sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Leituras de 2016

Santo Agostinho, Caio Júlio Fedro, Voltaire, Montesquieu e Antônio Simplício de Almeida Neto

Esse ano foi bastante produtivo. Tive um artigo publicado na revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), um capítulo em livro lançado em outro estado e fui convidado para ser um dos administradores da página Manaus de Antigamente. O número de curtidores e de acessos ao blog aumentaram de forma incrível. Com compromisso dentro e fora da universidade, consegui concluir a leitura de 5 livros, dos quais 4 incríveis clássicos da literatura ocidental: Santo Agostinho, Fedro, Voltaire e Montesquieu. Os clássicos são sempre atuais. A leitura da obra de Simplício de Almeida Neto ocorreu através de uma atividade acadêmica, e foi muito proveitosa.

Santo Agostinho (Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1999)

Ler Santo Agostinho é tentar compreender o (s) pensamento (s) de um dos maiores autores do Ocidente. As principais obras do bispo da cidade de Hipona e santo da Igreja são, em ordem cronológica: Contra os acadêmicos (386); Solilóquios (387); Do Livre-Arbítrio (388-395); De Magistro (389); De Trinitate (399-422); Confissões (400); A Cidade de Deus (413-426); e Retratações (413-426). A Coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, traz recortes de várias obras suas. Me chamaram a atenção a concepção que ele tinha de História, abordada em A Cidade de Deus, para ele o resultado do pecado de Adão e Eva, transmitido para todos os homens e mulheres, que o expressam na construção da cidade terrena, dos impérios e das civilizações; e de homem, em Solilóquios, constituído de duas personalidades: a primeira personalidade seria o “Homem exterior”, do mundo mundano, com necessidades biológicas, instintivo e animal. O segundo, o “Homem interior”, está ligado aos sentimentos, ao plano metafísico com Deus. É no homem interior, ligado a Deus, que Agostinho busca a felicidade e um sentido para sua existência.

Fábulas (Editora Escala, 2006)

Caio Júlio Fedro, ou apenas Fedro, é um autor com uma trajetória interessante. Nascido na Trácia, no século I d.C., fora levado para Roma para servir como escravo de Augusto, que logo lhe deu a liberdade. Conhecedor do grego, aperfeiçoou seu latim e aprimorou suas habilidades na escrita. Leitor de Esopo, o principal fabulista do mundo grego, introduziu em Roma esse gênero através de sua obra Fabulae (Fábulas). Através de personagens fictícios como animais, objetos e pessoas, nos transmite grandes lições de moral, ética, prudência e humildade. Minhas fábulas preferidas são A gralha soberba e o pavão, sobre aceitar a nossa vida sem criar falsas imagens desta; A rã implodida e o boi, sobre como não devemos tentar parecer ser mais do que realmente somos; A gratidão do rato, de como não devemos menosprezar as pessoas simples; Desculpas sim, porém não esquecer, sobre como perdemos a confiança em pessoas que nos enganam uma vez; e O crime tem preço, sobre como que faz o mal, o recebe de volta.

Cartas Filosóficas (Editora Escala, 2006)

Três elementos estão presentes nessa obra epistolográfica de Voltaire: tolerância, liberdade e diversidade. Eles são a essência da cultura burguesa do século XVIII. Crítico ácido dos reis absolutistas, dos membros da nobreza e do clero, saiu da França e se refugiou na Inglaterra, redigindo as Cartas Filosóficas ou Cartas Inglesas. Em 25 cartas, o autor compara instituições, costumes, crenças e outros aspectos da Inglaterra com a França. É uma forma de mostrar para as autoridades civis e religiosas da França, onde foi perseguido. Gostei das seguintes cartas: As 7 primeiras sobre grupos religiosos; 10° Sobre o Comércio; 8° Sobre o Parlamento; 11° Sobre a Inoculação do Vírus da Varíola; 20° Sobre os Senhores que Cultivam as Letras; 23° Sobre a Consideração que se deve ter pelos Literatos; e 24° Sobre as Academias. Nessas cartas temos o Voltaire filósofo, historiador, ensaísta e novelista.


