Continuando as postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, hoje temos um artigo em que são abordadas questões referentes ao corpo humano, sobre sua construção durante o período medieval e as diferentes concepções de mundo que nortearam os sentidos da matéria humana: a sacralidade, a degradação, a sexualidade, a doença, o trabalho e a estética.
O CORPO NA IDADE MÉDIA
Roberval Nascimento da Silva Júnior*
RESUMO
O
artigo aqui apresentado é uma reflexão que procura discutir sobre a
história do corpo, especialmente na Idade Média, com a intenção
de refletir sobre a história do corpo, suas dimensões variadas que
concorriam na existência humana e os variados sentidos provenientes
das tensões causadas na concorrência. Por meio da bibliografia
produzida dentro da temática medieval, este trabalho procurou trazer
dados e discussões sobre como foi construída a imagem do corpo
humano na Idade Média.
Palavras-chave:
Corpo na Idade Média, história do corpo, Sociedade medieval,
representações do corpo.
1. INTRODUÇÃO
Liber divinorum operum, iluminura 2, folio 9: O espírito e o mundo (detalhe), século XIII.
A
Idade Média tem em sua forma complexa de cosmovisão um caráter
altamente simbólico de composição dos sentidos. Isso se deve
principalmente ao deslocar radical da esfera de experiência do mundo
físico para um mundo metafísico, pois a noção de tempo linear
determina isso ao pôr como finalidade da existência e da própria
história da humanidade a volta de Cristo, a reencarnação, o subir
aos céus, por fim, a salvação eterna (salvar-se de que, senão da
finitude da vida mortal e cotidiana enfrentada na terra?). Nessa
cosmovisão então se encontra presente e com força motora de
sentidos a religião do Cristianismo, sendo importantes combustível
dessas movimentações os debates teológicos empreendidos no
período. À proposição anterior salvaguardo, cautelosamente, que
as análises das fontes empreendidas até o momento sobre o caráter
cosmovisionário demonstram que a percepção medieval do
sobrenatural e do natural não oferece fronteiras tão delimitadas e
chegam a compor, concomitantemente, uma realidade observável e
cotidiana formada das duas.
Esse
matiz simbólico composto pela Idade Média cujo os estudos
históricos-antropológicos buscam propor é, em nível de
experiência, significadora de uma realidade sensível, física, de
experiência imediata com as coisas materiais, que, como no caso do
corpo, teria uma imanência configurada no pensamento religioso e
comporia uma polissemia da percepção e da experiência com essas
coisas materiais.
O
corpo, então, é visto como depositário de diversos sentidos sobre
uma matéria dócil, cujo a representação se movimenta com as
vicissitudes do vivido e que tem, também, uma dimensão simbólica
que movimenta seu sentido num frenesi de proposições como a
sacralidade do corpo, sua degradação, sexualidade, as doenças, o
trabalho, uma estética reprimida, onde o corpo é lugar de pecado e
salvação, ao mesmo tempo. É dos componentes dessa polissemia em
torno do corpo, na sua relação contextual-histórica medieval, que
destino a reflexão neste presente artigo.
2. A
CARNE
O
corpo humano é substância dotada, além de sua materialidade, de
alma e espírito, segundo a tradição cristã. O historiador que se
debruça sobre a reflexão desse objeto de estudo na temporalidade
medieval deve estar alerta quanto a própria linguagem: apesar de ser
possível entrever uma matriz da sociedade Ocidental contemporânea
na história da Idade Média, os conceitos utilizados, apesar de
guardarem semelhança ou exatidão quanto a sua forma, a palavra, seu
significado encontra-se na dimensão da experiência histórica e da
significação humana dada no transcorrer desse tempo que é
histórico, se transformando nesse processo. Schmitt (2014) expõe
bem esse paradigma do pesquisador: “Se o antropólogo é
imediatamente confrontado a sistemas de classificação e a um
vocabulário radicalmente diferentes daqueles com os quais está
familiarizado, o historiador dos períodos antigos da cultura
ocidental deve prestar atenção para não considerar como evidente
uma terminologia que ele parece reconhecer, mas cujos valores
semânticos puderam, ao longos dos séculos, mudar mais rápido do
que a forma.”. (p. 305)
A
cristandade medieval representa a pessoa dotada de um corpo perecível
e sua existência está em dívida com a força de criação divina.
