No artigo de hoje será abordada a construção da figura física do Diabo, entidade sobrenatural marcante nas tradições cristãs do Ocidente e do Oriente, desde o Judaísmo até o Cristianismo medieval entre os século XI e XII, quando separa-se o bem do mal e é "dado" um corpo a esse ser.
O CORPO DO DIABO: A CONSTRUÇÃO FÍSICA DA FIGURA DO DEMÔNIO NO OCIDENTE
Wenderson Macedo de Lima*
O presente artigo tem como objetivo discutir sobre a construção da figura física do Diabo, onde ela se origina, suas transformações no decorrer da religião judaica e no cristianismo medieval entre os séculos XI e XII.
1. Diabo e diabos
Inferno. Detalhe de um mosaico do Batistério de São João. Florença, Itália, 1265-1270. Obra de Coppo di Marcovaldo (1225-1276). No centro, o Diabo, representado em sua forma animalesca e grotesca, torturando os que foram enviados para seus domínios.
O Diabo, o ser das trevas, o senhor das profundezas, personificação do mal, o destruidor, o oposto daquilo que é correto, o pai da mentira, o príncipe deste mundo, aquele que é contrário à natureza divina. Sem dúvida ouvimos falar muito sobre o diabo e de como ele é, como age e quais suas intenções nesta terra. Talvez é o ser que se faz presente na vida do ser humano mais do que a própria figura divina de Deus. Sempre quando tentamos imaginar Deus nos deparamos com um senhor de idade, cabelos brancos e barbas compridas, sentado sobre um trono com uma coroa controlando o universo, de fato uma figura resplandecente e quase inimaginável, mas e o diabo?
Quando paramos para pensar na figura do diabo, o imaginamos como um ser monstruoso, de aparência malévola e horrenda. Chifres pontudos, garras afiadas, face desfigurada semelhante aos monstros que vemos nas telas de cinema, de certo uma aparência não agradável aos nossos olhos.
Hoje o diabo está presente no dia a dia daqueles que possuem crenças que os levam a pensar na figura do diabo como um ser de outro mundo, com uma aparência monstruosa que está sempre à espreita nos observando e procurando realizar suas proezas maléficas. É constante a presença do diabo no vocabulário e no imaginário da sociedade como o causador das desgraças deste mundo, e de fato podemos dizer que ele está a cumprir o seu papel.
Um dos principais, senão o mais importante veiculador da figura do diabo, é o Cristianismo, que desde sua entrada no Ocidente, trouxe consigo a figura do mal como participante e sendo necessário para que houvesse um sentido para que também Deus existisse. Perpassando pela Idade Média, onde podemos considerar o nascimento da figura grotesca e diabólica como conhecemos, cria-se um imaginário do diabo que perdura até hoje, ou poderíamos dizer "diabos", que é fortalecida com a literatura, as artes e a construção do discurso das religiões onde eles estão sempre presentes.
As questões a serem levantadas sobre a construção da aparência dos diabos na Idade Média são: Como surge a figura física dos Diabos? Qual a sua função dentro do imaginário da sociedade medieval a partir do século XII? Dentre essas questões analisaremos a importância do diabo na sociedade medieval, sua construção física e como ela se estende por todo o Ocidente.
2. A definição e o papel do Diabo
O diabo de qual falamos está presente na sociedade desde o advento do Cristianismo no Ocidente, teve seu surgimento no Judaísmo, mas com uma participação não muito bem definida fisicamente. Não sabemos como seria a figura de satã no Antigo Testamento, o que temos é a representação do mal no aspecto espiritual, algo incorpóreo, comparado à mesma figura dos anjos. O termo satã (anunciador) representa a mesma função dos anjos no Antigo Testamento, mas que não define realmente uma aparência corpórea de um ser ou algo físico ligado às representações que temos do diabo medieval. O bem e o mal no Antigo Testamento estão relacionados apenas a figura de Deus, como aquele que abençoa e aquele que castiga e traz desgraças ao povo.
A passagem mais conhecida da figura do diabo no Antigo Testamento seria sua aparição no livro de Jó, onde Satã assume o papel de prestador de contas com Deus e que tem acesso livre a sua presença, algo meio que inconcebível se formos analisar o diabo astuto que surge na Idade Média e nos percorre.
No Novo Testamento, podemos até ver uma presença maior de Satã, mas ainda não é relevante e até mesmo os demônios os quais Jesus expulsou não possuem definições precisas. Com o crescimento e popularização do Cristianismo, há uma necessidade de uma separação entre aquilo que é o bem do mal. É quando o mal se personifica e torna-se mais próximo, que surge o diabo. Cada vez mais ganhando participação na vida da cristandade medieval, o diabo passa a ser o nome e rosto da revolta contra Deus.
Apesar do diabo ser muitas vezes quase o oposto do divino, seu poder é de forma dado e controlado por Deus, o demônio se torna importante para que o mal possa ser desvinculado do Deus bondoso, assumindo um co-protagonismo na cristandade a partir do século XI, facilitando o desenvolvimento de uma mentalidade favorável ao que já se chamou a primeira grande explosão diabólica¹
Mas devido a essa separação, o diabo passa a assumir características peculiares, cria-se um corpo e uma forma, uma região onde habita, o mal torna-se mais palpável, não algo mais espiritualizado, mas agora causado por um ser capaz de assumir várias formas humanas e animalescas. Tudo o que aqui é oposto a Deus, é jogado para a figura do diabo a partir do século XI.