Cartas Persas (Editora Escala, 2 volumes, 2006)

Mais uma obra epistolográfica, de caráter crítico-social ou uma sátira para alguns críticos literários. Montesquieu, assim como Voltaire, é um burguês letrado do século das Luzes, e tece críticas às instituições políticas e religiosas. Através de um grupo fictício de viajantes persas, o autor constrói um choque cultural entre a Europa e o Oriente, gênero comparativo recorrente no século XVIII. É através de personagens como Rica, Usbek e Ibben, que Montesquieu consegue escrever, criticar e idealizar as instituições de Paris e de outras cidades da Europa sem se preocupar com a censura (publicou o livro de forma anônima em 1721). As cartas que mais me interessaram, enviadas para amigos que estão na Europa ou no Oriente, foram: sobre os Monarcas; o Papa, a Comédia, a Liberdade das mulheres ocidentais em relação às orientais; as Cortes; e as Religiões.

Representações Utópicas no Ensino de História (Editora Unifesp, 2011)

Mais que qualquer outra disciplina, a História traz a questão da utopia de forma mais clara, pois aborda variados temas passados, todos com suas contradições, necessitando ser esmiuçados e explicados, sempre com algum significado para o presente. Temas que retratam guerras, revoluções, conflitos de classe, movimentos sociais e políticos, são exemplos de como a História carrega, no passado, inúmeras lições para se aprender no presente. Representações Utópicas no Ensino de História, livro do professor Antônio Simplício de Almeida Neto, trata das representações utópicas que os professores de história possuem em relação a sua disciplina, a maneira como eles representam o futuro em relação à disciplina escolar.

Infelizmente, nem só de coisas boas o ano feito. Dia 14 perdi meu pai e avô João Augusto de Carvalho, o qual agradeço imensamente por minha formação, apesar de não ter sido um neto à altura. Deixei pelo caminho História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon; e De Pueris, de Erasmo de Roterdã. São leituras que vão ficar para 2017. Essas que foram feitas acima, recomendo, pois são obras agradáveis, edificantes para a moral e a ética, Desejo aos seguidores e seguidoras um bom final de ano e muitas leituras.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Estante Virtual
Editora Escala
Editora Nova Alexandria
Livrarias Saraiva


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

São Lázaro, o padroeiro do meu bairro

A palavra padroeiro tem origem no latim Patronus, que significa “defensor, protetor”, derivado de Pater, “pai”. O Santo Padroeiro de uma vila, povoado ou cidade, tem por objetivo a proteção do local a que foram dedicados e a intercessão entre o homem e o Criador. Na Idade Média conferiam prestígio às suas paróquias e cidades, que recebiam peregrinos de várias regiões em busca de contato com as relíquias e imagens divinas. Nas Sagradas escrituras, personagens que morreram puros no Senhor e alcançaram o Céu, continuam a interceder pelos vivos. Durante as perseguições a cristãos nos tempos do Império Romano, um grande número de pessoas que morreram em nome da fé foram aos poucos canonizadas pela Igreja Católica.

Manaus, fundada provavelmente em 1669, no entorno do Forte de São José da Barra, teve como primeira religião o Catolicismo, implantado na região através dos conquistadores portugueses. Essa religião viria a dominar por séculos a evolução da cidade. A primeira ermida construída na povoação foi consagrada à Nossa Senhora da Conceição; as primeiras ruas receberam o nome de Deus padre, Deus Filho e Deus Espírito Santo; os primeiros bairros foram São Vicente de Fora, uma homenagem ao santo padroeiro de Lisboa; e Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade. A escolha de um Santo Padroeiro é uma herança política e cultural dos tempos do Império Português, que assim dividia (a divisão ainda existe) suas freguesias em Portugal.

Lázaro era membro de uma família abastada da Palestina, e vivia com suas duas irmãs, Marta e Maria, em uma aldeia de Israel chamada Betânia (atualmente localizada na Cisjordânia), que junto da aldeia de Betfagé, era o último ponto de descanso para quem subia à cidade por Jericó. Betânia estava distante 3 km a leste de Jerusalém e do Monte das Oliveiras, um dos muitos lugares de transmissão dos ensinamentos de Jesus Cristo.

Os três irmãos tinham uma forte amizade com Jesus, tendo o hospedado muitas vezes em sua casa. Jesus ficou hospedado nos dias que antecederam a Paixão, do Domingo de Ramos até o dia de sua prisão. Além da relação que tinha com Cristo, a figura de Lázaro tornou-se importante para a História do Cristianismo pois este, após a morte, foi ressuscitado por seu amigo. Desde os primeiros séculos do mundo cristão o túmulo de Lázaro se converteu em local de devoção, tendo sido erguido, no século IV de nossa era, um santuário em seu redor.

