sexta-feira, 5 de julho de 2019

Memórias do bairro do Aleixo, em Manaus

O texto a seguir, originalmente publicado no Jornal do Comércio em 2008, é de autoria do pesquisador Ed Lincon Barros da Silva. Nele, através de memórias das décadas de 1970 e 1980, Ed Lincon nos apresenta as transformações ocorridas no bairro Aleixo, localizado na zona Centro-Sul de Manaus.

MEMÓRIAS DO BAIRRO DO ALEIXO

Por Ed Lincon Barros da Silva 

Rua São Domingos, 1975. FONTE: Jornal A Crítica, 1975.

Minhas recordações sobre o bairro do Aleixo vem da minha infância na década de 1970. As ruas eram de terra batida, com exceção da principal, conhecida apenas por estrada do Aleixo (atual avenida André Araújo). Esta, em 1974/75, era uma via estreita e de mão dupla, onde muitas vezes mal dava para passar um terceiro veículo. A pavimentação dessa estrada, feita em concreto armado sobre pedra jacaré, tinha início na rua Paraíba (atual Humberto Calderaro), indo próximo ao bar Nacionalino. A parte asfaltada começava daí e terminava onde hoje está o SOS Manaus. O restante, no trecho que vai até a Bola do Coroado, ainda estava sendo terraplanado. O outro lado da avenida, no sentido centro-bairro, não existia. Somente em 1976 é que esta via foi alargada e asfaltada.

Na época, apenas uma empresa de transportes coletivos atendia ao bairro, a Ajuricaba (encampada pela prefeitura em dezembro de 1988), que fazia as seguintes linhas: Coroado, Aleixo, Cachoeirinha; Jardim Paulista, Aleixo, Cachoeirinha; e Belo Horizonte, Aleixo, Cachoeirinha.

No lugar onde hoje está a Secretaria de Fazenda e a praça adjacente, havia várias casas de madeira, demolidas em 75/76 por ordem do prefeito Jorge Teixeira de Oliveira (1975/1979). Vi também o início da construção, em 1976, de vários edifícios públicos existentes atualmente, entre os quais: o Fórum Henoch Reis, abandonado durante muitos anos e concluído em 2002; O TRE e Correio, etc. A rua Belo Horizonte nessa época, era desprovida de asfalto possuindo somente calçadas e meio fio, estando preparada para ser pavimentada.

Vista aérea do Horto Municipal, 1968. FONTE: Arquivo Público Municipal.

A rua Bonsucesso, no trecho que vai da Belo Horizonte até a São Domingos, era praticamente intrafegável. Na parte baixa, havia uma ponte improvisada feita de tronco de buritizeiro sobre um charco que havia ali. Essa mesma rua Bonsucesso, na parte que vai da São Domingos até onde foi construído o conjunto Huascar Angelim, que sequer existia, também podia ser percorrida de carro, apesar das valas existentes. As ruas Santa Claudia, Castro Alves, São Vicente, São Sebastião e Santa Clara também apresentavam os mesmos problemas.

Na rua São Domingos, o mato e o lixo predominavam na sua quase totalidade. Quando as máquinas da prefeitura passavam no local, a poeira tomava conta de tudo. E, após as chuvas era um espetáculo para nós, meninos do bairro, contemplar os carros derrapando em zig-zag para chegar até o topo da ladeira que desemboca na André Araújo e que ainda não havia sido aterrada. O aterro da rua São Domingos só foi realizado em março de 82.

A rua Severiano Nunes não tinha esse nome e era denominada de rua do Curre, também totalmente intrafegável. Na parte baixa dessa rua, corria um igarapé de águas límpidas onde se podia pescar pequenos peixes, como o cará e o cardinal. Canalizado em 85, esse igarapé foi transformado em esgoto de águas pluviais. Na rua José do Patrocínio, hoje denominada de Atagamita (nomenclatura não aceita pelos moradores) ainda passava algum carro.

Asfalto? Somente em outubro de 85. A primeira rua do bairro a ser asfaltada foi a Castro Alves, seguida da José do Patrocínio, São Domingos, Santa Claudia, Bonsucesso, Beco São Domingos, entre outras.

FONTE:
Ed Lincon, especial para o Jornal do Comércio. 24/10/2008

IMAGENS:
Rua São Domingos, 1975. Jornal A Notícia.

Vista aérea do Horto Municipal, 1968. Arquivo Público Municipal. Ambas do acervo particular de Ed Lincon.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Uma reforma espiritual no Egito Faraônico: Akhenaton na sua consagração divina e humanizada (I PARTE)


O artigo a seguir, sobre a reforma religiosa no período Armaniano (Egito, 1352 a.C. - 1336 a.C.), é de autoria da acadêmica de História na Universidade Federal do Amazonas Inara Kézia Gama, que desenvolve pesquisa sobre a reforma espiritual no Egito Faraônico durante o reinado de Akhenaton.



Estela Amarniana. Na cena, Akhenaton e Nefertiti com suas três filhas estão sob os raios do deus sol Aton, uma família reunida sob a benção e proteção dos raios de Aton. FONTE: National Geographic (PT).

Resumo
O período Amarniano é a periodização criada pela egiptologia para se referir aos anos entre 1352 e 1336 a.C., 18ª dinastia do Egito Faraônico, no contexto do novo império. O termo foi criado também para contemplar a reforma proposta pelo faraó Amenhotep IV, posteriormente chamado Akhenaton. Em seu reinado, o faraó estabeleceu uma reforma religiosa e modificou o panteão egípcio, nomeando o deus Aton- o disco solar- como o único deus. A implantação de uma espécie de “monoteísmo” em uma civilização politeísta é um assunto de enorme controvérsia na egiptologia. Jan Assmann um dos mais conceituados egiptólogos que aborda a religião egípcia na contemporaneidade, salienta a importância da reforma de Amarna: “a redescoberta do rei herético, Akhenaton, que após sua morte foi submetido a uma completa dammatio memorie no Egito, é a mais significativa descoberta da egiptologia” (ASSMANN, 2013, p.79). As fontes trabalhadas pelo presente projeto foram traduzidas por Ciro Flamarion Cardoso, que dedicou-se a pesquisar o período Amarniano. Esta tradução encontra-se na tese da Gisela Chapot (2015), o próprio Ciro Cardoso cedeu o material para o desenvolvimento do trabalho da Chapot. Emanuel Araújo no seu livro Escrito para a eternidade, a literatura no Egito faraônico (2000) organizou em seis partes os estilos da literatura no Egito Antigo e situa o Grande Hino a Aton na Literatura lírica, pois sua escrita está estreitamente ligado a poemas amorosos, hinos de vitória militar e religião (ARAÚJO, 2000). O desenvolvimento do hino de louvor ao deus Aton, expressou uma nova feição do comando faraônico durante o reinado de Akhenaton, que pretendemos analisar nessa pesquisa.
Introdução
O período da reforma de Amarna é um assunto de grande turbulência entre egiptólogos. A tese monoteísta foi defendida fervorosamente nos séculos XIX e XX. James Henry Breasted é o acadêmico imprescindível para o estudo da religião de Amarna, pois foi o egiptólogo desbravador dos hinos de Aton. Arthur Weigall elaborou a primeira biografia do monarca: The Life and Times of Akhnaton, Paraoh of Egypt (1910) que foi um best-seller de enorme influência na área ao longo do século XX. Weigall foi o responsável por redescobrir e estabelecer Akhenaton na era moderna. “O glorioso” Akhenaton segundo Weigall era um anterior de Jesus Cristo, sua religião constituía uma “religião tão pura, comparável apenas ao cristianismo” (1910, p.53)1. Com sua pesquisa voltada para a vida de Akhenaton, Weigall afirma:

As lindas doutrinas da religião com as quais o nome desse faraó é identificado foram produções de seus últimos dias e até ele ter pelo menos dezessete ou dezoito anos de idade, nem seu monoteísmo exaltado nem nenhum dos seus futuros princípios eram realmente aparentes. Algum tempo depois do oitavo ano de seu reinado, descobriu que ele desenvolveu uma religião tão pura que deve compará-la com o cristianismo para descobrir suas falhas, e o leitor verá que a teologia soberana não foi derivada da sua educação2. (WEIGALL, 1910, p. 53)

Breasted e Weigall estabelecem um Akhenaton protocristão, ao relacionarem e aproximarem a tradição religiosa do Egito antigo com o monoteísmo judaico-cristão, uma visão que influenciou uma geração considerável de estudiosos, embora seja problemática e atualmente combatida na egiptologia. Ciro Flamarion Cardoso fala que essas comparações entre textos sagrados dos egípcios e cristãos, tinham como objetivo buscar “um pensamento teológico análogo” (2008, p. 1). O rico panteão egípcio e a complexidade de suas manifestações religiosas, difíceis de serem apreendidas fora de uma chave de entendimento judaico-cristã intensificaram controvérsias ao longo do século XIX e XX e ainda estão longe de serem encerradas.

Jan Assmann salienta as diferenças entre o “monoteísmo” de Akhenaton do bíblico, o chamado ‘cosmoteista’, mas também estabelece aproximações, sugerindo até mesmo possíveis influências do primeiro sobre o segundo. Para o autor, a bíblia teria se baseado na adoração do poder cósmico que se prolifera no sol e estabelecia a ordem universal através da luz, fonte da vida e do seu movimento diário e ocasionador do tempo. Assmann caracteriza o monoteísmo de Moisés e explica como seus seguidores negaram as crenças egípcias e suas possíveis influências na origem do monoteísmo judaico-cristão, sendo os egípcios condenados a meros idólatras politeístas. O Egito passou a simbolizar o rejeitado, a interpretação religiosa errônea, o modo de vida “pagão”. (ASSMANN, 1997, p.4).

Rosalie David demonstra certas semelhanças que não podem passar despercebidas entre o Grande Hino a Aton e o Salmo 104 do Antigo Testamento, como a seguinte passagem: “Seus raios sustentam todos os campos; quando seu brilho forte, eles vivem e crescem para você. Você marca as estações para nutrir tudo àquilo que fez” (Hino a Aton) e “Tu produzes feno para os animais e plantas para uso dos homens; tu fazes sair o pão do seio da terra” (Salmo 104:14).

Ciro Cardoso afirma que historiadores da religião sugerem outras possíveis definições para o caso do “monoteísmo” no Egito: como o henoteísmo, que seria a centralização da crença em um único deus em meio a um cenário politeísta incontestável, permanecendo a crença em diversos deuses e o kathenoteísmo, que significaria a centralização da importância do culto a cada deus independentemente, novamente, sem contestar o politeísmo. Para o autor, esses são aspectos da monolatria, mas não de monoteísmo (CARDOSO, 1999, p. 63). No entanto, Erik Hornung afirma: “agora, pela primeira vez na história, o divino tornou-se uno, sem multiplicidade complementar; o henoteísmo transformou-se em monoteísmo” (1983, p. 246). Ou seja, a situação em Amarna escapa de qualquer tentativa de definição simplista.

Akhenaton desenvolveu no Egito uma nova visão de mundo, “solarizando” o panteão, pois a fonte de toda vida passaria a ser originária do disco solar Aton (CHAPOT, 2015, p. 380)3. E mais: estabeleceu um grupo que personificaria seu poder- a família real de Amarna. Seu repertório imagético, leva em conta seu lado humano, ilustrando a intimidade com sua rainha Nefertiti (que significa ‘A bela chegou’) e seu lado paterno. O faraó determinou o louvor ao sol com hinos para o deus e tais poemas marcaram seu reinado e sua revolução religiosa.

A cosmovisão de Akhenaton articula um novo contexto sociopolítico ao elevar seu poder divino ao mesmo tempo em que os aproximou de seus atributos humanos. Nesse sentido, a figura monárquica passa por um processo de humanização. A representação da vida privada da família real era algo incomum na arte egípcia. A famosa “Estela de Berlim” era utilizada para a veneração doméstica pela elite de Tell El Armana. Nessa estela, a família esbanja afagos e carícias incomuns, sentados casualmente sob os raios de Aton, que os ilumina no alto da cena, algo incomum e excepcional na iconografia do Antigo Egito.

Emanuel Araújo explica que as cenas da família podem ser pensadas como “recurso de propaganda para aproximar o rei e sua família dos súditos num momento de afirmação da nova teologia, ou também como apresentação de uma família unida em torno do culto do deus que se impunha sobre o velho panteão” (1996, p. 24). Portanto, essa humanização da figura faraônica é um aspecto importante e que merece uma análise mais aprofundada, pois desmistifica e relativiza a famosa caracterização do faraó exclusivamente como “rei-deus”, além de problematizar a tão marcada ideia de “despotismo oriental”4.

