domingo, 3 de dezembro de 2017

O Corpo na Idade Média

Continuando as postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, hoje temos um artigo em que são abordadas questões referentes ao corpo humano, sobre sua construção durante o período medieval e as diferentes concepções de mundo que nortearam os sentidos da matéria humana: a sacralidade, a degradação, a sexualidade, a doença, o trabalho e a estética.


O CORPO NA IDADE MÉDIA

Roberval Nascimento da Silva Júnior*

RESUMO
O artigo aqui apresentado é uma reflexão que procura discutir sobre a história do corpo, especialmente na Idade Média, com a intenção de refletir sobre a história do corpo, suas dimensões variadas que concorriam na existência humana e os variados sentidos provenientes das tensões causadas na concorrência. Por meio da bibliografia produzida dentro da temática medieval, este trabalho procurou trazer dados e discussões sobre como foi construída a imagem do corpo humano na Idade Média.
Palavras-chave: Corpo na Idade Média, história do corpo, Sociedade medieval, representações do corpo.

1. INTRODUÇÃO
Liber divinorum operum, iluminura 2, folio 9: O espírito e o mundo (detalhe), século XIII.

A Idade Média tem em sua forma complexa de cosmovisão um caráter altamente simbólico de composição dos sentidos. Isso se deve principalmente ao deslocar radical da esfera de experiência do mundo físico para um mundo metafísico, pois a noção de tempo linear determina isso ao pôr como finalidade da existência e da própria história da humanidade a volta de Cristo, a reencarnação, o subir aos céus, por fim, a salvação eterna (salvar-se de que, senão da finitude da vida mortal e cotidiana enfrentada na terra?). Nessa cosmovisão então se encontra presente e com força motora de sentidos a religião do Cristianismo, sendo importantes combustível dessas movimentações os debates teológicos empreendidos no período. À proposição anterior salvaguardo, cautelosamente, que as análises das fontes empreendidas até o momento sobre o caráter cosmovisionário demonstram que a percepção medieval do sobrenatural e do natural não oferece fronteiras tão delimitadas e chegam a compor, concomitantemente, uma realidade observável e cotidiana formada das duas.

Esse matiz simbólico composto pela Idade Média cujo os estudos históricos-antropológicos buscam propor é, em nível de experiência, significadora de uma realidade sensível, física, de experiência imediata com as coisas materiais, que, como no caso do corpo, teria uma imanência configurada no pensamento religioso e comporia uma polissemia da percepção e da experiência com essas coisas materiais.
O corpo, então, é visto como depositário de diversos sentidos sobre uma matéria dócil, cujo a representação se movimenta com as vicissitudes do vivido e que tem, também, uma dimensão simbólica que movimenta seu sentido num frenesi de proposições como a sacralidade do corpo, sua degradação, sexualidade, as doenças, o trabalho, uma estética reprimida, onde o corpo é lugar de pecado e salvação, ao mesmo tempo. É dos componentes dessa polissemia em torno do corpo, na sua relação contextual-histórica medieval, que destino a reflexão neste presente artigo.

2. A CARNE

O corpo humano é substância dotada, além de sua materialidade, de alma e espírito, segundo a tradição cristã. O historiador que se debruça sobre a reflexão desse objeto de estudo na temporalidade medieval deve estar alerta quanto a própria linguagem: apesar de ser possível entrever uma matriz da sociedade Ocidental contemporânea na história da Idade Média, os conceitos utilizados, apesar de guardarem semelhança ou exatidão quanto a sua forma, a palavra, seu significado encontra-se na dimensão da experiência histórica e da significação humana dada no transcorrer desse tempo que é histórico, se transformando nesse processo. Schmitt (2014) expõe bem esse paradigma do pesquisador: “Se o antropólogo é imediatamente confrontado a sistemas de classificação e a um vocabulário radicalmente diferentes daqueles com os quais está familiarizado, o historiador dos períodos antigos da cultura ocidental deve prestar atenção para não considerar como evidente uma terminologia que ele parece reconhecer, mas cujos valores semânticos puderam, ao longos dos séculos, mudar mais rápido do que a forma.”. (p. 305)
A cristandade medieval representa a pessoa dotada de um corpo perecível e sua existência está em dívida com a força de criação divina. Em coabitação ao corpo está a alma, que é também devedora da criação divina, mas não encontra o valor da perecidade em si – é imortal.
A idade Média é marcada pela criação de dualidades, como a do corpo e da alma, componentes do ser humano, mas também de categorias como carne e espírito, que se configuram como moralizantes e determinam condutas boas ou ruins.
A Igreja cristã em seus primórdios (cristianismo primitivo) preconiza a metáfora de um corpo glorioso da pessoa de Cristo que carrega o símbolo da permanência do Verbo da criação entre nós. A carreira do corpo de Cristo é então projetada para o corpo de cada cristão – nascer, morrer e ressuscitar em grande glória. O pecado não deprime esse corpo-templo redimido por Cristo.
Porém, cedo se faz a relação entre potência carnal1 e pecado. Schmitt (2014) fala sobre o elo estabelecido: “Ele coloca, de um lado, que a mácula do pecado original, a falta dos primeiros pais, transmite-se pela geração humana e, por outro, que o corpo, em suas emoções (a “concupiscência”, a “tentação da carne”), é o lugar e o instrumento por excelência do pecado.” (p.306)
Esse elo estabelecido entre carne e pecado tem profundas marcas na cultura medieval do corpo e cria sobre ele um paradigma de desqualificação e repressão. A seguinte afirmação, em resumo, pode ser feita: o corpo dá lugar às trevas do pecado, do pesar e do castigo. O corpo passa a ser um peso. São Gregório Magno qualificará o corpo de abominável vestimenta da alma. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.11).

