domingo, 11 de fevereiro de 2018

O Entrudo na Província do Amazonas

Entrudo familiar no Rio de Janeiro. Pintura de 1822 de Augusto Earle.

 “O carnaval com o seo cortejo de folias,
caretas e momices, nos bate á porta; mesmo já nos parece ouvir
um desconchavado você me conhece, d’algum ratão coberto de
trapos e burundangas, cujo espirito o barometro gradua zero”.
Chronica. Esperança: Periodico litterario e critico do Amazonas
21/01/1877.

Pedimos a polícia providências”, escreveu o redator do jornal A Voz do Amazonas sobre os mascarados que saíam nas ruas das vilas da província durante a realização do entrudo, folguedo popular de raízes ibéricas coloniais marcado por brincadeiras informais em que valia tudo, desde o arremesso de limas com água perfumada até ovos podres, trigo e tinta. Ele salienta também que na Europa e na corte do Rio de Janeiro haviam bailes mascarados, os “bailes masqueés1, mas que estes eram vigiados pela polícia, e que só se poderia utilizar máscaras no recinto em que estava sendo realizada a festa.

O entrudo, do latim introitu, uma introdução à Quaresma, começava pela madrugada. As limas, laranjas e limões de cheiro, feitas com cera derretida em formas e onde eram colocados diferentes tipos de líquidos (água, água aromatizada, urina, tinta etc), eram previamente preparadas pelas donas de casa, escravas e agregados. Se a residência tivesse dois pisos, seus moradores dirigiam-se para o segundo e, quem passasse pela rua, era atingido por esses objetos. Esse era o entrudo familiar, privado. Nas ruas ocorria o entrudo mais popular, uma verdadeira guerra em que participavam tapuios, brancos e escravos, arremessando uns nos outros pó de arroz, trigo, tinta, água, ovos podres e o que tivessem em alcance.

Na Lei N° 101 de 08 de julho de 1859, em que foi aprovado o Regulamento n° 10 de maio daquele ano, para o Colégio de Nossa Senhora dos Remédios, os dias de realização do entrudo são considerados feriados, ao lado dos “dias santos de guarda, os de festa nacional, ou provincial marcados por Lei, os de lucto nacional declarados pelo Governo […] os de quarta feira Santa até o domingo da Paschoa, e os que decorrem desde 20 de dezembro até 6 de janeiro2. A festa, ou jogo, como também era chamado, era realizada costumeiramente de segunda até quarta-feira, mas também poderia ocorrer em dias variados.

Até determinado período do século XIX existia a separação entre o ‘entrudo’ e o ‘carnaval’. O Entrudo era mais popular, desorganizado, enquanto o carnaval era sinônimo de festa mais organizada, destinada às elites. Os termos entrudo e carnaval, na segunda metade do XIX, passaram a confundir-se. Talvez tivessem o mesmo sentido. As ‘providências’ pedidas pelo redator parecem que ainda não tinham sido tomadas. Em 1867, no jornal Amazonas, comemorava-se que o Carnaval daquele ano “esteve como sempre, alegre, e folgasão: alem dos mascarados que na tarde de domingo e terça-feira percorreram as ruas, tivemos alguns bailes dados por uma sociedade; bem como no salão do sr. Pingarilho, que sempre proporciona aos diletantes estes bellos passatempos3.


Se até aquele momento essa prática festiva era tolerada, a introdução de novas práticas culturais consideradas mais refinadas, como os bailes mascarados, privados, realizados em estilo francês ou veneziano, fizeram os dirigentes da província tomar medidas que combatessem o que passava a ser considerado impróprio e nocivo para os novos padrões. Em 1870, na Vila de Serpa, o entrudo é proibido, como ficou estabelecido no Art.20 do Código de Posturas: “Á ninguém é permittido andar pelas ruas e lugares publicos jogando o entrudo, nem das casas lançar cousa alguma sobre os viandantes, sob pena de incorrer cada um dos infractores na multa de cinco mil réis, ou dous dias de prizão4. Os escravos que fossem encontrados na rua a partir das 21 horas até o amanhecer, se não estivessem com as autorizações escritas de seus senhores, com a declaração do nome do escravo, seriam presos. Em 1872, no Código de Posturas Municipais de Silves, ocorre o mesmo5. No mesmo ano, no Código de Posturas Municipais de Manaus, no Art. 82, ficou determinado que:

Art. 82 - E’ prohibido andar-se pelas ruas e logares publicos á jogar entrudo ou lançar alguma cousa sobre os transeuntes.

Pena de dez mil réis de multa ou tres dias de prisão.

§ 1. - Permitte-se as mascaradas e danças carnavalescas, de modo que não se offenda a moral tranquilidade publica e não contenhão allusão as autoridades ou a religião.

§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo os que tiverem para isso licença da autoridade policial. Os infratores incorrerão na multa de cinco mil réis ou dous dias de prisão6.

No Código de Posturas de 1875 o texto permanece quase que inalterado, com exceção de algumas mudanças:

Art. 91 – E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.

