quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A Igreja Católica e a regulamentação das atividades sexuais na Idade Média

As atividades sexuais fazem parte do campo da vida privada. Pelo menos, é assim que se pensa. No período medieval, onde não existia uma delimitação clara entre o público e o privado, a principal instituição da época, a Igreja, conseguia regular as atividades sexuais de seus seguidores, estabelecendo valores como a castidade, o matrimônio e o sexo para procriação. No presente artigo, a partir de uma discussão historiográfica entre autores como Jacques Le Goff e Jeffrey Richards, buscou-se apresentar as formas como a Igreja Católica regulamentava e orientava as atividades sexuais de seus fiéis.

RESUMO
Thaieny Gama*
Este artigo tem como objetivo apresentar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média. Além disso, aponta as penitências para os pecados sexuais desse período. No primeiro momento se destacam a relação dos historiadores com a temática da sexualidade. Em seguida, os valores de virgindade, castidade e matrimônio são apontados como elementos argumentativos para as regulamentações das práticas sexuais dos fiéis. Por fim, são abordadas as punições para os crimes sexuais. Na conclusão ressalta-se a relação da sexualidade da Idade Média com a contemporaneidade destacando as mentalidades ainda constituídas na sociedade.
Palavras-chave: Sexualidade – Igreja Católica – Idade Média

INTRODUÇÃO

A sexualidade na Idade Média nunca foi bem expressada como hoje conhecemos e falamos. A Igreja Católica fortemente presente na vida dos fiéis e na dissipação da moral no comportamento social, coibiu as discussões quanto às atividades sexuais e regulamentou orientações para as relações.
Atualmente falar de sexualidade é comum e não é reprimido, porém, se conhecermos as orientações da Igreja Católica na Idade Média, haverá grandes discordâncias e questionamentos quanto às normas estabelecidas em lei.
Diante disso, não podemos descartar quem escreveu essas regulamentações: o clero era os poucos letrados daquele período. E seria muito conivente repudiar os desejos sexuais com essas normas e indicá-las aos fiéis. Le Goff e Truong (2006) reforçam essa afirmativa destacando que “os documentos em que se baseiam os historiadores refletem somente o pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos que, devido a seus votos de castidade, eram largamente versados no ascetismo.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41)
Com isso, os ensinamentos cristãos em relação à sexualidade estavam voltados para a manutenção da ordem divina através dos valores da virgindade, da castidade e do matrimônio, onde as atividades sexuais seriam apenas para os objetivos de reprodução e não por meramente saciar o desejo carnal.
“O sexo não deveria ser usado por mero prazer. Segundo esta definição, todo sexo fora do casamento, tanto heterossexual quanto homossexual, era pecado, e, dentro do casamento, só deveria ser usado para fins de procriação.” (RICHARDS, 1993, p. 34)
Contudo, o controle da Igreja Católica aos fiéis para manutenção da ordem divina, seria garantido com as confissões e consequentemente as atribuições às penitências para os crimes sexuais. Dessa forma, o individuo se livraria da culpa do pecado e a Igreja Católica seguraria o fluxo natural da vida por meio de suas orientações.
Por isso, esse artigo tem como objetivo destacar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média e apresentar as penitências que cada crime se submeteria.

REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA

'Le-livre-de-Lancelot-du-Lac', França, circa 1401-1425.