A bibliografia utilizada no desenvolvimento do projeto demonstra a complexidade religiosa e literária do Egito faraônico. Weigall e Assmann enfatizam a semelhança da religião de Akhenaton com o monoteísmo bíblico, destacando uma possível raiz egípcia na fonte bíblica. Como já observado nas páginas acima, embora acreditemos que seja errôneo dizer que existiu um “monoteísmo" no período Amarniano, não descartamos a possibilidade de uma influência da experiência egípcia no monoteísmo judaico-cristão posterior. No entanto, o objetivo da pesquisa é enfocar na especificidade do período Amarniano, de forma a situar as fontes no seu período e entendê-las no seu próprio contexto, sem maiores pretensões de analisar suas possíveis influências no monoteísmo judaico-cristão, tampouco pretendemos usar nosso instrumental monoteísta para traduzir a complexidade do momento. Ou seja, a intenção é investigar o nascimento de uma nova fé e o seu impacto em uma sociedade político-religiosa, onde a prática pagã prevalecia. O ‘faraó herege’ tivera um papel fundamental para a reforma espiritual, trazendo uma renovação na prática religiosa e grandes impactos na exposição da família real e na arte.

O presente projeto tem como ênfase demonstrar a relevância de temáticas ambientadas na Antiguidade na formação da nossa identidade cultural e na composição do pensamento contemporâneo. Se por um lado, seu universo mitológico nos causa estranhamento através de um jogo de alteridade, algumas de suas preocupações e dos seus valores nos aproximam, como no caso Amarniano, pois ao enfocar aspectos míticos e religiosos, percebemos as inúmeras ressonâncias dessas temáticas em nossa própria cultura. Dessa forma, acreditamos que colaboraremos para despertar o interesse dos alunos da Universidade Federal do Amazonas pela área de História Antiga.

Tomaz Tadeu da Silva (2000) problematiza os conceitos da identidade e diferença. Explica que a identidade é um processo de produção simbólica e discursiva, ao afirmar uma identidade, está se negando outras. A diferença é ‘um produto derivado da identidade’ (SILVA, 2000, p. 73), sendo assim, identidade e diferença completam-se. O autor afirma que identidade e diferença são frutos de criação linguística, fazem parte do mundo cultural e social. A linguagem faz parte desse processo, pois é através da fala que produzimos a identidade e a diferença. (SILVA, 2000).

A identidade e diferença são resultados de processos culturais e sociais, assim, as pluralidades delas são inevitáveis. Não podemos definir a identidade, já que ela trabalha em conjunto com a diferença. Seguindo essa lógica, o Grande Hino a Aton, que exprime a nova religião Amarniana, tem como base os hinos solares de Amon-Rá. Explicamos ao longo do desenvolvimento do presente projeto, que o período Amarniano se define e se caracteriza por uma reforma político-religiosa, onde Akhenaton em sua “nova” religião solar cultua somente o deus Aton. No entanto, questionamos: apesar da reforma religiosa, pode-se negar a influência dos processos religiosos anteriores ao período Amarniano? Com base das leituras realizadas, é certo que não.

Jan Assmann (2001) afirma que os hinos solares de Amon-Rá, serviram de exemplo para os hinos de Aton. Nicolas Grimal (2012) explica que não há nada de renovação e nem tão pouco uma novidade. Regina Coeli (2009) na sua dissertação apresenta as aproximações do culto a Aton aos cultos solares anteriores ao período de Amarna. Gisela Chapot (2015) na sua tese apresenta o cenário Amarniano como ‘uma nova visão de mundo’ construída por Akhenaton, que ao lado da família real Amarniana, apresenta a sociedade egípcia, uma família reunida que oficializavam os cultos a Aton. Além de seu ofício como faraó, Akhenaton é representado como esposo e pai, o que destaca seu lado humano. Chapot apresenta essa família através da iconografia, em que se percebe o diferencial do período Amarniano em relação aos períodos anteriores. Até então, um rei se expor ao lado da sua esposa e suas filhas não era algo comum.

Observa-se então, que a identidade religiosa Amarniana tem ligações com identidades religiosas solares anteriores, assim fica claro que a identidade e diferença trabalham em conjunto na construção e produção social e cultural.

Cecília Azevedo (2003) apresenta múltiplas faces da abordagem das identidades, afirma que devemos identificar as duplas características em dois princípios: principio da alteridade e principio da representação ou encenação. As identidades são construídas com base em acontecimentos, valores, interesses e ideias que projetam as identidades coletivas (AZEVEDO, 2003, p. 45), ressalta ainda que “identidade é uma construção social e simbólica dinâmica em função de sua permeabilidade em face do contexto. Portanto, as identidades mostram-se móveis porque contingentes.” (AZEVEDO, 2003, p. 43)

Norberto Luiz Guarinello (2013) aborda a História antiga como tipo de memória social, que é primordial para o desenvolvimento da identidade coletiva. Através da memória, as identidades são formadas, por meios de processos que ao longo dos séculos, percebemos que a construção da identidade tem espaço nas Ciências Humanas contemporâneas. “A memória social é, com frequência, um campo de conflito, no qual diferentes sentidos são conferidos ao passado: personagens e fatos distintos são valorizados ou rejeitados, interpretações são contrapostas, silêncios ou rememorações festivais se confrontam.” (GUARINELLO, Norberto Luiz, 2013, p.9)

A teologia heliopolitana é praticada desde o Antigo Império (2686-2181 a.C), os cultos heliopolitanos foram bastantes praticados no Médio Império (2055-1650 a.C). O Novo Império (1550-1069 a.C.)5 que tem início a partir da 18º dinastia teve como ênfase os cultos solares, o principal os de Amon-Rá. A solarização na religião egípcia é o marco na civilização egípcia, que tem suas formas e significados associados ao mito de criação.

Então, apesar da reformulação religiosa, acreditamos que o período Amarniano não fora algo “novo” na religião solar egípcia como tantas vezes se defende na egiptologia. A solarização já era algo predominante da religião egípcia, que ao longo dos períodos dinásticos, ganhou novas características. Akhenaton e Nefertiti formaram um casal político, onde apresentaram por meio da arte Amarniana, cenas íntimas do casal. Nos cultos, realizavam oferendas a Aton que com seus raios terminados em mãos, abençoava o casal solar. Nas representações, suas filhas também participam dos cultos- principalmente Meritaton- em alguns casos, Nefertiti com sua filha aparecem realizando as oferendas, em outras, Akhenaton e sua filha. Formam uma família e esse foi o diferencial na imagem da religião Amarniana associada a uma família ensolarada, isso foi primordial para o ofício religioso de Amarna.

NOTAS:

1O autor usa a palavra “doutrina” para se referir à religião estabelecida por Akhenaton, o que é consideravelmente anacrônico, já que essa ideia é proveniente do monoteísmo judaico-cristão. Talvez a intenção do autor fosse enfatizar a base do ensinamento transmitido pelo faraó, porém acreditamos que “doutrina” não seja a palavra mais apropriada para tratar desse período Amarniano.