§ 1. - Permitte-se as mascaradas, dansas carnavalescas de modo que não offendam a moral, a tranquillidade publica e não contenham aluzões á religião, ás autoridades ou a pessoas gradas, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.

§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em cinco mil réis ou vinte e quatro horas de prisão7.

Interessante notar as proibições sobre a religião, as autoridades e as pessoas da elite. Nas pequenas vilas da Província, onde a vida social estava centrada nas modestas paróquias, no acanhado comércio e por onde corriam facilmente os boatos, era difícil que algo passasse despercebido por seus habitantes. A época do entrudo era a oportunidade para se fazer zombarias com escândalos envolvendo religiosos, autoridades políticas e militares, e membros da alta sociedade. Ferreira Penna & Companhia tinha um grande e variado sortimento de máscaras em sua loja, das mais requintadas até as “nunca esquecidas caricatas8.


Locais “apropriados” foram construídos para a realização do carnaval. Em 1872 Demetrio Antonio Peixoto apresentava a sua ‘Nova Sociedade Carnaval Amazonense’, instalada em seu hotel de nome Amazonas, na rua do Imperador, onde passaria a receber as famílias da sociedade “[…] em lugares decentemente decorados e independentes n’ uma extensa galeria no primeiro grande salão collocada, aonde os Srs. Elegantes phantasiados formaráõ o primeiro divertimento”. Em um segundo salão os participantes poderiam encontrar um toilete e, em outras câmaras iluminadas, “[…] reffrescos, fiambres, salames, chá, chocolate, café, cerveja, tortas, queijos de diversas qualidades, tudo pelos preços estabelecidos, e equidade9. A tabela de preços para os participantes estava dividida da seguinte forma:

Senhoras – Grátis
Cavalheiros – 2$000
Phantasiados (par) – 3$000
Ditos (singularmente) - 2$00010

Essas proibições já vinham ocorrendo há tempos em outras províncias, tendo iniciado no Rio de Janeiro. O caráter privado e elitista ganhou cada vez mais espaço. Os jogos ficaram restritos ao ambiente familiar, impondo dessa forma a separação entre os grupos que antes festejavam entre si. Os que tivessem maior poder aquisitivo podiam recorrer às lojas especializadas na venda de artigos para a festa. O senhor Santos, no canto da rua Brasileira, oferecia roupas à fantasia, tendo “23 costumes, tanto para homens como para senhoras […] feitas na França, algumas novas, outras com pouco uso11. Theresa Pereira Tavares, a Teté, em sua loja na rua da Instalação, tinha por volta de 1879 um rico e variado sortimento de máscaras, “fantasias de pierrôs, vivandeiras e chicard de cetim bordado12. Em um anúncio de 1881, a Loja Brinquinho, na então rua da Matriz, anunciava a “Alta novidade para o carnaval”, pois acabara de receber “um grande sortimento de bisnagas com os mais finos extractos e pós de arroz, próprias para jogar o entrudo em casas de familia13.


As festas, agora, tinham início e fim para acabar, como ficou estabelecido nas alterações de 1879 no Código de Posturas de Manaus, indo “desde a Dominga de Quinquagesima até as 11 horas da noite de terça-feira, véspera de quarta-feira de Cinza14. Em 1884, prestes a começar o Carnaval daquele ano, a Secretaria de Polícia, por ordem do chefe de polícia, publicou as disposições do Código de Posturas Municipais sobre os festejos. Em parte ele ainda lembrava os de 1872 e 1875, mas tinha acrescidas novas proibições e punições:

Art. 81. Todo aquelle que insultar com palavras ou acções á qualquer pessôa, será multado em 20$000 rs ou 5 dias de prisão. Art. 91. E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de 10$000 ou 3 dias de prisão. 1° Permitte-se as mascaradas, danças carnavalescas, de modo que não offendam a moral, a tranquilidade publica e não contenham allusão á religião, ás autoridades ou á pessoas gradas sob pena da multa de 10$000 rs, ou 3 dias de prisão. 2° Pelas ruas, praças e estradas da cidade não se andará com mascaras na cara depois das ‘Ave Marias’, salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em 5$000 rs ou 24 horas de prisão15.

Nos bailes, os que perturbassem a ordem ou não se portassem como pedia a ocasião seriam retirados do recinto, como ficou instituído em um antigo regulamento dos tempos da Comarca do Alto Amazonas, de N° 120 de 31 de Janeiro de 1842. A prática do entrudo continuaria nas décadas seguintes, assim como as investidas para a sua proibição e minimização, de forma a tornar o Carnaval uma festa popular sadia, ou, pelo menos, passar essa imagem. No grande Carnaval de 1905, retratado em pinturas, desenhos e fotografias, por exemplo, um cidadão foi multado em 50$000 réis por estar praticando, com um grupo de foliões, o entrudo em cima de um caminhão na Avenida Eduardo Ribeiro; e outro por “consentir que de sua casa se entrudasse os transeuntes com água suja16.

