A Igreja Católica foi a instituição mais poderosa da Idade Média. Com seus desígnios emanando de Roma (por um relativo período de tempo também de Avignon, na França), atingia paróquias, dioceses e arquidioceses pelo mundo, influenciando o cotidiano, a literatura, as artes e, principalmente, os temores humanos referentes à salvação da alma. É sobre essa última instância que recai a análise do presente artigo, de como a Igreja, a salvadora dos homens, manipulou os medos destes e tomou posse de suas almas.
RESUMO
Arlison Jorge de Souza Leite*
Este
texto pretende analisar as motivações e estratégias utilizadas
pela Igreja para exercer um controle espiritual sobre a Cristandade.
Partindo do princípio de que, na sociedade medieval, a dimensão
espiritual se sobrepunha à material e que a Igreja era a única
habilitada a abrir as portas da salvação, ela acabou se colocando
em um lugar privilegiado, de onde podia, se não controlar, ao menos
direcionar os temores dos fiéis. Nesse sentido, este texto aponta
que a instituição eclesiástica estimulou e deu forma a um medo
supremo: o Diabo, que, para os fiéis, correspondia ao medo de si. A
partir destas premissas, discute-se como a Igreja, ao se posicionar
como salvadora dos homens, manipulou seus medos e tornou-se a senhora
das almas, buscando, constantemente, colocar o destino espiritual da
Cristandade sob seu comando.
Palavras-chave:
Igreja. Medo. Diabo. Controle. Salvação.
1. INTRODUÇÃO
Ao
longo da história humana, aqueles que controlam o que há de mais
precioso para uma sociedade também detêm, em certa medida, o poder
de mantê-la refém. Tal, também foi o caso do ocidente, ao longo
dos séculos medievais. Nessa sociedade, o espiritual prevalecia
sobre o material, logo, um dos grandes motivos para a Igreja ter se
tornado a senhora das almas foi o fato dela ter comandado uma
coletividade sobre a qual pesava a crença de que a salvação era o
grande objetivo da vida e, nesse caso, só havia um meio para tal:
enquadrar-se nos padrões de comportamentos exigidos pela instituição
eclesiástica.
Entretanto,
esse projeto pedagógico não foi de fácil implantação. Diante
disso, visando consolidar sua autoridade, a Igreja Católica tornou
heresia e perseguiu qualquer um que vivesse fora de sua doutrina,
cada vez mais rígida após a Reforma Gregoriana. Com o seu projeto
de sociedade, a Igreja tomou para si o monopólio da interpretação
dos textos sagrados e, consequentemente, o controle sobre a vida
espiritual da Cristandade. Assim, buscando controlar as almas
alheias, ela recorreu ao que havia de mais sensível dentro de cada
uma delas: o medo. Com esse propósito, a Igreja o intensificou,
primeiro por meio da pregação e das imagens, depois com o teatro
religioso, todos falando ou mostrando os suplícios do além para uma
sociedade que vivia sob ameaça constante.
Além
disso, deve-se ressaltar que dentre todos os temores medievais, o
medo do Diabo era, provavelmente, o mais aterrorizante. Isso refletia
a perda do controle da Cristandade por parte da Igreja que,
percebendo esse fenômeno, fez do “inimigo do gênero humano” um
monstro terrível que espreitava a qualquer um que ousasse atravessar
as fronteiras espirituais estabelecidas por ela. Dessa maneira, a
contraditória Teologia medieval pôs o homem demasiado à mercê das
ações do Diabo em sua vida cotidiana, além de pôr o inferno como
quase fazendo parte deste mundo, onde Lúcifer é o príncipe. Por
conseguinte, a proximidade entre o Diabo e os homens é assim tão
estreita que os labirintos Teológicos nos permitem dizer que o
“inimigo do gênero humano” conhece o homem melhor do que Deus,
isto é, suas virtudes e vícios, estes o Diabo intensifica, aquelas
ele corrompe. Dessa forma, um desafio irônico se impõe à vida do
homem medieval: este deveria, não necessariamente, evitar o inferno,
mas sair dele.