2 Tradução livre do original do autor: “The beautiful doctrines of the religion with which this Pharaoh’s name is identified were productions of his later days; and until he was at least seventeen or eighteen years of age neither his exalted monotheism nor any of his future principles were really apparent. Some time after the eighth year of his reign one finds that he had evolved a religion so pure that one must compare it with Christianity in order to discover its faults; and the reader will presently see that the superb theology was not derived from his education”.

3 A tese de doutorado de Gisela Chapot da UFF trabalha a cosmovisão do reinado de Akhenaton, em que se estabelece a ideia de um deus “solarizado”, propagado pela nova teologia solar do deus Aton em volta da família real Amarniana.

4Erik Hornung debate as formas de definição do faraó que predominaram ao longo do século passado. Durante muito tempo se considerou apenas a natureza despótica do rei, mas em 1902 Alexandre Moret começou a especular sobre a divindade do rei, que era fundamental para o entusiasmo de construções tão monumentais como as feitas no Egito. A partir dos anos 60 Georges Posener enfatizou o seu aspecto humano, atrelado ao divino, tendência que tem se fortalecido desde então. Hornung descarta o ainda tão usado termo cunhado por Moret de “rei-deus”, conceito que ilustra apenas a sua faceta divina em detrimento de sua humanidade, e de seu papel como representante do culto. Cf: HORNUNG, 1994, p. 252.

5 Os anos datados são utilizados por Emanuel Araújo (2000), que segue a linha cronológica de Shaw & Nicholson (1996, 310-312). Araújo explica que está listado apenas o que constavam no texto. Observa-se na cronologia algumas fases de reinados de faraós que não foram datados. A cronologia egípcia foi estipulada pelo sacerdote egípcio Maneto (323-245 a.C) que dividiu em trinta dinastias o reinado dos reis. Essa cronologia não é totalmente precisa, porém egiptólogos seguem essa divisão. Há também a trigésima primeira dinastia, que foi estipulada por um cronógrafo subsequente. De qualquer forma, o contexto histórico egípcio é baseado nos registros de Maneto. Em 332 a.C, o rei da Macedônia, Alexandre, o Grande começa seu reinado no Egito. Consequentemente, o Egito passou a seguir uma linhagem Greco-macedônica, de origem ptolomaica e tendo como o general Ptolomeu de Alexandre (posteriormente rei Ptolomeu I) o descendente dessa linhagem. Cleópatra VII foi a ultima rainha da linhagem egípcia Greco-macedônica, depois disso o Egito tornou-se uma província romana em 30 a.C. Assim, deu-se o inicio do Império Romano, com a linhagem chamada de período Greco-romano. Antes do Egito se torna um reino unificado em 3100 a.C e do estabelecimento das dinastias, a população vivia em varias comunidades no Delta e no decorrer do Nilo. Essas comunidades desenvolveram-se gradativamente e dividiram-se em dois reinos, um localizado no norte e outro no sul. Contemporaneamente, esse contexto é conhecido como período Pré-Dinástico (c. 5000- c. 3100 a.C). (DAVID, 2011).


Inara Kézia Gama, 20, é acadêmica do 7° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

História da Criminalidade em Manaus: O Caso Waldeglace Granjeiro (1968)


Manaus, fevereiro de 1968. Nova ordem política, novos horizontes. Fazia quase um ano que a Zona Franca havia sido instalada, trazendo novo vigor econômico a capital. Os agentes financeiros novamente voltaram seus olhos para a região. O dinheiro voltou a correr pela cidade. Mas nem tudo ocorreu como as classes dirigentes esperavam. Com o crescimento vieram os problemas sociais, a falta de habitação, a criminalidade. Naquele ano, um jovem engraxate era assassinado de forma brutal. Quem escreve as linhas a seguir é o professor e historiador Aguinaldo Nascimento Figueiredo. O Caso Waldeglace, sobre o qual discorre, em texto a ser publicado em livro inédito, abalou aquele início de 1968, seja pela gravidade, seja pelo desfecho, um tradicional embate entre os que detêm influência político-econômica e aqueles que vivem à margem da sociedade, sendo o confronto desfavorável a estes últimos.


OS MAIORES CRIMES DE MANAUS: O CASO WALDEGLACE GRANJEIRO


Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo


Este texto faz parte do livro – Os Dez Maiores Crimes de Manaus – a ser publicado quando dispuser de condições financeiras para tal. Espero que seja breve. Esse foi um dos mais estarrecedores crimes cometidos na Manaus dos anos de 1960, por ter tido como vítima um adolescente de família humilde que ganhava a vida no ofício de engraxar sapatos e, do mesmo modo, envolver figuras notórias da sociedade manauara, bem como a forma brutal que foi materializado. Com características de sadismo (naquela época não existiam crimes de pedofilia), seguido de homicídio doloso, o crime foi largamente explorado pelas mídias locais, acabando por se tornar num acalorado debate acadêmico jurídico e assunto em todos os lugares da cidade, em razão dos contornos que tomou. Cotejando as informações divulgadas na época, produzimos aqui uma síntese dos acontecimentos. Boa leitura a todos.


UM CORPO APARECE


O corpo de Waldeglace Granjeiro. FONTE: Jornal do Comércio, 16.02.1968.

Na passagem do dia 14 para 15 de fevereiro de 1968, o corpo do engraxate Waldeglace Fernandes Granjeiro foi encontrado sem vida na Estrada do Parque 10 de Novembro (atual Humberto Calderaro Filho) por um grupo de moradores da região, que era considerada, até então, área inóspita e utilizada pela população para acessar os balneários da cidade, principalmente o Parque 10 de Novembro, o mais famoso. Estirado à beira da estrada, 200 metros do Fazendário Clube, o corpo estava nu da cintura para baixo, com a calça envolta em seu pescoço, aparentando ter sido estrangulado, bem como com duas perfurações de armas de fogo, provavelmente um revólver calibre 22, segundo apurou, posteriormente, a autoridade responsável pelo inquérito policial. O cadáver do jovem, de apenas 14 anos apresentava, do mesmo modo, indícios de sevícias e abuso sexual. O crime comoveu a cidade, mobilizando a imprensa, os segmentos policiais e jurídicos, pois, a época, Manaus possuía pouco mais de 200 mil habitantes e tudo que acontecia de extravagante logo chegava ao conhecimento público. Embora a cidade já convivesse com os primeiros momentos do projeto Zona Franca trazendo promessas de prosperidade econômica, os comportamentos ainda são de uma cidade provinciana, marcada fortemente por traços moralistas tradicionais, por isso mesmo, acontecimentos como esses chocavam a sociedade, em razão de serem raros, ainda mais quando cometidos com requintes de perversidade a exemplo do que foi submetido o adolescente. Dias depois de aberto o inquérito para apurar o caso, a cargo do Chefe de Polícia, Bacharel João Valente, a autoria do crime se desviava para um caso de “curra” ou “geral”, que era uma repugnante prática criminosa em que, grupos de rapazes estupravam e seviciavam pessoas indefesas, geralmente mulheres e crianças, abandonando-as à própria sorte em lugares ermos como forma de punição ou por pura sandice. Infelizmente essa era uma ação doentia tolerada pela sociedade manauara, porque, na maioria dos casos, envolviam “filhinhos de papai” do jet set baré. Do mesmo modo, na ótica caricata da moral elástica local, as vitimas eram pessoas de baixo estrato social, “facilitadores dessa permissividade” e “sem vergonha” que andavam a procura dessas aventuras e que mereciam esses “castigos”.


