicas, pois além de oferecerem perigo à saúde, não estavam de acordo com a civilização e a modernidade, dada a importância que a Província ganhava no cenário nacional e internacional. Em 1850 é inaugurado o primeiro cemitério público de Belém, o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade. De acordo com a historiadora Érika Amorim da Silva, que estudou o cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios da capital paraense entre 1850 e 1891, “este cemitério foi construído em razão da epidemia de febre amarela de 1850, sendo que uma das medidas para se combater a doença foi a proibição expressa de se sepultar as vítimas no interior das igrejas” (SILVA, 2005, p. 74).

As primeiras discussões acerca da construção de um cemitério público em Manaus aparecem no primeiro capítulo do Código de Posturas Municipais de 1848, quando a cidade era capital da Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará. No 2° artigo ficou estabelecido que as câmaras municipais que não cumprissem a Lei de 1° de Outubro de 1828, ou seja, que não construíssem cemitérios, seriam multadas em trinta mil réis por cada um de seus membros caso não o fizessem até 1852. No 4° artigo, as câmaras que não possuíssem terrenos para a construção de seus cemitérios deveriam propor ao governo da Província as formas para obtê-los. O 5° artigo determinou que, assim que fossem erguidos os cemitérios, seriam proibidos os enterros nas igrejas ou em seus átrios, com penalidades de multa de 20 mil réis ou oito dias de prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18).

O cemitério da capital não se concretizou com o Código de 1848. A abertura de um cemitério público em Manaus passou a ser cogitada desde os primeiros anos da nascente Província. Em 1853, o Presidente Herculano Ferreira Pena o elencou como uma das obras de urgência para a capital. O 1° Vice-Presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda informava que “a falta de materiaes, e mesmo de pessoas, que se proponhão a tomal-as por arrematação, tem sido a cauza porque se não tem dado andamento a muitas obras de muita urgencia, como a Matriz, Cemiterio, Pontes etc” (AMAZONAS, 09 de Maio de 1853 – Relatorio apresentado ao Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Provincia do Amazonas, pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, p. 6). A construção de um cemitério público na capital deixaria o Amazonas em consonância com a Província vizinha e as demais de outras regiões em que estivessem sendo gestadas mudanças nas práticas funerárias representadas pela construção de cemitérios públicos.

Apesar da proibição estabelecida na Lei de 1828, os enterros em igrejas, no Império, ainda perdurariam por um bom tempo. Dada as dificuldades materiais, optou-se pelo cercamento, em 1854, do terreno da Igreja dos Remédios que servia, há décadas, como cemitério. Após o cercamento desse terreno, que serviria de cemitério provisório em Manaus, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, informava que no artigo 5° do Código de Posturas Municipais ficava estabelecido que, “logo que hajao cemiterios será prohibido enterrar-se cadaveres nos templos, ou atrios destes, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 24 de junho de 1854, p. 2-3). Repetia-se o 5° artigo do Código de Posturas Municipais de 1848. Esse documento, assim como o Código de Posturas Municipais de 1848, nos oferece um indício da prática dos tradicionais enterros em igrejas na capital da Província do Amazonas.

João José Reis nos informa que, no século XIX, era de extrema importância ser enterrado em solo sagrado, seja no interior das igrejas ou nas proximidades do terreno em que elas foram construídas:

"[…] ter sepultura na igreja era como tornar-se inquilino na Casa de Deus. A proximidade física entre cadáver e imagens de santos e anjos representavam arranjo premonitório e propiciador da proximidade espiritual entre a alma e os seres divinos no reino celestial". (REIS, 1997, p. 124).

