quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

São Raimundo: Aspectos interessantes da vida do populoso bairro de um habitante-matusalém

Igarapé de São Raimundo. Cartão postal do início do século XX.

Transcrevo, a seguir, uma matéria publicada em 1929 no Jornal do Comércio com o título São Raymundo: Aspectos interessantes da vida do populoso bairro de um habitante-mathusalem, crônica investigativa sobre diferentes aspectos do bairro de São Raimundo, na época um subúrbio distante da capital. Para que os leitores tenham uma sensação de maior proximidade com a narrativa, bastante interessante, e de dar maior vivacidade aos elementos do bairro descritos naquele final da década de 1920, transcrevi o material sem fazer alterações na grafia.


SÃO RAYMUNDO: ASPECTOS INTERESSANTES DA VIDA DO POPULOSO BAIRRO DE UM HABITANTE-MATHUSALEM

Os bairros de Manáos não tiveram ainda quem dissesse de sua vida já bem curiosa, escrevendo sobre seus typos, sobre os seus aspectos pittorescos, narrando do que vae em sua intimidade. E no entanto possuem característicos interessantes.

São Raymundo e Constantinópolis, por exemplo, são os bairros onde vive, em sua maior parte, a gente de nossos estabelecimentos industriaes.

Há figuras e factos, em cada um delles, que merecem a observação de um chronista habil. No sentido de dar alguma coisa dessas figuras e desses factos visitamos São Raymundo, separado do perímetro urbano da cidade pelo igarapé de mesmo nome.

Fomos acompanhados do sr. Olympio de Carvalho, pessoa influente de largo prestígio no bairro. Saltamos do bonde de Fabrica de Cerveja e nos dirigimos à rampa, ao lado da serraria Hore. Ahi, innumeras canôas de catraieiros aguardavam disputando preferências, os que se destinavam a São Raymundo. Eram muitas dellas, enfeitadas com bandeirinhas, outras com ramos de flores: a Ceará, a Queira Deus, a Vencedora, a Gegé, a Dona Cota, a Ave etc. Tomamos a Ave e atravessamos. Deviam ser nove horas da manhã quando saltamos na rampa de desembarque. Esta, ainda em projecto, toda esburacada e suja, sem o menor conforto para os que se movimentam alli, carecendo a vistas dos poderes competentes pois, sendo a parte mais baixa do terreno, é destruída pela enxurrada que corre de quasi todos os pontos ao bairro.

Continuamos para cima. A subdelegacia local, a cargo do sr. Arthur Pinheiro, ultimamente instalada em novo predio, acha-se bem conservada e limpa. Mais adiante está o grupo escolar Olavo Bilac de que é diretora dona Luiza do Nascimento. O predio foi adaptado ao fim actual, construído para o mercadinho, na administração municipal do dr. Dorval Porto.

a frequência é de duzentos e oitenta e seis alumnos de ambos os sexos. Funccionam diariamente aulas de curso elementar e as nocturnas, com cento e poucos alumnos. A criançada é alegre e parece animada nos estudos.

Do grupo, prosseguimos. Lá no alto as ruas são alinhadas e limpas. Cinco de Setembro, por exemplo, é larga e longa, margeada por casas quasi todas de taipa, de um só tamanho e com apparencia egual. Poucas as de alvenaria, entre elas a residência dos vicentinos, a do sr. Valentim Normando, o posto prophylatico, o grupo escolar. O resto das ruas, de terra batida, contribue em muito para o pittoresco quadro que se tem a vista. Nem por isso, porem, deixa de carecer reparos serios, um calçamento de pedra tosca, ao menos. Estavamos no ponto mais elevado do terreno, porque São Raymundo é uma colina, que de longe se avista.

Lembramo-nos de que Manáos ao nascer, quando se abriam as primeiras ruas e se levantavam as primeiras habitações, deveria ter sido assim. Absorviamos nessas recordações quando o nosso cicerone nos chamou a attenção - olhe agora para cá.

Deixamos o olhar ser conduzido ao ponto que nos indicava. Era um panorama dos mais bellos que se descortinava - Manáos, a cupula do Theatro Amazonas, a igreja dos Remédios, a cathedral, o reservatorio d' agua, a Beneficente Portugueza e outros grandes edificios destacados do vermelho-escuro dos telhados das casas menores. Do lado da bahia, o roadway, o mercado, as embarcações e as tralhas, sempre em movimento. Mudando a vista para os lados de Paricatuba, o espectaculo, tambem delicioso: a immensidão da bahia onde innumeras canôas a vela, de pescadores, sulcavam com rumos diversos.

Estivemos depois na Sociedade União Beneficente de São Raymundo, sob a orientação do sr. Olympio de Carvalho, bem installada, em predio proprio e confortavel. Conta numero superior a quatrocentos socios. Na sua séde vae funccionar agora uma aula nocturna, a ser iniciada opportunamente. Passamos depois para a do São Raymundo Sport Club, o nucleo desportivo do bairro, confiado á direcção dos srs. Pedro Pacheco, Joaquim Garvia e Graça Thiago. Possue campo de esportes e séde propria.