3. Características físicas do diabo
Se tratando das características físicas que surgem no século XI, começamos a olhar o diabo com um aspecto mais grotesco e animalesco. Primeiramente, os diabos ou demônios podem assumir várias formas, como de um humano, por exemplo, com o intuito de seduzir homens e mulheres e estando sempre ligados ao ato sexual. Mas como um ser espiritual passa a ter um corpo?
O fato é que, uma vez que os anjos possuem um corpo etéreo, composto de ar e luz, os anjos caídos possuem a mesma substância. Segundo Santo Agostinho (De divinatione daemonum, III, 7), os demônios pelo fato de possuírem corpos etéreos, tem faculdades extraordinárias de percepção e são capazes de se transportar através do ar com uma velocidade incomparável².
Essa luta entre o bem e o mal ganha força, e o diabo e seus demônios são os que mais recebem soldados para seu exército. Todos os deuses das religiões pagãs foram considerados demônios pela Igreja, e muitas dessas religiões pagãs se refugiavam nos campos, longe das cidades, onde praticavam suas superstições. Surgem então as figuras animalescas e grotescas. Demônios com corpos metade humano, metade besta, dentes e garras como de feras selvagens, rabos como de animais ferozes e predadores, cascos fundidos e chifres, causando aversão ao que era obra do criador.
Com o poder absoluto do Cristianismo, o mundo passou a se dividir em duas partes: aqueles que cultivavam os bens e as virtudes e aqueles que cultivavam o mal e seus vícios. Servidores de Deus e servidores do Demônio; O diabo assume a forma de todas as entidades de ordem secundária do imaginário na Antiguidade: harpias e sereias, sátiros e centauros, gigantes monstruosos e serpentes aterrorizantes, aproveitando toda essa carga de horror que nelas havia imprimido a tradição pagã³.
É aí que surge essa representação do diabo a qual conhecemos. Pensaremos agora como ocorreram essas atribuições a Satã e seus demônios. Acredito que temos algo extremamente importante que faz a ligação entre o pensamento popular das tradições pagãs, ainda enraizadas na mentalidade das cristandade medieval, que é o teatro.
4. Desconstruindo a aparência monstruosa
O teatro medieval do século XII foi uma das veiculações mais importantes da aparência física do diabo e seus demônios. Nos espetáculos o diabo ainda exercia uma aparência cômica, subalterna, não reinava absoluto. Assim, vários aspectos são considerados e apresentados por Russel:
A ligação mais íntima entre o diabo da arte e o diabo da literatura é o demônio do teatro. A elaborada literatura de visão do inferno influenciou as artes de representação tanto quanto Dante, e algumas pinturas são virtualmente ilustrações de tais visões. Arte e teatro influenciam-se pelo menos no fim do século XII quando o teatro vernáculo começou a ser popular. A representação do Diabo no teatro foi derivada de impressões visuais e literárias, e em troca artistas que tinham visto produções de teatro modificaram a própria visão deles. O pequeno e preto diabinho que não pôde ser representado facilmente no teatro declinou no final da Idade Média. O desejo de impressionar as audiências com fantasias grotescas pode ter encorajado o desenvolvimento do grotesco na arte, fantasias de animais com chifres, rabos, presa, casco rachado e asas; fantasias de monstro, meio-animal e meio-humano; e fantasias com faces de nádegas, barriga ou joelhos. Máscaras, luvas com garras e dispositivos para projetar fumaça pela face do demônio também eram usados (RUSSEL: 2003, p. 245-6).
É nesse momento que surge a preocupação e sistematização da visão e ação do diabo pela Igreja, onde a arte, a cultura popular e religião colaboram para que a personificação do diabo torne-se concreta. A representação dos demônios na arte e na cultura veicula-se por todo o Ocidente, construindo um imaginário que permanece até os nossos dias.
Era realmente necessário que o diabo se tornasse palpável para dar sentido ao Cristianismo sobre a relação entre o bem e o mal? Podemos responder essa pergunta pensando no paganismo como um dos principais veiculadores da figura diabólica. A figura do diabo sofre uma organização para que se compreenda e se tenha um pensamento único sobre toda a cristandade, e a Igreja se preocupa com isso, cabendo a ela estipular e unir tudo aquilo que estava no imaginário, sendo reproduzido nas artes, e personificar o diabo, desligado completamente o mal da figura divina de Deus.
Hoje o diabo ainda é veiculado no imaginário Ocidental e se mostra ativo pelo discurso do Cristianismo, pois o diabo faz parte dele e é personificado por ele, a diferença é que agora parece mais perceptível que o diabo e o homem resolveram suas pendências, e agora o mal está presente nos dois seres, de forma literal com a figura do diabo e de forma real no próprio ser humano.
NOTAS:
¹ NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 9.
² NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 29.
³ NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 39.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2005.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Vol 1, Edusc, 2006.
NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. Bauru, SP: Edusc, 2002.
RUSSEL, Jeffrey Burton. O Lúcifer e o Diabo na Idade Média. SP: Editora Madras, 2003.
Magalhães, ACM; BRANDÃO, E. O Diabo na arte e no imaginário Ocidental. s.d.
* Wenderson Lima é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atua nas áreas do Ensino de História, História Oral e História Medieval. Participa ativamente do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência.
E-mail: wendersonwml@gmail.com
* Wenderson Lima é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atua nas áreas do Ensino de História, História Oral e História Medieval. Participa ativamente do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência.
E-mail: wendersonwml@gmail.com
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org
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ResponderExcluirNote que tal personagem é cosntruido em teoria em face da maniqueísmo religioso, e sua cosntrução semiológica se dá em face do contato dos cristianismos com outras religiões e da disputa política que se cria entorno da pretensa salvação do homem
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