No Amazonas e no restante do Brasil, o Carnaval realizado desde o início do século XX guardou inúmeras práticas do antigo entrudo ibérico colonial, prevalecendo a tomada das ruas por foliões que realizam toda a ordem de brincadeiras, zombarias, sátiras e danças. Os Códigos de Posturas já não são mais uma ameaça aos brincantes, mas, assim como o entrudo foi mal visto no passado por parte dos dirigentes e das elites, o Carnaval é alvo da reprovação por parte de alguns paladinos da ‘moral e dos bons costumes’.


NOTAS:

1 A Voz do Amazonas, 03 de Fevereiro de 1867.
2 Lei N° 101 – de 8 de Julho de 1859. Regulamento N° 10 de 7 de Maio de 1859, para o Collegio de Nossa Senhora dos Remédios. Estrella do Amazonas, 7 de Setembro de 1859.
3 Amazonas, 07 de Março de 1867.
4 Amazonas, s.d., 1870.
5 Amazonas, 18 de Maio de 1872.
6 Amazonas, 03 de Julho de 1872.
7 Amazonas, 30 de julho de 1875.
8 Amazonas, 19 de Janeiro de 1879.
9 Amazonas, 17 de Janeiro de 1872.
10 Amazonas, 24 de Janeiro de 1872
11 Amazonas, 01 de Janeiro de 1879.
12 Amazonas, 31 de Janeiro de 1879.
13 Amazonas, 18 de Fevereiro de 1881.
14 Amazonas, 8 de Junho de 1879.
15 Amazonas, 01 de Janeiro de 1884.
16 Jornal do Comércio, 28 de Fevereiro de 1905.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

O destino dos antigos bondes elétricos de Manaus


Uma das principais dúvidas dos leitores das páginas sobre a história da cidade é o destino de seus antigos bondes elétricos, que pararam de circular em 1957, e dos quais se tem como lembranças os trilhos em algumas áreas do Centro, os inúmeros registros em cartões-postais e os relatos dos que chegaram a utilizar esse meio de transporte. O pesquisador Ed Lincon, para ajudar a sanar essa questão, recuperou duas matérias, uma de 1960 do falecido jornalista Irizaldo Godot intitulada Cemitério de Bondes!, e uma de 1995 da jornalista Etelvina Garcia com o título Por que os bondes desapareceram? Nos dois textos, de décadas diferentes, temos um panorama do funcionamento desse meio de transporte, das tentativas de sua recuperação e o seu destino nada animador.


Cemitério de Bondes
Coletivos Elétricos Abandonados na Garagem como Ferro velho – Recuperação de Fachada – História de Uma das Mais Fantásticas Burlas Infligidas ao Povo.


Está definitivamente afastada a hipótese de Manaus voltar a possuir bondes no seu sistema de transporte coletivo. Os elétricos que tanto bons serviços prestaram a população, hoje não passam de um montão de ferro velho sem nenhuma utilidade, servindo apenas para comprovar a criminosa atuação de administradores sem escrúpulos e sem responsabilidade, que deixaram destruir um patrimônio considerado do mais alto valor.

A história relacionado com os transportes elétricos nestes últimos anos, principalmente depois de um trabalho de recuperação que se pretendeu fazer, com alardes e foguetórios, e até com um governador transformado em motorneiro, nos mostra fatos que denunciam criminosa irresponsabilidade. Isso, principalmente, pelo caráter político emprestado à coisa que se tinha como certo o seu efeito nas massas, tinha por igual, a certeza de gastos desnecessários numa das mais fantásticas burlas ao povo deste Estado.

Iremos aos poucos até atingir esse ponto culminante da história dos bondes.


Instalação dos primeiros bondes

Os primeiros bondes que circularam em Manaus foram adquiridos no governo de Eduardo Ribeiro, o “Pensador” e a sua instalação deu-se no governo de Fileto Pires. O primeiro fato histórico relacionado com o sistema de transportes recém-introduzido na capital do Estado, foi o de terem os bondes formado o cortejo fúnebre que conduziu Eduardo Ribeiro à sua última morada, justamente aquele governante que adquirira a frota popular. E a sua exploração coube a firma Travassos & Maranhão, que antecedeu a empresa inglesa The Manáos Tramways And Light Co. Ltda.

O serviço de bondes era feito por 45 veículos, considerados da mais alta qualidade e qualificados como os melhores do Brasil.

Mas, os anos foram passando, o material desgastando e o serviço tornando-se ineficaz até que poucos ou quase nenhum bonde era empregado no transporte coletivo.


Recuperação ou Golpe Político

Em 1955, quando era administrador dos Serviços Elétricos do Estado o engenheiro Carlos Eugênio Chauvin, foi determinado pelo governador da época, que se procedesse a recuperação dos bondes parados e amontoados na sub-usina da Cachoeirinha*.

