No presente artigo o autor buscou apresentar as formas como o Diabo era representado na literatura medieval, buscando as origens das apropriações simbólicas nas mitologias grega e celta e tendo como base o Elucidarium, livro sobre crenças cristãs populares escrito no final do século XI por Honorius Augustodunensis.
RESUMO
Vinicius Maciel Braga*
O
objetivo desse artigo é apontar as principais formas de
representação simbólica do diabo na literatura medieval, partindo
da sua concepção extraída das mitologias grega e celta e
analisando com veemência o uso de sua imagem como um símbolo da
tentação mundana, da rebeldia e do conhecimento considerado
“profano” pela Igreja.
Será
apontada também a relação entre a figura de Satanás e o
Elucidarium de Honorius Augustodunensis, livro este
considerado essencial para alcançar o entendimento da mentalidade do
homem medieval. A verdadeira intenção deste trabalho é mostrar a
simbologia do demônio além da imagem convencional da criatura
monstruosa representada com bastante frequência.
Palavras-chave:
História Medieval; diabo; representação simbólica; literatura
medieval
INTRODUÇÃO
O
artigo tem como principal intenção apontar as principais formas de
representação do Diabo na literatura produzida durante a Idade
Média. Tais modos de simbolizar Satã possuem várias
interpretações, e algumas serão mostradas aqui de maneira breve e
de fácil entendimento. Iniciaremos a discussão mostrando as duas
maneiras como o Diabo é representado e os efeitos que tais formatos
de representação tinham sob o povo do medievo.
A
apropriação de símbolos pagãos para compor o processo de
caracterização do Diabo unida à atribuição de características
animais e humanas está inteiramente ligada aos significados
propostos pelo maniqueísmo cristão, onde Deus e Satã disputam
entre si o poder pelo mundo. Cada atributo que compõe o corpo do
Diabo relaciona-se com antigas simbolizações de poder e
malevolência, centralizadas em uma única entidade.
O
fascínio pelos mistérios que cercam a própria figura de Satã
motivou a existência desse artigo. O medo inerente no qual o homem
da Idade Média estava inserido, unido ao sentimento de observação
constante que as pessoas sentiam para com as entidades da
Cristandade, fazia com que todos se concentrassem em uma rédea
criada pela religião e usada como forma de expiação caso alguém
pecasse ou desobedecesse a vontade divina.
As
“artes proibidas”, forma como eram referidas atividades
artesanais relacionadas à fabricação de armas e armaduras, são
creditadas como um conjunto de ensinamento dos anjos caídos,
asseclas de Satã, aos homens. A obra que será usada como referência
é o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, onde é mostrada
a forma como a Cristandade refere-se ao Diabo e aos demônios como
entidades dispostas a tentar contra a humanidade.
Por
fim, mostraremos exemplos de representações ambíguas do Diabo,
tanto como tentador e astuto, como também um ser aterrorizante
disposto a perseguir pessoas sob diversas formas repugnantes e usando
dos mais variados artifícios para torturar, manipular e enganar as
pessoas mais ingênuas, ou até mesmo persuadir aqueles que nada
sentiam-se agradados com a fé cristã.
APONTAMENTOS
BREVES SOBRE A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO DIABO NA LITERATURA
MEDIEVAL
O Diabo representado no Codex Gigas, manuscrito medieval escrito no início do século XIII na Boêmia, na atual República Checa.
É
sempre válido ressaltar o papel ambíguo que o Diabo detinha como
uma entidade sedutora, que atraía os seres humanos para o caminho do
pecado, assim como um ser perseguidor, motivo de uma enorme angústia
entre os homens medievais. Jacques Le Goff aponta o maniqueísmo como
o principal fator motivador para o medo que a população nutria por
Satã, visto que “o maniqueísmo professava a crença em dois
deuses, um do bem e outro do mal, criador e senhor deste mundo.” 1
A
partir do momento em que se discute acerca do simbolismo por trás da
figura de Satã, é impossível não falar sobre sua representação
física. Observando com atenção, percebe-se uma grande influência
das mitologias grega e celta, associando às figuras respectivas dos
deuses Pã e Cernunno. Torna-se nítida tal associação a partir da
atribuição dos chifres e das patas de bode, assim como a
apropriação de valores pagãos em comum ao demoníaco. No entanto,
é preciso compreender o significado de cada componente da imagem
satânica.
