terça-feira, 22 de setembro de 2020

Manaus: amor e memória, de Thiago de Mello (1984)


Me acompanhou na última semana o livro ‘Manaus: amor e memória’, do poeta Thiago de Mello. Nele o escritor nos leva para a Manaus de sua juventude, entre as décadas de 1930 e 1940 (vez ou outra regredindo à década de 1920 e avançando até a de 1950), a cidade que vivia tempos amargos mas que continuava risonha, à espera de dias melhores. É um trabalho memorialístico, mas não da forma tradicional que conhecemos, em que se tenta afirmar um passado idílico, como o autor deixa claro: “Advirto que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de conversa e de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha esperança mais pelejada, está no futuro” (p. 22). Nos são apresentadas as alegrias e as dificuldades daquele jovem nascido em Barreirinha, de infância humilde e apaixonado pela terra.

Thiago de Mello idealizou o livro em 1973, durante seu exílio no Chile. Prometeu redigi-lo quando retornasse ao Brasil. O escreveu entre outubro de 1981 e outubro de 1982, quando já era um jovem senhor de 55, 56 anos, com muito para contar sobre sua infância em Manaus.

Por ser tratar de um livro de memórias, ele começa a falar sobre o tempo, tempo esse que dava e sobrava. Não era ainda a nossa unidade de medida que nos deixa todos os dias aflitos. Conversava-se sem se preocupar com atrasos. “Uma das esplêndidas instituições culturais de Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. De preferência, cadeiras de embalo. Melhor ainda se fossem de palhinha. Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, de onças e de serpentes, de febres e naufrágios, de assombrações e magias” (p. 33). Tempo de visitas, de passar o dia na casa dos amigos e vizinhos. Tempo da sesta depois do almoço, do respeito pelo sono alheio. Tempo de tomar benção aos pais. Costumes que muitos de nós ainda preservamos.

Ainda sobre a memória, é bom pontuar que Thiago de Mello não recorreu apenas às suas. Para a feitura do livro ouviu várias pessoas de sua geração e mais velhas, como sua mãe, dona Maria, Ulysses Bittencourt, Mário Ypiranga Monteiro, Luiz Bacellar, Emídio Vaz de Oliveira, Eldah Bitton, José Franco de Sá, Moura Tapajoz, Ruy Lins, Samuel Benchimol, Aderson Dutra e tantos outros amigos de infância, vizinhos e colegas de trabalho.

Como dito anteriormente, eram tempos difíceis. Ajudava a enfrentar os dissabores da vida a cordialidade entre as pessoas, umas ajudando as outras como podiam, fosse com um cumprimento, um pouco de açúcar, uma tigela de mingau de tapioca. “Isso não quer dizer”, registra Thiago, “que a vizinhança estivesse formada por pessoas excepcionais. Não. Eram pessoas comuns, mas com as triviais virtudes e imperfeições humanas, que é como deve ser. Só que sabiam valorizar a convivência” (p. 35). Foi dentro desse universo, formado pelas ruas Dr. Almínio, Isabel, José Paranaguá, Lima Bacury e Quintino Bocaiuva, que ele viveu intensamente, também se aventurando por outros lugares da cidade.

A cidade de dimensões geográficas bem definidas, dividida em pouquíssimos bairros naquele período, tinha sons e cheiros inconfundíveis. Aqui Thiago de Mello atua como um perspicaz antropólogo: Os sons dos apitos das fábricas anunciando o início das atividades, acordando seus funcionários, marcando o horário do almoço e do retorno, dos navios chegando e partindo, o badalar dos sinos das igrejas nos dias santificados, as músicas dos vendedores de comidas e miúdos, dos hidroaviões da PanAir, das casas onde se cantava e tocava piano e violino, dos alto-falantes dos cinemas e dos que informavam o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Eram sons dos mais variados. (p. 43-72). Os cheiros, assim como os sons, eram diversos. De borracha e madeiras sendo cortadas, dos óleos e essências, do sangue e das vísceras do Matadouro, dos cheiros do Porto, da fumaça dos navios, da graxa e das mercadorias transportadas, dos produtos nobres das casas comerciais refinadas, do guaraná, dos peixes, frutas, verduras, mingaus e das tartarugas do Mercado Municipal, das flores, dos remédios vermífugos e fortificantes, dos cabelos das jovens caboclas (p. 75-81).

A última parte do livro é o ABC da cidade, ou como denominou o poeta, “ABCedário íntimo para uso público – um ABC que já perdeu a voz mas nos ensina a soletrar o tempo (p. 85-251). Em cada letra são abordadas memórias sobre praças, ruas, escolas, clubes, livrarias, cinemas, personagens e brincadeiras. É o A dos árabes, que chegaram sem um tostão no bolso mas que conseguiram prosperar, dos alfaiates e alfaiatarias com suas sedas e linhos; B de borracha, cortada ao meio nas casas exportadoras, dos bondes diários, onde se conversava, se via e namorava, das brincadeiras de roda embaladas por cantigas; C de Clube da Madrugada, já na década de 1950, ali na Praça do Ginásio (como ele chama a Praça da Polícia), das catraias que levavam e traziam trabalhadores do Educandos e São Raimundo, da Carmem Doida, muitas vezes incompreendida, a dançar nas ruas do Centro. É um abecedário que revela, instiga, emociona e diverte.

Além de ser um livro de leitura agradável, ‘Manaus: amor e memória’ é uma fonte rica de informações sobre a cidade entre os anos de 1930 e 1940, período pouco estudo em detrimento de outros recortes históricos (1890-1920 e 1960-1970) mas que nos últimos anos vêm despertando o interesse de pesquisadores das mais variadas temáticas, em cujos trabalhos, nas referências, entre os memorialistas, aparece o nome do presente trabalho resenhado.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

MELLO, Thiago de. Manaus: amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984 (Coleção Ofício de viver, 1).



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A La Ville de Paris, em Manaus

Prédio da antiga joalheria A La Ville de Paris. FOTO: Christoph Berquet, 2020.

