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segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Índex de Livros Proibidos e a Inquisição Católica

Inquisição. Pintura de Edouard Moyse (1872). FONTE: commons.wikimedia.org.

No período da Contrarreforma, em que a Igreja Católica se viu diante das ameaças do Protestantismo, que ganhava, naquele contexto da Modernidade, grande número de adeptos, já fazendo-se presente em algumas das principais Cortes europeias, a autoridade papal utilizou poderosos mecanismos de controle e repressão, destacando-se o Index librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos), datado de 1559, e a Inquisição, já utilizada na Idade Média e reativada na Idade Moderna.

As listas de livros proibidos já circulavam em universidades de Teologia pelo menos desde o início do século XVI. Coube ao Papa Paulo IV a promoção de uma lista de trabalhos considerados hereges e que, por isso, deveriam ser proibidos em toda a Cristandade. Interessante destacar que não foram apenas os livros protestantes a serem proibidos, mas também os trabalhos clássicos de humanistas. Autores como Dante Alighieri, Michel de Montaigne, René Descartes, Montesquieau, La Fontaine, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire tiveram suas obras listadas no índex. Deve-se destacar que a censura já se fazia presente desde os tempos de Paulo de Tarso. Em Atos 19, Paulo se dirigiu à cidade de Éfeso para converter judeus e gregos. Nessa ocasião, os recém convertidos se desfizeram de seus antigos livros de magia:

"E foi isto notório a todos que habitavam em Éfeso, tanto judeus como gregos; e caiu temor sobre todos eles, e o nome do Senhor Jesus era engrandecido. E muitos dos que tinham crido vinham, confessando e publicando os seus feitos. Também muitos dos que seguiam arte mágicas trouxeram os seus livros, e os queimaram na presença de todos e, feita a conta do seu preço, acharam que montava a cinquenta mil peças de prata" (ATOS 19:17-19).

Não só os autores sofriam com a censura. Os impressores de livros e jornais e os livreiros também eram vigiados pela Igreja. A fiscalização, feita com frequência, era severa e muitas vezes arruinava as vendas, pois o material, caso não estivesse de acordo com as determinações da Santa Sé, era confiscado e posteriormente eliminado. O historiador britânico Toby Green registra que a repressão acabava estimulando a procura pelos livros proibidos, que se tornavam cada vez mais valiosos. Surgia assim um contrabando rentável de obras, que chegavam aos seus destinos escondidas em baús, roupas e navios.

O historiador norte-americano Carter Lindberg, autor de História da Reforma (2017), registra, no entanto, que a historiografia mais recente afirma que o Index não teve um efeito tão devastador como se imagina, sendo “menos uma “cortina de ferro” que uma rede de malha” (LINDBERG, 2017, p. 492). Lindberg mostra que as visões sobre o período, ainda falando sobre o Index, são marcadas pela ponderação entre a rigidez e a continuidade da produção de cultural, embora autores como Gleason e Silvana Menchi mostrem os efeitos da repressão. A proibição de obras, pela Igreja, durou, embora já bastante enfraquecida, até 1966.

A Inquisição poder ser definida, de forma pedagógica, como um instrumento legal de perseguição a heresias, tendo suas raízes na repressão ao catarismo no século XIII. Na Espanha, no final do século XV, ela teve como alvo o judaísmo, determinando a conversão ao Cristianismo aos seus praticantes. Esses cristãos-novos, assim como seus descendentes, continuaram a ser perseguidos por conta da suspeita da continuidade de seus antigos cultos. Durante e após a Reconquista, além dos judeus, também foram perseguidos e mortos muçulmanos recém-convertidos. 