De acordo com a Bíblia (compilação abaixo produzida pela Ordem Militar e Hospitalar de São Lázaro de Jerusalém – Grão Priorado de Portugal), no Evangelho segundo João, a história do milagre de Lázaro ocorreu da seguinte forma:

Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta. Maria era quem ungira o Senhor com o óleo perfumado e lhe enxugara os pés com os seus cabelos. E Lázaro, que estava enfermo, era seu irmão. Suas irmãs mandaram, pois, dizer a Jesus: Senhor, aquele que tu amas está enfermo. A estas palavras, disse-lhes Jesus: Esta enfermidade não causará a morte, mas tem por finalidade a glória de Deus. Por ela será glorificado o Filho de Deus. (João 11, 1-4)

Ora, Jesus amava Marta, Maria, sua irmã, e Lázaro. Mas, embora tivesse ouvido que ele estava enfermo, demorou-se ainda dois dias no mesmo lugar. Depois, disse a seus discípulos: Voltemos para a Judéia. Mestre, responderam eles, há pouco os judeus queriam-te apedrejar, e voltas para lá? Jesus respondeu: Não são doze as horas do dia? Quem caminha de dia não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas quem anda de noite tropeça, porque lhe falta a luz. Depois destas palavras, ele acrescentou: Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo. Disseram-lhe os seus discípulos: Senhor, se ele dorme, há-de sarar. Jesus, entretanto, falara da sua morte, mas eles pensavam que falasse do sono como tal. Então Jesus lhes declarou abertamente: Lázaro morreu. Alegro-me por vossa causa, por não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos a ele. A isso Tomé, chamado Dídimo, disse aos seus condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele. (João 11, 5-16)

À chegada de Jesus, já havia quatro dias que Lázaro estava no sepulcro. Ora, Betânia distava de Jerusalém cerca de quinze estádios. Muitos judeus tinham vindo a Marta e a Maria, para lhes apresentar condolências pela morte de seu irmão. (João 11, 17-19)

Mal soube Marta da vinda de Jesus, saiu-lhe ao encontro. Maria, porém, estava sentada em casa. Marta disse a Jesus: Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido! Mas sei também, agora, que tudo o que pedires a Deus, Deus to concederá. Disse-lhe Jesus: Teu irmão ressurgirá. Respondeu-lhe Marta: Sei que há-de ressurgir na ressurreição no último dia. Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisto? Respondeu ela: Sim, Senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que devia vir ao mundo. A essas palavras, ela foi chamar sua irmã Maria, dizendo-lhe baixinho: O Mestre está aí e chama-te. Apenas ela o ouviu, levantou-se imediatamente e foi ao seu encontro. (Pois Jesus não tinha chegado à aldeia, mas estava ainda naquele lugar onde Marta o tinha encontrado.) Os judeus que estavam com ela em casa, em visita de pêsames, ao verem Maria levantar-se depressa e sair, seguiram-na, crendo que ela ia ao sepulcro para ali chorar. Quando, porém, Maria chegou onde Jesus estava e o viu, lançou-se aos seus pés e disse-lhe: Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido! Ao vê-la chorar assim, como também todos os judeus que a acompanhavam, Jesus ficou intensamente comovido em espírito. E, sob o impulso de profunda emoção, perguntou: Onde o pusestes? Responderam-lhe: Senhor, vinde ver. Jesus pôs-se a chorar. Observaram por isso os judeus: Vede como ele o amava! Mas alguns deles disseram: Não podia ele, que abriu os olhos do cego de nascença, fazer com que este não morresse? (João 11, 20-37).