A joalheria A La Ville de Paris, cujo imponente prédio, entre a Avenida Sete de Setembro e a rua Lobo d' Almada, ainda existe, foi uma das mais refinadas e tradicionais de Manaus, tendo funcionado por quase um século, de 1878 a 1963.

Quando da sua inauguração, a Avenida Sete de Setembro era conhecida como Rua Brasileira, e a rua Lobo d' Almada como Travessa da Matriz. O empreendimento foi idealizado pelos comerciantes e irmãos Maurice Aron, Henri e Lucien Levy, judeus naturais da Alsácia, na França (BLAY, 2017, p. 96). A sociedade passou a ser conhecida como Levy Fréres (Irmãos Levy).

Nesse primeiro momento, em que a joalheria tinha apenas o primeiro andar, os relógios já eram o carro chefe das vendas. Por um breve momento, em 1888, a casa abrigou um relojoeiro e ourives suíço especialista em relógios (A PROVÍNCIA DO AMAZONAS, 1888, p. 04).

A La Ville de Paris em 1913. FONTE: Revista Cá & Lá, anno 1, n° 6, maio de 1914, p. 10.

Em 1900, no auge de seus negócios, os irmãos Levy decidem reformar o prédio da joalheria, lhe sendo acrescido um segundo andar. A data, até pouco tempo atrás, podia ser vista abaixo da janela principal do segundo andar. Nas últimas reformas ela desapareceu.

No início do século XX, conforme anúncios publicados no Jornal do Commercio e na revista Cá & Lá, faziam sucesso os relógios das marcas Omega, Elgin, Waltham e Roskopf. A casa comercializava jóias de ouro e platina, pedras preciosas, prataria, despertadores, instrumentos musicais de sopro e corda, gramofones da famosa marca Victor, discos, binóculos, bússolas e termômetros (JORNAL DO COMMERCIO, 29/08/1913, p. 40 e REVISTA CÁ & LÁ, maio de 1914, p. 10). A La Ville de Paris possuía casa compradora em Paris, localizada na Rua D' Hauteville, n° 89, no 10° distrito da capital francesa, na margem direita do Rio Sena.

Interior da A La Ville de Paris. FONTE: BLAY, 2017, p. 126.

A La Ville de Paris foi administrada pelos irmãos Levy até o início da década de 1920, quando foi adquirida pela firma Crehange & Cia, do diplomata francês Louis Crehange. Em 18 de abril de 1925 Louis Crehange e Maurice Aron Levy constituem a sociedade Crehange & Levy, em substituição à Crehange & Cia. Os dois empresários administram a joalheria, de acordo com o Almanak Laemmert, até 1931 (ALMANAK LAEMMERT, 1931, vol. 3, p. 163).

Em 1935 a joalheria enviou para o Jornal do Commercio alguns presentes de Natal. Na nota publicada no periódico é registrado como único proprietário Maurice Aron Levy, o que indica que Louis Crehange havia saído da sociedade (JORNAL DO COMMERCIO, 24/12/1935, p. 01). Em levantamento das empresas de judeus amazonenses e descendentes nas décadas de 1940 e 1950, o sociólogo Samuel Benchimol registra que Maurice Aron Levy ainda era seu proprietário em 1940 (BENCHIMOL, 1999, p. 326).

Anúncio de 1946 da La Ville de Paris, já com o nome traduzido para A Cidade de Paris. FONTE: Jornal do Commercio, 01/05/1946, p. 08.

Anúncio dos anos finais, de 1960. FONTE: Jornal do Commercio, 01/01/1960, p. 08.

Em algum momento da década de 1940 o negócio foi comprado pelo empresário Antônio José Pires, da A. Pires & Comp. Um dos acontecimentos mais marcantes que ocorreu na joalheria foi o grande furto que sofreu em 24 de maio de 1947, causando um prejuízo de mais de 300 mil cruzeiros. Os autores do crime, Cristóvão Bolívar e Felipe Rubiano, foram capturados em 01 de junho de 1947 e as jóias recuperadas (JORNAL DO COMMERCIO, 03/06/1947, p. 06).

Antônio José Pires foi seu último proprietário, administrando a casa até 1963. Em 23 de junho de 1964 o antigo prédio da A La Ville de Paris foi vendido para a Lojas Combrasil, que nele instalou uma unidade de suas lojas de eletrodomésticos.

De 1974 a 1995 funcionou como Drogaria São Paulo II. O prédio, para nosso deleite, segue sendo preservado pela atual proprietária, a Drogaria FarmaBem.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia - Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer/Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

BLAY, Eva Alterman. O Brasil como destino: raízes da imigração judaica contemporânea para São Paulo. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017.

domingo, 6 de setembro de 2020

Entrevista: José Geraldo Xavier dos Anjos


José Geraldo Xavier dos Anjos nasceu na cidade de Manaus, Estado do Amazonas. Tem Graduação em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Especialização em Sistema de Informações Voltados para o Usuário pela mesma instituição, Especialização em Livros Raros e Documentação Antiga pela Biblioteca Nacional e Especialização em História da Saúde na Amazônia pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Foi Membro do Conselho Estadual de Cultura do Amazonas (1993-1994), do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Alfredo da Matta (2000), do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge, Chefe de Gabinete da Fundação Hospital Adriano Jorge (2007-2010) e Chefe do Departamento de Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge até março de 2019. Atualmente é Diretor em exercício de Ensino e Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge. Coordenou, no Amazonas, o projeto de microfilmagem dos relatórios dos Presidentes da Província e da coleção de jornais do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), além de ter participado do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, que microfilmou a documentação histórica sobre o Brasil nos arquivos de Portugal e da Espanha. É membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Possui artigos publicados em jornais e revistas, bem como livros sobre a História da cidade de Manaus e História da Medicina.


— Primeiramente, obrigado por conceder a entrevista. Para iniciarmos, conte um pouco de sua origem e sua família.