Lindberg pontua que existiam na Europa sistemas legais seculares mais severos que a Inquisição, como a pena das galés, mas nenhum com efeitos psicológicos tão duradouros quanto ela, que promovia uma intensa exploração do medo, através, principalmente, da humilhação pública dos condenados. O historiador britânico Toby Green, autor de Inquisição: O Reinado do Medo (2012), recuperou bem essa dimensão psicológica, mostrando como o medo era almejado pelas autoridades inquisitoriais:

"Esse terror era cuidadosamente cultivado pelas autoridades inquisitoriais. Em 1564, um advogado escreveu à Suprema para dizer que na Galícia era necessário que as pessoas "alimentassem o medo", respeitando a Inquisição. Em 1578, ao reeditar o Directorium Inquisitorium, texto sobre os procedimentos inquisitoriais de Nicolas de Eymeric, inquisidor de Aragão no século XIV, Francisco Peña escreveu: "Devemos recordar que o objetivo essencial do julgamento e da sentença de morte não é salvar a alma do acusado, mas fazer o bem público e aterrorizar as gentes" (GREEN, 2012, p. 28).

Mais uma vez o autor nos convida a contextualizar esse instrumento, mostrando que a tortura, na qual logo se pensa quando se fala em Inquisição, tinha uma dinâmica própria, sendo mais moderada do que se imagina. A Inquisição espanhola tinha relação com o Estado, este último a utilizando como mecanismo de controle social não apenas de hereges, mas também de estrangeiros que poderiam comprometer a organização social. O Papa Paulo IV, interessado pelos resultados da Inquisição, a aplicou na Itália e posteriormente a toda a Cristandade, organizando o tribunal romano, com juízes dominicanos e cardeais escolhidos pelo Papa. Lindberg afirma que a Inquisição “serviu de arma defensiva da Contrarreforma” (LINDBERG, 2017, p. 497).

Após nos inteirarmos brevemente sobre o funcionamento do Index librorum prohibitorum e da Inquisição, tendo como base as pesquisas de Carter Lindberg e Toby Green, concluímos que eles foram mecanismos importantes na Reforma Católica ou Contrarreforma, muito mais de defesa do que de ataque, em um período em que o enfrentamento ao Protestantismo tornou-se mais rígido, embora fique claro que a natureza de ambos foi revisitada pela historiografia mais recente, que buscou contextualizá-los e historicizá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LINDBERG, Carter. História da Reforma. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A Igreja Católica e a regulamentação das atividades sexuais na Idade Média

As atividades sexuais fazem parte do campo da vida privada. Pelo menos, é assim que se pensa. No período medieval, onde não existia uma delimitação clara entre o público e o privado, a principal instituição da época, a Igreja, conseguia regular as atividades sexuais de seus seguidores, estabelecendo valores como a castidade, o matrimônio e o sexo para procriação. No presente artigo, a partir de uma discussão historiográfica entre autores como Jacques Le Goff e Jeffrey Richards, buscou-se apresentar as formas como a Igreja Católica regulamentava e orientava as atividades sexuais de seus fiéis.

RESUMO
Thaieny Gama*
Este artigo tem como objetivo apresentar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média. Além disso, aponta as penitências para os pecados sexuais desse período. No primeiro momento se destacam a relação dos historiadores com a temática da sexualidade. Em seguida, os valores de virgindade, castidade e matrimônio são apontados como elementos argumentativos para as regulamentações das práticas sexuais dos fiéis. Por fim, são abordadas as punições para os crimes sexuais. Na conclusão ressalta-se a relação da sexualidade da Idade Média com a contemporaneidade destacando as mentalidades ainda constituídas na sociedade.
Palavras-chave: Sexualidade – Igreja Católica – Idade Média

