quinta-feira, 4 de julho de 2019

Uma reforma espiritual no Egito Faraônico: Akhenaton na sua consagração divina e humanizada (I PARTE)


O artigo a seguir, sobre a reforma religiosa no período Armaniano (Egito, 1352 a.C. - 1336 a.C.), é de autoria da acadêmica de História na Universidade Federal do Amazonas Inara Kézia Gama, que desenvolve pesquisa sobre a reforma espiritual no Egito Faraônico durante o reinado de Akhenaton.



Estela Amarniana. Na cena, Akhenaton e Nefertiti com suas três filhas estão sob os raios do deus sol Aton, uma família reunida sob a benção e proteção dos raios de Aton. FONTE: National Geographic (PT).

Resumo
O período Amarniano é a periodização criada pela egiptologia para se referir aos anos entre 1352 e 1336 a.C., 18ª dinastia do Egito Faraônico, no contexto do novo império. O termo foi criado também para contemplar a reforma proposta pelo faraó Amenhotep IV, posteriormente chamado Akhenaton. Em seu reinado, o faraó estabeleceu uma reforma religiosa e modificou o panteão egípcio, nomeando o deus Aton- o disco solar- como o único deus. A implantação de uma espécie de “monoteísmo” em uma civilização politeísta é um assunto de enorme controvérsia na egiptologia. Jan Assmann um dos mais conceituados egiptólogos que aborda a religião egípcia na contemporaneidade, salienta a importância da reforma de Amarna: “a redescoberta do rei herético, Akhenaton, que após sua morte foi submetido a uma completa dammatio memorie no Egito, é a mais significativa descoberta da egiptologia” (ASSMANN, 2013, p.79). As fontes trabalhadas pelo presente projeto foram traduzidas por Ciro Flamarion Cardoso, que dedicou-se a pesquisar o período Amarniano. Esta tradução encontra-se na tese da Gisela Chapot (2015), o próprio Ciro Cardoso cedeu o material para o desenvolvimento do trabalho da Chapot. Emanuel Araújo no seu livro Escrito para a eternidade, a literatura no Egito faraônico (2000) organizou em seis partes os estilos da literatura no Egito Antigo e situa o Grande Hino a Aton na Literatura lírica, pois sua escrita está estreitamente ligado a poemas amorosos, hinos de vitória militar e religião (ARAÚJO, 2000). O desenvolvimento do hino de louvor ao deus Aton, expressou uma nova feição do comando faraônico durante o reinado de Akhenaton, que pretendemos analisar nessa pesquisa.
Introdução
O período da reforma de Amarna é um assunto de grande turbulência entre egiptólogos. A tese monoteísta foi defendida fervorosamente nos séculos XIX e XX. James Henry Breasted é o acadêmico imprescindível para o estudo da religião de Amarna, pois foi o egiptólogo desbravador dos hinos de Aton. Arthur Weigall elaborou a primeira biografia do monarca: The Life and Times of Akhnaton, Paraoh of Egypt (1910) que foi um best-seller de enorme influência na área ao longo do século XX. Weigall foi o responsável por redescobrir e estabelecer Akhenaton na era moderna. “O glorioso” Akhenaton segundo Weigall era um anterior de Jesus Cristo, sua religião constituía uma “religião tão pura, comparável apenas ao cristianismo” (1910, p.53)1. Com sua pesquisa voltada para a vida de Akhenaton, Weigall afirma:

As lindas doutrinas da religião com as quais o nome desse faraó é identificado foram produções de seus últimos dias e até ele ter pelo menos dezessete ou dezoito anos de idade, nem seu monoteísmo exaltado nem nenhum dos seus futuros princípios eram realmente aparentes. Algum tempo depois do oitavo ano de seu reinado, descobriu que ele desenvolveu uma religião tão pura que deve compará-la com o cristianismo para descobrir suas falhas, e o leitor verá que a teologia soberana não foi derivada da sua educação2. (WEIGALL, 1910, p. 53)

Breasted e Weigall estabelecem um Akhenaton protocristão, ao relacionarem e aproximarem a tradição religiosa do Egito antigo com o monoteísmo judaico-cristão, uma visão que influenciou uma geração considerável de estudiosos, embora seja problemática e atualmente combatida na egiptologia. Ciro Flamarion Cardoso fala que essas comparações entre textos sagrados dos egípcios e cristãos, tinham como objetivo buscar “um pensamento teológico análogo” (2008, p. 1). O rico panteão egípcio e a complexidade de suas manifestações religiosas, difíceis de serem apreendidas fora de uma chave de entendimento judaico-cristã intensificaram controvérsias ao longo do século XIX e XX e ainda estão longe de serem encerradas.