Prática recorrente na sociedade, alvo de proibições desde o final da década de 20 do século XIX, tornou-se tema de estudos de médicos brasileiros, que passaram a publicar inúmeras teses criticando essa proximidade entre vivos e mortos, entre a área urbana e os cadáveres, sempre citando os miasmas. O médico José Pereira Rego, o Barão do Lavradio, publicou, em 1840, na Revista Médica Fluminense, interessantes considerações sobre a higiene pública e os enterros nas igrejas. Para esse médico, existia a necessidade de se estabelecerem no país os cemitérios fora das cidades, que já eram uma realidade na Europa. Considerava um dever moral e religioso dar sepultura aos mortos, bem como uma questão de saúde. Se não fosse assim, questiona, “o que seria o homem que se habituasse com a imagem da morte, e visse constantemente os progressivos estragos de nossa destruição material?”. Essa é uma das características do medo da morte no século XIX que Philippe Ariès destaca, “a repugnância […] em imaginar o morto e seu cadáver” (ARIÈS, 2012, p. 151). José Pereira Rego continua suas considerações, afirmando que os enterros, na Corte, eram feitos quase que exclusivamente nas igrejas, em suas catacumbas e carneiros. Uma passagem de seus escritos é bastante esclarecedora para compreender a dimensão do ideário médico da época:

"Iie sem duvida difficil destruir certos usos e costumes enraizados em qualquer povo, ainda mesmo quando de sua pertinacia nenhum bem resulte á sociedade, e antes prejuizos mais ou menos consideraveis; e isto tanto mais difficil se torna, quanto taes usos dizem respeito a objectos relativos ás crenças religiosas, por isso que o fanatismo e a superstição, achando sempre muitos proselytos nos indivíduos nimiamente credulos, e na classe mais ignorante da sociedade, fazem com que tudo quanto tenda a acabar com taes abusos e costumes, e a introduzir outros que mais conducentes sejão ao bem estar della, fique sem effeito, de modo que taes usos continuão e se perpetuão, tanto pelo que acabamos de expender, como tambem pela má intenção de certas pessoas que, de qualquer ensejo favoravel, se aproveitão para promovera desordem e conseguir seus fins particulares". (REVISTA MÉDICA FLUMINENSE, 06 de setembro de 1840, p. 245-246).

Para José Pereira Rego, a prática dos enterros nas igrejas, além de ser um perigo para a saúde pública, era o reflexo de uma sociedade cujas crenças religiosas estavam fortemente arraigadas no cotidiano, dominando todos os aspectos da vida, do nascimento à morte. As atitudes e práticas de uma sociedade majoritariamente católica estavam em conflito com costumes cada vez mais secularizados que se tentava importar para o país, no caso a construção de cemitérios fora dos limites das cidades e o consequente enterramento dos cadáveres nesses locais, longe do contato com os vivos. Essas rupturas extrapolavam os limites das questões de higiene pública, penetrando no campo da cultura e das tradições populares. De acordo com o historiador Agostinho Júnior Holanda Coe, que analisou as mudanças ocorridas nos enterramentos na cidade de São Luís (MA) entre 1828 e 1855, “tais práticas cotidianas, com o desenvolvimento da ideia de que o ar da cidade podia ser contaminado pelos vapores cadavéricos, foram paulatinamente se tornando objetos de censuras” (COE, 2008, p. 22). Esses discursos foram absorvidos pelos dirigentes políticos de Manaus.

Até o cercamento do terreno perto da Igreja dos Remédios, o cemitério provisório, os enterros eram feitos no interior das igrejas e no largo da antiga Matriz. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, em um anúncio público de 1854, escrevera que para o bem da salubridade pública os enterros nesses lugares deveriam acabar, pois além de não serem propícios para o descanso dos finados, as covas eram mal feitas, pouco profundas, deixando os corpos expostos aos transeuntes e à ação de animais como porcos e cachorros. Também existiam outras questões, “como estar este lugar no centro da Cidade, e o continuado vento, que necessariamente hade conduzir os miasmas para os vivos” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13 de maio de 1854, p. 7). Percebe-se, através das falas de autoridades públicas da Província, a penetração dos discursos higienistas no tocante das práticas funerárias locais.