Não se tratava de uma recuperação verdadeira, mas, apenas, de uma manobra de caráter político que serviria tão somente para projetar o Executivo como órgão realmente interessado em trabalhar pela solução dos problemas que afligiam a população, e dentre os quais figurava em plano de destaque o dos transportes coletivos.

Verdade é que essa recuperação, que se fosse concretizada em toda a sua plenitude, não seria mais que o cumprimento de uma obrigação do Governo, não passou de uma simples pintura. Na parte ligada ao maquinário, pequenos reparos foram feitos pelos próprios empregados das oficinas dos Serviços Elétricos do Estado, apenas com a supervisão técnica do engenheiro Carlos Eugênio Chauvin. E cada bonde, supostamente recuperado custou aos cofres públicos importância superior a 50 mil Cruzeiros.

Cada bonde que saía das oficinas ensejava uma nova festa. O próprio Governador, entusiasmado com os efeitos políticos desse trabalho abandonou o seu gabinete para, de quepe na cabeça, dirigir pelas ruas da cidade o bonde n° 40 (a dezena é pura coincidência).

Acontece que apenas quatro ou cinco bondes foram recuperados. Quando se anunciava a saída de um carro, outro era recolhido já imprestável. Os poucos bondes que trafegavam com a nova pintura, não prestaram serviço por mais de 3 meses, quando voltaram, definitivamente para o ferro velho de onde haviam saído. O mérito dessa recuperação foi permitir que a Companhia mantivesse em serviço ativo, motoristas e cobradores, transferindo a responsabilidade sobre os mesmos para a Companhia de Eletricidade de Manaus e obrigando que essa Companhia de economia mista se veja, atualmente em dificuldade para indenizar funcionários para os quais não há serviço e cuja indenização é da ordem de 13 milhões de Cruzeiros ou mais.


Da Pena a Situação

Da pena verificar a situação em que se encontram atualmente, recolhidos na sub-usina da Cachoeirinha, os bondes que tantos e tão bons serviços prestaram a coletividade. Nada mais resta dos mesmos. Suas máquinas, Trolleys, fios, material em cobre e metal, tudo foi vendido ou desviado. Atente-se para o fato de que referido material foi adquirido na Inglaterra, sendo mesmo considerado produto que hoje não mais se fabrica.

Houve mesmo uma firma local que arrematou quase tudo como se o importante acervo da Companhia de Eletricidade de Manaus estivesse sendo leiloado.

Enfim, desapareceram os bondes da circulação. Se a Companhia de Eletricidade de Manaus desejar explorar o transporte coletivo, como prevê, aliás, o seu Estatuto, terá que recorrer para ônibus elétricos. E isso se não conseguirem tirar antes, os fios de alta-tensão que servirão para acionar aqueles veículos.

* No local funciona o prédio da Eletrobras Distribuição Amazonas, no final da Avenida Sete de Setembro.

Irizaldo Godot

A Crítica, 11 de abril de 1960.





Por que os bondes desapareceram?
Etelvina Norma Garcia*


Lembro de uma reportagem de página inteira que o nosso colega Irizaldo Godot (falecido), meu chefe de redação nos jornais da empresa Archer Pinto, publicou, no começo dos anos 50 (começo dos anos 60, observação nossa), na edição do “Diário da Tarde”. Título: Cemitério dos Bondes. Ele fez uma denúncia grave e séria da criminosa situação dos bondes, abandonados a céu aberto na chamada sub-usina da Cachoeirinha, lá no fim da Sete de Setembro.

Infelizmente, porém, Manaus não é uma caixa de ressonância eficiente para esse tipo de denúncia, que acaba tendo o efeito contrário. Ou seja, desperta a atenção dos vândalos, dos desonestos… E os bondes se acabaram, foram desmontados peça a peça, e transportados em pedacinhos para os fornos privilegiados das metalúrgicas…

Com eles acabou-se um pedaço delicioso da história social de Manaus. Chegamos a ter uma frota de cerca de 60 bondes, com 46 ou 47 em plena circulação, limpos, ágeis, elegantes, correndo nos trilhos com pontualidade britânica… Saíam da Praça do Comércio, depois chamada Oswaldo Cruz, onde ficava o prédio da Manáos Tramways, com seu relógio sorridente, que abria um olho e fechava o outro, tinha cheiro de pipoca e gosto de sorvete Mimosa…

Alguns bondes tinham uma só lança, eram pequenos, faziam as linhas mais curtas – Saudade, Nazaré-Remédios, Fábrica de Cerveja. Outros, os grandes, tinham duas lanças e faziam os percursos mais longos, os chamados “circulares”.

O Governador Plínio Coelho tentou botar os bondes nos trilhos outra vez, mas o sistema gerador de energia elétrica estava falido. Deles, agora, de concreto mesmo, só alguns pedaços de trilho que teimam em empurrar o asfalto e voltar a aparecer…

*Etelvina Norma Garcia é jornalista

A Crítica, 19 de março de 1995




terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O espanhol que veio para a América

Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.

