domingo, 14 de fevereiro de 2016

Medicina e Doença na Idade Média - Os males e os tratamentos do Homem Medieval

O Homem Anatômico, 1411-1416. A relação entre astronomia e medicina era grande na Idade Média, com estudiosos afirmando que o alinhamento entre certos corpos celestes e também as constelações tinham influência no funcionamento do corpo humano.

Quando pensamos ou falamos em Idade Média, construímos em nosso imaginário ou argumentação uma visão distorcida desse período que compreende a queda do Império Romano do Ocidente até a segunda metade do século 15. Dessa época, podemos tirar como boas heranças as Universidades, que nasceram no seio da Igreja Católica; o Astrolábio e o Quadrante, instrumentos cruciais durante as navegações da Idade Moderna; e a Prensa do alemão Johannes Gutenber, que permitiu a ampliação da produção de livros. Muito do que chamamos de "Idade das Trevas" é fruto do pensamento de intelectuais do humanismo, que descreviam a época anterior ao renascimento greco-romano como um período pobre em avanços culturais.

Mas, claro, cada período possui sua particularidade, pontos positivos e negativos, avanços e ideias consideradas ultrapassadas ou perigosas. A saúde pública e o tratamento de doenças nessa época eram um dos problemas desse período. A doença, que não escolhia a classe social das pessoas, [...] provinha da constelação ou da vingança divina (FREITAS, p. 174) , como afirmou o Papa Clemente VI, em 1349, ao relatar os estragos causados pela Peste Negra na Europa. Alguns médicos da época afirmavam que a má confluência entre corpos celestes poderia influenciar no funcionamento do corpo humano.

Através do guia How would you Survive in the Middle Ages?, traduzido para o português "Como seria sua vida na Idade Média?", de autoria de Fiona MacDonald, professora de História Medieval do Reino Unido, e de outras fontes, teremos um panorama das principais moléstias e os diferentes tratamentos utilizados por médicos, curandeiros e sábios de uma época que transitava entre a visão divina de mundo e avanços técnico-científicos.


Aforismos, a obra médica mais conhecida do grego Hipócrates. De forma prática e concisa, o autor propõe que as doenças são o resultado do desequilíbrio entre nossos quatro humores: sangue, fleuma, bílis e extra-bílis.

Muito do conhecimento medicinal da época medieval provinha de obras preservadas da Antiguidade, tais como Acerca dos Preceitos da Medicina e A Cura das Doenças, do médico romano Sereno Sammonico; Coleção Hipocrática, do grego Hipócrates; e várias publicações do filósofo e médico romano de origem grega Cláudio Galeno. Esses textos ficavam guardados em monastérios e abadias, onde eram revistos e copiados, conforme as ordens da Igreja, que determinava o que era aceitável de ser utilizado como fonte de tratamentos médicos, evitando assim a propagação de heresias. Os avanços mais significativos na área da saúde se deram durante a dominação islâmica na Península Ibérica. Em Portugal e Na Espanha, médicos judeus e árabes escreviam tratados de farmacologia, oftalmologia e cirurgia. O trabalho que teve uma influência de mais de 500 anos nas academias médicas da Europa foi o Canon, enciclopédia médica elaborada pelo cientista persa Ibn Sina.

Crescer no campo ou nas cidades medievais era uma tarefa que misturava um pouco de sorte com alguns cuidados básicos. Mulheres experientes, que tiveram uma prole considerável, realizavam os partos, mas, mesmo assim, metade dos bebês morriam ao nascer, vítimas de doenças infecciosas, e algumas crianças morriam de forma precoce, antes de completar 5 anos; enquanto algumas pessoas, geralmente com mais posses, chegavam aos 60-70 anos. Perto da morte, a pessoa fazia um testamento, deixando um objeto, terras ou dinheiro para seus herdeiros. Acamado, é hora de confessar seus pecados e receber a extrema-unção de um sacerdote. Ao morrer, era enterrado no cemitério, que geralmente ficava no mesmo terreno de uma igreja.



Cena de um mercado urbano. Iluminura do livro O Cavaleiro Errante, França, 1400-1405.

Nos burgos, os hansenianos, portadores da lepra, o mal do Lázaro bíblicotemidos e tratados à distância, viviam nas ruas, sobrevivendo da caridade de alguma boa alma. Era obrigatório que estes, para avisar os transeuntes de suas presenças nas vias públicas, tocassem uma espécie de chocalho, sinos ou batessem palmas. Seja em Paris ou em Londres, a mendicância é fruto de doenças que incapacitaram a subsistência das pessoas; de ferimentos de guerra e de deficiências físicas. As doações de burgueses, nobres, membros do clero e, principalmente cavaleiros membros de ordens militares, deram origem aos hospitais, onde eram tratados, por monges e freiras, combatentes de guerra e membros menos favorecidos da sociedade medieval. A Abadia de Cluny, fundada em 910 na Borgonha, França, funcionou como um grande hospital, servindo de modelo para outros posteriores.