Tomado, novamente, de profunda emoção, Jesus foi ao sepulcro. Era uma gruta, coberta por uma pedra. Jesus ordenou: Tirai a pedra. Disse-lhe Marta, irmã do morto: Senhor, já cheira mal, pois há quatro dias que ele está aí… Respondeu-lhe Jesus: Não te disse eu: Se creres, verás a glória de Deus? Tiraram, pois, a pedra. Levantando Jesus os olhos ao alto, disse: Pai, rendo-te graças, porque me ouviste. Eu bem sei que sempre me ouves, mas falo assim por causa do povo que está em roda, para que creiam que tu me enviaste. Depois destas palavras, exclamou em alta voz: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo os pés e as mãos ligados com faixas, e o rosto coberto por um sudário. Ordenou então Jesus: Desligai-o e deixai-o ir. Muitos dos judeus, que tinham vindo a Marta e Maria e viram o que Jesus fizera, creram nele. (João 11, 38-45).

No bairro São Lázaro, o dia do santo é comemorado com uma série de atividades que incluem missas, arraial e a procissão que percorre as principais ruas da comunidade, entre os dias 02 e 10 de fevereiro. No dia 11 do mesmo mês ocorre a benção dos animais. Durante a Idade Média, tornou-se padroeiro dos leprosos por causa de uma associação errônea feita entre sua figura e a de Lázaro da Parábola de São Lucas, o Evangelista. As imagens sacras reproduzidas mostram, em alguns casos, um Lázaro coberto por chagas, segurando muletas e acompanhado por dois cachorros; ou um Lázaro com vestes nobres segurando a Igreja de Larnaca, Chipre. São Lázaro é protetor dos enfermos, dos pobres e dos animais.

O escritor Raimundo Motta de Araújo Filho, autor do livro Nova Betânia (2008, Edições Muiraquitã, p. 20), afirma que o nome do bairro Betânia, fundado em 1964, escolhido pelo então arcebispo de Manaus Dom João de Souza Lima, foi uma alusão à cidade de onde veio o Santo São Lázaro, cujo nome batizara o bairro vizinho, fundado quase uma década antes.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.wjhirten.com/

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Antigas fotopinturas de família: Análise Histórica e Social

Fotopintura da família Rodrigues Vieira, 1969. FONTE: Coleção pessoal.

O presente texto faz parte de um futuro artigo sobre objetos, costumes e crendices antigas de Manaus, temas estes inseridos nos campos da História Cultural, Micro-História e História Social.

Antigas fotopinturas de família

Em nossas vidas adquirimos dois tipos de objetos: aqueles de valor sentimental, insubstituíveis, que ganham com o passar do tempo nosso carinho, cuidado e respeito; e os meramente supérfluos, facilmente substituíveis dada suas curtas vidas úteis, adquiridos na maioria das vezes por impulsos consumistas, em uma tentativa de ganhar com eles um status passageiro ou se satisfazer pessoalmente. Violette Morin (1969), conforme citado por Bosi (2005, p. 3), define os primeiros como “objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida”. Uma moeda antiga, um desenho, as primeiras roupas dos filhos etc, quando guardados, nos dão a sensação de continuidade, de fazer parte de algo.

A posição, o local onde é posto um objeto na casa, revela as relações que os moradores têm com este. O quadro dos genitores, geralmente postos em destaque na sala de estar, representa a importância destes como os idealizadores e mantenedores de uma família, bem como o respeito em vida e depois dela. As imagens de santos e santas principais, N. S. de Aparecida, Sagrada Família, podem ficar em um pequeno altar, na sala ou na entrada da casa, enquanto aqueles menores, de culto particular, casamenteiros, protetores de lar e de empregos, ficam guardados no quarto, numa relação íntima com a pessoa que necessita de tal intercessão.

A técnica da fotopintura, de famílias inteiras, marido e mulher, de casamento, batizados etc, se faz presente no Brasil desde a segunda metade do século XIX, quando aqui chegou quase duas décadas após a invenção de Daguerre, sendo uma técnica que ainda resiste no Sul e no Nordeste. O inventor desse processo é o fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889), que em 1863 começou a produzir fotos em baixo contraste e usar tintas para dar cores às imagens. Esses registros em baixo contraste passaram a servir de esboço para os retratistas, que deixaram de fazer um desenho a lápis dos retratados, diminuindo o tempo de trabalho. Apesar de ser um processo bastante antigo, parece ter começado a se popularizar no país apenas no século XX, entre as décadas de 1940 e 1980. Esse sucesso se explica pelo fato de que, primeiramente, as fotos se tornaram mais realistas ao ganhar cores, deixando o preto e o branco de lado; segundo, os registros familiares, antes executados por pintores de renome e com alto custo, adquiridos apenas por famílias de posse, passaram a fazer parte das classes mais baixas, que pagavam esses trabalhos em suaves prestações.