São Raymundo não se diverte só alli. Tem tambem o seu cinema, o Iris, bem arranjado, em casa espaçosa, com palco onde, á noite, o Pedro Brandão divertia o pessoal.

Passando por uma rua, onde os moradores nos observavam, o Carapanã, como é mais conhecido no bairro o sr. Olympio de Carvalho, acenou para dentro de uma casa:

- Bom dia, meu velho!
- Quem é? perguntamos.
- É o homem mais velho de São Raymundo.

Manifestamos desejo de ve-lo.

Entramos na casa. Fomos então apresentados ao sr. José Sant'Anna Araujo, diante de quem se descobrem respeitosamente todos os são raymundenses.

Conta o velho Sant'Anna centro e treze annos de idade. Não tem filhos, nem nunca foi pae. Vive só no mundo.

Arqueado sob o peso de tão grande existencia, o velho Sant'Anna ainda tem forças para trabalhar: varre a casa e o quintal, cuida das gallinhas e de vez em quando da uma volta pela beira do igarapé.

Está em São Raymundo desde mil oitocentos e setenta e cinco. Viu aquillo tudo ainda matta, onde iam caçar. Foi um dos seus primeiros habitantes e, segundo nos disse, não quer mais sahir de lá.

Pessoa communicativa e sympathica, o velho Sant'Anna é um palrador de primeira ordem. Sabe a chronica de tudo e de todos. Ao despedirmo-nos, elle accenou da janelinha da casa.

- Adeus, mocinho! Eu fico por aqui esperando por ella. Atrapalhamo-nos, mas o Carapanã nos explicou que elle se referia á morte.

Em vasto descampado, na zona alta, fica a praça de São Raymundo. Calculam-lhe a area em cento e trinta metros de extensão por noventa de largura. Ahi se ergue a capella do santo padroeiro, bem limpinha e conservada. De aspecto bisonho, lembrando os templos que os missionarios levantavam pelo nosso sertão, ás investidas em nome da fé catholica e da civilisação, pacificando o gentio.

A direita, o predio dos vicentinos, séde da Sociedade São Vicente de Paula. Entregue aos cuidados do padre Monteiro funccionam alli aulas de cathecismo. Do lado esquerdo da igreja, na esquina da praça com a rua Cinco de Setembro, o cemiterio.

Quanto á população toda ella é pacata, ordeira mesmo. Nos dias uteis todos trabalham. Os homens largam-se para as officinas e para as fabricas, ou para outro qualquer mister cá na cidade.

O commercio ainda não se desenvolveu como deve e pode. São poucos os estabelecimentos, na maioria mercearias. Ha tambem alguns botequins. Interessante é uma casa de pasto flutuante, amarrada á margem do igarapé. Alli, ás onze horas, grande numero de pessoas vae almoçar, custando cada refeição oitocentos e mil réis.

Medico não mora nenhum lá, mas existe a pharmacia São Raymundo de propriedade dos srs. Castro e Vieira. O posto de prophylaxia funcciona normalmente todos os dias. Três vezes por semana vae alli o dr. Angelo D' Urso, que attende pacientemente quantos o procuram, pelo que é muito estimado. Seu nome é lembrado constantemente.

A luz electrica, fornecida pela Manáos Tramways, está distribuida em focos pequenos, espalhados em varios pontos.

O grande problema a ser resolvido continua sendo o da ligação a Manáos por uma ponte. Não notamos aspiração maior entre os habitantes. A esse respeito o deputado Dorval Porto, quando superintendente, traçou um plano que dava a ponte partindo do fim da rua Commendador Alexandre Amorim, ao lado da serraria Rodolpho de Vries, passando sobre o igarapé, indo terminar naquelle bairro, á esquerda da residencia do sr. Henrique Pinheiro. Na impossibilidade da construção dessa ponte, disseram-nos moradores dalli, ao menos a rampa nos satisfaria.

Voltamos afinal para a rampa afim de atravessarmos para a cidade. Ahi chegamos, seriam onze horas. Uma surpreza nos estava reservada: a essa hora todas as usinas, serrarias, fabricas daquellas immediações sirenavam a um só tempo.

Do estabelecimento do sr. Pedro Pacheco, á margem do igarapé, onde fomos acolhidos gentilmente, presenciamos um curiosissimo espectaculo. Todas as catraias, que fazem o serviço de transporte de São Raymundo para a cidade e vice-versa, andavam em movimento.

Era hora do operariado voltar para o almoço e as pequenas canôas, em numero superior a quarenta, iam e vinham apinhadas de gente.

Perguntamos ao Ceará (era nosso catraieiro):

- Você gosta d' aqui?
- Ah! isto aqui é um céo aberto e eu não dou São Raymundo pelos Educandos nem a pau, respondeu-nos. É que existe uma grande rivalidade entre os moradores desses dois bairros.

Voltamos afinal de São Raymundo, convencidos, pelo que observamos, dado o clima e a salubridade do logar, que é aquelle, com os seus mil e quinhentos habitantes, um dos bairros de maior futuro de Manáos.


FONTE:

Jornal do Comércio, 15/06/1929


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus de Antigamente

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