sábado, 9 de dezembro de 2017

A Igreja Medieval: De salvadora dos homens à senhora das almas

A Igreja Católica foi a instituição mais poderosa da Idade Média. Com seus desígnios emanando de Roma (por um relativo período de tempo também de Avignon, na França), atingia paróquias, dioceses e arquidioceses pelo mundo, influenciando o cotidiano, a literatura, as artes e, principalmente, os temores humanos referentes à salvação da alma. É sobre essa última instância que recai a análise do presente artigo, de como a Igreja, a salvadora dos homens, manipulou os medos destes e tomou posse de suas almas.

RESUMO
Arlison Jorge de Souza Leite*

Este texto pretende analisar as motivações e estratégias utilizadas pela Igreja para exercer um controle espiritual sobre a Cristandade. Partindo do princípio de que, na sociedade medieval, a dimensão espiritual se sobrepunha à material e que a Igreja era a única habilitada a abrir as portas da salvação, ela acabou se colocando em um lugar privilegiado, de onde podia, se não controlar, ao menos direcionar os temores dos fiéis. Nesse sentido, este texto aponta que a instituição eclesiástica estimulou e deu forma a um medo supremo: o Diabo, que, para os fiéis, correspondia ao medo de si. A partir destas premissas, discute-se como a Igreja, ao se posicionar como salvadora dos homens, manipulou seus medos e tornou-se a senhora das almas, buscando, constantemente, colocar o destino espiritual da Cristandade sob seu comando.
Palavras-chave: Igreja. Medo. Diabo. Controle. Salvação.

1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história humana, aqueles que controlam o que há de mais precioso para uma sociedade também detêm, em certa medida, o poder de mantê-la refém. Tal, também foi o caso do ocidente, ao longo dos séculos medievais. Nessa sociedade, o espiritual prevalecia sobre o material, logo, um dos grandes motivos para a Igreja ter se tornado a senhora das almas foi o fato dela ter comandado uma coletividade sobre a qual pesava a crença de que a salvação era o grande objetivo da vida e, nesse caso, só havia um meio para tal: enquadrar-se nos padrões de comportamentos exigidos pela instituição eclesiástica.
Entretanto, esse projeto pedagógico não foi de fácil implantação. Diante disso, visando consolidar sua autoridade, a Igreja Católica tornou heresia e perseguiu qualquer um que vivesse fora de sua doutrina, cada vez mais rígida após a Reforma Gregoriana. Com o seu projeto de sociedade, a Igreja tomou para si o monopólio da interpretação dos textos sagrados e, consequentemente, o controle sobre a vida espiritual da Cristandade. Assim, buscando controlar as almas alheias, ela recorreu ao que havia de mais sensível dentro de cada uma delas: o medo. Com esse propósito, a Igreja o intensificou, primeiro por meio da pregação e das imagens, depois com o teatro religioso, todos falando ou mostrando os suplícios do além para uma sociedade que vivia sob ameaça constante.
Além disso, deve-se ressaltar que dentre todos os temores medievais, o medo do Diabo era, provavelmente, o mais aterrorizante. Isso refletia a perda do controle da Cristandade por parte da Igreja que, percebendo esse fenômeno, fez do “inimigo do gênero humano” um monstro terrível que espreitava a qualquer um que ousasse atravessar as fronteiras espirituais estabelecidas por ela. Dessa maneira, a contraditória Teologia medieval pôs o homem demasiado à mercê das ações do Diabo em sua vida cotidiana, além de pôr o inferno como quase fazendo parte deste mundo, onde Lúcifer é o príncipe. Por conseguinte, a proximidade entre o Diabo e os homens é assim tão estreita que os labirintos Teológicos nos permitem dizer que o “inimigo do gênero humano” conhece o homem melhor do que Deus, isto é, suas virtudes e vícios, estes o Diabo intensifica, aquelas ele corrompe. Dessa forma, um desafio irônico se impõe à vida do homem medieval: este deveria, não necessariamente, evitar o inferno, mas sair dele.

2. AS TENTATIVAS DE CONTROLE: PERSEGUIÇÕES, SACRAMENTOS E O JUÍZO FINAL
Dança macabra do Convento dos Dominicanos de Bâle, na Suíça. Gravura de 1621 de Matthaeus Merian.