3. O TRABALHO NA IDADE MÉDIA

A noção de trabalho da Idade Média não escapa desses valores dualistas que se manifestam, estabelecendo um “lugar reservado ao trabalho manual, sucessivamente, alternativamente e por vezes simultaneamente desprezado e valorizado.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.64)
Os ofícios na idade Média, então, estão submersos nesses movimentos de valorização e desvalorização, entre um trabalho dignificante, a obra criadora do trabalho divino, e o labor, como forma de castigo dado para a humanidade a partir de Adão: “No suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:19).
A mulher carrega um peso ainda maior, pois está destinada a ela o trabalho do parto, como diz as Escrituras: Para a mulher sentenciou o SENHOR: “Multiplicarei grandemente o teu sofrimento na gravidez; em meio à agonia darás à luz filhos” (Gênesis 3:16)
Uma influência do mundo greco-romano é a divisão entre o trabalho manual e o ócio, o primeiro é escarnecido e o segundo é louvável. Tal modelo parece se repetir de um lado no modo de vida monástico e na crença medieval de que o trabalho que suja as mãos é de natureza não-nobre e era mal visto perante as camadas de elite da sociedade medieval.
Entre as profissões, algumas foram condenáveis em sua prática e por detrás dessas condenações estão tabus que remontam às sociedades primitivas. Temos o tabu do sangue, da impureza, do dinheiro. (LE GOFF,1979)
A prática da prostituição, que consiste no uso do corpo como mercadoria sexual, é uma profissão que reúne vários desses aspectos condenáveis na sociedade medieval. Em contrapartida, como nos conta Jeffrey Richards (1993) no seu livro sobre minorias, a prostituição era uma prática comum na Europa medieval e existiam poucas cidades que não contavam com um prostíbulo, ou “boa casa”. (p.121)
Enquadro a prostituição neste subtítulo cuja a temática é trabalho baseado nos vestígios que demonstram a essencialidade da prática para o controle social e das tentativas de organizar esse trabalho e pela existência de hierarquias administrativas-organizacionais dentro do ofício.
Tal necessidade de controle social e a relação aparentemente contraditória de uma sociedade profundamente pudica, moralista quanto ao corpo e ao comportamento, e uma prática onde se utiliza do corpo para o sexo em troca de algum benefício, permite entrever atritos entre os intentos de controle moral religioso e os costumes sociais correntes na europa medieval. Era tolerável socialmente que os jovens e solteiros pudessem frequentar das “boas casas”, pois era um meio de afirmar a masculinidade numa sociedade que reprime a homossexualidade, bem como aliviar as necessidades sexuais masculinas, num ganho de controle dos casos de estupros de não-prostitutas e filhas de famílias respeitáveis. Haviam muitos casos de estupro por parte da clientela na prostituição.

4. FOLIA E PENITÊNCIA: BALANÇA MORAL DO MEDIEVO

A vida cotidiana na Idade Média vê sua dinâmica articulada entre “Quaresma e Carnaval”, remetendo ao famoso quadro de Bruegel de título “O Combate do Carnaval e da Quaresma”. São os representantes de dois extremos, resumidos pela falta e pelo excesso.
Foi a Igreja que iniciou a normatização dos atos sexuais alheios, buscando enquadrar nas regras os momentos, os tipos de parceiro e em que lugares as pessoas poderiam praticar seu sexo.
O corpo em sua dimensão sexual na Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos. O casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. Só tolerável e compreensível a relação sexual com a única finalidade de procriar. A profilaxia frente a um corpo que tem em sua carne as fraquezas das paixões é justamente dominá-las e reprimi-las. Qualquer método contraceptivo era mal visto pelos clérigos pois se caracterizaria como um ataque à natureza criada pelo divino por desejo de prazer.
Para cada forma de pensamento e intenções, principalmente de cunho moralizante, é preciso que uma elaboração de terminologias seja empreendida de forma que sejam determinantes no seu universo de significação, quase como se santificadas na linguagem, como explícito na citação: “caro (a carne), luxuria (a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cristão da ideologia anticorporal.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.42)
Santo Anselmo, arcebispo da Cantuária (1033-1109) escreve em uma de suas orações:
Existe um mal, um mal acima de todos os males, que tenho consciência de que está sempre comigo, que dolorosa e penosamente dilacera e aflige minha alma. Esteve comigo desde o berço, cresceu comigo na infância, na adolescência, na minha juventude e sempre permaneceu comigo, e não me abandona mesmo agora que meus membros estão fraquejando por causa da minha velhice. Este mal é o desejo sexual, o deleite carnal, a tempestade de luxúria que esmagou e demoliu minha alma infeliz, sugando dela toda a sua força e deixando-a fraca e vazia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.,1993.
LE GOFF, Jacques. TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na idade média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LE GOFF, J. O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. v. 2. [original: 1964].
NOTAS:
1 Aqui entende-se como a força de desejo, ligada à carne, que leva ao ato.


*Roberval Nascimento da Silva Júnior, 20, é acadêmico do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Suas áreas de interesse acadêmico são a Antropologia e a Teoria da História, com ênfase na relação entre História e Memória nas obras de Paul Ricoeur e Alessandro Portelli.




















CRÉDITO DA IMAGEM:

www.ricardocosta.com

2 comentários:

  1. Eu poderia dizer que o momento político brasileiro tem um discurso medievalista?

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