A América, o novi orbis (novo mundo) de Pedro Mártir de Anglería, era um lugar de oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista, agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos que procuravam a estabilidade e a ascensão social.

No continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia” (HOLANDA, 1996, p. 40).

O conquistador que vem para a América traz consigo o mito da superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da conquista é assentada, em certas proporções, em elementos feudais, na Igreja Católica e nas guerras de reconquista. Na encomienda – sistema mais difundido – os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se transformam em unidades autônomas. Nobres ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a seu modo e sem medo de intervenções do poder central.

A presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em especial, assombraram os índio da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas: vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p. 50). Elementos do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior, padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:

Desde un punto de vista icnográfico el Miles Christi, o también llamado Matamoros, que había acompañado a los españoles en la reconquista de la Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de España se convierte de Matamoros en Mataindios (CAPPONI, 2006, p. 253)

A chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios. Tzvetan Todorv, em a Conquista da América: a questão do outro, recupera o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre franciscano Martín Jesus de la Coruão:

Essa gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo, fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu (TODOROV, 1983, p. 54).

O espanhol, a contrário do que afirma Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador, não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As cidades da América Espanhola são articuladas, pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas cidades históricas do México, da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias instituições, com destaque para as universidades.

Foi citado no início a existência de elementos que lembram o sistema feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço sobre a América. Para vários autores a encomienda não é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano. O encomendero é uma espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero Romano, os encomenderos receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras, obtidas a título de ‘merced’ (concessão de terras, estímulo para o assentamento colonial). Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.

Na ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço, acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o historiador italiano Ruggiero Romano faz a família indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de construir o núcleo de um mundo futuro.

O Estado por eles formado é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa Espanhola; e Juan Ginés Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos, os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI, Anna Sulai. El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritual. Imaginário - USP, 2006, vol. 12, no 13, 249-277.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.estherlederberg.com



sábado, 3 de fevereiro de 2018

História do bairro de São Francisco (1950-1960)

Planta do bairro de São Francisco, 29/08/1954.

Ainda paira sobre inúmeros bairros de Manaus a nuvem escura do esquecimento, das origens incertas, de uma identidade ainda não forjada ou identificada. As dificuldades são de vários tipos, indo do acesso às fontes (documentais, orais) até os meios para produzir e divulgar trabalhos. Não faltam historiadores dispostos a usar suas penas para dar vida aos resquícios do passado dos bairros da cidade.

No texto de hoje tentarei apresentar as origens remotas do bairro de São Francisco. O bairro de São Francisco está localizado na zona Centro-Sul de Manaus, fazendo limites com os bairros da Cachoeirinha, ao sul; de Petrópolis, a leste; de Adrianópolis, a oeste; e Aleixo, a norte. Focarei apenas nas duas primeiras décadas de sua existência, entre 1950 e 1960.

As primeiras ruas do bairro de São Francisco começaram a ser abertas por volta de 1950, sendo os trabalhos concluídos em 1954. Desse trabalho, que era realizado dia após dia, surgiram 109 ruas e 15 praças, algumas mais tarde incorporadas ao bairro de Petrópolis. Das primeiras vias públicas, muitas com a nomenclatura alterada há décadas ou mesmo desaparecidas, podem ser citadas as ruas Temistocles Trigueiro, General Carneiro, Hamilton Mourão, Waldemar Pedrosa, Plínio Coelho, Oséas Martins, Arnaldo Péres, Armando Menezes e Jorge Abrahim. Entre as praças que existiram, a Jovino Lemos, Oscar Rayol, Jayme Araújo, Coari e Gama e Silva.

Em 1952 o senhor Oscar Meneses foi indenizado em 50.000 cruzeiros por um terreno que foi aproveitado para a construção do bairro de Petrópolis. No local foram abertas as ruas Leandro Antony, Praça Gama e Silva, Coriolano Lindoso, Fausto Maia, Raul Antony e Marques da Silveira. Nesse mesmo ano é criada a Associação Beneficente dos Amigos do Bairro de São Francisco (ABABSF).

Nesse período a população do bairro era estimada em 4.000 habitantes, existindo cerca de 800 casas. O que surgia ali não era apenas um bairro, mas um empreendimento, um grande empreendimento, que teve como autor Alexandre Pereira Montoril (1893-1975). Alexandre Montoril nasceu na cidade de Assaré, Distrito do Crato, no Ceará, vindo para Manaus em 1912. De acordo com Archipo Góes, autor de Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas, Montoril foi prefeito de Coari por 18 anos, em três intervalos de tempo, entre 1932-36, 1936-39, 1939-47 e 1960-1963. Em 1947 foi eleito deputado estadual.

Alexandre Pereira Montoril (1893-1975), o idealizador do bairro de São Francisco. Ano não identificado.