Sobre um possível choque, em Manaus, entre a prática dos enterros nas igrejas e os costumes secularizados, um trecho da fala de Manoel Gomes Corrêa de Miranda chamou a atenção. No início de seu texto, ele afirma que “A algumas pessoas temos ouvido que o – povo – vê com desgosto os preparos que ora se fazem para um Cemiterio no terreno próximo á Igreja dos Remedios”. E continua dizendo que “Não sabemos se taes pessoas são verdadeiros órgãos do publico, ou se exprimem apenas uma opinião individual” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13 de maio de 1854, p. 7). Teria tido, por parte da população de Manaus, resistência ao cercamento do cemitério e o consequente fim dos enterros no largo da antiga Matriz e no interior das igrejas? Seria o descontentamento de pessoas ligadas ao poder eclesiástico, para quem o enterro nos templos e terrenos eclesiásticos provavelmente garantia ganhos financeiros? Ou seria essa parte da fala de Manoel Gomes apenas um artifício criado para argumentar à favor do cemitério provisório? Não se sabe ao certo, mas possivelmente essas transformações das práticas funerárias não passaram despercebidas.

A resistência mais forte à imposição da construção de um cemitério público ocorreu em 1836 em Salvador, na Bahia, ficando conhecida como Revolta da Cemiterada. Escravos, homens e mulheres, pessoas de diferentes classes sociais, destruíram o recém-inaugurado Cemitério do Campo Santo, construído por uma empresa privada que ganhou o monopólio, por 30 anos, dos enterros realizados na cidade. Os enterros nas igrejas foram proibidos, o que fez um grande grupo de pessoas, em defesa da continuidade das práticas funerárias tradicionais, destruir o Campo Santo. João José Reis afirma que, em outras partes do Império, movimentos como esse não ocorreram, “mas as novas diretrizes não foram introduzidas sem oposição” e, “com ritmos diferentes, em todo o Império, mesmo no interior, as populações foram se adaptando ao novo regime funerário” (REIS, 1997, p. 139-140).

Os discursos dos médicos higienistas, com suas práticas racionalistas e secularizadas, com a normatização do espaço público mediante a construção de cemitérios distantes da cidade ou pelo menos da área central, ganharam mais força quando epidemias devastadoras passaram a assolar o Império do Brasil. Em 1855, através de um navio vindo de Portugal que aportou em Belém, capital da Província do Pará, o cólera morbo espalhou-se pelas demais províncias da região Norte, Nordeste, Sul e Sudeste do Império, vitimando, segundo algumas estimativas, cerca de 200.000 pessoas, sendo uma epidemia que

"[…] abateu-se com violência sobre as populações mais pobres e mal alimentadas, mais propensas à utilização de águas contaminadas, excluídas das mínimas condições de higiene que o progresso urbano no Brasil já assegurava às camadas sociais mais altas". (CASTRO SANTOS, 1994, p. 88).

Nesse mesmo ano, em um expediente do governo da Província do Amazonas publicado no jornal Estrella do Amazonas, autorizou-se a abertura de um crédito de dois contos de réis para cuidados médicos e higiênicos caso o cólera atingisse a província. O tenente Damazo de Souza Barriga, Subdelegado de Polícia de Serpa, nesse mesmo documento, pedia que o Presidente da província desse “prompta execução […] sobre a escolha de um lugar, em que d’ora em diante se faça os enterramentos, visto que o que até agora tem servido de Cemitério, é impróprio, e pode tornar-se prejudicial á saúde dos habitantes d’essa Freguezia” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 21 de julho de 1855, p. 5). A escolha de um lugar apropriado para fazer os enterros, em Manaus, era uma questão de urgência, dada a ameaça do cólera, que já estava fazendo milhares de vítimas na província vizinha. Os gases expelidos dos cadáveres poderiam facilitar o contagio da doença. O Subdelegado também mandou que o Inspetor da Tesouraria da Fazenda dispendesse a quantia de duzentos mil réis para que a comissão formada pelo Presidente da Província, pelo Dr. Antonio D’ Aguiar e pelo Vigário pudesse ajudar os que fossem atacados pelo cólera com mantimentos e cuidados médicos.