Jan Assmann salienta as diferenças entre o “monoteísmo” de Akhenaton do bíblico, o chamado ‘cosmoteista’, mas também estabelece aproximações, sugerindo até mesmo possíveis influências do primeiro sobre o segundo. Para o autor, a bíblia teria se baseado na adoração do poder cósmico que se prolifera no sol e estabelecia a ordem universal através da luz, fonte da vida e do seu movimento diário e ocasionador do tempo. Assmann caracteriza o monoteísmo de Moisés e explica como seus seguidores negaram as crenças egípcias e suas possíveis influências na origem do monoteísmo judaico-cristão, sendo os egípcios condenados a meros idólatras politeístas. O Egito passou a simbolizar o rejeitado, a interpretação religiosa errônea, o modo de vida “pagão”. (ASSMANN, 1997, p.4).

Rosalie David demonstra certas semelhanças que não podem passar despercebidas entre o Grande Hino a Aton e o Salmo 104 do Antigo Testamento, como a seguinte passagem: “Seus raios sustentam todos os campos; quando seu brilho forte, eles vivem e crescem para você. Você marca as estações para nutrir tudo àquilo que fez” (Hino a Aton) e “Tu produzes feno para os animais e plantas para uso dos homens; tu fazes sair o pão do seio da terra” (Salmo 104:14).

Ciro Cardoso afirma que historiadores da religião sugerem outras possíveis definições para o caso do “monoteísmo” no Egito: como o henoteísmo, que seria a centralização da crença em um único deus em meio a um cenário politeísta incontestável, permanecendo a crença em diversos deuses e o kathenoteísmo, que significaria a centralização da importância do culto a cada deus independentemente, novamente, sem contestar o politeísmo. Para o autor, esses são aspectos da monolatria, mas não de monoteísmo (CARDOSO, 1999, p. 63). No entanto, Erik Hornung afirma: “agora, pela primeira vez na história, o divino tornou-se uno, sem multiplicidade complementar; o henoteísmo transformou-se em monoteísmo” (1983, p. 246). Ou seja, a situação em Amarna escapa de qualquer tentativa de definição simplista.

Akhenaton desenvolveu no Egito uma nova visão de mundo, “solarizando” o panteão, pois a fonte de toda vida passaria a ser originária do disco solar Aton (CHAPOT, 2015, p. 380)3. E mais: estabeleceu um grupo que personificaria seu poder- a família real de Amarna. Seu repertório imagético, leva em conta seu lado humano, ilustrando a intimidade com sua rainha Nefertiti (que significa ‘A bela chegou’) e seu lado paterno. O faraó determinou o louvor ao sol com hinos para o deus e tais poemas marcaram seu reinado e sua revolução religiosa.

A cosmovisão de Akhenaton articula um novo contexto sociopolítico ao elevar seu poder divino ao mesmo tempo em que os aproximou de seus atributos humanos. Nesse sentido, a figura monárquica passa por um processo de humanização. A representação da vida privada da família real era algo incomum na arte egípcia. A famosa “Estela de Berlim” era utilizada para a veneração doméstica pela elite de Tell El Armana. Nessa estela, a família esbanja afagos e carícias incomuns, sentados casualmente sob os raios de Aton, que os ilumina no alto da cena, algo incomum e excepcional na iconografia do Antigo Egito.

Emanuel Araújo explica que as cenas da família podem ser pensadas como “recurso de propaganda para aproximar o rei e sua família dos súditos num momento de afirmação da nova teologia, ou também como apresentação de uma família unida em torno do culto do deus que se impunha sobre o velho panteão” (1996, p. 24). Portanto, essa humanização da figura faraônica é um aspecto importante e que merece uma análise mais aprofundada, pois desmistifica e relativiza a famosa caracterização do faraó exclusivamente como “rei-deus”, além de problematizar a tão marcada ideia de “despotismo oriental”4.

A bibliografia utilizada no desenvolvimento do projeto demonstra a complexidade religiosa e literária do Egito faraônico. Weigall e Assmann enfatizam a semelhança da religião de Akhenaton com o monoteísmo bíblico, destacando uma possível raiz egípcia na fonte bíblica. Como já observado nas páginas acima, embora acreditemos que seja errôneo dizer que existiu um “monoteísmo" no período Amarniano, não descartamos a possibilidade de uma influência da experiência egípcia no monoteísmo judaico-cristão posterior. No entanto, o objetivo da pesquisa é enfocar na especificidade do período Amarniano, de forma a situar as fontes no seu período e entendê-las no seu próprio contexto, sem maiores pretensões de analisar suas possíveis influências no monoteísmo judaico-cristão, tampouco pretendemos usar nosso instrumental monoteísta para traduzir a complexidade do momento. Ou seja, a intenção é investigar o nascimento de uma nova fé e o seu impacto em uma sociedade político-religiosa, onde a prática pagã prevalecia. O ‘faraó herege’ tivera um papel fundamental para a reforma espiritual, trazendo uma renovação na prática religiosa e grandes impactos na exposição da família real e na arte.