Na região Nordeste a fotopintura se desenvolveu nos campos econômico e religioso: Nas praças, feiras, circos e romarias, existiam os fotógrafos fixos, com barracas ou lonas devidamente montadas e decoradas, que utilizavam a câmera “lambe-lambe”, em madeira e apoiada em um tripé; e os fotógrafos ambulantes, que passavam de casa em casa oferecendo o serviço, que podia ser feito a partir de uma foto já existente escolhida pela família, ou de uma feita na hora. No Sul e Sudeste predominavam os grandes estúdios de artistas profissionais.

A análise de uma fotopintura de Manaus

Nas casas manauaras era comum ter os quadros dos pais, filhos, avós e bisavôs, pintados a óleo ou com tinta à base de água e com molduras em madeira ou gesso, com desenhos florais, simples e em tonalidades douradas, verdes e escuras, pendurados na sala de estar. As origens dessa prática em Manaus, bem como os primeiros artistas que se dedicavam a ela, ainda estão encobertas de incertezas. Antônio José Souto Loureiro¹ (76), historiador, nos informa ao ver uma fotopintura:

Lembro-me que eram feitas sob encomenda, no Ceará. Também para esmaltados de cemitério (…) Eram feitas mais pelas famílias de bairros. Os desse tipo são mais recentes, mas existem os mais antigos, geralmente individuais, a guache, feitos por artistas de Manaus. Acho que essas informações sobre os pintores se perderam, a não ser que se achem referências no quadro. Nós tínhamos quadros pintados da família muito antigos. Da minha bisavó Liberalina Acioly de Menezes, que morreu aos 96 anos, em 1945, nascida na década de 1850, na Guaiúba, no Ceará, com um belo penteado e vestido negro do início do século.

As origens dos retratistas da capital, seus nomes e locais de trabalho continuam um mistério, pois é extremante raro encontrar um desses quadros assinados. Para a análise histórico-social foi escolhida uma fotopintura de 1969, que retrata duas gerações da família Rodrigues Vieira, natural de Boca do Acre (AM), à época residente no bairro São Lázaro em Manaus. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho² (65), uma das personagens retratadas, nos diz o seguinte sobre o dia da contratação do serviço, o trabalho dos retratistas e a importância de ter o retrato:

(…) Eles vinham na casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham entregar. Foi minha mãe que contratou. Ela tinha 41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei da escola ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o vendo.

O depoimento de Maria revela algumas características da técnica e do trabalho do retratista. Ele era um trabalhador informal, que passava de casa em casa oferecendo seu serviço. Ao entregar a foto para ele, que poderia ser o único registro familiar existente, mostra-se uma relação de confiança entre o comprador e o vendedor. A pedido dos retratados, eram corrigidas imperfeições físicas como a calvície, cicatrizes, se dava uma aparência mais jovem ou mais velha; e também eram adicionados elementos que não existiam na foto, como roupas formais, joias e até paisagens. Os retratistas tinham certa autonomia ao escolher as roupas e fazer os penteados, possivelmente um padrão que levava em conta a moda da época.

A incorporação de objetos e roupas de valor revela um desejo de se projetar para as futuras gerações, em forma de registro, aparentando certa distinção social. A moldura trabalhada em tons dourados com desenhos de inspiração clássica, e a proteção da pintura por uma tela de vidro temperado, reforçam a ideia de distinção e enobrecimento de uma família de classe média de um subúrbio de Manaus. Para uma família, um grupo de posses, os objetos biográficos podem ter significados que vão além do campo sentimental, tornando-se objetos de status. Sobre esse significado, Bosi (2005, p. 8) faz algumas considerações sobre os usos destes objetos por parte de pessoas de classes mais altas:

A foto daquele mesmo parente poderia ter sido colocada com o espírito de quem faz uma exposição que interessa o olhar do outro – o olhar social. Por essa visada a foto sobre o móvel carece de uma aura afetiva própria e ganha outra aura, a do status, onde estão embutidos valores de distinção, superioridade, competição, na medida em que o morto foi uma pessoa importante, logo dotada de valor de troca.