2. AS
TENTATIVAS DE CONTROLE: PERSEGUIÇÕES, SACRAMENTOS E O JUÍZO FINAL
Dança macabra do Convento dos Dominicanos de Bâle, na Suíça. Gravura de 1621 de Matthaeus Merian.
As
ações da Igreja em relação aos fiéis mostram que, a partir do
século XII, os terrores demoníacos, assim como as perseguições,
se intensificaram, acompanhando o crescimento dos próprios temores
da Igreja, seja em relação às heresias ou às seduções das
cidades. Essa mudança de postura por parte da instituição
eclesiástica foi observada por Delumeau: “A Igreja da Alta Idade
Média pleiteara no conjunto pela clemência e pela prudência em
relação aos culpados [...]” (1989, p. 350). Em seguida Delumeau
complementa:
[...]
sua atitude modificou-se a partir do final do século XII sob o
efeito de duas causas interligadas: de um lado, a afirmação da
heresia com os valdenses e os albigenses; de outro, uma vontade
crescente de cristianização que os pregadores oriundos das ordens
mendicantes exprimiram e atualizaram (1989, p. 351).
Quando
a Igreja não conseguia controlar o medo dos outros, os seus próprios
vinham à tona. Nesse sentido, seu maior medo era o de ser
questionada, portanto, a desobediência devia ser combatida, mesmo
entre aqueles que teoricamente poderiam ser seus aliados como “os
franciscanos ‘espirituais’ que se valiam de Joaquim de Flora
opuseram-se à riqueza e ao poder da Igreja e foram perseguidos pela
hierarquia” (DELUMEAU, 1989, p. 208), isto é, desobedecer à
Igreja era o pior que se podia fazer.
Além
disso, vendo-se diante da impossibilidade de dominar completamente os
pensamentos dos fiéis, a Igreja passou a controlar as ações deles
por meio da prática dos sacramentos, a partir de então,
constata-se
claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a
coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada
vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais
(nascimento, casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança
de salvação no outro mundo, sem o que a vida terrestre seria
privada de sentido cristão (BASCHET, 2006, p. 175).
A
partir de iniciativas dessa natureza, a Igreja se afirmou como o
único canal de salvação dos homens.
Uma
das mensagens que chamam a atenção na “pedagogia” utilizada
pela Igreja é que antes do fiel alcançar a salvação, ele teria
que passar pelas provações do Diabo, ou seja, tem-se nesse caso,
duas narrativas interligadas nas quais, antes das recompensas dos
justos, todos tinham que conhecer os castigos que existiam no além.
Isso fez com que, ao longo dos séculos medievais, a representação
do Juízo Final ficasse cada vez mais terrível para os olhos de quem
a via, não apenas na iconografia, mas também na literatura
religiosa. Ao analisar essa situação, Delumeau (1989) frisou que
essas representações estavam em toda parte: nas grandes igrejas
urbanas ou nas pequenas igrejas rurais, todos podiam e deviam vê-las.
Ainda no que diz respeito a essas representações, Delumeau destaca
sua finalidade: “A última prestação de contas revelava-se um
meio pedagógico eficaz nas mãos da igreja para reconduzir os
cristãos para o bom caminho” (1989, p. 211).
Como
afirmado anteriormente, se esses medos atingiram parte da população,
isso se deve, em grande medida, à difusão da “propaganda” que a
Igreja fazia de suas ameaças. A partir do século XII, a aglomeração
de pessoas nas cidades ajudou nesse objetivo (embora a sociedade
medieval continuasse, em sua maioria, rural) que antes do
“Renascimento Urbano” constituía trabalho mais difícil, pois
“era demasiadamente rural, demasiadamente fragmentado,
demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas
correntes de propaganda” (DELUMEAU, 1989, p. 216).
