sábado, 2 de janeiro de 2021

A trajetória de um jornal centenário

Major Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), Vicente Torres da Silva Reis (1870-1947), Guilherme Aluízio de Oliveira Silva (1937-2019), a antiga sede do Jornal do Commercio na Avenida Eduardo Ribeiro, o local após as modificações ocorridas na década de 1940 e a atual sede na Avenida Tefé, no bairro Japiim. FONTES: Commercio do Amazonas; Acervo de Evaldo Ferreira; Acervo de Ed Lincon; Blog do Coronel Roberto; e Google Maps.

São poucas as empresas que chegam aos 100 anos. Mais raras ainda são as que ultrapassam essa marca. Deve-se refletir sobre a importância dessas instituições, que por gerações contribuem para o desenvolvimento socioeconômico das sociedades que lhes deram origem e das quais fazem parte. Uma delas é o Jornal do Commercio de Manaus. Fundado em 02 de janeiro de 1904, é o periódico mais antigo da região Norte e um dos antigos do Brasil.

Surgiu pelas mãos do Major Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), português radicado no Brasil desde 1862 (BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973). Não havia período melhor que aquele para a sua criação. O Amazonas, através das atividades ligadas direta e indiretamente à extração do látex, despontava como uma das principais economias do país. A capital estava passando por rápidas transformações, ganhando nova infraestrutura e atraindo a cada dia novos investimentos. Percebendo essas mudanças, Rocha dos Santos, que também era comerciante, funcionário público e anteriormente fora proprietário do jornal Commercio do Amazonas, sentiu a necessidade de uma nova folha especializada na atividade comercial. Reunindo o capital necessário para tal empreitada, apresentou à sociedade amazonense, no dia 02 de janeiro de 1904, o Jornal do Commercio, com sede na Avenida Eduardo Ribeiro, que em sua primeira edição foi anunciado da seguinte forma:

"Fazendo-se orgão do principal elemento de ordem e de progresso, que é o commercio, este jornal vem, innegavelmente, satisfaser a uma das mais palpitantes necessidades de nosso meio social e supprir uma lacuna que, já ha muito, se recente a vida manauense - um diario que preferentemente advogue e defenda os interesses comerciaes d' esta vasta e rica região do Brasil" (Jornal do Commercio, 02/01/1904, p. 01).

Como o nome e o editorial sugeriam, predominavam os assuntos ligados às atividades comerciais. Nele eram publicadas as cotações da borracha nos mercados nacionais e estrangeiros, os anúncios de casas comerciais e os serviços de profissionais liberais, os resumos das atividades políticas municipais, estaduais e nacionais, as movimentações no Porto, as matérias sobre as obras que eram realizadas em Manaus e no interior, as notas sobre a abertura de novas empresas, os informes sobre espetáculos no teatro e nos cinemas, as denúncias sobre crimes e práticas que deveriam ser combatidas para manter a ordem urbana. Em outras palavras, o Jornal do Commercio apresentava-se como um agente da modernidade na capital amazonense.

O aparecimento de um novo jornal no Amazonas foi comentado por veículos de imprensa de outros Estados. O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro registrou que o congênere manauara “contém copioso noticiário, serviço telegraphico e excellentes informações sobre vários assumptos de interesse”, desejando “longa vida ao novo collega da imprensa amazonense” (Jornal do Commercio, RJ, 1904, p. 02). O jornal A Cidade, do Ceará, o descreveu como um “brilhante diario que acaba de apparecer em Manáos sob a habil direcção do illustre cidadão J. Rocha dos Santos. E’ um jornal artistico e magnificamente elaborado” (A Cidade, CE, 08/03/1904, p. 02).

Infelizmente Rocha dos Santos não viu toda a grandiosidade de seu jornal. Faleceu no dia 09 de dezembro de 1905, aos 54 anos, vítima de um infarto fulminante. Após sua morte o jornal não circulou por alguns meses, reaparecendo apenas em abril de 1906, quando seus herdeiros o venderam para o Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa. Entre 1906 e 1907 teve como diretores Alcides Bahia, Henrique Rubim, Francisco Tavares da Cunha Mello e Vicente Torres da Silva Reis (Jornal do Commercio, 02/01/1913, p. 01).

Em abril de 1907 Vicente Torres da Silva Reis (1870-1947) compra o jornal. Natural do Rio de Janeiro, foi advogado, teatrólogo e jornalista. Com larga experiência na arena jornalística, com atuação em jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, Vicente Reis inaugurou uma nova fase do Jornal do Commercio, dotando-o de moderna infraestrutura. Em 1912 importou dos Estados Unidos três máquinas de linotipo, duas n° 10 e uma n° 05, fabricadas pela empresa Mergenthaler Linotype Company, de Nova York. Foram montadas pelo engenheiro norte-americano Mariano Alfredo Walderrama. O linotipo era uma máquina de composição em chumbo. O texto era produzido primeiro sobre placas desse metal, que em seguida eram organizadas e levadas para a impressão sobre o papel. Foi uma revolução no meio jornalístico, pois substituiu a produção manual.