Os remédios eram os mais variados, indo de sanguessugas à magia de bruxas. Os Médicos, que criavam ou utilizavam antigos diagramas sobre o corpo humano, que continham informações sobre as veias que tinham alguma influência no funcionamento do sistema imunológico, acreditavam que o excesso de sangue no corpo fazia mal, utilizando sanguessugas para retirar o líquido não necessário; ou então incisões conhecidas como sangria. Para infecções e inflamações, cataplasmas com ervas, farelos, água e mostarda eram utilizados. Ervas, mel e água são passados em úlceras, ingeridos contra inflamações na garganta e problemas estomacais. As igrejas tornam-se muito frequentadas, tanto pelos enfermos quanto por seus familiares. Em última ocasião, bruxas, que na verdade são curandeiras, são consultadas e pagas para utilizar suas misturas e mágicas. O primeiro julgamento coletivo por bruxaria aconteceu em 1428, na cidade de Valais, na Suíça.
Os Banhos de Pozzuoli. Miniatura de Pietro da Eboli, século 13.

Nas casas a higiene fica a desejar. Geralmente, uma tinha abastecia todos os moradores da casa, que se banhavam por ordem etária, seguindo as recomendações das autoridades: banhos, uma única vez no ano, ou então a limpeza das mãos e do rosto. Na falta de uma tina, um pano úmido bastava. Os mais ricos abusavam de essências, maquiagem e de banhos a cada dois dias. São Francisco de Assis considerava a sujeira uma forma de penalizar o corpo e aproximar seu espírito de Deus (SZPILMAN, p. 77). Através de Francisco, percebemos a influência da religião nos cuidados mais básicos do habitante do medievo. As necessidades fisiológicas eram feitas em baldes, nas moitas ou em lugares afastados. Nas casas mais ricas e nos castelos existiam as latrinas, assentos com um buraco e uma fossa embaixo, que era esvaziada de tempos em tempos.

Os óculos, existentes desde a Antiguidade, foram aprimorados durante o século 13, quando passaram a ser produzidos com lentes corretivas, primeiro monóculos e depois Pince-Nez (óculos sem hastes). Era notável o efeito dessa invenção em olhos desgastados pela idade ou por atividades como a leitura em excesso, no caso de homens cultos. Com pinças e com um conhecimento teórico quase nulo, além de cortar cabelo e barba, barbeiros arrancavam dentes em feiras livres, espetáculos ou em casas dependendo das necessidades do cliente. Um diagnóstico errado fazia serem arrancados tanto dentes podres quanto dentes sadios. Os monges foram proibidos de realizar essas cirurgias no século 12.


Barbeiro dentista extraindo um dente utilizando um fórceps de prata e um colar de dentes. Londres, 1360-1375, da enciclopédia de James le Palmer.

Cirurgiões iam para os campos de batalha, onde retiravam, utilizando pinças de ferro, estilhaços e pontas de flechas ou de lanças dos combatentes. Membros quebrados eram enfaixados entre talas de madeira, para que os ossos ficassem retos enquanto sarassem. Em caso de loucura, dores, convulsões e fraturas no crânio, era feito um buraco na cabeça, para aliviar a pressão ou expelir a Dura-máter, uma das três meninges que envolvem o cérebro. Esse processo se chama Trepanação. Por fim, detritos líquidos e sólidos os pacientes eram examinados para diagnosticar a doença.

O homem é produto de seu tempo. Quem que viveu durante a Idade Média (476-1454) estava inserido em um período marcado tanto por avanços técnico-científicos significativos quanto pela força do poder eclesiástico. A vida era um constante embate de características bíblicas, com bem e mal eternamente em lados opostos, sendo muitas vezes determinada por condições econômicas ou pela sorte. O aproveitamento desse período fica nítido como a própria mudança nos padrões de higiene, vindos após catastróficas epidemias como a Peste Negra; o melhoramento ou evolução em áreas como a odontologia e a cirurgia; e na desmistificação de algumas doenças. O homem da Idade Média, assim como o homem atual (guardadas as devidas diferenças), não tem uma solução para todos os males, o que permite que o processo de aprimoramento não cesse, o que é benéfico para a evolução do mesmo.


FONTES:

FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. Lisboa: Plátano, s.d. 


MACDONALD, Fiona. Como seria sua vida na Idade Média?. Tradução de Maria de Fátima S. M. Marques. São Paulo: Scipione, 1996. (Coleção Como seria sua Vida). p. 34-35.


SZPILMAN, Marcelo. Judeus - Suas Extraordinárias Histórias e Contribuições para o Progresso da Humanidade. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.


SCLIAR, Moacir. Medicina na Idade Média: Doutor Sinistro. Revista Aventuras na História, 01/11/2003.




CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
reginaldobatistasartes.blogspot.com
galaaz.blogspot.com

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