sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Apontamentos breves sobre a representação simbólica do Diabo na literatura medieval

No presente artigo o autor buscou apresentar as formas como o Diabo era representado na literatura medieval, buscando as origens das apropriações simbólicas nas mitologias grega e celta e tendo como base o Elucidarium, livro sobre crenças cristãs populares escrito no final do século XI por Honorius Augustodunensis.

RESUMO
Vinicius Maciel Braga*

O objetivo desse artigo é apontar as principais formas de representação simbólica do diabo na literatura medieval, partindo da sua concepção extraída das mitologias grega e celta e analisando com veemência o uso de sua imagem como um símbolo da tentação mundana, da rebeldia e do conhecimento considerado “profano” pela Igreja.
Será apontada também a relação entre a figura de Satanás e o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, livro este considerado essencial para alcançar o entendimento da mentalidade do homem medieval. A verdadeira intenção deste trabalho é mostrar a simbologia do demônio além da imagem convencional da criatura monstruosa representada com bastante frequência.

Palavras-chave: História Medieval; diabo; representação simbólica; literatura medieval

INTRODUÇÃO
O artigo tem como principal intenção apontar as principais formas de representação do Diabo na literatura produzida durante a Idade Média. Tais modos de simbolizar Satã possuem várias interpretações, e algumas serão mostradas aqui de maneira breve e de fácil entendimento. Iniciaremos a discussão mostrando as duas maneiras como o Diabo é representado e os efeitos que tais formatos de representação tinham sob o povo do medievo.
A apropriação de símbolos pagãos para compor o processo de caracterização do Diabo unida à atribuição de características animais e humanas está inteiramente ligada aos significados propostos pelo maniqueísmo cristão, onde Deus e Satã disputam entre si o poder pelo mundo. Cada atributo que compõe o corpo do Diabo relaciona-se com antigas simbolizações de poder e malevolência, centralizadas em uma única entidade.
O fascínio pelos mistérios que cercam a própria figura de Satã motivou a existência desse artigo. O medo inerente no qual o homem da Idade Média estava inserido, unido ao sentimento de observação constante que as pessoas sentiam para com as entidades da Cristandade, fazia com que todos se concentrassem em uma rédea criada pela religião e usada como forma de expiação caso alguém pecasse ou desobedecesse a vontade divina.
As “artes proibidas”, forma como eram referidas atividades artesanais relacionadas à fabricação de armas e armaduras, são creditadas como um conjunto de ensinamento dos anjos caídos, asseclas de Satã, aos homens. A obra que será usada como referência é o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, onde é mostrada a forma como a Cristandade refere-se ao Diabo e aos demônios como entidades dispostas a tentar contra a humanidade.
Por fim, mostraremos exemplos de representações ambíguas do Diabo, tanto como tentador e astuto, como também um ser aterrorizante disposto a perseguir pessoas sob diversas formas repugnantes e usando dos mais variados artifícios para torturar, manipular e enganar as pessoas mais ingênuas, ou até mesmo persuadir aqueles que nada sentiam-se agradados com a fé cristã.

APONTAMENTOS BREVES SOBRE A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO DIABO NA LITERATURA MEDIEVAL

O Diabo representado no Codex Gigas, manuscrito medieval escrito no início do século XIII na Boêmia, na atual República Checa.