ENCONTRA-SE UM SUSPEITO


José Osterne de Figueiredo. FONTE: Instituto Durango Duarte.

Com os avanços das investigações policiais, muito material probatório foi recolhido, muitas testemunhas foram ouvidas e os primeiros resultados apontaram na direção do comerciante José Osterne de Figueiredo, proprietário da “’’Pensão Maranhense”, localizada na Avenida Eduardo Ribeiro, no centro de Manaus, como o provável autor do delito. Após quase um mês de esperas, os laudos periciais foram entregues ao doutor João Valente pela equipe de investigações composta pelo delegado Ribamar Afonso, comissários Geraldo Dias, Omar Salum, Dinancy Barroso, Mariolino Pinheiro e os peritos Cláudio Reis, Hudson Cordeiro e Antônio Frota, que adiantou então as primeiras intimações sobre o processo. Segundo João Valente, os exames periciais realizados por técnicos do INPA e da DESP no carro do senhor José Osterne de Figueiredo, atestaram que o sangue nele encontrado, tratava-se mesmo de sangue humano, provavelmente de Waldeglace Grangeiro. Outras provas foram apresentadas pelo delegado para consolidar as acusações contra o comerciante e, assim, pedir sua prisão preventiva. Além do sangue do jovem e da constatação da presença do automóvel do suspeito na área do delito, havia uma camisa com as iniciais JOF (José Osterne de Figueiredo) nela inscrita, vestindo o menino quando do óbito, além dos exames de corpo delito, a necropsia e os relatos de testemunhas e de vítimas de aliciamento, sequestro e intimidação do suposto assassino. Pesavam ainda contra José Figueiredo ou Figueiredo as condenações a que foi submetido por ter assassinado, em setembro de 1954, o comerciante português Antônio Dias, morador da Rua Taqueirinha e o alfaiate Anacleto Gama, seu empregado, morador da Rua Joaquim Sarmento e, portanto, já ser reincidente em prática de homicídios.


ANTECEDENTES DO CRIME


A “Pensão Maranhense” era point gastronômico muito frequentado por figurões da elite local, que iam até lá fazer suas refeições, bebericar ou para outras finalidades, algumas suspeitas mesmo. De acordo com versões colhidas pela imprensa a época, a tal “pensão” era ponto de encontro de pedófilos e outros tipos de aliciadores de menores, que ali assediavam suas vitimas ou marcavam encontros para esses fins. Aliás, Figueiredo e sua esposa eram donos de casas de prostituição em Manaus, sendo uma delas conhecida como “Verônica”, localizado nas cercanias da cidade, mais precisamente na Estrada dos Bilhares, bairro de Flores. A “pensão”’ estava sempre repleta de gente abonada e, em função dessa frequência e do poder aquisitivo dos habitues, ela era ponto de trabalho para menores carentes que lá exerciam seus ofícios para ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento da família, a exemplo de jornaleiros, vendedores ambulantes e engraxates. Waldeglace morava na Rua São Domingos, próximo à antiga estrada do Aleixo, numa casa humilde com seu pai Walter Granjeiro, de 57 anos, a mãe Zilma e mais sete irmãos. A casa de chão batido, com as paredes feitas de restos de tambores de piche asfáltico e madeiras toscas, tinha três cômodos e apenas um velho guarda roupa como móvel na pequena saleta. A água vinha de um igarapé próximo e a iluminação era de lamparinas. Mesmo assim era um lugar tranquilo e tinha bons espaços para brincadeiras e muita diversões infantis. Walter era pedreiro e fazia serviços inopinados, pois nem sempre estava formalmente empregado, e a esposa, dona Zilma, era lavadeira. Por certo é que a vida dessa família era muito sofrida e carente materialmente, mas nem por isso menos abastada em afeto e solidariedade entre seus membros.

Waldeglace, vendo a situação difícil da família, pois a mãe acabara ter o último filho, resolve ajudar no sustento da casa trabalhando de engraxate nas ruas mais movimentadas da cidade. A princípio, seu primeiro ponto de trabalho foi a Praça da Saudade, onde já havia se familiarizado com outros colegas fazendo sua própria “turma”. Tempos depois, relatam as pessoas que o conheciam mais próximo, Waldeglace passou a faturar mais que os outros colegas e levar para casa sanduiches, roupas e sapatos novos e não mais queria usar as roupas velhas, segundo a mãe, e dizia para ela que era um “homem lá da Eduardo Ribeiro que está me ajudando”. Certa ocasião, passando com a mãe pela frente da “Pensão”, disse-lhe: “É aqui mamãe que mora o homem que me ajuda, não vamos entrar porque tem muita gente”. Até então dona Zilma não tinha nenhuma ideia do que poderia acontecer com seu filho. Ele também disse à mãe, que o homem havia proibido os outros engraxates entrarem na pensão e que ele parasse de falar com os mesmos, a quem os chamava de “sujos e mal educados”. Waldeglace era um menino sadio, cheio de desejos e muito alegre, segundo narrativa dos pais e de vizinhos que o conheciam. Estudava e tinha sonhos de ajudar os pais e irmãos com quem tinha grande afeto e senso de solidariedade, a terem uma vida melhor, pois, quando chegava com algum trocado, comprava bombons para os irmãos mais novos, como forma de agradá-los.