Em coabitação ao corpo está a alma, que é também devedora da
criação divina, mas não encontra o valor da perecidade em si – é
imortal.
A
idade Média é marcada pela criação de dualidades, como a do corpo
e da alma, componentes do ser humano, mas também de categorias como
carne e espírito, que se configuram como moralizantes e determinam
condutas boas ou ruins.
A
Igreja cristã em seus primórdios (cristianismo primitivo) preconiza
a metáfora de um corpo glorioso da pessoa de Cristo que carrega o
símbolo da permanência do Verbo da criação entre nós. A carreira
do corpo de Cristo é então projetada para o corpo de cada cristão
– nascer, morrer e ressuscitar em grande glória. O pecado não
deprime esse corpo-templo redimido por Cristo.
Porém,
cedo se faz a relação entre potência carnal1
e pecado. Schmitt (2014) fala sobre o elo estabelecido: “Ele
coloca, de um lado, que a mácula do pecado original, a falta dos
primeiros pais, transmite-se pela geração humana e, por outro, que
o corpo, em suas emoções (a “concupiscência”, a “tentação
da carne”), é o lugar e o instrumento por excelência do pecado.”
(p.306)
Esse
elo estabelecido entre carne e pecado tem profundas marcas na cultura
medieval do corpo e cria sobre ele um paradigma de desqualificação
e repressão. A seguinte afirmação, em resumo, pode ser feita: o
corpo dá lugar às trevas do pecado, do pesar e do castigo. O corpo
passa a ser um peso. São Gregório Magno qualificará o corpo de
abominável
vestimenta da alma.
(LE GOFF; TRUONG, 2006, p.11).
3. O
TRABALHO NA IDADE MÉDIA
A
noção de trabalho da Idade Média não escapa desses valores
dualistas que se manifestam, estabelecendo um “lugar reservado ao
trabalho manual, sucessivamente, alternativamente e por vezes
simultaneamente desprezado e valorizado.” (LE GOFF; TRUONG, 2006,
p.64)
Os
ofícios na idade Média, então, estão submersos nesses movimentos
de valorização e desvalorização, entre um trabalho dignificante,
a obra criadora do trabalho divino, e o labor, como forma de castigo
dado para a humanidade a partir de Adão: “No suor do teu rosto
comerás o teu pão” (Gênesis 3:19).
A
mulher carrega um peso ainda maior, pois está destinada a ela o
trabalho do parto, como diz as Escrituras: Para a mulher sentenciou o
SENHOR: “Multiplicarei grandemente o teu sofrimento na gravidez; em
meio à agonia darás à luz filhos” (Gênesis 3:16)
Uma
influência do mundo greco-romano é a divisão entre o trabalho
manual e o ócio, o primeiro é escarnecido e o segundo é louvável.
Tal modelo parece se repetir de um lado no modo de vida monástico e
na crença medieval de que o trabalho que suja as mãos é de
natureza não-nobre e era mal visto perante as camadas de elite da
sociedade medieval.
Entre
as profissões, algumas foram condenáveis em sua prática e por
detrás dessas condenações estão tabus que remontam às sociedades
primitivas. Temos o tabu do sangue, da impureza, do dinheiro. (LE
GOFF,1979)
A
prática da prostituição, que consiste no uso do corpo como
mercadoria sexual, é uma profissão que reúne vários desses
aspectos condenáveis na sociedade medieval. Em contrapartida, como
nos conta Jeffrey Richards (1993) no seu livro sobre minorias, a
prostituição era uma prática comum na Europa medieval e existiam
poucas cidades que não contavam com um prostíbulo, ou “boa casa”.
(p.121)
Enquadro
a prostituição neste subtítulo cuja a temática é trabalho
baseado nos vestígios que demonstram a essencialidade da prática
para o controle social e das tentativas de organizar esse trabalho e
pela existência de hierarquias administrativas-organizacionais
dentro do ofício.