Enquanto deputado estadual, Montoril decidiu, para dar assistência às famílias que já moravam no local, formadas por nordestinos e pessoas vindas do interior do Estado, criar um bairro naquelas terras afastadas da área urbana. O nome pensado para aquele núcleo seria Coari, em homenagem à cidade que geriu por décadas, mas um fato ocorrido em 1951 mudou os planos. O deputado, naquele ano, junto dos homens da equipe de obras, andava pela mata quando encontrou, deitado sobre uma cama de varas, um senhor de nome Luís de Sousa, rezador. O deputado perguntou se ele estava dormindo, no que Sousa respondeu que estava conversando com São Francisco. Montoril perguntou o que o santo tinha falado. O rezador disse que, em uma capoeira, seria erguida uma capela em honra ao orago. Dessa forma, Alexandre Montoril decidiu batizar o bairro com o nome de São Francisco. Restou da primeira homenagem o nome da praça onde foi erguida a igreja primitiva, Praça Coari.

A História da aparição de São Francisco é um exemplo da forma como os bairros de Manaus eram fundados no passado, quando a maior parte da população era Católica, sob a égide da proteção de um santo ou santa e com uma capela ou paróquia no centro da vida da comunidade.

Como estrutura básica, foram construídos um posto policial, um posto médico e algumas escolas. O posto médico foi inaugurado em 1954, sendo denominado José Francisco da Gama e Silva, por este ter, enquanto governador em exercício, doado 10.000 cruzeiros para a sua construção. Ele foi instalado em uma modesta casa de madeira, custando o total de 17.000 cruzeiros. As escolas construídas foram a Raul Antony e Clearco Antony, esta última dirigida pela professora Francisca Simões do Nascimento. Alexandre Montoril conseguiu 60.000 cruzeiros, verba federal, para a realização dessas obras, também utilizados na compra de medicamentos, para o pagamento dos funcionários das escolas e para a compra de madeira utilizada na construção de casas.

Posto Médico José Francisco da Gama e Silva. Foto de 1954.

A Igreja de São Francisco, erguida na Praça Coari, recebeu o auxílio dos padres do bairro de Adrianópolis. Para tal, Montoril recebeu 1.730 cruzeiros de doações dos deputados da Assembleia Legislativa, valor entregue aos religiosos. Para a região vizinha, Petrópolis, foi reservada uma área de 1.600m² para a construção da Igreja de São Pedro Apóstolo, trabalho entregue nas mãos dos padres Redentoristas, que a concluíram na década de 1960.

O cemitério do bairro, que seria denominado São Pedro, que não chegou a ser construído, ficaria entre as ruas Mário Ypiranga, a norte; Danilo Corrêa, a leste; Oyama Ituassú, a sul; e José Florêncio, a oeste. A área compreendida media aproximadamente 12.000 m².Em 1955 um grupo de moradores do bairro foi até o Palácio Rio Negro pedir o estabelecimento de uma linha de ônibus na comunidade, no que passaram a ser atendidos pelo ‘Radiant’. Por volta de 1965, na administração de Paulo Pinto Nery, a Prefeitura deu início à construção do Mercado de São Francisco, que foi inaugurado em 6 de setembro de 1966, substituindo a antiga feira improvisada.

Mercado Municipal de São Francisco. Foto de 1967.

Aquele novo bairro ao norte da Cachoeirinha chamava a atenção de várias pessoas de outros bairros e que chegavam na cidade. Os amplos terrenos e a vizinhança eram um atrativo. Nos jornais antigos é possível encontrar vários anúncios de compra e venda de casas, de madeira e palha, algumas já com telhas, e de terrenos, todos podendo ser pagos em leves prestações.

Assim como outros bairros nascentes entre as décadas de 1950 e 1960, São Francisco era alvo dos políticos que buscavam votos para eleições ou reeleições. Membros do PTB, como Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho, realizavam comícios em suas ruas, bem como do PSD, do PST (1946-1965) e do PSB. Também movimentavam o bairro os campeonatos de futebol e vôlei organizados pela Associação Esportiva São Paulo e pelo Grêmio Esportivo São Francisco; as procissões, festas do Divino Espírito Santo e as festas dadas no ‘Club de São Francisco’. Em 1961, na administração estadual de Gilberto Mestrinho, foram inauguradas a Quadra de Esportes Thomé Medeiros; a Organização Social da Família do Amazonas; e a escola Dom João de Souza Lima.