Naquele fatídico dia 14 de fevereiro de 1968, Waldeglace desce do ônibus “Aleixo via sete de Setembro”, na parada próxima à grande avenida e caminha rumo a “pensão” para iniciar seu trabalho às 18:00h. Estava acompanhado do companheiro Mário Jorge de Magalhães Oliveira, de quem se separa em frente à Lobrás. Foi à última vez que o amigo ou outras pessoas o viram com vida. Naquela noite, o vigia do Fazendário Clube, por várias vezes impede que um veículo de luxo adentre os limites da agremiação já que, apesar de não ter cercas, o local era propriedade privada e tinha a entrada proibida a estranhos. Ainda, de acordo com o relato desse vigilante, era comum automóveis se dirigirem àquelas paragens a noite, principalmente com casais fugindo de olhares indiscretos para namorar com tranquilidade e sempre ele os afugentava, mas sem muito alvoroço. Entretanto, nessa noite o que chamou sua atenção foi que este veículo, por três vezes, tentou entrar nas dependências do clube e, por três vezes, ele o repeliu para que se afastasse dali. Segundo ele, já passava da meia-noite quando o mesmo veículo tenta invadir novamente o espaço do clube e é novamente rechaçado por ele. Depois disso, ele ser recolhe para dormir e não mais percebe nenhum movimento rumo ao portão. No dia seguinte, um grupo de guardas noturnos que voltava do trabalho, avistou o corpo do engraxate à beira da estrada, embaixo de um buritizeiro, junto a folhas espinhosas e muito mato seco, a uns 20 passos da entrada do balneário do doutor Moura Tapajós, próximo ao lugar relatado pelo vigilante sobre a presença do automóvel suspeito. O que se seguiu foi um burburinho enorme de policiais, profissionais da imprensa e curiosos se aglomerando no local, querendo saber o que havia acontecido. Horas depois, o Instituto Médico Legal remove o corpo para realizar exame cadavérico e outras providências técnicas e periciais. Com a liberação oficial, o cadáver do jovem é levado à residência da família para o velório e sepultamento. Foram momentos de muita angústia e dor para os parentes e amigos da pequena comunidade da estrada do Aleixo, todos revoltados com o insólito ocorrido e questionando quem teria coragem de cometer tão bárbaro crime contra uma criança ainda?

Sobre José Osterne de Figueiredo, sabe-se que não era amazonense e tinha mais de 50 anos. Era dono de comércios no centro da cidade e administrava também casas de lenocínio. Era muito discreto e trajava-se elegantemente, sempre vestido com roupas e sapatos brancos, ostentando uma acentuada calvície e fumava muito. Por fim, depois de feita a reconstituição do crime, o Chefe de Polícia João Valente solicitou ao Juiz de Direito, doutor Luiz Furtado de Oliveira Cabral, o pedido de prisão preventiva do acusado, alegando ter todos os elementos plausíveis para indiciar e processar o nacional José Osterne de Figueiredo como responsável pelo assassinato do menor. Tão logo Figueiredo soube das acusações que estava sendo imputado, contratou um time de advogados de peso para promover sua defesa. Faziam parte desse escrete os doutores Gebes de Medeiros, Jurandir Toledo e Hachimo Munneyme, todos causídicos de renome na cidade. Em nome da família Grangeiro, ofereceram-se para auxiliar na promotoria os doutores Vicente Mendonça, Milton Assensi e Nilton Figueiredo. No dia 24 de fevereiro, o juiz Luiz Cabral aceitou os argumentos da Polícia Civil e expediu o mandado de prisão contra José Osterne de Figueiredo, fundamentado nos artigos 121 e 312 do Código Penal Brasileiro. As 09:30h desse mesmo dia, quando o documento oficial da prisão de Figueiredo chegou à Chefatura de Polícia, levado pelo oficial de justiça João Ferreira de Castro, o doutor João Valente solicitou ao comandante da Polícia Militar, coronel Omar Gomes, uma escolta policial reforçada e uma viatura tipo pick-up para levar o preso de sua residência a Penitenciária Central do Estado na Avenida Sete de Setembro, tendo em vista temer pela segurança do mesmo, já que uma multidão o aguardava na frente de sua casa, bem como outras turbas se concentravam nas imediações da chefatura na Rua Marechal Deodoro e cercanias da penitenciária.

Disponibilizados os recursos, a comitiva destinada a cumprir o mandado de prisão chegou à residência do acusado por volta das 09:50h e logo se deparou com a patuleia enfurecida em frente à casa de Figueiredo, gritando palavras de ordem como “cadê o monstro”, “tarado” e “assassino, assassino”. Em alguns momentos, a tensão e o alarido protagonizados pela choldra, obrigou a polícia agir com energia e dispersar os mais exaltados ante a quebra da ordem e das garantias pessoais do implicado, chegando, inclusive, a “jogar” o jipe contra a multidão inflamada, segundo palavras do Chefe de Polícia. Preso em sua residência, situada a Rua Saldanha Marinho 617, no centro da cidade, onde se encontrava recluso desde o dia 15, Figueiredo saiu acompanhando do delegado José Ribamar Afonso, do comissário Salum Omar e do promotor de justiça Altair Thury, designado para acompanhar o caso. Para garantir sua integridade, a viatura foi praticamente “colada” rente à porta e ele entrou na mesma chorando copiosamente e se dizendo, insistentemente, que era inocente do crime lhe atribuído e pedindo para que não tirassem fotos. Antes, no interior da residência, ouviam-se gritos de membros de sua família dizendo que o mesmo era inocente das acusações e aquilo era uma injustiça. Também chorando muito, eles se despediam com tristeza do pai que se encaminhava para o calabouço da penitenciária estadual para aguardar o andamento de mais um processo por atentado contra a vida dos outros. Durante o trajeto até a casa de detenção, Figueiredo ameaçou, por diversas vezes, o delegado Ribamar Afonso com a frase: “Delegado, vou matá-lo quando sair da prisão. O senhor arruinou minha vida”. Minutos depois declara a essa autoridade que desde o dia 24 de agosto do ano passado não colocava “uma gota” de bebida alcoólica na boca e que estava vivendo normalmente com sua família. Ao chegar a PCE o comboio sofreu as mesmas represálias por parte do povo aglomerado a entrada da cadeia, querendo ver o rosto do “Monstro do Parque 10”. Alguns mais irritados proclamavam fazer “justiça com as próprias mãos” ali mesmo e, assim, acabar com impunidade que marcou a vida do arrogado comerciante. Novamente a tensão obriga a polícia a agir com medidas repressoras, com o carro em quem ia o prisioneiro sendo obrigado a dar marcha ré e entrar sozinho no interior do complexo. Dentro do prédio somente alguns repórteres e autoridades presenciaram a saída do detido do veículo oficial rumo à carceragem, onde foi confinado e isolado dos demais presos por medida de segurança. Ainda chorando muito, caminhando no longo corredor que leva ao “’raio 6”, ele continuou a alegar inocência, tendo uma crise nervosa ao assinar a ficha de entrada do presídio na presença do diretor doutor João Bosco Araújo. De acordo com informações da direção do presídio, a única companhia de Figueiredo naquele momento era uma fotografia do jogador de futebol Garrincha, deixada por outro preso que era torcedor do Botafogo. Mas, a tal angústia do detento Figueiredo foi por pouco tempo. Alegando ser um comerciante importante da cidade, membro da Junta Comercial do Amazonas e ter residência fixa, seus advogados conseguiram sua transferência para o quartel da Polícia Militar do Amazonas na Praça da Polícia no dia seguinte, sendo colocado junto a outros presos detentores de regalias. Meses depois do “Crime do Engraxate”, como ficou conhecido o triste episódio na cidade, o juiz Luís Cabral não acata as denúncias e impronuncia o acusado José Osterne de Figueiredo por falta de provas consistentes, alegando apenas circunstancialidades no processo. Figueiredo é posto em liberdade para aguardar a anulação do processo, para a desgraça da família do menor assassinado.