- Sou filho de Geraldo Rocha dos Anjos, descendente de família nordestina, e Joana Vasconcelos Xavier dos Anjos, descendente de família portuguesa. Estudei o Primário no Grupo Escolar Getúlio Vargas, Ginasial e Pedagógico no Instituto de Educação do Amazonas e o Científico no Colégio Dom Pedro II. Cursei Biblioteconomia na UFAM. Meu pai era funcionário público municipal e minha mãe era do lar. Com minha mãe aprendi a ler e essa é uma paixão que perdura até hoje. Aos 12 anos comecei por sua influência a ler os grandes clássicos da literatura assim como a conhecer as obras dos grandes filósofos.


— Foi esse incentivo materno pela leitura que lhe motivou, posteriormente, a enveredar pela pesquisa histórica?

- Sim. Tanto no Primário até o término do Segundo Grau eu só tirava 10 em História e Geografia. Na Faculdade, as matérias que tinham História eram nota 10. Na Graduação em Biblioteconomia o que levou à ampliação do conhecimento em História foi a matéria História do Livro e das Bibliotecas, que me deu uma grande base de conhecimento.


— Devo supor que também foi essa influência materna que motivou a escolha pela Graduação em Biblioteconomia, correto? Ou também existiram outros fatores?

- Não. Meus pais queriam que eu estudasse Direito ou Medicina, pois a maior parte da minha família é da área do Direito. Tem juízes, desembargadores e por aí vai. Já a Medicina era desejo do meu padrinho que era o médico e político Menandro Tapajós, que presidiu a Assembleia e foi Governador do Estado. A opção pela Biblioteconomia veio porque gostava muito de ler e achava que em uma biblioteca teria muitos livros para ler, principalmente de História e Geografia.


— Após a Graduação, como foram os primeiros anos de atuação na área? Era um campo pouco explorado na época ou já estava consolidado?

- Logo no segundo ano do curso fui trabalhar na Biblioteca Pública do Estado como Auxiliar de Bibliotecário. Na época ainda não existia a internet então a Biblioteca era bem frequentada por alunos para fazer seus trabalhos. Recebíamos cerca de 300 a 400 deles. A profissão era consolidada, pois já tínhamos as bibliotecas da UFAM, CODEAMA, EMATER e ICOTI, todas com profissionais bibliotecários. Alguns destes órgãos que citei já foram extintos.


— Em que ano você se tornou membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)? Como seu deu o contato com essa instituição e o seu ingresso?

- Com a criação do Ministério da Cultura no Governo Sarney e sendo indicado como Ministro o grande Celso Furtado, as instituições de cultura tomaram um grande fôlego para organizar, planejar e restaurar o patrimônio cultural do país que estava abandonado há anos. Em 1983 a Biblioteca Nacional cria o primeiro curso de Especialização em Obras Raras e Documentos Antigos. Me inscrevi e com a autorização da minha chefia fui para o Rio de Janeiro cursar a Especialização na Biblioteca Nacional, onde tive a oportunidade de conhecer todos os tipos de acervos que compõe a memória nacional. Na volta comecei a organizar a seção de obras raras da Biblioteca Pública. Sabendo deste meu conhecimento, o Presidente do IGHA, na época Robério Braga, me convidou para fazer um diagnóstico do acervo documental e quando me deparei com o rico acervo meu diagnóstico em relatório foi que todo o acervo era raro e único. Fui convidado a fazer parte da equipe de bibliotecários, museólogos, arqueólogos e jornalistas que naquele momento também faziam a transformação e organização do IGHA para servir a sociedade. Duas semanas depois de estar no IGHA fui convidado para assumir o cargo de Diretor Administrativo, o que com muito medo aceitei. Continuamos o trabalho administrativo, organizando os acervos de manuscritos e criando um catálogo. Neste mesmo tempo é criado o Plano Nacional de Microfilmagem de Jornais. Fui convidado pela Coordenadora Nacional, Dra. Esther Bertoletti, para coordenar o projeto no Amazonas. Como resultado de anos neste projeto, o Amazonas microfilmou 80 mil páginas de jornais que hoje alunos e pesquisadores do mundo inteiro usam em suas pesquisas. Também no IGHA participamos do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, que microfilmou toda a documentação da época da Colônia que se encontra em Portugal e na Espanha. Com todo este trabalho no IGHA em 1992 fui consultado pelo Presidente da época, Comendador Junot Carlos Frederico, se não queria fazer parte da sociedade do IGHA, mas que teria que passar pelo processo de seleção. Fui aprovado pela comissão de sindicância e tomei posse no dia 25 de março de 1993 e estou até hoje numa busca incansável pela preservação desta casa de memória do Estado. Tive o prazer de ser o Secretário Geral em muitas diretorias e cheguei ao ápice de presidir o IGHA.


— Nesse período em que você se tornou membro do IGHA, ainda estavam em plena atividade pesquisadores e membros como Mário Ypiranga Monteiro, Padre Raimundo Nonato Pinheiro e outros. De que forma você percebia o panorama intelectual daquele momento?

- Nesta época de convivência no IGHA me tornei amigo de Mário Ypiranga Monteiro, que corrigiu meus primeiros escritos sobre a cidade de Manaus e me levou para a Associação Brasileira de Folclore, seção Amazonas, para fazermos pesquisas o que provocou uma ciumeira danada por ele ter me convidado. Tive e tenho até hoje uma grande amizade com o grande Antonio Loureiro, que também tem lido o que escrevo e me dá suas opiniões. Outro que entrou depois de mim e que fizemos boas parcerias de pesquisa foi o Coronel Roberto Mendonça, com Edinea Mascarenhas Dias.


— Mais recentemente você se tornou membro do IHGB, instituição mór dos institutos históricos e geográficos do Brasil, fundada por Dom Pedro II em 1838. Como se deu o ingresso nessa prestigiada casa de cultura?