É sempre válido ressaltar o papel ambíguo que o Diabo detinha como uma entidade sedutora, que atraía os seres humanos para o caminho do pecado, assim como um ser perseguidor, motivo de uma enorme angústia entre os homens medievais. Jacques Le Goff aponta o maniqueísmo como o principal fator motivador para o medo que a população nutria por Satã, visto que “o maniqueísmo professava a crença em dois deuses, um do bem e outro do mal, criador e senhor deste mundo.” 1
A partir do momento em que se discute acerca do simbolismo por trás da figura de Satã, é impossível não falar sobre sua representação física. Observando com atenção, percebe-se uma grande influência das mitologias grega e celta, associando às figuras respectivas dos deuses Pã e Cernunno. Torna-se nítida tal associação a partir da atribuição dos chifres e das patas de bode, assim como a apropriação de valores pagãos em comum ao demoníaco. No entanto, é preciso compreender o significado de cada componente da imagem satânica.
A caracterização repugnante atribuída ao Diabo, como um ser dotado de características antropozoomórficas, é repleta de simbolismos relacionados ao poder que Satã detinha. Os chifres (primeira característica que lhe foi atribuída) simbolizavam a antiga conotação de poder, assim como as asas de morcego e os cabelos eriçados referiam-se, respectivamente, às cavernas e chamas do Inferno. Outra conotação relacionada aos fios capilares refere-se à forma como alguns guerreiros bárbaros intimidavam seus inimigos.2
Baseando-se nessas informações, pode-se constatar a verdadeira necessidade da ligação entre a caracterização física e o simbolismo existente na figura do Diabo como uma maneira de retratar um ser tão poderoso quanto o Bom Deus, uma entidade que também detinha o controle sobre as ações da humanidade, exclusivamente os atos maus. Sobre isso, Le Goff afirma que “o grande erro do maniqueísmo era pôr Deus e Satã em pé de igualdade”. Essa grande cisão será amplamente difundida através dos escritos e da arte no geral.
A hagiografia foi um fator importante para a difusão da representação do Diabo tanto como um ser tentador, como também uma figura aterrorizante e perseguidora. Santo Antônio é tido como a vítima mais conhecida das intervenções satânicas, como é mostrada na sua biografia escrita por Atanásio. Em tais escritos, pode-se observar o papel de Satã como um agente das forças malignas e dos hábitos mundanos, sendo assim um constante inimigo dos santos durante suas jornadas litúrgicas.
A síntese dos relatos de aparições do Diabo aos santos se encontra na Legenda Aurea, o conhecido conjunto de hagiografias, assim como narrativas de andarilhos que se sentiam atraídos por uma jovem e bonita mulher durante suas peregrinações, assim como Satã também poderia assumir a forma de outro peregrino que estivesse disposto a oferecer algo de maior valor aos mais ingênuos. Embasando-se em tal afirmativa, podemos constatar a relação entre o Diabo e os locais considerados inóspitos (desertos, vales, florestas, etc).
A figura do Diabo como representante do conhecimento oculto e desconhecido pelo homem torna-se evidente no Elucidarium de Honorius Augustodunensis, referido pelo autor como Sathael. Partindo da ideia de que Sathael seria o primeiro anjo caído, pode-se concluir que o mesmo seria o princípio do ímpio e do vicioso, e seus lacaios seriam os responsáveis por corromper as mulheres humanas além de ensinar a sua prole as chamadas “artes proibidas”, como a confecção de espadas e armaduras.3
Sobre Satã e seus asseclas é escrita toda uma literatura que trata desde sobre os seus poderes sobrenaturais, a hierarquia infernal e até mesmo sobre a geografia do Inferno.4 A poesia se mostrara uma força motriz quanto a representação do anjo caído, fato que exercerá uma enorme influência sobre o poeta inglês John Milton na criação de “O Paraíso Perdido”, durante o século XVII. Quanto a demonologia desenvolvida durante a Idade Média, foi uma das grandes responsáveis pela inquietação do homem medieval.
Considerando o Elucidarium como um instrumento de catequização em um período onde o Diabo residia no inconsciente coletivo, não é necessário dizer que o livro possui trechos explicando a forma como Satã e os demônios perturbam os cristãos. Um grande exemplo dessa explicação é o diálogo entre o Mestre e seu Discípulo, onde o primeiro explica a queda do Diabo e, consequentemente, a origem do mal. É evidenciada por Honorius também a companhia constante dos demônios em conjunto aos homens e aos anjos, observando os vícios humanos e as impurezas por eles cometidas.
Como última observação, vale ressaltar a importância do maniqueísmo para que o medo que as pessoas nutriam pelo Diabo dominasse o inconsciente coletivo do medievo, e a literatura, sendo um massivo instrumento de difusão, contribuiu para que a figura misteriosa do poderoso personagem se transformasse em um símbolo do mal e da rebeldia, a representação da tentação e do ímpio.

NOTAS:

1 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff ; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005, p. 154
2 RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell ; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984, p. 238
3 I Enoch 8 : 1; “Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo seus olhos para os metais e as maneiras de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos o uso de cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e artes de tintas.” In: TRICCA, Maria Helena de Oliveira Tricca. Apócrifos III – Os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercuryo, 1996. P. 210
4 CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005.
RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984.
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

*Vinicius Maciel Braga, 18, é graduando do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de interesse é História Medieval, com ênfase no desenvolvimento do Oculto e nas relações entre o sagrado e o profano.








CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org

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