Apesar de terem sido tomadas todas essas precauções, o cólera penetrou na Província do Amazonas. Casos foram verificados em Manaus, Vila Bela da Imperatriz, Serpa e Andirá. Em 1856, o número de coléricos, em Manaus, era de 46, 78 em Vila Bela, e 64 em Serpa e Andirá, totalizando 188 infectados, dos quais 3 vieram a óbito (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 3-4). Apesar das estatísticas sobre o cólera no Amazonas mostrarem que o número de óbitos foi bastante inferior ao de outras províncias como a do Rio de Janeiro, uma outra epidemia, no mesmo período, seria devastadora na região: a de febre amarela. O primeiro caso foi registrado em 12 de fevereiro de 1856, tendo falecido, na capital, até junho daquele ano, 142 pessoas. Dada a dimensão da epidemia de febre amarela e o número de mortos, o Presidente João Pedro Dias Vieira tomou a seguinte medida em relação aos enterros e o cemitério provisório:

"Mandei vedar, depois de ouvido o parecer de pessoas profissionaes, os enterramentos no Cemiterio provisorio, existente no Bairro dos Remedios, e abrir outro em lugar apropriado na estrada da Caxoeira, que é o que actualmente esta servindo". (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 5).

As epidemias foram a última pá de terra que sedimentou as relações de convivência entre vivos e mortos. Os ritos fúnebres, que em sua maioria demandavam contato direto com os cadáveres, foram sendo suprimidos para manter em segurança a saúde dos vivos. “Em primeiro lugar ficava agora”, diz João José Reis, “a saúde física dos vivos, não a saúde espiritual dos mortos”. “Entre as primeiras providências figurava a expulsão destes da cidade dos vivos, das igrejas e dos cemitérios intramuros” (REIS, 1997, p. 140-141). Claudia Rodrigues, que estudou as tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro do século XIX, afirma que é evidente a relação entre a criação dos cemitérios públicos e as epidemias e que,

"apesar de o discurso médico ter feito seus adeptos e as autoridades terem legislado a respeito do estabelecimento dos prédios mortuários, seria apenas com o advento de um surto epidêmico, com um alto índice de mortalidade, é que os mortos seriam definitivamente transferidos para longe dos vivos, para os cemitérios públicos". (RODRIGUES, 1997, p. 105). 

Da mesma forma que ocorrera na Corte estudada por Claudia Rodrigues, os cemitérios públicos, que tomariam das igrejas o monopólio dos enterros, foram surgindo nas cidades de Norte a Sul do Império que foram atingidas pelas epidemias, fossem de cólera ou de febre amarela, no caso de Manaus.

O cemitério aberto na Estrada da Caxoeira (posteriormente Estrada de Epaminondas, Avenida Epaminondas), em Manaus, trata-se do Cemitério de São José, cuja construção, como foi citado, cogitava-se desde 1853, e que serviria de cemitério público da capital até sua desativação em 1891. O Cemitério dos Remédios, que já era considerado um local impróprio para os enterros, atingiu rapidamente sua capacidade de ocupação dada a quantidade de mortos pela epidemia de febre amarela em um curto espaço de tempo (fevereiro a junho de 1856), o que deu origem à nova necrópole, em região, naquele período, considerada distante do resto da cidade. Ainda no relatório de 1856, o Presidente informava que

"Para auxiliar a sua conclusão peço que consigneis algum quantitativo no orçamento, assim como que me habiliteis com o dinheiro necessario á manutenção permanente da Enfermaria, que para os indigentes mandei fundar n’ uma das salas do Hospital Militar de S. Vicente". (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 5).

Recebeu seu primeiro inumado em 07 de março de 1856, João Fleury da Silva, vítima do cólera morbo (ESTRELLA DO AMAZONAS, 15 de março de 1856, p. 6). Pela constante falta de recursos, de materiais e de mão de obra, as obras do Cemitério de São José se arrastariam até 1859. Em 1857, João Pedro Dias Vieira informava ao 1° Vice-Presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda que, dada

"a falta de operarios, e por ultimo, as copiosas e continuadas chuvas, que tem cahido, vedaraõ-me de mandar construir a Capella e a respectiva muralha". (AMAZONAS, 26 de fevereiro de 1857 – Relatorio apresentado pelo Exm. Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da Provincia o Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a administração, p. 2).