- Em novembro de 2018 recebi um telefonema do Presidente do IHGB, Prof. Dr. Arno Wehling, perguntando se gostaria de fazer parte da instituição como membro correspondente e de pronto aceitei a honraria, pois nunca passou na minha cabeça ser membro de uma instituição fundada por Dom Pedro II e de muitas tradições e que já tinha abrigado as inteligências de Arthur Reis e Mário Ypiranga Monteiro. Fui o quarto amazonense a fazer parte desta plêiade de intelectuais que pensam o Brasil. Tive o prazer de tomar posse no ano passado na Presidência de meu amigo particular, Vicente Chermont de Miranda, de tradicional família paraense.


— Além do IGHA você também é Imortal da Academia Amazonense de Letras. São duas das mais antigas instituições culturais do Estado, fundadas em 1917 e 1918 respectivamente. De que forma você enxerga a relação delas com a comunidade?

- Antigamente estas duas casas de cultura eram tidas como lugares vetustos onde só penetravam seus associados e convidados. Quando assumi a administração do IGHA em 1984, comecei a conversar com a Diretoria a abertura do acervo para pesquisadores. No primeiro momento a ideia não foi bem aceita mas fui insistindo e começamos a receber pesquisadores da UFAM que precisavam de material para fazer suas monografias e teses. Me lembro que o primeiro trabalho de defesa de Mestrado foi o da historiadora Eloína Monteiro e isso foi muito bom pois os sócios viram resultados e citações do nome do IGHA no trabalho. Depois veio Selda Vale, Narciso Lobo, Neide Gondim e Edinea Mascarenhas, todos jovens professores da Universidade Federal do Amazonas. Daí em diante não paramos mais de receber pesquisadores. Já a Academia começa a ter uma relação maior com a comunidade na Presidência de José Braga, que criou o projeto Academia de Portas Abertas, no qual recebemos alunos pesquisadores para uma visita e para conversar com os membros da Academia.


— Além da formação voltada para a pesquisa documental, você também possui uma Especialização em História da Saúde na Amazônia. Quando surgiu o interesse por essa área específica da História?

- Surgiu quando trabalhava na assessoria da SUSAM. Em conversa com o Dr. Marcos Barros ele me perguntou porquê eu não me preocupava em estudar a História da saúde no Amazonas, já que tinha muita gente pesquisando a História da cidade. Fiquei pensando na ideia, aí fui organizar a biblioteca da Fundação Alfredo da Matta. Chegando lá comecei a perguntar se os funcionários conheciam o patrono da instituição e ninguém conhecia. Comecei a pesquisar quem tinha sido esta grande figura da saúde. Neste tempo foi criada a FAPEAM e apresentei um projeto e ganhei uma bolsa para pesquisar a obra de Alfredo da Matta. Daí em diante não parei mais de pesquisar sobre História da saúde. Quando em 2010 a FIOCRUZ-Manaus ofereceu o primeiro curso de Especialização em História da Saúde na Amazônia, me inscrevi, fiz a prova e logrei êxito e hoje sou um Especialista nesta área. Participo de grupos de pesquisas, seminários e congressos com esta temática, sempre apresentando pesquisas novas nesses eventos.


— Ainda sobre a História da Saúde na Amazônia, que pesquisas você vem desenvolvendo sobre essa temática?

- Temos trabalhos publicados sobre as doenças na Amazônia Colonial, Alfredo da Matta e a saúde no Amazonas, as epidemias no Amazonas (1855-1930 e 1930-2000), Djalma Batista e a tuberculose no Amazonas, Saúde no Amazonas (1890-1920 e 1930-2000), História da Hanseníase no Amazonas, Os leprosários em Manaus e agora estou desenvolvendo um projeto sobre o sanitarismo no Amazonas. Todos estes trabalhos estão publicados em anais de congressos, jornais e revistas da área.


— Durante sua trajetória acadêmica, quais autores foram marcantes?

- Jean-Jacques Rousseau, Walter Benjamin, Jacques Le Goff, Eduardo Galvão, Gore Vidal e tantos outros que no momento não me recordo.


— Em algum momento você cogitou seguir a docência?

- Quando terminei a Especialização em Livros Raros e Documentação Antiga fui convidado pelos professores do curso de Biblioteconomia para fazer parte do quadro de professores, mas recusei pois já estava desenvolvendo o projeto de organização da Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, e também já estava administrando o IGHA e não me via dentro de uma sala dando aula.


— Sobre qual tema versou seu trabalho de conclusão de curso na Especialização em História da Saúde na Amazônia?

- Alfredo da Matta e a Saúde no Amazonas.


— Poderia dar mais detalhes sobre?

- O trabalho consiste na pesquisa sobre a atuação do médico Alfredo da Matta no Estado do Amazonas como gestor público, sua produção científica, participações em congressos nacionais e internacionais e a criação da Revista Amazonas Médico.


— Para concluir, que mensagem você deixa para os futuros acadêmicos em História?

- Que os futuros pesquisadores tenham consciência de seu papel perante a comunidade científica e com a sociedade, trazendo novas luzes para a conhecimento da História de nosso Estado e tenham você, jovem apaixonado pelos meandros da História, como inspiração.

sábado, 15 de agosto de 2020

Inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Manaus (1878)

Gravura da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. FONTE: NERY, Frederico José de Sant' Anna. Le pays des Amazones. Paris, França: L. Frinzine et Cie, 1885, p. 269.

A Catedral de Nossa Senhora da Conceição, ponto de referência de fé, tradição e cultura na vida dos amazonenses, está localizada na Praça Oswaldo Cruz, popularmente conhecida como da Matriz, no Centro. É a principal e mais antiga igreja da cidade, erguida no período Provincial entre 1858 e 1878.