Em 1966 as ruas do bairro tiveram os nomes alterados. Através do Decreto Municipal N° 5, de 26 de janeiro de 1966, ficou estabelecido o seguinte: Arthur Cézar Ferreira Reis para Coronel Conrado Niemeyer, Paulo Nery para Cônego Manoel Monteiro, Aderson de Menezes para Thomaz do Amaral, Francisco Pinheiro para João Dias Vieira, Jackson Cabral para Manuel Corrêa de Miranda, Anísio Jobim para Crisanto Jobim, Luiz Marinho para Silval de Moura, Waldemar Cardoso para Adolfo Lacerda, Paulo Rezende para Dr. Aristides Rocha, Ney Rayol para Coronel Ferreira de Araújo, Arthur Virgílio para Rodrigues do Carmo, Dona Raquel para Cel. Basílio Pirro, Zulmar Bonates para Bernardo Michiles, Francisco Plínio Coelho para José da Gama e Abreu, Arlindo Porto para Pereira do Rego, Sergio Neto para Areal Souto, Licurgo Cavalcante para Carneiro da Cunha, Ramayana Chevalier para Ferreira Sobrinho, Pogy Figueiredo para Cel. Miranda da Silva Reis, Coriclano Lindoso para Monteiro Peixoto, Leandro Antony para Antonio dos Passos Miranda, João Crisóstomo para Ribeiro Guimarães, Walter Rayol para Domingos Monteiro, José Amâncio para Agesilau Pereira da Silva, Áurelo Melo para Barão de Maracajú, Plínio Coelho para Clarindo de Queiroz, Cel. Luís Carlos para Oliveira Dias, Álvaro Sifrônio para Alarico José Furtado, Cosme Ferreira para Vasconcelos Chaves, Manuel Barbuda para Monteiro Neto, Cel. Temístocles Trigueiro para Nuno de Melo Cardoso, Waldemar Pedrosa para Senador Leitão da Cunha. Oseas Martins para Jonas da Silva, André Araújo para Ayres de Almeida, Ruy Araújo para Joaquim Tanajura, Álvaro Maia para Valério Botelho de Andrade, Vivaldo Lima para Negreiros Ferreira, Moacir Rosas para Nilo Guerra, Amaro Lima para Francisco José Furtado, Antonio Maia para Franco de Sá, Ferreira da Silva para Maranhão Sobrinho, João Veiga para Paes de Andrade, Edson Melo para Tito Bittencourt, Xenofonte Antony para Sátiro Dias, Márcio de Menezes para Guerreiro Antony, Pereira Júnior para Ernesto Chaves, Fausto Maia para Adelaide Gonçalves, Gama e Silva para Dr. Almir Pedreira, Wilson Calmon para Dr. Agenor Magalhães, Samuel Zuani para Barbosa Rodrigues, Walter Zuani para Pimenta Bueno, Salvador Macedo para Lopes Braga, Geraldo Costa para Cardoso de Andrade, Arnoldo de Menezes para Francisco Machado, Jovino Lemos para Gabriel Filgueiras, Nuno Cardoso para Atayde Verona, Luís Cavalcante para Tinoco Valente e Olenka de Menezes para Custódia Lima. Permaneceram inalteradas a Virgílio Barros, Arnoldo Peres, Tomás Meirelles, Gualter Marques Batista, Alfredo Barreto, Araújo Filho, Cel. Manuel Corrêa, Hamilton Mourão e Nicolau da Silva.

Alexandre Montoril, além de político, também se arriscava na arte poética. Aliás, uma das fontes mais interessantes sobre os primeiros anos do bairro é um longo poema seu intitulado História do bairro de São Francisco, publicado no Jornal do Comércio em 23 de fevereiro de 1958.


História do bairro de São Francisco

Eu quisera ser poeta
De sublime inspiração,
Ou trovador repentista
De grande imaginação,

Que eu gravaria em disco
A história de SÃO FRANCISCO,
Sem temer correr o risco
De passar decepção.

Foi no ano de cinquenta
Da era que vai passando
Que iniciei esse bairro
Cuja história estou contando
Sob o influxo divino,
Em função do meu destino

Agindo com muito tino,
No povo sempre pensando…
O bairro de SÃO FRANCISCO
É uma revelação

Do quanto pode a loucura
Da minha dedicação
Em favor de tanta gente,
Para mim indiferente,
De política independente
Que precisava de chão.

Foi ao norte de Manaus,
Nas terras da Prefeitura
Que se travou esta luta
De ideal e de bravura,
Fortalecendo-me a crença
De que naquela área extensa
Coberta de mata densa,
Fundar um bairro a altura,
- O maior dos de Manaus,
O mais simpático também,
Com a ZONA DE PETRÓPOLIS
Outro igual Manaus não tem;
- Porque a coisa quando é boa
Que Deus do céu abençoa,
- A má vontade é a toa
Não tem valor o desdem…

E o bairro de SÃO FRANCISCO
É essa coisa invulgar
Que o gênio da poesia
Não me permite cantar;
E para que não pareça
Que por isso eu o esqueça
- Antes que tal aconteça
- Sua história eu vou contar:

Eu era então deputado,
Sentindo as ânsias do povo
Devolvi-lhe os meus proventos:
- Construindo um bairro novo.
Mas, talvez por fatalismo
Eu cai no ostracismo;
Mas não renego o civismo,
- E confio ainda no povo!…

Esse bairro é um milagre,
Só a ideia é que foi minha,
E quem sabe se até isso
De SÃO FRANCISCO não vinha?!…
- Pois a minha resistência,
Nessa obra de paciência,
Demonstra com evidência,
Que outra origem não tinha…

São Francisco apareceu
No local da sua ermida,
Dizendo que nesse ponto
Seria a mesma erigida:
Seu Luiz um rezador,
Homem sério sim senhor,
De moral reconhecida.