Vicente Reis foi proprietário do Jornal do Commercio por mais de três décadas, de 1907 a 1943. Nesse período, de 1907 a 1943, foram de grande repercussão nas páginas do JC a valorização da borracha amazônica, sua desvalorização com a entrada da borracha asiática no mercado internacional, as beligerâncias entre os países europeus, culminando na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a chegada da Gripe Espanhola na cidade, em 1918, a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e a Revolução de 1930 articulada por Getúlio Dornelles Vargas. O jornal sempre esteve atento aos eventos internacionais, pois estes poderiam influenciar as relações comerciais regionais e nacionais. Entre 1930 e 1939, foram noticiados o surgimento e ascensão do Nazismo na Alemanha e do Fascismo na Itália, bem como o retorno dos embates entre as nações europeias, dando origem a um novo conflito de proporções mundiais (1939-1945). Todas essas informações chegavam através de correspondentes em Portugal e no interior do Estado (FREIRE, José Ribamar Bessa (Org.). Cem anos de imprensa no Amazonas (1851-1950). Manaus: Umberto Calderaro Ltda, 1990, p. 120).

Com bem vividos 73 anos e buscando descansar após décadas de trabalho, Vicente Reis vende o Jornal em 1943 para os Diários Associados, na época o maior conglomerado de mídia da América Latina, propriedade do jornalista, escritor e empresário Assis Chateaubriand (1892-1968). Chateaubriand também adquiriu a Rádio Baré, criada em 1938, administrando de forma conjunta as duas empresas. Na edição de 09 de fevereiro de 1943 foi publicado o aviso de que

"Não houve nenhuma majoração no preço do JORNAL DO COMÉRCIO com a sua incorporação aos "Diarios Associados", continuando cada exemplar a custar Cr $0,40, exceto aos domingos, quando é vendido a Cr $0,50. Fazemos este aviso para evitar explorações de qualquer natureza, contando com o concurso do publico para coibir abusos que por ventura se verifiquem na venda deste matutino" (Jornal do Commercio, 09/02/1943, p. 01).

Nesse momento, marcado pela Segunda Guerra Mundial, ganhavam as páginas do Jornal do Comércio, agora dos Diários Associados, as vitórias e derrotas dos Aliados, o retorno da exportação de borracha em grande escala, através dos Acordos de Washington, as notícias sobre a chegada de migrantes nordestinos, os Soldados da Borracha, para trabalhar nos seringais, os decretos federais e estaduais restringindo as atividades de súditos do Eixo no país, as campanhas da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e a participação de amazonenses nos campos de batalha. O palacete da sede na Avenida Eduardo Ribeiro foi modificado e reinaugurado no mesmo ano da aquisição pelos Diários Associados. Era um edifício de linhas modernas que sofreu um incêndio em 1977, sendo demolido em 1982.

Vencida a Guerra pelos Aliados, as décadas seguintes seriam de incertezas no cenário econômico regional. Entre 1950 e 1960 o Estado encontrava-se com a economia combalida. O déficit orçamentário municipal e estadual era crescente, e os pagamentos do funcionalismo público há muito estavam atrasados. Em 1957, o Deputado Federal Francisco Pereira da Silva idealiza a Zona Franca de Manaus, à época um Porto Livre, através da Lei N° 3.173 de 06 de junho de 1957. Nesse mesmo ano, estampou a primeira página da edição do dia 31 de julho a matéria "Zona Franca em Manaus na ordem do dia", que discorria sobre as expectativas que a medida gerava nos empresariados local, nacional e internacional, interessado nas importações e exportações” (Jornal do Commercio, 31/07/1957, p. 01). 10 anos depois, em 1967, a Zona Franca de Manaus é oficialmente criada através do Decreto Lei N° 288, de 28 de fevereiro. No dia 01 de março daquele ano era publicada na primeira página do Jornal do Commercio a matéria "Nova fase para o Amazonas. Manaus dentro da Zona Franca", em que o autor afirmava que "A transformação da cidade de Manaus em Zona Franca provocou justificado entusiasmo nos circulos administrativos, industriais, comerciais e, enfim, em todos os setores das mais diversas atividades, sendo saudada com a maior euforia" (Jornal do Commercio, 01/03/1967, p. 01).