INTRODUÇÃO

A sexualidade na Idade Média nunca foi bem expressada como hoje conhecemos e falamos. A Igreja Católica fortemente presente na vida dos fiéis e na dissipação da moral no comportamento social, coibiu as discussões quanto às atividades sexuais e regulamentou orientações para as relações.
Atualmente falar de sexualidade é comum e não é reprimido, porém, se conhecermos as orientações da Igreja Católica na Idade Média, haverá grandes discordâncias e questionamentos quanto às normas estabelecidas em lei.
Diante disso, não podemos descartar quem escreveu essas regulamentações: o clero era os poucos letrados daquele período. E seria muito conivente repudiar os desejos sexuais com essas normas e indicá-las aos fiéis. Le Goff e Truong (2006) reforçam essa afirmativa destacando que “os documentos em que se baseiam os historiadores refletem somente o pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos que, devido a seus votos de castidade, eram largamente versados no ascetismo.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41)
Com isso, os ensinamentos cristãos em relação à sexualidade estavam voltados para a manutenção da ordem divina através dos valores da virgindade, da castidade e do matrimônio, onde as atividades sexuais seriam apenas para os objetivos de reprodução e não por meramente saciar o desejo carnal.
“O sexo não deveria ser usado por mero prazer. Segundo esta definição, todo sexo fora do casamento, tanto heterossexual quanto homossexual, era pecado, e, dentro do casamento, só deveria ser usado para fins de procriação.” (RICHARDS, 1993, p. 34)
Contudo, o controle da Igreja Católica aos fiéis para manutenção da ordem divina, seria garantido com as confissões e consequentemente as atribuições às penitências para os crimes sexuais. Dessa forma, o individuo se livraria da culpa do pecado e a Igreja Católica seguraria o fluxo natural da vida por meio de suas orientações.
Por isso, esse artigo tem como objetivo destacar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média e apresentar as penitências que cada crime se submeteria.

REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA

'Le-livre-de-Lancelot-du-Lac', França, circa 1401-1425.