Walter Granjeiro, o pai de Waldeglace, sendo recebido pelos presos na Penitenciária Central do Estado do Amazonas. FONTE: Jornal do Comércio, 26.01.1969.

Essa decisão monocrática do juiz foi questionada pela autoridade policial, que prometeu, se necessário, ir até as instâncias do Supremo Tribunal Federal em Brasília, para levar o acusado as barras da Justiça. Três meses se passaram sem que a autoridade judicial se pronunciasse sobre a decisão de levar Figueiredo a júri popular e decidir sobre sua inocência ou culpabilidade e assim a justiça se faça, para por fim a angústia de todos os envolvidos. Desesperado e incrédulo em relação à punição de fato e de direito do acusado de ter assassinado brutalmente seu filho, o biscateiro Walter Granjeiro, há tempos planeja fazer justiça ele mesmo e reparar sua perda inestimável, já que nunca acreditou na justiça dos homens. Durante meses Walter estudou a rotina do acusado, observando meticulosamente seus passos e hábitos para arquitetar sua tão almejada vingança, sempre repetindo - “Se eu não morrer matarei o assassino do meu filho”. Depois de espreitar por dias e meses, inclusive disfarçado de mendigo, chegando a montar campana a frente da residência do suposto assassino de seu menino, mas não conseguia realizar seu desejo e isso o exasperava ainda mais. Walter teve o tão esperado momento para concretizar suas promessas de reparação. Em 24 de janeiro de 1969, por volta de 19:30h, ele encontrou Figueiredo em frente ao seu estabelecimento na Avenida Eduardo Ribeiro que, no momento, estava lotado de turistas fazendo suas refeições. Ao ver o algoz de seu filho tranquilo, fumando um cigarro, Walter se encaminha até ele com a arma engatilhada, toca-lhe o ombro que e ao se virar, encarando-o, dispara contra Figueiredo, com o primeiro tiro atingindo seu ouvido. Em seguida descarrega as cinco outras balas, acertando outras partes do corpo do inimigo, deixando-o agonizante ao chão, até ser levado ao pronto socorro da Santa Casa de Misericórdia, próximo ao local do crime. Submetido a intervenções cirúrgicas Figueiredo sobrevive ao atentando, inclusive viajando dias depois para outro estado para se restabelecer melhor. Walter é preso logo em seguida, sendo encaminhado para o presídio estadual como criminoso que agora se tornara. Desde a morte do filho, o pedreiro jamais se conformou com a situação de impunidade de Figueiredo, o qual achava sempre estar protegido pelas leis ambíguas do país e acobertado por amigos influentes, já que tinha dinheiro e poder. A prova disso foram as duas mortes anteriores que cometeu e quase nada foi feito para puni-lo. Mesmo depois de encarcerado Waldeglace não demostrou nenhum arrependimento quanto ao crime cometido contra o verdugo de seu filho, pelo contrário, seu único arrependimento era tê-lo deixado escapar, pois queria que o assassino de seu menino sofresse o máximo possível de dor e lamentou: - eu queria era cortá-lo em pedaços. No presídio Walter foi recebido com efusão pelos outros detentos que o saudaram com um - “sarava irmão” e “você é cabra macho”. Submetido a júri popular o pedreiro foi condenado a 29 anos de prisão, cumprindo um terço da pena sendo liberto por bom comportamento. Figueiredo, depois de perder quase todos os seus bens, faleceu pobre no decorrer dos anos de 1980 de morte por complicações de doenças adquiridas ao longo da vida.


PESQUISA DAS IMAGENS: 

Fábio Augusto de C. Pedrosa

sábado, 25 de maio de 2019

Os enterros em Barcelos no século XVIII


Prospecto da Vila de Barcelos. José Joaquim Freire, 1784.

O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), durante sua extensa Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso, realizada entre 1783 e 1792, fez interessantes anotações, na Vila de Barcelos (antiga Mariuá), capital da Capitania de São José do Rio Negro, a respeito das práticas funerárias daquela localidade. Por vários séculos os enterros foram realizados no interior das igrejas católicas ou em seus arredores. Em Barcelos não foi diferente. Tais escritos constituem-se em fontes ainda não exploradas no que tange os estudos das práticas funerárias e atitudes diante da morte no Amazonas.

Alexandre Rodrigues Ferreira chegou na Vila de Barcelos em 1784. No período em que esteve na capital da Capitania de São José do Rio Negro descreveu seus elementos naturais, propriedades do solo e matérias-primas; sua evolução histórica e práticas culturais. Ele observou que a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, erguida em 1728 e restaurada em 1738, estava localizada em um terreno bastante úmido, fazendo com que

[…] os cadáveres que nele se sepultam, com dificuldade se consomem. Donde procede que, para sepultar uns, vem a ser preciso, algumas vezes, descobrir outros que ainda não estão absolutamente consumidos, e a atmosfera particular da igreja se faz neste caso intolerável(FERREIRA, 2005, p. 214).

Além do terreno inapropriado para inumações, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição era pequena, sendo a única igreja que recebia os enterramentos de toda a vila. A construção de um cemitério público seria a solução.

Na Europa, os enterros dentro das igrejas vinham sendo proibidos desde os séculos XVI e XVII. Contribuiu para isso a urbanização das cidades e as teorias sanitárias. Os médicos Thomas Sydenham e Giovanni Maria Lancisi desenvolveram a teoria miasmática, segundo a qual os gases expelidos pelos cadáveres seriam prejudiciais aos vivos. As igrejas, lugares de grande circulação diária e ao mesmo tempo espaços de inumação, ofereciam um perigo a saúde pública. Dessa forma vão surgindo os cemitérios públicos, afastados da área urbana. Tais discussões, no entanto, só chegaram ao Brasil no início do século XIX, com proibição efetiva apenas na segunda metade, após fortes epidemias que atingiram as províncias de Norte a Sul.