O Cemitério de São José foi concluído em 1859, com uma capela, e cercado por madeira do tipo acariquara. No dia 06 de maio do mesmo ano, transladou-se do Seminário para a capela da necrópole a imagem de São José, benzida pelo Vigário que depois celebrou uma missa pelo descanso das almas dos que ali já tinham sido sepultados. A construção da capela e a transladação de uma imagem sacra para o local possuem explicações profundas. Com os enterros em igrejas proibidos, homens e mulheres preocupavam-se com a perda do contato mais direto com o sagrado. O filósofo Mircea Eliade afirma que é

"desejo do homem religioso de mover-se unicamente num mundo santificado, quer dizer, num espaço sagrado. É por essa razão que se elaboraram técnicas de orientação, que são, propriamente falando, técnicas de construção do espaço sagrado". (ELIADE, 2010, p. 32).

Dessa forma, a construção de uma capela católica, com a imagem de um santo padroeiro, sacralizava o terreno do Cemitério de São José, tornando-o de fato um campo santo, eliminando assim a preocupação de não se ter sepultura em contato com o sagrado. A encomenda do corpo passaria a ser realizada nesse local. Esse era, pelo menos nos cristãos católicos do oitocentos, um dos maiores medos, o de não ser enterrado em solo sagrado.

Para o novo cemitério de Manaus foi criado um regulamento dividido em 5 capítulos, totalizando 46 artigos, que versavam desde o corpo de funcionários até as sepulturas e as inumações, que são as partes que mais interessam. A criação de um regulamento visava o estabelecimento de regras que padronizassem esse espaço público, bem como o que fosse praticado em seu interior. 

No artigo 4 do capítulo 2, que versa sobre as sepulturas, enterros e exumações, ficou estabelecido que cada sepultura teria 10 palmos de profundidade, 3 e meio de largura e 7 de comprimento para adultos, 5 para crianças, com a distância de 2 palmos nas laterais e nas cabeças. Em cada sepultura seria enterrado apenas um cadáver, “salvo o caso de grande epidemia, que torne indispensavel sepultarem-se os cadaveres em vallas, as quaes teraõ a maior profundidade possivel” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). As sepulturas eram individualizadas, no entanto, em caso de epidemias como as de 1855 e 1856, os cadáveres seriam enterrados em valas comuns profundas, evitando assim o rápido esgotamento do terreno. O fantasma da epidemia rondava a capital. Determinou-se, no artigo 7 desse capítulo, que as sepulturas de pessoas vitimadas por epidemias só seriam reabertas após 8 anos, com “as cautelas exigidas pela sciencia” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1)

Apesar dos ritos fúnebres que versavam sobre o destino da alma do morto estarem quase que inteiramente suprimidos, surge a preocupação com o cadáver, mas não a preocupação espiritual. Interessa o estado físico do corpo, a causa mortis. Como determinou o artigo 5, nenhum cadáver poderia ser enterrado sem ter se passado 24 horas, exceto em casos de epidemia. Em casos normais, quem descumprisse a medida receberia uma “multa de 10 á 20$000 réis” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). Em caso de morte suspeita ou violenta, o corpo só seria enterrado depois de um exame de “corpo de delicto pela autoridade competente, declarando-se no assento de obito essa circumstancia” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1).

No artigo 12 ficou estabelecido que, somente por determinação da Câmara Municipal, com aprovação do Presidente da Província, seriam concedidas sepulturas distintas para “o cadaver de pessoa de alta jerarchia”. Os escravos, pelo artigo 38, seriam enterrados em sepulturas comuns, “nos quarteirões para isso destinados” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 3). No que diz respeito às atitudes, aos ritos e, principalmente, ao local de sepultamento, o espaço cemiterial, ela é o último estágio onde é concretizada a reprodução de diferenças sociais que acompanham homens e mulheres desde o início da vida.

Os preços praticados no Cemitério de São José, conforme o artigo 15, eram:

"Por sepultura commum – 2:000 
Reservada – 6:000
A perpetuidade – 60:000". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 2).