Devido à expansão do cristianismo no período medieval, a instituição Igreja Católica disseminou e refletiu os valores da doutrina cristã. Dentre as diversas orientações e regulamentações, os atos sexuais também foram prescritos com base no poder do impulso sexual de cada indivíduo.
De acordo com Richards (1993), os pensadores cristãos desse período no geral encaravam o sexo com uma ação desnecessária que confundiria a vocação de uma pessoa: “a busca da perfeição espiritual, que é, por definição, não sexual e transcende a carne”. (RICHARDS, 1993, p. 34)
Com isso, os ensinamentos cristãos eram voltados para a prática do celibato e a virgindade como ações de elevação da vida da pessoa. Na questão da sexualidade, os preceitos tinham como primícias apenas a reprodução, porém, essa indicação era voltada apenas para os casados. “A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar”. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41). O sexo fora do casamento era considerado pecado.
Por isso, Leal (2010) apresenta três valores que a Igreja Católica ressaltava aos fiéis: a virgindade, a castidade e o matrimônio. A virgindade era uma condução a imitação à vida de Maria e de Jesus. Maria como exemplo de serviço a Deus e Jesus como verbo que virou carne, perfeição de Deus. A castidade estava voltada ao seguimento das vidas dos santos na perspectiva de afastar-se do pecado e de aproximar-se de Deus. E o matrimônio era visto como sacramento que permitia a relação sexual do homem com a mulher da forma correta e para a perpetuação da vida na terra, considerada graça divina.
Diante disso, a Igreja Católica apresenta regulamentações para as práticas sexuais. Le Goff e Truong (2006) afirmam que nas relações sexuais a mulher deve ser a passiva e o homem o ativo. Assim, o corpo da mulher casada pertenceria ao seu marido. Essa afirmação é reforçada mesmo quando os teólogos apresentam a ideia sobre a relação de igualdade entre o homem e a mulher a partir da criação de Adão e Eva.
Richards (1993) ressalta que a posição apropriada para a relação sexual era a “posição do missionário, frente a frente com o homem por cima e a mulher embaixo” (RICHARDS, 1993, p. 40)
Além disso, a Igreja Católica proibia as relações sexuais em dias de festas religiosas e jejuns. Conforme Klapisch-Zuber (1989) a Igreja estabeleceu um calendário para os momentos que o casal poderia ter relações sexuais. As proibições eram para o momento da quaresma, do advento, páscoa, pentecostes e outros dias santos. Durante a gravidez da mulher, do aleitamento, dos quarenta dias após o parto e das regras menstruais, o casal também era proibido às práticas sexuais.
Le Goff e Truong (2006) afirmam que qualquer tentativa contraceptiva era pecado. Richards (1993) menciona que embora não haja especificação, o sexo anal e oral era considerado contraceptivo. Outras práticas eram conhecidas na Idade Média e denunciadas pela Igreja Católica:
Várias formas de contracepção, fossem elas efetivas ou não, eram conhecidas e presumivelmente praticadas: poções destiladas a partir de diversas plantas, exercícios de ginástica realizados após a relação, unguentos aplicados sobre os órgãos genitais masculinos, líquidos introduzidos no útero antes ou depois da relação, pessários. (RICHARDS, 1993, p. 42)
Klapisch-Zuber (1989) aponta que apesar do corpo da mulher ser de propriedade do marido, ela não deve ceder ao homem um pedido que seja pecado ou que vá contra a natureza. Dessa forma, a única maneira de infringir o dever de mulher é quando o homem impõe uma posição ou ação que vai contra a ordem de Deus.