O presente projeto tem como ênfase demonstrar a relevância de temáticas ambientadas na Antiguidade na formação da nossa identidade cultural e na composição do pensamento contemporâneo. Se por um lado, seu universo mitológico nos causa estranhamento através de um jogo de alteridade, algumas de suas preocupações e dos seus valores nos aproximam, como no caso Amarniano, pois ao enfocar aspectos míticos e religiosos, percebemos as inúmeras ressonâncias dessas temáticas em nossa própria cultura. Dessa forma, acreditamos que colaboraremos para despertar o interesse dos alunos da Universidade Federal do Amazonas pela área de História Antiga.

Tomaz Tadeu da Silva (2000) problematiza os conceitos da identidade e diferença. Explica que a identidade é um processo de produção simbólica e discursiva, ao afirmar uma identidade, está se negando outras. A diferença é ‘um produto derivado da identidade’ (SILVA, 2000, p. 73), sendo assim, identidade e diferença completam-se. O autor afirma que identidade e diferença são frutos de criação linguística, fazem parte do mundo cultural e social. A linguagem faz parte desse processo, pois é através da fala que produzimos a identidade e a diferença. (SILVA, 2000).

A identidade e diferença são resultados de processos culturais e sociais, assim, as pluralidades delas são inevitáveis. Não podemos definir a identidade, já que ela trabalha em conjunto com a diferença. Seguindo essa lógica, o Grande Hino a Aton, que exprime a nova religião Amarniana, tem como base os hinos solares de Amon-Rá. Explicamos ao longo do desenvolvimento do presente projeto, que o período Amarniano se define e se caracteriza por uma reforma político-religiosa, onde Akhenaton em sua “nova” religião solar cultua somente o deus Aton. No entanto, questionamos: apesar da reforma religiosa, pode-se negar a influência dos processos religiosos anteriores ao período Amarniano? Com base das leituras realizadas, é certo que não.

Jan Assmann (2001) afirma que os hinos solares de Amon-Rá, serviram de exemplo para os hinos de Aton. Nicolas Grimal (2012) explica que não há nada de renovação e nem tão pouco uma novidade. Regina Coeli (2009) na sua dissertação apresenta as aproximações do culto a Aton aos cultos solares anteriores ao período de Amarna. Gisela Chapot (2015) na sua tese apresenta o cenário Amarniano como ‘uma nova visão de mundo’ construída por Akhenaton, que ao lado da família real Amarniana, apresenta a sociedade egípcia, uma família reunida que oficializavam os cultos a Aton. Além de seu ofício como faraó, Akhenaton é representado como esposo e pai, o que destaca seu lado humano. Chapot apresenta essa família através da iconografia, em que se percebe o diferencial do período Amarniano em relação aos períodos anteriores. Até então, um rei se expor ao lado da sua esposa e suas filhas não era algo comum.

Observa-se então, que a identidade religiosa Amarniana tem ligações com identidades religiosas solares anteriores, assim fica claro que a identidade e diferença trabalham em conjunto na construção e produção social e cultural.

Cecília Azevedo (2003) apresenta múltiplas faces da abordagem das identidades, afirma que devemos identificar as duplas características em dois princípios: principio da alteridade e principio da representação ou encenação. As identidades são construídas com base em acontecimentos, valores, interesses e ideias que projetam as identidades coletivas (AZEVEDO, 2003, p. 45), ressalta ainda que “identidade é uma construção social e simbólica dinâmica em função de sua permeabilidade em face do contexto. Portanto, as identidades mostram-se móveis porque contingentes.” (AZEVEDO, 2003, p. 43)

Norberto Luiz Guarinello (2013) aborda a História antiga como tipo de memória social, que é primordial para o desenvolvimento da identidade coletiva. Através da memória, as identidades são formadas, por meios de processos que ao longo dos séculos, percebemos que a construção da identidade tem espaço nas Ciências Humanas contemporâneas. “A memória social é, com frequência, um campo de conflito, no qual diferentes sentidos são conferidos ao passado: personagens e fatos distintos são valorizados ou rejeitados, interpretações são contrapostas, silêncios ou rememorações festivais se confrontam.” (GUARINELLO, Norberto Luiz, 2013, p.9)

A teologia heliopolitana é praticada desde o Antigo Império (2686-2181 a.C), os cultos heliopolitanos foram bastantes praticados no Médio Império (2055-1650 a.C). O Novo Império (1550-1069 a.C.)5 que tem início a partir da 18º dinastia teve como ênfase os cultos solares, o principal os de Amon-Rá. A solarização na religião egípcia é o marco na civilização egípcia, que tem suas formas e significados associados ao mito de criação.