Devido à expansão do cristianismo no período medieval, a instituição Igreja Católica disseminou e refletiu os valores da doutrina cristã. Dentre as diversas orientações e regulamentações, os atos sexuais também foram prescritos com base no poder do impulso sexual de cada indivíduo.
De acordo com Richards (1993), os pensadores cristãos desse período no geral encaravam o sexo com uma ação desnecessária que confundiria a vocação de uma pessoa: “a busca da perfeição espiritual, que é, por definição, não sexual e transcende a carne”. (RICHARDS, 1993, p. 34)
Com isso, os ensinamentos cristãos eram voltados para a prática do celibato e a virgindade como ações de elevação da vida da pessoa. Na questão da sexualidade, os preceitos tinham como primícias apenas a reprodução, porém, essa indicação era voltada apenas para os casados. “A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar”. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41). O sexo fora do casamento era considerado pecado.
Por isso, Leal (2010) apresenta três valores que a Igreja Católica ressaltava aos fiéis: a virgindade, a castidade e o matrimônio. A virgindade era uma condução a imitação à vida de Maria e de Jesus. Maria como exemplo de serviço a Deus e Jesus como verbo que virou carne, perfeição de Deus. A castidade estava voltada ao seguimento das vidas dos santos na perspectiva de afastar-se do pecado e de aproximar-se de Deus. E o matrimônio era visto como sacramento que permitia a relação sexual do homem com a mulher da forma correta e para a perpetuação da vida na terra, considerada graça divina.
Diante disso, a Igreja Católica apresenta regulamentações para as práticas sexuais. Le Goff e Truong (2006) afirmam que nas relações sexuais a mulher deve ser a passiva e o homem o ativo. Assim, o corpo da mulher casada pertenceria ao seu marido. Essa afirmação é reforçada mesmo quando os teólogos apresentam a ideia sobre a relação de igualdade entre o homem e a mulher a partir da criação de Adão e Eva.
Richards (1993) ressalta que a posição apropriada para a relação sexual era a “posição do missionário, frente a frente com o homem por cima e a mulher embaixo” (RICHARDS, 1993, p. 40)
Além disso, a Igreja Católica proibia as relações sexuais em dias de festas religiosas e jejuns. Conforme Klapisch-Zuber (1989) a Igreja estabeleceu um calendário para os momentos que o casal poderia ter relações sexuais. As proibições eram para o momento da quaresma, do advento, páscoa, pentecostes e outros dias santos. Durante a gravidez da mulher, do aleitamento, dos quarenta dias após o parto e das regras menstruais, o casal também era proibido às práticas sexuais.
Le Goff e Truong (2006) afirmam que qualquer tentativa contraceptiva era pecado. Richards (1993) menciona que embora não haja especificação, o sexo anal e oral era considerado contraceptivo. Outras práticas eram conhecidas na Idade Média e denunciadas pela Igreja Católica:
Várias formas de contracepção, fossem elas efetivas ou não, eram conhecidas e presumivelmente praticadas: poções destiladas a partir de diversas plantas, exercícios de ginástica realizados após a relação, unguentos aplicados sobre os órgãos genitais masculinos, líquidos introduzidos no útero antes ou depois da relação, pessários. (RICHARDS, 1993, p. 42)
Klapisch-Zuber (1989) aponta que apesar do corpo da mulher ser de propriedade do marido, ela não deve ceder ao homem um pedido que seja pecado ou que vá contra a natureza. Dessa forma, a única maneira de infringir o dever de mulher é quando o homem impõe uma posição ou ação que vai contra a ordem de Deus.
Le Goff e Truong (2006) destacam como pecados outras práticas sexuais: “Felação, sodomia, masturbação, adultério, seguramente, mas também a fornicação com os monges, são, um a um, sucessivamente condenados.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 44)
Respectivamente, Richards (1993) aponta que o amor cortês, amor do homem solteiro e jovem pela mulher casada, era necessário ser evitado, pois, poderia provocar o adultério e consequentemente o nascimento de filhos bastardos.
Leal (2010) menciona que a prática sexual do homem com animais era uma ação natural na Idade Média, mas a Igreja Católica não aceitava essa relação, denominando esse ato como bestialidade irracional. Uma prática contra a ordem divina.
Para garantir o controle eclesiástico e a disciplina do laicato, além de propiciar “uma válvula de escape para o sofrimento individual derivado de uma consciência de culpa” (RICHADS, 1993, p. 38), a Igreja Católica estabeleceu a confissão e a penitência como ações centrais da Igreja. Por isso, para facilitar a penitência atribuída a cada pecado, o clero criou um documento que listavam os pecados e os métodos para lidar com eles. As questões sexuais eram a maior categoria que se atribuíam penitências. A mais comum era o jejum com pão e água, ou, abstinência sexual, havendo uma escala de punição. (RICHARDS, 1993, p. 39)
As penas mais pesadas eram reservadas para incesto, sodomia e bestialidade; quinze anos para infratores habituais. Mas existiam penalidade menores para outros delitos homossexuais, tais como masturbação mútua e sexo interfemural. Em outros penitenciais, o sexo anal incorria uma pena de sete anos; delitos homossexuais menores, dois ou três anos. Meninos eram punidos com penas muito menos pesadas do que os adultos. (RICHARDS, 1993, p. 40)
Nesse sentido, Leal (2010) ressalta que o sexo oral, incesto, adultério e sodomia eram práticas consideradas abomináveis, e, a punição poderia se definida em excomunhão e interdição perpétua do matrimônio e da relação sexual.
Para expressar o amadurecimento da Igreja Católica quanto aos pecados sexuais, Richards (1993) apresenta uma mudança referente ao estupro: “O estupro não era condenado pelos penitenciais, mas o raptus1 era.” (RICHARDS, 1993, p. 41). O raptus era um crime contra a propriedade privada, pois, era o roubo de uma mulher de sua família. Não está relacionado com o estupro que conhecemos atualmente. Posteriormente, o raptus tornou-se um crime sexual contra mulheres não casadas e recomendava-se pena de morte para tal delito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As influências da Igreja Católica na questão da sexualidade ainda é presente no dia a dia. Suas regulamentações sofreram alterações, mas ainda estabelecem um comportamento doutrinário a homens e mulheres. Porém, com a estabilização do estado laico, a Igreja já não persegue os indivíduos e não impõe suas doutrinas a sociedade.
Após as leituras e o desenvolvimento deste artigo, percebemos o quanto as mentalidades a essas orientações são presentes na atualidade. Destaco as relações de machismo frequentemente encontrado na sociedade no que tange a submissão e violência contra a mulher. Essa visão da mulher como o sexo frágil, com inteligência inferior e com tarefas voltadas para a família, visivelmente são reflexos dos comportamentos da Idade Média. Um grande desafio para os professores de história na perspectiva de salientar esse debate na sala de aula.
Por fim, reforço que essa temática ainda precisa ser mais trabalhada na ânsia de refletir sobre essa influência da Igreja Católica e visualizar os paradigmas que a sociedade está encaixada para estabelecer novos caminhos. Na expectativa de fomentar o compromisso social que cada um tem a contribuir para uma sociedade mais justa e fraterna.


1 Raptus significa sequestro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A mulher e a família in: LE GOFF, Jacques. O homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

LEAL, Raphael. Religião e sexo: do controle da Idade Média e sua herança na contemporaneidade. IV Colóquio de História: Abordagens Indisciplinares sobre a História da Sexualidade. 19 de novembro de 2010. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

LE GOFF, Jaques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Tradução: Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.41.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Tradução: Marco Antonio da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 34.


*Thaieny Gama é acadêmica do 4° período do curso de História na UFAM, com interesse na área de pesquisa sobre História do Brasil (Golpe Civil Militar).

E-mail: thaieny.gama@hotmail.com








CRÉDITO DA IMAGEM:

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