Para
um controle mais efetivo sobre a Cristandade, era necessário
instigar o medo nos fiéis, pois só se poderia oferecer salvação a
uma alma que estivesse em perigo, por isso, todos tinham que
acreditar no Diabo, inclusive, Delumeau (1989) observa que para não
ser acusado de heresia, além de não praticar “atos demoníacos”,
o cristão deveria, antes de tudo, acreditar que eles eram reais.
3. O
MEDO SUPREMO: O DIABO
A
Igreja Medieval trouxe o Diabo para a vida do homem do Ocidente e,
depois de alimentá-lo, jogou-o sobre toda a Cristandade. Essa
evolução do “inimigo do gênero humano” foi muito bem
demonstrada por Delumeau:
Satã
pouco aparecia na arte cristã primitiva e os afrescos das catacumbas
tinham-no ignorado. Uma de suas mais antigas figurações, nas
paredes da igreja de Baouit no Egito (século VI), o representa sob
os traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas,
mas sem feiúra e com um sorriso um pouco irônico [...] Lúcifer,
outrora criatura preferida de Deus, ainda não é um monstro
repulsivo (1989, p. 239).
Le
Goff (2005, p. 153) também dedicou suas análises ao estudo do
Diabo:
Na
Alta Idade Média, Satã não tem papel de primeiro plano, nem muito
menos uma personalidade de destaque. Ele aparece com nossa Idade
Média, e se afirma no século XI, sendo uma criação da sociedade
feudal. Com seus sequazes, os anjos rebeldes, ele é a própria
imagem do vassalo pérfido, do traidor,
assim,
Satã fazia sua grande entrada em nossa Civilização.
Entretanto,
a concepção que o povo tinha da figura do Diabo não correspondia,
necessariamente, àquela representada pela Igreja, porém, isso não
a impediu de criar sua imagem do “inimigo do gênero humano” e
difundi-la amplamente:
Durante
longos séculos da história ocidental, as pessoas instruídas
consideraram de seu dever fazer os ignorantes conhecerem a verdadeira
identidade do maligno por meio de sermões, de catecismos, de obras
de demonologia e de acusações. Já santo Agostinho esforçara-se em
demonstrar aos pagãos de seu tempo que não existem demônios bons
(DELUMEAU, 1989, p. 249).
Ainda
a esse respeito, Delumeau expõe uma contradição Teológica:
Jesus
chamara Satã de ‘príncipe deste mundo’ [...] São Paulo fora
ainda mais longe, chamando Satã de ‘o deus deste mundo’ [...]
Jesus e são Paulo não queriam designar a terra onde vivem os homens
nem a humanidade inteira, mas o reino do mal [...] Só deste mundo é
que Satã é rei [...] mas os homens de Igreja [...] estenderam à
totalidade da criação o império do maligno (1989, p. 259).
A
partir de tal iniciativa, ao colocar a cristandade em uma posição
suscetível à influência demoníaca, a Igreja conseguiu colocar
esse medo dentro dos fiéis, isto é, conseguiu fazê-los terem medo
de si mesmos. Delumeau explica a razão de tal medo: “Ele [o Diabo]
pode não só investir contra os bens terrestres e o próprio corpo,
como também pode possuir um ser humano sem o seu consentimento, que
desde então se encontra desdobrado” (1989, p. 242). Sendo assim, o
medo do Diabo se tornou o mais eficiente de todos, pois se
considerarmos os piores temores medievais, da mulher ao infiel, todos
poderiam ser evitados caso fosse necessário, porém jamais se
poderia fugir de si mesmo.
Evidentemente
que esse medo, ao mesmo tempo particular e coletivo, encontrava
sustentação na vida cotidiana. Em seu dia a dia, o homem medieval,
sobretudo aquele pertencente às classes mais pobres, vivia muito
distante de qualquer traço do Paraíso, lugar de riquezas diversas,
paz e vida eterna, embora esse Paraíso lhe fosse mostrado nas
pinturas. Por outro lado, esse mesmo homem não vivia muito distante
dos horrores do Inferno, tais como: as doenças, a fome e a morte.