Tal
necessidade de controle social e a relação aparentemente
contraditória de uma sociedade profundamente pudica, moralista
quanto ao corpo e ao comportamento, e uma prática onde se utiliza do
corpo para o sexo em troca de algum benefício, permite entrever
atritos entre os intentos de controle moral religioso e os costumes
sociais correntes na europa medieval. Era tolerável socialmente que
os jovens e solteiros pudessem frequentar das “boas casas”, pois
era um meio de afirmar a masculinidade numa sociedade que reprime a
homossexualidade, bem como aliviar as necessidades sexuais
masculinas, num ganho de controle dos casos de estupros de
não-prostitutas e filhas de famílias respeitáveis. Haviam muitos
casos de estupro por parte da clientela na prostituição.
4. FOLIA
E PENITÊNCIA: BALANÇA MORAL DO MEDIEVO
A vida cotidiana na Idade Média vê sua dinâmica articulada entre
“Quaresma e Carnaval”, remetendo ao famoso quadro de Bruegel de
título “O Combate do Carnaval e da Quaresma”. São os
representantes de dois extremos, resumidos pela falta e pelo excesso.
Foi
a Igreja que iniciou a normatização dos atos sexuais alheios,
buscando enquadrar nas regras os momentos, os tipos de parceiro e em
que lugares as pessoas poderiam praticar seu sexo.
O
corpo em sua dimensão sexual na Idade Média é majoritariamente
desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos.
O casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século
XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. Só
tolerável e compreensível a relação sexual com a única
finalidade de procriar. A profilaxia frente a um corpo que tem em sua
carne as fraquezas das paixões é justamente dominá-las e
reprimi-las. Qualquer método contraceptivo era mal visto pelos
clérigos pois se caracterizaria como um ataque à natureza criada
pelo divino por desejo de prazer.
Para
cada forma de pensamento e intenções, principalmente de cunho
moralizante, é preciso que uma elaboração de terminologias seja
empreendida de forma que sejam determinantes no seu universo de
significação, quase como se santificadas na linguagem, como
explícito na citação: “caro (a carne), luxuria (a luxúria),
fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cristão da
ideologia anticorporal.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.42)
Santo
Anselmo, arcebispo da Cantuária (1033-1109) escreve em uma de suas
orações:
Existe um
mal, um mal acima de todos os males, que tenho consciência de que
está sempre comigo, que dolorosa e penosamente dilacera e aflige
minha alma. Esteve comigo desde o berço, cresceu comigo na infância,
na adolescência, na minha juventude e sempre permaneceu comigo, e
não me abandona mesmo agora que meus membros estão fraquejando por
causa da minha velhice. Este mal é o desejo sexual, o deleite
carnal, a tempestade de luxúria que esmagou e demoliu minha alma
infeliz, sugando dela toda a sua força e deixando-a fraca e vazia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SCHMITT,
Jean-Claude. O
corpo, os ritos, os sonhos, o tempo.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
RICHARDS,
Jeffrey. Sexo,
desvio e danação: as minorias na idade média.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.,1993.
LE
GOFF,
Jacques. TRUONG,
Nicolas. Uma
história do corpo na idade média.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LE
GOFF,
J. O
homem medieval.
Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LE
GOFF,
J. A
civilização do Ocidente Medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1995. v. 2. [original: 1964].
NOTAS:
1 Aqui entende-se como a força de desejo, ligada à carne, que leva
ao ato.
*Roberval Nascimento da Silva Júnior, 20, é acadêmico do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Suas áreas de interesse acadêmico são a Antropologia e a Teoria da História, com ênfase na relação entre História e Memória nas obras de Paul Ricoeur e Alessandro Portelli.
CRÉDITO DA IMAGEM:
www.ricardocosta.com
Eu poderia dizer que o momento político brasileiro tem um discurso medievalista?
ResponderExcluirEu poderia dizer que o momento político brasileiro tem um discurso medievalista?
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