Le Goff e Truong (2006) destacam como pecados outras práticas sexuais: “Felação, sodomia, masturbação, adultério, seguramente, mas também a fornicação com os monges, são, um a um, sucessivamente condenados.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 44)
Respectivamente, Richards (1993) aponta que o amor cortês, amor do homem solteiro e jovem pela mulher casada, era necessário ser evitado, pois, poderia provocar o adultério e consequentemente o nascimento de filhos bastardos.
Leal (2010) menciona que a prática sexual do homem com animais era uma ação natural na Idade Média, mas a Igreja Católica não aceitava essa relação, denominando esse ato como bestialidade irracional. Uma prática contra a ordem divina.
Para garantir o controle eclesiástico e a disciplina do laicato, além de propiciar “uma válvula de escape para o sofrimento individual derivado de uma consciência de culpa” (RICHADS, 1993, p. 38), a Igreja Católica estabeleceu a confissão e a penitência como ações centrais da Igreja. Por isso, para facilitar a penitência atribuída a cada pecado, o clero criou um documento que listavam os pecados e os métodos para lidar com eles. As questões sexuais eram a maior categoria que se atribuíam penitências. A mais comum era o jejum com pão e água, ou, abstinência sexual, havendo uma escala de punição. (RICHARDS, 1993, p. 39)
As penas mais pesadas eram reservadas para incesto, sodomia e bestialidade; quinze anos para infratores habituais. Mas existiam penalidade menores para outros delitos homossexuais, tais como masturbação mútua e sexo interfemural. Em outros penitenciais, o sexo anal incorria uma pena de sete anos; delitos homossexuais menores, dois ou três anos. Meninos eram punidos com penas muito menos pesadas do que os adultos. (RICHARDS, 1993, p. 40)
Nesse sentido, Leal (2010) ressalta que o sexo oral, incesto, adultério e sodomia eram práticas consideradas abomináveis, e, a punição poderia se definida em excomunhão e interdição perpétua do matrimônio e da relação sexual.
Para expressar o amadurecimento da Igreja Católica quanto aos pecados sexuais, Richards (1993) apresenta uma mudança referente ao estupro: “O estupro não era condenado pelos penitenciais, mas o raptus1 era.” (RICHARDS, 1993, p. 41). O raptus era um crime contra a propriedade privada, pois, era o roubo de uma mulher de sua família. Não está relacionado com o estupro que conhecemos atualmente. Posteriormente, o raptus tornou-se um crime sexual contra mulheres não casadas e recomendava-se pena de morte para tal delito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As influências da Igreja Católica na questão da sexualidade ainda é presente no dia a dia. Suas regulamentações sofreram alterações, mas ainda estabelecem um comportamento doutrinário a homens e mulheres. Porém, com a estabilização do estado laico, a Igreja já não persegue os indivíduos e não impõe suas doutrinas a sociedade.
Após as leituras e o desenvolvimento deste artigo, percebemos o quanto as mentalidades a essas orientações são presentes na atualidade. Destaco as relações de machismo frequentemente encontrado na sociedade no que tange a submissão e violência contra a mulher. Essa visão da mulher como o sexo frágil, com inteligência inferior e com tarefas voltadas para a família, visivelmente são reflexos dos comportamentos da Idade Média. Um grande desafio para os professores de história na perspectiva de salientar esse debate na sala de aula.
Por fim, reforço que essa temática ainda precisa ser mais trabalhada na ânsia de refletir sobre essa influência da Igreja Católica e visualizar os paradigmas que a sociedade está encaixada para estabelecer novos caminhos. Na expectativa de fomentar o compromisso social que cada um tem a contribuir para uma sociedade mais justa e fraterna.