Nesse sentido, o Inferno apenas seria o lugar onde essas desgraças
seriam perpétuas. Nessa ironia medieval, o homem teme o que já
conhece.
4. CONCLUSÃO
Deve-se
reconhecer à Igreja sua característica de hábil manipuladora dos
medos humanos, alguns ela engendrou nas mentes e corações, aqueles
que já existiam ela remodelou e redirecionou ao seu favor, mas,
antes de manipular os temores alheios, ela precisava eliminar os
seus. Com esse propósito, ela reuniu e simplificou tudo o que
desconhecia ou temia, assim como toda diversidade existente em seus
domínios e deu-lhes o nome de Diabo. Nesse cenário, a instituição
eclesiástica tornou-se mais obcecada com a figura de Satã do que
qualquer “bruxa” jamais seria. Incapaz de sentir medo sozinha, a
Igreja projetou seus temores sobre toda a Cristandade, tornando a
salvação um projeto difícil de se realizar, pois para o homem
medieval, o demônio estava sempre mais próximo que os anjos. Desse
momento em diante, surge a necessidade imperativa de vigilância
constante.
Além
disso, deve-se notar que ao longo da Idade Média, a Igreja não
conseguiu sequer aproximar-se do Paraíso com suas tentativas de
pacificação da Cristandade, mas é dela, em grande parte, a
paradoxal responsabilidade de trazer o Inferno sobre a terra, através
da Inquisição, que em suas perseguições e torturas foi,
certamente, tão criativa quanto os demônios seriam no Inferno.
Entretanto,
ao mesmo tempo em que a Igreja se mostrou perspicaz e implacável
contra seus inimigos, ela também se mostrou cega, pois enquanto
combatia hereges, bruxas e infiéis, não percebeu o descontentamento
dos futuros reformadores crescendo em suas entranhas. Talvez por
acreditar que estivesse no fim da história, não considerou
importante atentar para àqueles que seriam ou prometiam ser o
futuro. Com efeito, nota-se que a Igreja foi para muito além do que
podia controlar. Sua ambição de comandar os reinos terrenos a fez
perder o monopólio sobre o além, pois com a Reforma, os
Protestantes o trouxeram para este mundo, quebrando a hierarquia
Católica entre a Terra e o Paraíso, e entre os Homens e Deus; a
escuridão do fim do mundo havia chegado, ao menos para a supremacia
espiritual da Igreja Romana. Porém, isso não contribuiu
significativamente para acalmar as almas dos homens, pois doravante
eles tinham dois Paraísos a pleitear e dois Infernos a temer.
REFERÊNCIAS
E OBRAS CONSULTADAS
BASCHET,
Jérôme. A
civilização Feudal:
do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
DELUMEAU,
Jean. História
do medo no Ocidente:
1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
DELUMEAU,
Jean. O
pecado e o medo:
a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP. EDUSC,
2003.
DELUMEAU,
Jean. O
que sobrou do paraíso?
São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
FURASTÉ,
Pedro Augusto. Normas
Técnicas para o Trabalho Científico.
13.ed. Porto Alegre: [s.ed.], 2005.
LAKATOS,
Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos
de metodologia científica.
7.ed. São Paulo: Atlas, 2010.
LE
GOFF, Jacques. A
civilização do ocidente medieval.
Bauru, SP: EDUSC, 2005.
LE
GOFF, Jacques. O
Deus da Idade Média:
conversas com Jean-Luc Pouthier. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
*Arlison Jorge de Souza Leite é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu trabalho se refere ao período Medieval, com ênfase no papel da Igreja Católica na construção ou reconstrução dos medos humanos, seja moldando as figuras de Deus e do Diabo ou propagando suas imagens do Inferno e do Paraíso, assim como suas representações do imaginário Medieval.
CRÉDITO DA IMAGEM:
lamortdanslart.com
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