As ações da Igreja em relação aos fiéis mostram que, a partir do século XII, os terrores demoníacos, assim como as perseguições, se intensificaram, acompanhando o crescimento dos próprios temores da Igreja, seja em relação às heresias ou às seduções das cidades. Essa mudança de postura por parte da instituição eclesiástica foi observada por Delumeau: “A Igreja da Alta Idade Média pleiteara no conjunto pela clemência e pela prudência em relação aos culpados [...]” (1989, p. 350). Em seguida Delumeau complementa:
[...] sua atitude modificou-se a partir do final do século XII sob o efeito de duas causas interligadas: de um lado, a afirmação da heresia com os valdenses e os albigenses; de outro, uma vontade crescente de cristianização que os pregadores oriundos das ordens mendicantes exprimiram e atualizaram (1989, p. 351).
Quando a Igreja não conseguia controlar o medo dos outros, os seus próprios vinham à tona. Nesse sentido, seu maior medo era o de ser questionada, portanto, a desobediência devia ser combatida, mesmo entre aqueles que teoricamente poderiam ser seus aliados como “os franciscanos ‘espirituais’ que se valiam de Joaquim de Flora opuseram-se à riqueza e ao poder da Igreja e foram perseguidos pela hierarquia” (DELUMEAU, 1989, p. 208), isto é, desobedecer à Igreja era o pior que se podia fazer.
Além disso, vendo-se diante da impossibilidade de dominar completamente os pensamentos dos fiéis, a Igreja passou a controlar as ações deles por meio da prática dos sacramentos, a partir de então,
constata-se claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais (nascimento, casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança de salvação no outro mundo, sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão (BASCHET, 2006, p. 175).
A partir de iniciativas dessa natureza, a Igreja se afirmou como o único canal de salvação dos homens.
Uma das mensagens que chamam a atenção na “pedagogia” utilizada pela Igreja é que antes do fiel alcançar a salvação, ele teria que passar pelas provações do Diabo, ou seja, tem-se nesse caso, duas narrativas interligadas nas quais, antes das recompensas dos justos, todos tinham que conhecer os castigos que existiam no além. Isso fez com que, ao longo dos séculos medievais, a representação do Juízo Final ficasse cada vez mais terrível para os olhos de quem a via, não apenas na iconografia, mas também na literatura religiosa. Ao analisar essa situação, Delumeau (1989) frisou que essas representações estavam em toda parte: nas grandes igrejas urbanas ou nas pequenas igrejas rurais, todos podiam e deviam vê-las. Ainda no que diz respeito a essas representações, Delumeau destaca sua finalidade: “A última prestação de contas revelava-se um meio pedagógico eficaz nas mãos da igreja para reconduzir os cristãos para o bom caminho” (1989, p. 211).
Como afirmado anteriormente, se esses medos atingiram parte da população, isso se deve, em grande medida, à difusão da “propaganda” que a Igreja fazia de suas ameaças. A partir do século XII, a aglomeração de pessoas nas cidades ajudou nesse objetivo (embora a sociedade medieval continuasse, em sua maioria, rural) que antes do “Renascimento Urbano” constituía trabalho mais difícil, pois “era demasiadamente rural, demasiadamente fragmentado, demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas correntes de propaganda” (DELUMEAU, 1989, p. 216).
Para um controle mais efetivo sobre a Cristandade, era necessário instigar o medo nos fiéis, pois só se poderia oferecer salvação a uma alma que estivesse em perigo, por isso, todos tinham que acreditar no Diabo, inclusive, Delumeau (1989) observa que para não ser acusado de heresia, além de não praticar “atos demoníacos”, o cristão deveria, antes de tudo, acreditar que eles eram reais.