1 Raptus significa sequestro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A mulher e a família in: LE GOFF, Jacques. O homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

LEAL, Raphael. Religião e sexo: do controle da Idade Média e sua herança na contemporaneidade. IV Colóquio de História: Abordagens Indisciplinares sobre a História da Sexualidade. 19 de novembro de 2010. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

LE GOFF, Jaques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Tradução: Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.41.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Tradução: Marco Antonio da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 34.


*Thaieny Gama é acadêmica do 4° período do curso de História na UFAM, com interesse na área de pesquisa sobre História do Brasil (Golpe Civil Militar).

E-mail: thaieny.gama@hotmail.com








CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.cvltnation.com

sábado, 9 de dezembro de 2017

A Igreja Medieval: De salvadora dos homens à senhora das almas

A Igreja Católica foi a instituição mais poderosa da Idade Média. Com seus desígnios emanando de Roma (por um relativo período de tempo também de Avignon, na França), atingia paróquias, dioceses e arquidioceses pelo mundo, influenciando o cotidiano, a literatura, as artes e, principalmente, os temores humanos referentes à salvação da alma. É sobre essa última instância que recai a análise do presente artigo, de como a Igreja, a salvadora dos homens, manipulou os medos destes e tomou posse de suas almas.

RESUMO
Arlison Jorge de Souza Leite*

Este texto pretende analisar as motivações e estratégias utilizadas pela Igreja para exercer um controle espiritual sobre a Cristandade. Partindo do princípio de que, na sociedade medieval, a dimensão espiritual se sobrepunha à material e que a Igreja era a única habilitada a abrir as portas da salvação, ela acabou se colocando em um lugar privilegiado, de onde podia, se não controlar, ao menos direcionar os temores dos fiéis. Nesse sentido, este texto aponta que a instituição eclesiástica estimulou e deu forma a um medo supremo: o Diabo, que, para os fiéis, correspondia ao medo de si. A partir destas premissas, discute-se como a Igreja, ao se posicionar como salvadora dos homens, manipulou seus medos e tornou-se a senhora das almas, buscando, constantemente, colocar o destino espiritual da Cristandade sob seu comando.
Palavras-chave: Igreja. Medo. Diabo. Controle. Salvação.