Então, apesar da reformulação religiosa, acreditamos que o período Amarniano não fora algo “novo” na religião solar egípcia como tantas vezes se defende na egiptologia. A solarização já era algo predominante da religião egípcia, que ao longo dos períodos dinásticos, ganhou novas características. Akhenaton e Nefertiti formaram um casal político, onde apresentaram por meio da arte Amarniana, cenas íntimas do casal. Nos cultos, realizavam oferendas a Aton que com seus raios terminados em mãos, abençoava o casal solar. Nas representações, suas filhas também participam dos cultos- principalmente Meritaton- em alguns casos, Nefertiti com sua filha aparecem realizando as oferendas, em outras, Akhenaton e sua filha. Formam uma família e esse foi o diferencial na imagem da religião Amarniana associada a uma família ensolarada, isso foi primordial para o ofício religioso de Amarna.

NOTAS:

1O autor usa a palavra “doutrina” para se referir à religião estabelecida por Akhenaton, o que é consideravelmente anacrônico, já que essa ideia é proveniente do monoteísmo judaico-cristão. Talvez a intenção do autor fosse enfatizar a base do ensinamento transmitido pelo faraó, porém acreditamos que “doutrina” não seja a palavra mais apropriada para tratar desse período Amarniano.

2 Tradução livre do original do autor: “The beautiful doctrines of the religion with which this Pharaoh’s name is identified were productions of his later days; and until he was at least seventeen or eighteen years of age neither his exalted monotheism nor any of his future principles were really apparent. Some time after the eighth year of his reign one finds that he had evolved a religion so pure that one must compare it with Christianity in order to discover its faults; and the reader will presently see that the superb theology was not derived from his education”.

3 A tese de doutorado de Gisela Chapot da UFF trabalha a cosmovisão do reinado de Akhenaton, em que se estabelece a ideia de um deus “solarizado”, propagado pela nova teologia solar do deus Aton em volta da família real Amarniana.

4Erik Hornung debate as formas de definição do faraó que predominaram ao longo do século passado. Durante muito tempo se considerou apenas a natureza despótica do rei, mas em 1902 Alexandre Moret começou a especular sobre a divindade do rei, que era fundamental para o entusiasmo de construções tão monumentais como as feitas no Egito. A partir dos anos 60 Georges Posener enfatizou o seu aspecto humano, atrelado ao divino, tendência que tem se fortalecido desde então. Hornung descarta o ainda tão usado termo cunhado por Moret de “rei-deus”, conceito que ilustra apenas a sua faceta divina em detrimento de sua humanidade, e de seu papel como representante do culto. Cf: HORNUNG, 1994, p. 252.

5 Os anos datados são utilizados por Emanuel Araújo (2000), que segue a linha cronológica de Shaw & Nicholson (1996, 310-312). Araújo explica que está listado apenas o que constavam no texto. Observa-se na cronologia algumas fases de reinados de faraós que não foram datados. A cronologia egípcia foi estipulada pelo sacerdote egípcio Maneto (323-245 a.C) que dividiu em trinta dinastias o reinado dos reis. Essa cronologia não é totalmente precisa, porém egiptólogos seguem essa divisão. Há também a trigésima primeira dinastia, que foi estipulada por um cronógrafo subsequente. De qualquer forma, o contexto histórico egípcio é baseado nos registros de Maneto. Em 332 a.C, o rei da Macedônia, Alexandre, o Grande começa seu reinado no Egito. Consequentemente, o Egito passou a seguir uma linhagem Greco-macedônica, de origem ptolomaica e tendo como o general Ptolomeu de Alexandre (posteriormente rei Ptolomeu I) o descendente dessa linhagem. Cleópatra VII foi a ultima rainha da linhagem egípcia Greco-macedônica, depois disso o Egito tornou-se uma província romana em 30 a.C. Assim, deu-se o inicio do Império Romano, com a linhagem chamada de período Greco-romano. Antes do Egito se torna um reino unificado em 3100 a.C e do estabelecimento das dinastias, a população vivia em varias comunidades no Delta e no decorrer do Nilo. Essas comunidades desenvolveram-se gradativamente e dividiram-se em dois reinos, um localizado no norte e outro no sul. Contemporaneamente, esse contexto é conhecido como período Pré-Dinástico (c. 5000- c. 3100 a.C). (DAVID, 2011).


Inara Kézia Gama, 20, é acadêmica do 7° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.

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