Eu chegava nesse instante,
(Era um dia de verão)
Quando ele me contou
Inda cheio de emoção
A aparição que viu.
- Eu senti um arrepio
Não calor nem frio
- Mas estranha sensação.

Acreditei na história
E disse na mesma hora:
- Seria Coari o bairro,
Mas é SÃO FRANCISCO agora;
Deste então no meu caminho
Não vi pedra nem espinho,
Não estava mais sozinho
- Tinha o Santo por escora…

E assim o nosso bairro
- Foi avançando p’ ara Oeste
Té à rua Paraíba;
E do lado oposto, a Leste,
Em Petrópolis, já no fim,
Atingiu o JAPIIM,
Limitando o bairro assim,
Com um areial agreste.

À Sul a rua Belém,
Onde o bairro começou,
- É a divisa mais bonita
Que SÃO FRANCISCO encontrou;
É justo que se assinale
Que a rua COUTO VALE
(Para que nele se fale)
Com SÃO JORGE limitou…

Os seus limites ao Norte,
- Das nascentes do SEGUNDO
Seguem de Leste a Oeste,
Como uma linha de fundo;
As terras do lado além,
Que a mesma posição tem
Limitam o bairro também…
Mas quase se acaba o mundo…

Também na parte Sul
Com a Granja BOM FUTURO,
O bairro fecha o polígono
- Num limite mais seguro;
Nesse ponto o SANATÓRIO
Teve um gesto meritório
- Junto e conciliatório,
Colaborando no “duro”.

O bairro que foi traçado
Dentro dum alto critério,
Tem cem ruas quinze praças,
Foi trabalho muito sério;
Com terrenos reservados,
Que deixei lá demarcados
Para postos e Mercados,
Cinemas e cemitério.

Essa reserva de terras
De pública utilidade,
Não tem sido respeitada
Na sua totalidade:
Porque então senhor Prefeito,
Que é um homem de conceito,
Permite a qualquer sujeito,
Ser ali autoridade?!…

O bairro de SÃO FRANCISCO
Tem uma Sociedade
Que pode bem dirigi-lo
Com mais capacidade
E modo eficiente,
Maneiroso e paciente
E de personalidade.

É preciso que esse bairro
Que em parte luz já tem,
Seja visto com carinho
Para ter água também;
Andei por lá outro dia
Enaltecendo o que via,
Mas seu povo me dizia:
Água aqui… ainda não tem…

Demos água a SÃO FRANCISCO
E transporte eficiente,
E à ZONA DE PETRÓPOLIS
- Uma luz resplandecente;
- Se eu fosso deputado,
Seria desassombrado
Agindo por todo lado,
- Em favor daquela gente…

Outro dia em SÃO FRANCISCO
Eu fiquei maravilhado:
Como aquilo está bonito
E o seu povo, animado!
- Gentes que eu não conhecia
Mostravam sua alegria,
- Há três anos que eu não ia
P’ ras bandas daquele lado…

Já que estou fazendo história
Vou agora esclarecer:
Que eu deixei o SÃO FRANCISCO
Mas não posso o esquecer;
- O tempo pode passar,
- A vida pode cessar,
- Tudo pode se acabar…
Mas o bairro há de viver!…

PETRÓPOLIS e SÃO FRANCISCO
Ninguém deve separar;
- São uma e a mesma coisa
Têm que juntos caminhar:
- Na estrada do trabalho,
Quais flores do mesmo galho,
Ou gotas do mesmo orvalho,
Sempre unidos, a marchar…
É tempo de terminar
Pois já está chegando a hora
Em que o Sol vai se deitar
P’ ra acordar com nova aurora.
Encerrando esta história
Pra mim uma vitória
Vou repousar a memória
Porque a musa foi-se embora…

Alexandre Pereira Montoril. Manaus, 13/02/1958

Essa foi uma tentativa de apresentar, de forma concisa, as primeiras décadas de existência do bairro de São Francisco. Muitos elementos ficaram dispersos na narrativa. Considero que um bom trabalho sobre as origens históricas de bairros e comunidades, além de estar assentado sobre fontes documentais, precisa dos relatos orais, dos depoimentos daqueles que foram testemunhas dos primeiros tempos, que vieram em ondas migratórias, que fizeram casas e ruas inopinadas, para que se penetre mais intimamente na trajetória coletiva desses lugares.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GÓES, Archipo. Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas. Coari, Amazonas, 2016.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


FONTES:

Jornal do Comércio, 07/09/1954
Jornal do Comércio, 13/02/1958
Jornal do Comércio, 01/02/1966
Jornal do Comércio, 14/07/1967
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1953
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1954
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1957
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1958


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal do Comércio, 07/09/1954
Jornal do Comércio, 14/07/1967
Nilson Montoril - Arambaé. http://montorilaraujo.blogspot.com.br