Essa construção substituiu a antiga, dos tempos da administração do Brigadeiro Manuel da Gama Lobo d' Almada (1788-1799), destruída em um incêndio em 1850. Até sua conclusão, serviu de Igreja Matriz da cidade a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, localizada em bairro homônimo. A pedra fundamental do novo templo foi lançada às 7 da manhã do dia 23 de julho de 1858 pelo Presidente da Província do Amazonas Francisco José Furtado. A data não foi escolhida ao acaso. Nesse mesmo dia comemorou-se Santo Apolinário e o aniversário da ascensão de Dom Pedro II ao trono (23 de julho de 1840). Estiveram presentes no evento autoridades militares, religiosas, comerciantes, funcionários públicos e grande número de populares.

Terminadas as cerimônias religiosas, o Presidente e o Vigário Geral colocaram no centro da parede da capela mór uma pedra quadrangular com uma cavidade, depositando nela um cofre de madeira com o auto de lançamento da pedra fundamental e duas moedas, uma de ouro e outra de prata:

"[...] a primeira do pezo de quatro oitavas e do valor de deseseis mil reis, cunhada no anno de mil oitocentos e quarenta e sete, tendo de um lado a Efigie de Sua Magestade o Imperador o Senhor DOM PEDRO SEGUNDO com a inscripção seguinte - PETRUS II D. G. C. IMP. ET PERP. BRAZ. DEF. - e no verso as Armas Imperiaes com a inscripção seguinte - IN HOC SIGNO VINCES -; e a de prata, do valor de dous mil reis, cunhada no anno de mil oitocentos e cincoenta e sete, tendo de um lado o algarismo do seu valor com a mesma inscripção da moeda de ouro e no verso as Armas Imperiaes com a seguinte inscripção - IN HOC SIGNO VINCES" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 28/07/1858, p. 03).

Falta de mão de obra especializada, de materiais, de recursos e mudanças nos projetos fizeram as obras se arrastarem por 20 anos, como se pode atestar a partir da leitura das falas e relatórios dos Presidentes da Província.

O então Diretor Interino de Obras Públicas, João Wilkens de Mattos, informou ao Presidente Francisco José Furtado que os sapadores utilizados nas obras da Matriz eram "[...] africanos livres dados á continuada embriaguez, que só fazem algum trabalho emquanto estou presente; logo que me retiro da obra, onde não me é possivel permanecer o dia inteiro, fazem a cêra que querem, por que nenhum respeito guardão ao feitor" (AMAZONAS. Relatório. 07/09/1858, p. 03-04). Para que isso fosse evitado, além de descontar nas diárias dos sapadores, sugeriu que a área da construção fosse cercada, existindo um único portão para entrada e saída. Os trabalhadores entrariam às 6 da manhã e sairiam às 16 horas. A cerca também impediria que os materiais fossem furtados (AMAZONAS. Relatório. 07/09/1858, p. 04).

Em 1864, o Presidente Adolfo de Barros Cavalcante de Albuquerque Lacerda informava em seu relatório que as obras da Matriz estavam paralisadas "por se ter esgotado o saldo de 815$065 rs., que restava, quando tomei conta da administração, do credito de 10:000$000 rs. consignado no orçamento d' aquelle exercicio, e do producto de uma loteria extrahida na côrte, na importancia de 11:100$000 rs" (AMAZONAS. Relatório. 01/10/1864, p. 16).

O Presidente João Wilkens de Mattos, em relatório de 1869, afirmou que as obras da Matriz poderiam estar mais adiantadas se não fossem as dificuldades em se obter materiais, sobretudo tijolos. "As olarias", registra, "por mais que s' exforcem, não produzem bastante para satisfazer as necessidades do publico" (AMAZONAS. Relatório. 04/04/1869, p. 34).

Anos mais tarde, em 1873, o Presidente Domingos Monteiro Peixoto registrou em sua fala à Assembleia Legislativa que Manaus poderia ter, já em sua administração, um excelente templo católico "[...] si desde o começo se adoptasse um plano definitivo e fosse executado com systema; assim não aconteceu, o plano primitivo da Matriz soffreu constantes modificações, cada um imprimiu-lhe o seu gosto, de forma que a construcção tem-se executado com vagar, com demasiada despeza, e apresenta defeitos que hoje é impossivel corrigir" (AMAZONAS. Falla. 25/03/1873, p. 31).

Depois de 20 anos, chegara o tão aguardado dia da inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, esperada pelos administradores e pela população. O Presidente da Província do Amazonas, Rufino Enéas Gustavo Galvão, o Barão de Maracajú, informa em fala à Assembleia Legislativa que a Igreja foi concluída no mês de agosto de 1877 e inaugurada em 15 de agosto de 1878, quando foi benta (AMAZONAS. Falla, 25/08/1878, p. 52).


FONTES:

Estrella do Amazonas, 28/07/1858.

Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão ordinaria em o dia 7 de setembro de 1858. Francisco José Furtado, presidente da mesma provincia.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Amazonas na sessão ordinaria de 1° de outubro de 1864, pelo dr. Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, presidente da mesma provincia.

Relatorio com que o exmo. sr. presidente da provincia do Amazonas, tenente coronel João Wilkens de Mattos, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 4 de abril de 1869.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11° Legislatura em 25 de março de 1873 pelo presidente da provincia, bacharel Domingos Monteiro Peixoto.

Falla com que o Exmo. Sr. Barão de Maracajú, presidente desta provincia, abrio no dia 25 de agosto de 1878 a Assembléa Legislativa do Amazonas.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Livraria Nacional, a mais antiga de Manaus


Quem passa pela rua 24 de Maio, no Centro, pode nunca ter notado que nela, em um prédio de dois andares erguido no início do século passado, está localizada a livraria mais antiga de Manaus em funcionamento. Trata-se da Livraria Nacional, inaugurada em 1975, propriedade dos irmãos José Maria Monteiro Mendes, João Batista e Paulo Roberto.