3. O MEDO SUPREMO: O DIABO
A Igreja Medieval trouxe o Diabo para a vida do homem do Ocidente e, depois de alimentá-lo, jogou-o sobre toda a Cristandade. Essa evolução do “inimigo do gênero humano” foi muito bem demonstrada por Delumeau:
Satã pouco aparecia na arte cristã primitiva e os afrescos das catacumbas tinham-no ignorado. Uma de suas mais antigas figurações, nas paredes da igreja de Baouit no Egito (século VI), o representa sob os traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas, mas sem feiúra e com um sorriso um pouco irônico [...] Lúcifer, outrora criatura preferida de Deus, ainda não é um monstro repulsivo (1989, p. 239).
Le Goff (2005, p. 153) também dedicou suas análises ao estudo do Diabo:
Na Alta Idade Média, Satã não tem papel de primeiro plano, nem muito menos uma personalidade de destaque. Ele aparece com nossa Idade Média, e se afirma no século XI, sendo uma criação da sociedade feudal. Com seus sequazes, os anjos rebeldes, ele é a própria imagem do vassalo pérfido, do traidor,
assim, Satã fazia sua grande entrada em nossa Civilização.
Entretanto, a concepção que o povo tinha da figura do Diabo não correspondia, necessariamente, àquela representada pela Igreja, porém, isso não a impediu de criar sua imagem do “inimigo do gênero humano” e difundi-la amplamente:
Durante longos séculos da história ocidental, as pessoas instruídas consideraram de seu dever fazer os ignorantes conhecerem a verdadeira identidade do maligno por meio de sermões, de catecismos, de obras de demonologia e de acusações. Já santo Agostinho esforçara-se em demonstrar aos pagãos de seu tempo que não existem demônios bons (DELUMEAU, 1989, p. 249).
Ainda a esse respeito, Delumeau expõe uma contradição Teológica:
Jesus chamara Satã de ‘príncipe deste mundo’ [...] São Paulo fora ainda mais longe, chamando Satã de ‘o deus deste mundo’ [...] Jesus e são Paulo não queriam designar a terra onde vivem os homens nem a humanidade inteira, mas o reino do mal [...] Só deste mundo é que Satã é rei [...] mas os homens de Igreja [...] estenderam à totalidade da criação o império do maligno (1989, p. 259).
A partir de tal iniciativa, ao colocar a cristandade em uma posição suscetível à influência demoníaca, a Igreja conseguiu colocar esse medo dentro dos fiéis, isto é, conseguiu fazê-los terem medo de si mesmos. Delumeau explica a razão de tal medo: “Ele [o Diabo] pode não só investir contra os bens terrestres e o próprio corpo, como também pode possuir um ser humano sem o seu consentimento, que desde então se encontra desdobrado” (1989, p. 242). Sendo assim, o medo do Diabo se tornou o mais eficiente de todos, pois se considerarmos os piores temores medievais, da mulher ao infiel, todos poderiam ser evitados caso fosse necessário, porém jamais se poderia fugir de si mesmo.
Evidentemente que esse medo, ao mesmo tempo particular e coletivo, encontrava sustentação na vida cotidiana. Em seu dia a dia, o homem medieval, sobretudo aquele pertencente às classes mais pobres, vivia muito distante de qualquer traço do Paraíso, lugar de riquezas diversas, paz e vida eterna, embora esse Paraíso lhe fosse mostrado nas pinturas. Por outro lado, esse mesmo homem não vivia muito distante dos horrores do Inferno, tais como: as doenças, a fome e a morte. Nesse sentido, o Inferno apenas seria o lugar onde essas desgraças seriam perpétuas. Nessa ironia medieval, o homem teme o que já conhece.
4. CONCLUSÃO
Deve-se reconhecer à Igreja sua característica de hábil manipuladora dos medos humanos, alguns ela engendrou nas mentes e corações, aqueles que já existiam ela remodelou e redirecionou ao seu favor, mas, antes de manipular os temores alheios, ela precisava eliminar os seus. Com esse propósito, ela reuniu e simplificou tudo o que desconhecia ou temia, assim como toda diversidade existente em seus domínios e deu-lhes o nome de Diabo. Nesse cenário, a instituição eclesiástica tornou-se mais obcecada com a figura de Satã do que qualquer “bruxa” jamais seria. Incapaz de sentir medo sozinha, a Igreja projetou seus temores sobre toda a Cristandade, tornando a salvação um projeto difícil de se realizar, pois para o homem medieval, o demônio estava sempre mais próximo que os anjos. Desse momento em diante, surge a necessidade imperativa de vigilância constante.
Além disso, deve-se notar que ao longo da Idade Média, a Igreja não conseguiu sequer aproximar-se do Paraíso com suas tentativas de pacificação da Cristandade, mas é dela, em grande parte, a paradoxal responsabilidade de trazer o Inferno sobre a terra, através da Inquisição, que em suas perseguições e torturas foi, certamente, tão criativa quanto os demônios seriam no Inferno.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a Igreja se mostrou perspicaz e implacável contra seus inimigos, ela também se mostrou cega, pois enquanto combatia hereges, bruxas e infiéis, não percebeu o descontentamento dos futuros reformadores crescendo em suas entranhas. Talvez por acreditar que estivesse no fim da história, não considerou importante atentar para àqueles que seriam ou prometiam ser o futuro. Com efeito, nota-se que a Igreja foi para muito além do que podia controlar. Sua ambição de comandar os reinos terrenos a fez perder o monopólio sobre o além, pois com a Reforma, os Protestantes o trouxeram para este mundo, quebrando a hierarquia Católica entre a Terra e o Paraíso, e entre os Homens e Deus; a escuridão do fim do mundo havia chegado, ao menos para a supremacia espiritual da Igreja Romana. Porém, isso não contribuiu significativamente para acalmar as almas dos homens, pois doravante eles tinham dois Paraísos a pleitear e dois Infernos a temer.

REFERÊNCIAS E OBRAS CONSULTADAS

BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP. EDUSC, 2003.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico. 13.ed. Porto Alegre: [s.ed.], 2005.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2010.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

*Arlison Jorge de Souza Leite é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu trabalho se refere ao período Medieval, com ênfase no papel da Igreja Católica na construção ou reconstrução dos medos humanos, seja moldando as figuras de Deus e do Diabo ou propagando suas imagens do Inferno e do Paraíso, assim como suas representações do imaginário Medieval.








CRÉDITO DA IMAGEM:
lamortdanslart.com

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