1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história humana, aqueles que controlam o que há de mais precioso para uma sociedade também detêm, em certa medida, o poder de mantê-la refém. Tal, também foi o caso do ocidente, ao longo dos séculos medievais. Nessa sociedade, o espiritual prevalecia sobre o material, logo, um dos grandes motivos para a Igreja ter se tornado a senhora das almas foi o fato dela ter comandado uma coletividade sobre a qual pesava a crença de que a salvação era o grande objetivo da vida e, nesse caso, só havia um meio para tal: enquadrar-se nos padrões de comportamentos exigidos pela instituição eclesiástica.
Entretanto, esse projeto pedagógico não foi de fácil implantação. Diante disso, visando consolidar sua autoridade, a Igreja Católica tornou heresia e perseguiu qualquer um que vivesse fora de sua doutrina, cada vez mais rígida após a Reforma Gregoriana. Com o seu projeto de sociedade, a Igreja tomou para si o monopólio da interpretação dos textos sagrados e, consequentemente, o controle sobre a vida espiritual da Cristandade. Assim, buscando controlar as almas alheias, ela recorreu ao que havia de mais sensível dentro de cada uma delas: o medo. Com esse propósito, a Igreja o intensificou, primeiro por meio da pregação e das imagens, depois com o teatro religioso, todos falando ou mostrando os suplícios do além para uma sociedade que vivia sob ameaça constante.
Além disso, deve-se ressaltar que dentre todos os temores medievais, o medo do Diabo era, provavelmente, o mais aterrorizante. Isso refletia a perda do controle da Cristandade por parte da Igreja que, percebendo esse fenômeno, fez do “inimigo do gênero humano” um monstro terrível que espreitava a qualquer um que ousasse atravessar as fronteiras espirituais estabelecidas por ela. Dessa maneira, a contraditória Teologia medieval pôs o homem demasiado à mercê das ações do Diabo em sua vida cotidiana, além de pôr o inferno como quase fazendo parte deste mundo, onde Lúcifer é o príncipe. Por conseguinte, a proximidade entre o Diabo e os homens é assim tão estreita que os labirintos Teológicos nos permitem dizer que o “inimigo do gênero humano” conhece o homem melhor do que Deus, isto é, suas virtudes e vícios, estes o Diabo intensifica, aquelas ele corrompe. Dessa forma, um desafio irônico se impõe à vida do homem medieval: este deveria, não necessariamente, evitar o inferno, mas sair dele.

2. AS TENTATIVAS DE CONTROLE: PERSEGUIÇÕES, SACRAMENTOS E O JUÍZO FINAL
Dança macabra do Convento dos Dominicanos de Bâle, na Suíça. Gravura de 1621 de Matthaeus Merian.

As ações da Igreja em relação aos fiéis mostram que, a partir do século XII, os terrores demoníacos, assim como as perseguições, se intensificaram, acompanhando o crescimento dos próprios temores da Igreja, seja em relação às heresias ou às seduções das cidades. Essa mudança de postura por parte da instituição eclesiástica foi observada por Delumeau: “A Igreja da Alta Idade Média pleiteara no conjunto pela clemência e pela prudência em relação aos culpados [...]” (1989, p. 350). Em seguida Delumeau complementa:
[...] sua atitude modificou-se a partir do final do século XII sob o efeito de duas causas interligadas: de um lado, a afirmação da heresia com os valdenses e os albigenses; de outro, uma vontade crescente de cristianização que os pregadores oriundos das ordens mendicantes exprimiram e atualizaram (1989, p. 351).
Quando a Igreja não conseguia controlar o medo dos outros, os seus próprios vinham à tona. Nesse sentido, seu maior medo era o de ser questionada, portanto, a desobediência devia ser combatida, mesmo entre aqueles que teoricamente poderiam ser seus aliados como “os franciscanos ‘espirituais’ que se valiam de Joaquim de Flora opuseram-se à riqueza e ao poder da Igreja e foram perseguidos pela hierarquia” (DELUMEAU, 1989, p. 208), isto é, desobedecer à Igreja era o pior que se podia fazer.
Além disso, vendo-se diante da impossibilidade de dominar completamente os pensamentos dos fiéis, a Igreja passou a controlar as ações deles por meio da prática dos sacramentos, a partir de então,
constata-se claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais (nascimento, casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança de salvação no outro mundo, sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão (BASCHET, 2006, p. 175).
A partir de iniciativas dessa natureza, a Igreja se afirmou como o único canal de salvação dos homens.
Uma das mensagens que chamam a atenção na “pedagogia” utilizada pela Igreja é que antes do fiel alcançar a salvação, ele teria que passar pelas provações do Diabo, ou seja, tem-se nesse caso, duas narrativas interligadas nas quais, antes das recompensas dos justos, todos tinham que conhecer os castigos que existiam no além. Isso fez com que, ao longo dos séculos medievais, a representação do Juízo Final ficasse cada vez mais terrível para os olhos de quem a via, não apenas na iconografia, mas também na literatura religiosa. Ao analisar essa situação, Delumeau (1989) frisou que essas representações estavam em toda parte: nas grandes igrejas urbanas ou nas pequenas igrejas rurais, todos podiam e deviam vê-las. Ainda no que diz respeito a essas representações, Delumeau destaca sua finalidade: “A última prestação de contas revelava-se um meio pedagógico eficaz nas mãos da igreja para reconduzir os cristãos para o bom caminho” (1989, p. 211).
Como afirmado anteriormente, se esses medos atingiram parte da população, isso se deve, em grande medida, à difusão da “propaganda” que a Igreja fazia de suas ameaças. A partir do século XII, a aglomeração de pessoas nas cidades ajudou nesse objetivo (embora a sociedade medieval continuasse, em sua maioria, rural) que antes do “Renascimento Urbano” constituía trabalho mais difícil, pois “era demasiadamente rural, demasiadamente fragmentado, demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas correntes de propaganda” (DELUMEAU, 1989, p. 216).
Para um controle mais efetivo sobre a Cristandade, era necessário instigar o medo nos fiéis, pois só se poderia oferecer salvação a uma alma que estivesse em perigo, por isso, todos tinham que acreditar no Diabo, inclusive, Delumeau (1989) observa que para não ser acusado de heresia, além de não praticar “atos demoníacos”, o cristão deveria, antes de tudo, acreditar que eles eram reais.