Os negócios tiveram início com José Maria, natural de Manaus, pedagogo, que começou cedo no ramo dos livros, mas em Belém, no Pará, para onde a família mudou-se entre novembro e dezembro de 1951, quando ele tinha apenas 9 meses. Bastante estudioso, foi encaminhado, após gabaritar um teste de recursos humanos, para uma livraria, a Livro Lar, que funcionava na Galeria do Palácio do Rádio, em frente a livraria Dom Quixote. Começou limpando as dependências da livraria e espanando os livros, fazendo o mesmo na Dom Quixote, onde começou a trabalhar logo depois. Em dois meses passou a pegar livros para o gerente, já que memorizava como ninguém a localização dos títulos solicitados pelos clientes. Ao ler um livro - como costumava fazer - o qual não recorda o nome, leu uma frase que seria determinante para o seu futuro: "O livreiro é o líder de uma sociedade pensante". Ali nascia um sonho, o de ser dono de uma livraria.

Após nove meses, sai da Dom Quixote e começa a trabalhar em um escritório de decoração e arquitetura, nele ficando por três meses. Nesse mesmo tempo um antigo sócio da Dom Quixote abre uma livraria, a Universitas Livros Técnicos, representante da editora Gustavo Gili, especializada em livros de arquitetura. José Maria passa a trabalhar na Universitas, vendendo livros nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia da UFPA.

Veio pela primeira vez a Manaus em 1968, vender livros de engenharia na recém-criada Faculdade de Engenharia da Universidade do Amazonas. Vem novamente em 1969, pois a demanda era crescente, e em 1970 se estabelece definitivamente na cidade. A Gustavo Gili abriu uma filial em Manaus, admitindo José Maria como gerente.

Em setembro/outubro de 1972 pede dispensa temporária da editora para iniciar sua própria livraria, que começou com o nome Metro Cúbico, em referência aos três m de seu nome (Maria, Monteiro e Mendes). Posteriormente surge o nome fantasia Livraria Nacional, quando começou a representar a Companhia Editora Nacional. Pede nova dispensa em 1973, e em dezembro de 1974 pede demissão. No dia 01 de janeiro de 1975 inicia suas atividades como Metro Cúbico Livros e Revistas Técnicas, oficialmente inaugurada em 17 de março daquele ano.

Da época em que a Metro Cúbico (Livraria Nacional) começou a funcionar, José Maria se lembra de algumas livrarias, como a Livraria Acadêmica (1912-2009) e a Livraria Brito, na rua Henrique Martins, a Livraria Maíra, na rua 24 de Maio, a Livraria Sete, na Avenida Sete de Setembro, e a Livraria Universitária, no Edifício Cidade de Manaus.

José Maria nos conta que a livraria esteve instalada, em seu primeiro ano de funcionamento, em um prédio alugado na rua Alexandre Amorim, n° 177, bairro de Aparecida, nas proximidades da Usina Termelétrica da Amazonas Energia. Posteriormente mudou-se para a rua 10 de Julho, no Centro, onde funcionou entre 1976 e julho de 1988. Em agosto de 1988 a livraria é instalada em sua sede atual, na rua 24 de Maio, n° 415. Em 1978, 1980 e 1982 a Nacional realizou exposições de livros sobre Amazônia na Bienal Internacional do Livro no Pavilhão de Exposições do Ibirapuera, em São Paulo.

No dia 01 de junho de 1995 ocorre um incêndio no segundo andar do prédio. Em agosto daquele ano José Maria viaja a São Paulo para negociar as dívidas com os editores dos livros em estoque que foram destruídos. Como o seguro estava vencido, José e seus irmãos tiveram que assumir os prejuízos totalmente. Mesmo assim conseguiram a reabertura de crédito com essas editoras, comprando livros para o ano de 1996 e se recuperando.

Ao longo de sua História a Livraria Nacional já recebeu vários prêmios, sendo o mais recente o Prêmio Globo de Marketing (2009).

O trabalho não fica restrito à sede física da livraria. Com seus irmãos José Maria monta estandes de vendas nas universidades, sobretudo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). José fica bastante orgulhoso ao ver que antigos clientes seus, graduandos, tornaram-se mestres, doutores e professores da universidade, utilizando seus livros em suas pesquisas. Quando o livro é raro, difícil de ser encontrado na cidade, José Maria faz questão de procurá-lo para seus clientes. Para se ter um exemplo, em 2019 esteve oito vezes em sebos e bazares de São Paulo em busca de títulos já esgotados.

Atualmente a Livraria Nacional conta com um acervo de 60 mil livros, sendo a maior parte deles de Ciências Humanas e Sociais. Os mais procurados são os de Amazônia, meio ambiente, arquitetura e engenharia. Todos os sábados é realizada uma feira de livros de sobreloja, seguindo todas as medidas de segurança: É oferecido álcool em gel aos clientes, sendo mantido certo distanciamento entre os mesmos, seja entre as estantes ou nas cadeiras e sofás do recinto.


FOTOS:

Antigo endereço da rua 10 de Julho. FONTE: Acervo de José Maria Monteiro Mendes.

José Maria Monteiro Mendes, à direita, na VI Bienal Internacional do Livro, em São Paulo. Foto de 1980. FONTE: Jornal do Commercio, 10/08/1980.

O prédio da rua 24 de Maio antes do incêndio de 01 de junho de 1995. FONTE: Acervo de José Maria Monteiro Mendes.

Certificado do Prêmio Globo de Marketing (2009). FOTO: José Maria Monteiro Mendes, 2020.

O prédio da rua 24 de Maio em foto recente. FOTO: José Maria Monteiro Mendes, 2020.

Uma parte do acervo. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Uma parte do acervo. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Parte da área de livros de Amazônia. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Anúncio da feira de livros. FOTO: José Maria Monteiro Mendes, 2020.

Sobreloja, onde todos os sábados é realizada a Feira de Livros. FOTO: José Maria Monteiro Mendes, 2020.

O autor do blog com o livreiro e pedagogo José Maria Monteiro Mendes. FOTO: Fábio Augusto, 2019.










segunda-feira, 20 de julho de 2020

Penitenciária não construída, em Manaus (1883)

Vista parcial da fachada da Penitenciária não construída em Manaus. FONTE: Seção de Viação e Obras Públicas do Arquivo Nacional.