Percebe-se que, para um burguês, ou, no contexto da análise da fotopintura, um grupo da classe média urbana do final dos anos 1960, o objeto biográfico não se fecha na esfera da afetividade, do sentimento de intimidade familiar, mas torna-se um mecanismo de reprodução de sua posição na sociedade. Mas essa era uma família simples e, para a entrevistada, a única filha do casal, o quadro tem um valor que pende apenas para o sentimento de saudade, pois é um dos poucos registros dos pais já falecidos. A ideia de reprodução de status pode ter se perdido com o tempo, ficando apenas o respeito e a memória dos que já partiram. A memória pode ser entendida, segundo Suzzari (1986, p. 27) como “uma representação do passado ou uma continuidade dele”, sendo que nós somos seletivos com ela, escolhendo o que deve ser esquecido e o que deve ser lembrado, partindo sempre de nossas necessidades do presente.

O Retrato e os retratados

Os retratados na fotopintura de 1969 são: Do lado direito, Zacarias Rodrigues Vieira (1922-1995); no centro, Leomar Rodrigues (n. 1966); do lado esquerdo, Maria Raimunda Rodrigues Vieira (1928-2008); e no topo, Maria Hortência Rodrigues Vieira (n. 1951). O retrato tem formato oval, para caber todas as figuras, com a moldura, já desgastada com o tempo, em cor dourada e feita em gesso, com desenhos florais e detalhes de inspiração clássica. As figuras dominantes são Zacarias e Maria Raimunda, pai e mãe de Maria Hortência e avós de Leomar.

A frontalidade das personagens, que parece ser recorrente em todos os quadros, passa a sensação de respeito e imponência. Todos estão sérios. Era comum, no passado, tornar especial o ato de tirar fotos. A família não poderia desperdiçar essa oportunidade, um ato simbólico de registrar um momento, com inúmeras tentativas. Na fotopintura o artista mantinha os semblantes de seus clientes dessa forma. Quanto às figuras femininas, os pintores lhes representavam com penteados elegantes e roupas simples em tonalidades claras, dando-lhes um ar de recato, exigência de épocas passadas. Maria, que teve um filho aos 15 anos, foi retratada com uma aparência mais velha, o que, apenas em nível de especulação, pode ter sido feito para caracterizá-la como uma mãe experiente, zelosa pelo filho. Zacarias e Leomar usam terno e gravata, padrão para os homens. O pintor escolheu como cor de fundo o verde-claro, cor leve.

A fotografia original que foi entregue para o pintor reproduzi-la em cores já não existe mais. A pintura é apenas uma vaga representação do que ela foi um dia. O filho de Maria, pintando do lado dos avós, reforça o depoimento desta, que disse que ele era bastante amado pelos dois. Esses retratos de época também revelam a composição étnica de determinada época: Zacarias tinha origem portuguesa, Maria Raimunda descendia de indígenas e cearenses. Maria e Leomar herdaram os traços de uma típica família cabocla. Futuras pesquisas elucidarão as origens dos pintores, de seus locais de trabalho e a influência que exerceram na cidade.

1 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 12/12/2016.
2 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 14/12/2016

BIBLIOGRAFIA:

BOSI, Ecléa. Tempos Vivos e Tempos Mortos. São Paulo: SEDUC - SP, 2005.
SUZZARI, François. A Memória. Lisboa: Verbo, 2006.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

O IHGB e a História do Brasil

Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu.

Antônio Astor Diehl, no capítulo O Instituto Histórico Geográfico e a Ilustração, discorre, do livro A cultura historiografia brasileira: do IHGB aos anos 1930, primeiramente, sobre como se pensou a história no século XIX, uma disciplina com um discurso de cientificidade e discurso historiográfico pautado no positivismo. É nesse contexto, da História vista como ciência, que se desenrola a questão do IHGB como mola propulsora dessa ciência humana no Brasil. Vale ressaltar que esses institutos, tanto na Europa quanto no Brasil, surgem em meio às questões de nacionalidade, quando nações como Itália e Alemanha, fragmentadas em vários estados, buscam construir uma unidade política e cultural.