Os jazigos perpétuos teriam limite para 4 cadáveres, não podendo ser negociados com outras pessoas e podendo ser utilizados apenas por ascendentes ou descendentes em linha reta (art. 13, 15). Nestes poderiam ser erguidos mausoléus e carneiros cemiteriais (art. 14). Teriam direito a sepulturas gratuitas, estabelecidos no artigo 16, os seguintes grupos:

"§ 1° Os cadaveres de pessoas indigentes, mediante attestado do Parocho, ou da autoridade policial. 
§ 2° Os das praças de pret. 
§ 3° Os dos presos pobres precedendo attestado da autoridade policial. 
§ 4° Os dos suppliciados, quando naõ reclamados por seos parentes e amigos. 
§ 5° Os cadaveres encontrados em qualquer logar publico, quando não haja quem lhes dê sepultura, precedendo attestado do Parocho, do da autoridade policial". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 2).  

Conforme o artigo 44, nenhum cadáver poderia ser sepultado sem a “previa sciencia do Parocho; afim de que possa este fazer os assentos, ecumprir os deveres, que as leis civis e eclesiásticas lhe impõe” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 3). Por mais que os enterros não fossem mais realizados no interior dos templos, todos os diferentes estágios da vida do brasileiro do oitocentos, nascimento (batismo), casamento e morte, continuavam passando pelo crivo da Igreja Católica, situação que mudaria a partir de 1891, quando Estado e Igreja se separam.


Conclusão 

Os tradicionais enterros no interior de igrejas Católicas, intra muros, prática comum aos luso-brasileiros desde o período colonial, passaram a declinar no século XIX. Os discursos médicos criados na Europa, com medidas médicas e sanitaristas, passaram a criticar e repreender veementemente essa antiga prática funerária em nome da saúde pública, tendo início a separação entre vivos e mortos, que mantinham uma relação secular. No Brasil, as epidemias ocorridas em diferentes momentos do século XIX deram força e amplificaram esses discursos, introduzidos nas falas dos dirigentes e da imprensa. Na capital da Província do Amazonas, conforme concluiu-se na pesquisa, não foi diferente. 

Em Manaus, atingida por duas epidemias entre 1855 e 1856, os enterros tiveram fim nas igrejas e no cemitério provisório, localizado no centro da cidade, em terreno da Igreja dos Remédios, sendo os mortos levados para o Cemitério de São José, criado em decorrência da mortandade gerada pela epidemia de febre amarela, em área distante das habitações, com normas para o funcionamento e para os enterros.

Não foram apenas os mortos os sepultados. O Cemitério de São José não foi apenas mais uma construção, mas o reflexo de uma época. No bojo dessas transformações características do século XIX, sepultaram-se também práticas, costumes e tradições antigas, sendo esfriadas as relações entre vivos e mortos.


Notas:

¹ Graduando em Licenciatura Plena em História na UFAM.

² A morte romântica corresponde à sentimentalização do processo, fazendo surgir a preocupação com a finitude do próximo e a memória em torno de sua figura. A morte interdita é a negação desse processo e dos elementos a ele associados, como os mortos, que se tornam motivo de tabu.


Fontes utilizadas 


Jornal Estrella do Amazonas, 13 de maio de 1854. 

Jornal Estrella do Amazonas, 24 de junho de 1854.

Jornal Estrella do Amazonas, 21 de julho de 1855.

Jornal Estrella do Amazonas, 15 de março de 1856.

Jornal Estrella do Amazonas, 07 de março de 1857. 

Jornal Estrella do Amazonas, 27 de julho de 1859. 

Relatorio apresentado ao Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Provincia do Amazonas, pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, em 09 de Maio de 1853.

Relatório apresentando a Assemblea Legislativa Provincial, pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente da Província do Amazonas, 08 de julho de 1856.

Relatorio apresentado pelo Exm. Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da Provincia o Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a administração, no dia 26 de Fevereiro do corrente anno. Publicado em Estrella do Amazonas, 07 de março de 1857.

Regulamento N° 11 de 26 de Maio de 1859. Publicado em Estrella do Amazonas, 27 de julho de 1859.

Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38281-1-outubro-1828-566368- publicacaooriginal-89945-pl.html. Acesso em 24/05/2018.

Considerações sobre alguns objectos relativos a’ hygienne publica, pelo Dr. José Pereira Rego. Revista Médica Fluminense, N° 6. Vol. 6. Setembro de 1840. 


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