Inúmeros projetos de obras públicas e particulares, em Manaus, idealizados entre os séculos XIX e XX, ficaram apenas no papel, seja por falta de verbas, desistência dos vencedores dos editais, falta de mão de obra especializada e simples abandono. Nesse texto falarei sobre a monumental penitenciária pública de Manaus projetada em 1883 no Governo de José Lustosa da Cunha Paranaguá e não construída.

A ideia da nova cadeia pública de Manaus surgiu quando o Presidente da Província do Amazonas, José Lustosa da Cunha Paranaguá, atestou o péssimo estado em que se encontravam as prisões da região, como deixou registrado em seu relatório de 25 de março de 1883:

"E' em geral desanimador o estado das prisões publicas. Funccionam em edificios mal construidos e sem as precisas condições: ou são predios alugados, ou compartimentos especiaes nos edificios das camaras municipaes. A não ser a cadêa da capital, creio que nenhuma outra deixa de estar comprehendida em alguma d' essas duas classes. Mas nem essa mesma se isempta do mal geral de não preencher convenientemente seu fim" (AMAZONAS. Relatório. 25/03/1883, p. 09).

José Paranaguá visitou a cadeia pública de Tefé, por ele descrita como um pardieiro imundo, coberto de palha e com as paredes desmoronando. A da capital não estava em melhores condições, pois "[...] tem pouca segurança, carece de accommodações para as praças e simples detentos, não tendo sequer as indispensaveis aos criminosos; mas sobretudo resente-se da falta de officinas para trabalho" (AMAZONAS. Relatório. 25/03/1883, p. 09-10).

Dessa forma, a Assembleia Legislativa Provincial, através do § 8 da Lei N° 582 de 27 de maio de 1882, garantiu a verba de 40 contos de réis para a construção de uma nova penitenciária em Manaus. A concorrência, de 5 meses, para a apresentação das plantas e do orçamento da construção, que deveria obedecer o sistema panóptico, foi aberta em 19 de janeiro de 1883:

"A penitenciaria deve ter cinco raios, sendo um destinado para a administração e os outro quatros para presos. Esses quatro raios devem ter duzentas celulas para duzentos presos. O destinado á administração póde ter mais de um pavimento e conterá um corpo de guarda, uma prisão para detentos, sala para rouparia, cosinha, arrecadação de generos, e casa de morada para o administrador. No ponto em que os quatro raios para presos começam a divergir haverá quartos para os carcereiros. O edificio será todo fechado por um muro. Nos espaços entre os raios e o muro terá quatro officinas espaçosas. O raio destinado para a administração deve voltar em angulo recto para os dous lados, ficando em forma de T, afim de evitar que elle torne-se demasiadamente comprido. Todas as celulas serão abobadadas. Em cada raio destinado para presos haverá um corredor central e duas ordens de celulas, abrindo para esse corredor. Para ventilação cada celula terá uma abertura para o pateo correspondente, na qual haverá uma forte grade de ferro" (AMAZONAS. Relatório, 25/03/1883, p. 10).

O modelo panóptico foi idealizado no final do século XVIII pelo jurista e filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832). Ele consistia na vigilância total, sendo aplicado não apenas em prisões, mas  também em escolas, fábricas, sanatórios e hospitais. Esses lugares deveriam ter o formato circular com uma torre com janelas e persianas no centro. No caso das prisões, as celas, pequenas e sem pontos cegos, seriam distribuídas igualmente ao redor da torre, de onde os presos seriam observados pelo inspetor, que nem sempre estaria lá (TADEU, 2008, p. 20-23). Como saber se o inspetor estava na torre? Não tinha como, e essa incerteza, o medo de ser pego, garantia o controle psicológico sobre os atos dos criminosos.

O local onde a penitenciária seria erguida não havia sido definido, mas José Paranaguá sugeriu que poderia ser na Praça da Saudade, em frente ao Cemitério de São José, ou em outra localidade. Ele também estipulou que as despesas com a obra não excederiam os 50 contos de réis, podendo a presidência ser autorizada a aumentar a verba dentro do orçamento. Caso não fossem apresentadas propostas ou as que surgissem fossem incongruentes com o solicitado, o governo poderia ser autorizado "[...] a executar as obras por arrematação ou administrativamente sob a fiscalisação da directoria de Obras Publicas, ou de um engenheiro contractado especialmente para esse fim" (AMAZONAS. Relatório, 25/03/1883, p. 11).

Ao que tudo indica, nesse prazo de cinco meses não foram apresentadas propostas, pois nova concorrência foi aberta, dessa vez através da Lei N° 631 de 20 de Junho de 1883:

"Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembléa Legislativa Provincial decretou e eu sanccionei a lei seguinte:

Art. 1.° Fica o Presidente da Província autorisado a abrir concurrencia para a construcção de uma penitenciaria, a vista da planta e orçamento, que forem acceitos pelo Jury de profissionaes de que trata a lei . 592 de 29 de Maio de 1882.

Art. 2.° Para execução d' esta obra poderá o Presidente da Provincia ordenar as desapropriações necessarias, nas quaes serão observadas as disposições do decreto n. 1664 de 27 de Outubro de 1855, e autorisar o pagamento da planta acceita, correndo as despezas pelo credito votado na lei do orçamento para a dita construcção.

Art. 3.° Revogam-se as disposições em contrario" (AMAZONAS. Parte Official, 25/07/1883, p. 01).