De acordo com Alexandre Rodrigues, Gabriel Ribeiro, procurador da Câmara de Barcelos, apresentou uma representação do vigário da vila, Francisco Marcelino Sotto Maior, que versava sobre a precisão que havia de se fazer um cemitério para jazigo dos mortos, por quanto os lugares das sepulturas da igreja paroquial não consumiam os cadáveres que nelas se conservam, pela muita umidade que havia nelas” (FERREIRA, 2005, p. 214). A representação foi escrita pelo vigário em 17 de fevereiro de 1784. Seu conteúdo, na íntegra, era o seguinte:

Como na única igreja desta vila e em seu Adro apenas se abre uma sepultura, sem que se cave e se perturbe também os corpos dos que nela descansam em paz, ainda no curso da sua corrupção e sem que se descubra um só, cujos ossos humilhados não tenham ainda parte das suas carnes, do que pode igualmente resultar grande perigo aos que formam o sepulcro e frequentam a igreja, considero ser muito conveniente para conservação, não só da saúde dos vivos, como do repouso dos mortos, que se faça um cemitério. Se Vossas Mercês consideram o mesmo, podem, atendendo ao bem público, arbitrar um terreno hábil ao mesmo cemitério, ordenando-lhe uma fácil cercadura, que o distinga e defenda. Eu não faço senão representar a necessidade. Vossa Mercês, contudo, mandarão o que forem servidos” (FERREIRA, 2005, p. 214).

Além da preocupação com a saúde dos vivos, o vigário esperava que o cemitério atendesse principalmente ao repouso dos mortos. Parece algo óbvio, mas é preciso entender que, diferente do que vem ocorrendo desde a segunda metade do século XX, quando a morte se tornou um tabu, ela ocupava, no período colonial, boa parte da vida dos luso brasileiros, que se dedicavam aos mínimos detalhes, desde o testamento, o pressentimento da morte (agouros, visões etc), a preparação do corpo, as vestes fúnebres, o velório, o enterro e a quantidade de missas. Os mortos poderiam intervir em favor dos vivos, assim como poderiam voltar-se contra eles caso não tivessem uma “boa morte”. O senado da câmara respondeu o vigário no dia 21:

A carta que Vossa Mercê nos dirigiu sobre a representação a respeito da precisão que há de um cemitério para nele se sepultarem os que desta vida mortal passam à eterna, por se não poderem já acomodar, não só dentro da igreja, que unicamente existe na vila, como ainda fora dela, em seu adro, recebemos com aquela atenção que não só do alto caráter de Vossa Mercê é merecida, mas também da bem fundada razão e necessidade que Vossa Mercê expõe. Ao que com a atenção devida, imos a dizer a Vossa Mercê que, quanto ao lugar ou situação para o dito cemitério, estamos prontos para a assinação dele, precedendo, porém, o voto de Vossa Mercê, para se acertar com o melhor e mais cômodo terreno. Enquanto, porém, ao cercado que se faz justamente necessário para defesa e guarda dos animais, para que não ultrajem aqueles cadáveres que, descansados, jazem, se-nos faz preciso haver algumas informações a nós, para, à imitação do que na cidade do Pará se obrou com outra igual manufatura, assim se proceder” (FERREIRA, 2005, p. 215).

O ouvidor interino da Capitania, Bento José do Rego, em ofício de 22 de março, respondeu que o terreno e os operários deveriam ser escolhidos, e que até a decisão do Capitão General do Estado as despesas ficariam a cargo do Senado da Câmara. Por decisão do Capitão General, as despesas continuaram a cargo do Senado da Câmara. As obras do cemitério, juntamente às de três pontes de madeira, foram arrematadas em novembro de 1784. Elas ficaram a cargo do mestre carpinteiro Romualdo José de Andrade, que apresentou três propostas, uma de 280, 260 e 240 mil réis. A Câmara aceitou a última. O cemitério da Vila de Barcelos teria “doze braças de terreno em quadro, murado forte e coberto de telha e um frontispício de madeira” (FERREIRA, 2005, p. 215).

Alexandre Rodrigues Ferreira também registrou a atuação de uma irmandade religiosa diante da morte de seus membros. As irmandades religiosas eram organizações católicas formadas por leigos em torno da devoção a um santo. Essas pessoas tinham inúmeras obrigações. Uma das principais era o acompanhamento do cadáver do irmão até a sepultura.

No artigo XI do “Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Barcelos(FERREIRA, 2005, p. 272-273), ficava estabelecido que, falecendo um dos irmãos da irmandade, os demais que estivessem na vila deveriam acompanhar seu corpo, no esquife, à sepultura. As ausências só seriam aceitas mediante justificativa legítima. Também seriam levados no esquife os filhos até a idade de doze anos, as mulheres e as mães viúvas. Assim como para o irmão falecido, seria rezado pelos membros um terço para os familiares deste. Caso o morto fosse juiz da irmandade, seriam rezadas doze missas. Se fosse escrivão, procurador, tesoureiro ou mordomo, oito. Para os demais, seis. Todos os anos seriam rezadas 25 missas pelos irmãos vivos e mortos para que os bens espirituais fossem alcançados. Durante essas missas seriam recolhidas as esmolas estabelecidas no compromisso. Também seria feito, anualmente, em nome dos irmãos mortos, um ofício de nove lições, com missa e sermões. O ofício deveria ser realizado na segunda-feira seguinte à dominga da eleição da nova mesa da irmandade. Caso não fosse possível, os irmãos deveriam escolher o melhor dia (mas antes da eleição da nova mesa), para que não fosse interrompido o ofício dedicado aos mortos. A Irmandade não se preocuparia apenas com o acompanhamento dos cadáveres de seus membros, mas também com o pagamento das sepulturas para os mesmos.

O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira tinha um olhar arguto, registrando diferentes aspectos das aldeias e vilas pelas quais passou durante sua Viagem Filosófica. Seus registros sobre os enterros na igreja da Vila de Barcelos, as discussões sobre a construção de um cemitério público e a atuação da Irmandade do Santíssimo Sacramento, são fontes indispensáveis aos estudos das práticas funerárias no Amazonas no período colonial, campo pouco explorado na historiografia, permitindo compreender suas dinâmicas e mudanças.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Diários, p. 209-350, 22/10/2005.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Biblioteca Nacional (RJ).