A História, no Brasil, não se desenvolve nas universidades, mas sim nos institutos de membros eleitos, ao molde das Academias Ilustradas europeias dos séculos XVII e XVIII. Em 1838 surge, na capital do Império do Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, espaço privilegiado que por quase um século dominaria o que fosse produzido sobre a história do país. Estava no centro dessa academia o Estado Brasileiro, inimigo das repúblicas latino-americanas, mas ainda distante de constituir uma unidade política sólida, tendo em vista as revoltas que explodiam do Norte (Cabanagem) ao Sul (Revolução Farroupilha). Ele não rompe com a ideia de se desligar do antigo agente colonizador, o português, mas se vê como o continuador do projeto de conquista iniciado em 1500.

A historiografia produzida no IHGB construía uma visão homogeneizada da nação brasileira, comandada pelas elites, imbuídas, do topo, de encaminhar as demais classes sociais em direção ao progresso. O Instituto vivia entre a inovação e o tradicionalismo: a partir de 1851, foram incluídos estudos etnográficos, arqueológicos e linguísticos, mas história continuava presa a uma concepção linear e progressista. Em 1847 é lançado um concurso de ensaios sobre como se deveria escrever a História do Brasil, um país de dimensões continentais e socialmente diversificado. Venceu o alemão Carl Friedrich Philipp von Martius que sugeriu, em sua tese: a história do Brasil deveria ser escrita a partir do estudo das três raças que o compõe – índios, negros africanos e brancos europeus. O indígena remete aos primórdios de nossa civilização, ao mito da nacionalidade vista de forma romântica; o negro é visto como um fator de impedimento ao progresso, estereotipado como inadaptável a qualquer sistema econômico, que ao lado do indígena se rebelou diversas vezes contra o colonizador; e o branco europeu, o conquistador, redentor das outras raças, o único capaz de absorvê-las e encaminhar o país para o progresso.

Astor cita dois membros do IHGB para a análise da produção da segunda metade do século XIX: Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu. Adolfo Varnhagen foi um historiador metódico, com uma obra alicerçada em rigorosa erudição. Sua abordagem, em alguns pontos considerada distante e fria, se preocupa com problemas do presente, no qual busca explicações no passado para delinear um bom futuro. O autor afirma que os únicos atributos de realce em sua obra são sua erudição histórica e a posição de pesquisador. Adolfo também foi um grande historiador político, abordando temas como a organização do Estado, seu papel na estruturação social, a centralização do poder político, a função do Estado na condução do processo de constituição da nação e do homem brasileiro. Varnhagen se preocupa com o papel da classe dominante no Império. Acontece que, para esse autor, durante o período colonial, a classe dominante, escravagista, era forte. Com a Independência, e as constantes pressões pelo fim do tráfico negreiro durante o Segundo Reinado,o índio e o negro passavam a ser incluídos como cidadãos da nação brasileira, o que era um problema para Varnhagen, que idealiza um Estado comandado pelo branco brasileiro. Sobre o Império, tinha o seguinte projeto político: a constituição de uma nação branca e de descendência europeia; a criação de um Estado forte e centralizado, constituinte da nação; constituição do homem branco brasileiro. Formas de manter a unidade: miscigenação forçada; centralismo e autoritarismo. Em síntese, Varnhagen entendia que era necessário manter a Lei, a Ordem e a Religião.

Capistrano de Abreu renovou a historiografia brasileira, prezando por uma história imparcial, sendo um contraponto ao defensor do Império, Varnhagen. Em sua abordagem, substituiu o conceito de raça pelo de cultura e seus estudos indígenas renovaram a etnografia; deu também importância para a história social e dos costumes, e sugeriu novos problemas para a historiografia brasileira: o regime de terras, a história da legislação e do parlamento, e os partidos políticos. Capistrano tem forte ligação com a análise sociológica alemã, e vê que os fatos são uma etapa da interpretação, que deveria ser regida por leis e regras da sociologia. O método crítico de Capistrano está baseado em três regras simples: o privilégio da testemunha visual, daquela que assistiu pessoalmente aos eventos que reconstrói; a ênfase ao caráter lógico do relato das testemunhas, como se a ambiguidade fosse sinônimo de equívoco ou falsidade, e à coerência, um pré-requisito para se acreditar na correspondência entre o texto e a realidade, e a utilização do número e da quantidade de documentos que contivessem afirmações contrárias, embora satisfeitas as exigências anteriores. Ele utiliza o empirismo, aliado à coerência lógica e o número de testemunhos como forma de se alcançar a verdade. Ele também foi crítico da memória, na medida em que ela se distância dos fatos abordados.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org