Em relatório de 16 de janeiro de 1884, José Paranaguá informa que no dia 27 de junho de 1883 foram apresentados três projetos para a construção da penitenciária, de B. Caymari, Alexandre Dantas e Bernardo Antonio de Oliveira Braga (AMAZONAS. Relatório, 16/02/1884, p. 59-60). No dia 14 de julho de 1883 foi nomeada pela Presidência da Província uma comissão composta pelo Diretor de Obras Públicas, Major Joaquim Leovigildo de Souza Coelho, pelo engenheiro adjunto da mesma, Antonio Constantino Nery, engenheiro João Carlos Antony e pelos mestres de obras José Cardoso Ramalho Júnior e José Pires dos Santos, para formar o juri que iria julgar as plantas e orçamentos apresentados (AMAZONAS, Actos officiaes. 18/07/1883, p. 01). O juri "[...] decidiu-se a favor do que foi organisado no Gabinete de Architectura e Engenharia Civil de Lisboa, e que tinha sido offerecido gratuitamente a provincia pelo Sr. Bernardo Antonio de Oliveira Braga" (AMAZONAS. Relatório, 16/02/1884, p. 60). O Gabinete de Arquitetura e Engenharia Civil de Lisboa foi o responsável pelo projeto do Teatro Amazonas. José Paranaguá mandou que fossem feitas cópias dos desenhos do projeto, que custaram 500$000, e fotografias dos mesmos (AMAZONAS. Relatório, 16/02/1884, p. 60).

No dia 01 de agosto de 1883 uma portaria do Governo nomeou uma comissão para escolher o local mais apropriado para a construção da penitenciária. Faziam parte dela Joaquim Leovigildo de Souza Coelho, Diretor de Obras Públicas, Jonathas de Freitas Pedrosa, médico da Santa Casa de Misericórdia, Aprígio Martins de Menezes, Inspetor da Saúde Pública, Tenente-Coronel Antonio Lopes Braga, Presidente da Câmara Municipal, e Lauro Batista Bittencourt, engenheiro das obras públicas da Câmara Municipal (AMAZONAS. Parte Official, Expediente do mez de Agosto, 23/09/1883, p. 01).

Apesar do projeto ter sido aprovado, o Diretor de Obras Públicas, em mensagem de 01 de setembro de 1883 endereçada ao Presidente da Província, afirmava não convir contratar de uma só vez a construção de todo o edifício, pois "[...] além de superior ás necessidades actuaes da provincia, terão de attingir as despezas da construcção a uma cifra elevada" (AMAZONAS. Parte Official, 07/10/1883, p. 01). Ele recomendou que o Presidente organizasse na repartição o orçamento para a construção de um ou dois raios e as dependências indispensáveis para o funcionamento de uma penitenciária, "[...] com tanto que o valor total d' essas construcções não exceda por emquanto a (400:000$000) quatrocentos contos de réis" (AMAZONAS. Parte Official, 07/10/1883, p. 01). Quando o orçamento fosse organizado seria aberta concorrência pelo tempo necessário, 

"[...] publicando-se pela imprensa aqui, no Pará, no Maranhão, Rio de Janeiro e Lisbôa, editaes, que terão de acompanhar a inclusa memoria descriptiva apresentada pelos proponentes e quaesquer outras indicações que V. S. entender convenientes. E ao Ministerio d' Agricultura, Commercio e Obras Publicas na Côrte, será remettida uma cópia do projecto, que, a vista da urgencia, V. S. mandara tirar por pessoa habilitada fora da repartição" (AMAZONAS. Parte Official, 07/10/1883, p. 01). O responsável pelos desenhos, remetidos ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, na Corte, foi o desenhista Carlos Luiz David, do Instituto Amazonense. 

O projeto não foi levado adiante. Em exposição de 10 de janeiro de 1888, o Presidente da Província do Amazonas, Conrado Jacob de Niemeyer, ao falar sobre o aumento no número de presos e a necessidade de uma nova penitenciária na capital, afirmou que "essa penitenciaria, porem, não deve começar logo por grandes proporções e sim na rasão das circunstancias financeiras para que, no intuito de remediar um mal, não se origine um outro não menor, qual o do desbarato dos dinheiros publicos" (AMAZONAS. Exposição, 10/01/1888, p. 11). Uma nova penitenciária só viria a ser mencionada em 1892, no Governo de Eduardo Gonçalves Ribeiro: "Igualmente espero plantas e orçamentos de uma penitenciaria; do quartel para Policia; casas para forum, congresso e outras repartições que são indispensaveis e urgentes (AMAZONAS. Mensagem, 01/06/1892, p. 12)

Reproduzi abaixo fotos das plantas da penitenciária, que fazem parte do fundo do Ministério da Viação e Obras Públicas do acervo do Arquivo Nacional:

Capa.

Contra capa.

Alçado principal, escala 1:100.

Alçado principal, escala 1:100.

Alçado principal, escala 1:100.

Alçado A. B., escala 1:100.

Alçado A. B., escala 1:100.

Planta ao rez do chão, escala 1:200.

Planta ao rez do chão, escala 1:200.

Planta do 1° pavimento.

Cortes, escala 1:200.

Cortes, escala 1:200.

Cortes, escala 1:200.

Alçados.

Compartimentos de ouvir missa e tipos de grades para janelas.

Tipos de portões de ferro das celas.

FONTES:

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas na abertura da segunda sessão da decima sexta legislatura em 25 de março de 1883 pelo Presidente José Lustosa da Cunha Paranaguá.

Amazonas (periódico), 18/07/1883.

Amazonas (periódico), 25/07/1883.

Amazonas (periódico), 23/09/1883.

Amazonas (periódico), 07/10/1883.

Relatorio com que o Presidente da Província do Amazonas, Dr. José Lustosa da Cunha Paranaguá, Entregou a administração da mesma província ao 1° Vice-Presidente Coronel Guilherme José Moreira, em 16 de fevereiro de 1884.

Exposição com que o Exm. Sr. Coronel Conrado Jacob de Niemeyer passou a administração da Província do Amazonas ao Exm. Sr. Coronel Francisco Antonio Pimenta Bueno em 10 de janeiro de 1888.

Mensagem do Exm. Sr. Dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro Presidente do Estado, lida perante o Congresso Amazonense, na sessão de instalação, em 01° de junho de 1892.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

TADEU, Tomaz (Org.). O Panóptico/Jeremy Bentham. 2° ed. Trad. de Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu. Belo Horizonte (MG): Autêntica Editora, 2008.