A
caracterização repugnante atribuída ao Diabo, como um ser dotado
de características antropozoomórficas, é repleta de simbolismos
relacionados ao poder que Satã detinha. Os chifres (primeira
característica que lhe foi atribuída) simbolizavam a antiga
conotação de poder, assim como as asas de morcego e os cabelos
eriçados referiam-se, respectivamente, às cavernas e chamas do
Inferno. Outra conotação relacionada aos fios capilares refere-se à
forma como alguns guerreiros bárbaros intimidavam seus inimigos.2
Baseando-se
nessas informações, pode-se constatar a verdadeira necessidade da
ligação entre a caracterização física e o simbolismo existente
na figura do Diabo como uma maneira de retratar um ser tão poderoso
quanto o Bom Deus, uma entidade que também detinha o controle sobre
as ações da humanidade, exclusivamente os atos maus. Sobre isso, Le
Goff afirma que “o grande erro do maniqueísmo era pôr Deus e Satã
em pé de igualdade”. Essa grande cisão será amplamente difundida
através dos escritos e da arte no geral.
A
hagiografia foi um fator importante para a difusão da representação
do Diabo tanto como um ser tentador, como também uma figura
aterrorizante e perseguidora. Santo Antônio é tido como a vítima
mais conhecida das intervenções satânicas, como é mostrada na sua
biografia escrita por Atanásio. Em tais escritos, pode-se observar o
papel de Satã como um agente das forças malignas e dos hábitos
mundanos, sendo assim um constante inimigo dos santos durante suas
jornadas litúrgicas.
A
síntese dos relatos de aparições do Diabo aos santos se encontra
na Legenda Aurea, o conhecido conjunto de hagiografias, assim
como narrativas de andarilhos que se sentiam atraídos por uma jovem
e bonita mulher durante suas peregrinações, assim como Satã também
poderia assumir a forma de outro peregrino que estivesse disposto a
oferecer algo de maior valor aos mais ingênuos. Embasando-se em tal
afirmativa, podemos constatar a relação entre o Diabo e os locais
considerados inóspitos (desertos, vales, florestas, etc).
A
figura do Diabo como representante do conhecimento oculto e
desconhecido pelo homem torna-se evidente no Elucidarium de
Honorius Augustodunensis, referido pelo autor como Sathael. Partindo
da ideia de que Sathael seria o primeiro anjo caído, pode-se
concluir que o mesmo seria o princípio do ímpio e do vicioso, e
seus lacaios seriam os responsáveis por corromper as mulheres
humanas além de ensinar a sua prole as chamadas “artes proibidas”,
como a confecção de espadas e armaduras.3
Sobre
Satã e seus asseclas é escrita toda uma literatura que trata desde
sobre os seus poderes sobrenaturais, a hierarquia infernal e até
mesmo sobre a geografia do Inferno.4
A poesia se mostrara uma força motriz quanto a representação do
anjo caído, fato que exercerá uma enorme influência sobre o poeta
inglês John Milton na criação de “O Paraíso Perdido”, durante
o século XVII. Quanto a demonologia desenvolvida durante a Idade
Média, foi uma das grandes responsáveis pela inquietação do homem
medieval.
Considerando
o Elucidarium como um instrumento de catequização em um
período onde o Diabo residia no inconsciente coletivo, não é
necessário dizer que o livro possui trechos explicando a forma como
Satã e os demônios perturbam os cristãos. Um grande exemplo dessa
explicação é o diálogo entre o Mestre e seu Discípulo, onde o
primeiro explica a queda do Diabo e, consequentemente, a origem do
mal. É evidenciada por Honorius também a companhia constante dos
demônios em conjunto aos homens e aos anjos, observando os vícios
humanos e as impurezas por eles cometidas.
Como
última observação, vale ressaltar a importância do maniqueísmo
para que o medo que as pessoas nutriam pelo Diabo dominasse o
inconsciente coletivo do medievo, e a literatura, sendo um massivo
instrumento de difusão, contribuiu para que a figura misteriosa do
poderoso personagem se transformasse em um símbolo do mal e da
rebeldia, a representação da tentação e do ímpio.
NOTAS:
1 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff ; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005, p. 154
2 RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell ; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984, p. 238
3 I Enoch 8 : 1; “Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo seus olhos para os metais e as maneiras de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos o uso de cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e artes de tintas.” In: TRICCA, Maria Helena de Oliveira Tricca. Apócrifos III – Os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercuryo, 1996. P. 210
4 CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE
GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le
Goff; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005.
RUSSELL,
Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton
Russell; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha :
Editorial Laertes, 1984.
CARVALHO,
João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium.
Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do
século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ;
Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira-
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007.
*Vinicius Maciel Braga, 18, é graduando do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de interesse é História Medieval, com ênfase no desenvolvimento do Oculto e nas relações entre o sagrado e o profano.
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