3. O MEDO SUPREMO: O DIABO
A Igreja Medieval trouxe o Diabo para a vida do homem do Ocidente e, depois de alimentá-lo, jogou-o sobre toda a Cristandade. Essa evolução do “inimigo do gênero humano” foi muito bem demonstrada por Delumeau:
Satã pouco aparecia na arte cristã primitiva e os afrescos das catacumbas tinham-no ignorado. Uma de suas mais antigas figurações, nas paredes da igreja de Baouit no Egito (século VI), o representa sob os traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas, mas sem feiúra e com um sorriso um pouco irônico [...] Lúcifer, outrora criatura preferida de Deus, ainda não é um monstro repulsivo (1989, p. 239).
Le Goff (2005, p. 153) também dedicou suas análises ao estudo do Diabo:
Na Alta Idade Média, Satã não tem papel de primeiro plano, nem muito menos uma personalidade de destaque. Ele aparece com nossa Idade Média, e se afirma no século XI, sendo uma criação da sociedade feudal. Com seus sequazes, os anjos rebeldes, ele é a própria imagem do vassalo pérfido, do traidor,
assim, Satã fazia sua grande entrada em nossa Civilização.
Entretanto, a concepção que o povo tinha da figura do Diabo não correspondia, necessariamente, àquela representada pela Igreja, porém, isso não a impediu de criar sua imagem do “inimigo do gênero humano” e difundi-la amplamente:
Durante longos séculos da história ocidental, as pessoas instruídas consideraram de seu dever fazer os ignorantes conhecerem a verdadeira identidade do maligno por meio de sermões, de catecismos, de obras de demonologia e de acusações. Já santo Agostinho esforçara-se em demonstrar aos pagãos de seu tempo que não existem demônios bons (DELUMEAU, 1989, p. 249).
Ainda a esse respeito, Delumeau expõe uma contradição Teológica:
Jesus chamara Satã de ‘príncipe deste mundo’ [...] São Paulo fora ainda mais longe, chamando Satã de ‘o deus deste mundo’ [...] Jesus e são Paulo não queriam designar a terra onde vivem os homens nem a humanidade inteira, mas o reino do mal [...] Só deste mundo é que Satã é rei [...] mas os homens de Igreja [...] estenderam à totalidade da criação o império do maligno (1989, p. 259).
A partir de tal iniciativa, ao colocar a cristandade em uma posição suscetível à influência demoníaca, a Igreja conseguiu colocar esse medo dentro dos fiéis, isto é, conseguiu fazê-los terem medo de si mesmos. Delumeau explica a razão de tal medo: “Ele [o Diabo] pode não só investir contra os bens terrestres e o próprio corpo, como também pode possuir um ser humano sem o seu consentimento, que desde então se encontra desdobrado” (1989, p. 242). Sendo assim, o medo do Diabo se tornou o mais eficiente de todos, pois se considerarmos os piores temores medievais, da mulher ao infiel, todos poderiam ser evitados caso fosse necessário, porém jamais se poderia fugir de si mesmo.
Evidentemente que esse medo, ao mesmo tempo particular e coletivo, encontrava sustentação na vida cotidiana. Em seu dia a dia, o homem medieval, sobretudo aquele pertencente às classes mais pobres, vivia muito distante de qualquer traço do Paraíso, lugar de riquezas diversas, paz e vida eterna, embora esse Paraíso lhe fosse mostrado nas pinturas. Por outro lado, esse mesmo homem não vivia muito distante dos horrores do Inferno, tais como: as doenças, a fome e a morte. Nesse sentido, o Inferno apenas seria o lugar onde essas desgraças seriam perpétuas. Nessa ironia medieval, o homem teme o que já conhece.
4. CONCLUSÃO
Deve-se reconhecer à Igreja sua característica de hábil manipuladora dos medos humanos, alguns ela engendrou nas mentes e corações, aqueles que já existiam ela remodelou e redirecionou ao seu favor, mas, antes de manipular os temores alheios, ela precisava eliminar os seus. Com esse propósito, ela reuniu e simplificou tudo o que desconhecia ou temia, assim como toda diversidade existente em seus domínios e deu-lhes o nome de Diabo. Nesse cenário, a instituição eclesiástica tornou-se mais obcecada com a figura de Satã do que qualquer “bruxa” jamais seria. Incapaz de sentir medo sozinha, a Igreja projetou seus temores sobre toda a Cristandade, tornando a salvação um projeto difícil de se realizar, pois para o homem medieval, o demônio estava sempre mais próximo que os anjos. Desse momento em diante, surge a necessidade imperativa de vigilância constante.
Além disso, deve-se notar que ao longo da Idade Média, a Igreja não conseguiu sequer aproximar-se do Paraíso com suas tentativas de pacificação da Cristandade, mas é dela, em grande parte, a paradoxal responsabilidade de trazer o Inferno sobre a terra, através da Inquisição, que em suas perseguições e torturas foi, certamente, tão criativa quanto os demônios seriam no Inferno.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a Igreja se mostrou perspicaz e implacável contra seus inimigos, ela também se mostrou cega, pois enquanto combatia hereges, bruxas e infiéis, não percebeu o descontentamento dos futuros reformadores crescendo em suas entranhas. Talvez por acreditar que estivesse no fim da história, não considerou importante atentar para àqueles que seriam ou prometiam ser o futuro. Com efeito, nota-se que a Igreja foi para muito além do que podia controlar. Sua ambição de comandar os reinos terrenos a fez perder o monopólio sobre o além, pois com a Reforma, os Protestantes o trouxeram para este mundo, quebrando a hierarquia Católica entre a Terra e o Paraíso, e entre os Homens e Deus; a escuridão do fim do mundo havia chegado, ao menos para a supremacia espiritual da Igreja Romana. Porém, isso não contribuiu significativamente para acalmar as almas dos homens, pois doravante eles tinham dois Paraísos a pleitear e dois Infernos a temer.

REFERÊNCIAS E OBRAS CONSULTADAS

BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP. EDUSC, 2003.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico. 13.ed. Porto Alegre: [s.ed.], 2005.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2010.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

*Arlison Jorge de Souza Leite é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu trabalho se refere ao período Medieval, com ênfase no papel da Igreja Católica na construção ou reconstrução dos medos humanos, seja moldando as figuras de Deus e do Diabo ou propagando suas imagens do Inferno e do Paraíso, assim como suas representações do imaginário Medieval.








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