Ao longo de sua História o Jornal do Commercio teve inúmeros colaboradores, nomes célebres que iniciaram suas atividades intelectuais na imprensa e mais tarde ingressaram nas cadeiras do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia Amazonense de Letras (AAL) e de outras instituições culturais: Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1841-1919), Bertino de Miranda Lima, Agnello Bittencourt (1876-1975), Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-1993), Genesino Braga (1906-1988), Ildefonso Pinheiro, Padre Raimundo Nonato Pinheiro (1922-1994), Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), Mario Jorge Couto Lopes, João Chrysóstomo de Oliveira, Phelippe Daou (1928-2016), Moacir Andrade (1927-2016), Geraldo de Macedo Pinheiro (1920-1996) e tantos outros pesquisadores e escritores.

Entre 1906 e 1984 teve como diretores, além dos já citados Alcides Bahia, Henrique Rubim, Francisco Tavares da Cunha Mello e Vicente Torres da Silva Reis, Josué Cláudio de Souza, João Calmon (1943-1946), Frederico Barata (1947-1961), João Calmon novamente (1962-1966) e Epaminondas Barahuna (1959-1984) (DUARTE, Durango Martins. A Imprensa Amazonense: chantagem, politicagem e lama. Manaus: DDC Comunicações LTDA-EPP, 2015, p. 17).

Em 04 de dezembro de 1984, depois de mais de 40 anos como propriedade dos Diários Associados, é comprado pelo empresário amazonense Guilherme Aluízio de Oliveira Silva (1937-2019), que também adquiriu a Rádio Baré. Foi com Guilherme Aluízio que o jornal ficou restrito ao tripé economia, política e entretenimento, afastando-se de aspectos comuns em outros periódicos, como as páginas policiais, circulando principalmente através de assinaturas mensais e anuais. Após sua morte, em 2019, passou a ser administrado, com muita competência, por seu filho, Sócrates Bonfim Neto. Nos últimos anos o Jornal do Commercio vêm se modernizando, buscando novas formas de abordagem, no caso as mídias digitais, com a produção de conteúdos dinâmicos e a interação nas redes sociais, mas sem perder as referências do passado através do jornal impresso, dando oportunidades a novos autores, que buscam em suas páginas fazer parte dessa brilhante e inigualável trajetória.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Almanaque Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas (1884)

Capa do Almanaque de 1884.

O ‘Almanaque Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas (1884)’ é um interessante e importante documento histórico sobre nosso Estado. Nele se encontram valiosas informações sobre a administração, o comércio, a política e a História do Amazonas nos anos finais do Império.

Um documento de sua importância era há muito aguardado pelos administradores públicos, pois a economia do Amazonas, graças às atividades ligadas à extração do látex, começava a se expandir. Para que essa expansão fosse contínua, atraindo investimentos, tornou-se necessário divulgar informações detalhadas sobre a Província. O almanaque só não fora produzido antes dados os avultados custos para a sua publicação.

Para contornar esse problema, a Assembleia Legislativa Provincial acresceu no orçamento uma verba destinada ao custeio da obra. A concorrência para a sua produção foi aberta, sendo escolhido o trabalho aprovado pela comissão formada por Joaquim Leovigildo de Souza Coelho, Jonathas de Freitas Pedrosa e o Tenente Coronel Joaquim José da Silva Meirelles. Com isso, fazia-se “[…] propaganda dos largos recursos de que dispõe esta vasta região, os quaes são em sua maior parte desconhecidos fóra e, o que é mais doloroso dizer-se, dentro do paiz”. Perto de sua publicação, foi anunciado na imprensa:

Almanach Amazonense para o anno de 1884. Publicação instructiva e utilissima para todos e principalmente para os commerciantes, quer desta provincia e das demais do Imperio, quer para os do estrangeiro. Está no prelo este Almanach. Recebem-se annuncios para elle n’ esta typographia” (AMAZONAS, 27/01/1884, p. 04).

A impressão foi realizada na tipografia do jornal ‘Amazonas’, propriedade do Coronel José Carneiro dos Santos (1852-1928), localizada na então Praça 28 de Setembro, atual Heliodoro Balbi (da Polícia).

O Almanaque do Amazonas seguia a mesma divisão dos congêneres publicados em outras Províncias. A primeira parte traz informações sobre as datas comemorativas e feriados, as estações do ano, a Geografia do Império, os chefes de Estado do mundo e a genealogia da Casa Imperial. Em seguida vêm a parte administrativa, onde estão registrados dados sobre o Chefe de Estado, o Ministério, o Conselho de Estado, o Senado, a Câmara dos Deputados, o Tribunal de Justiça e o corpo administrativo da Província.

A terceira parte é uma das mais importantes: nela consta a ‘História da Província do Amazonas entre os anos de 1540 e 1883’. Foi escrita pelo médico e historiador baiano Aprígio Martins de Menezes (1844-1891), aqui radicado desde 1869. Ele foi o primeiro autor a sistematizar a História do Amazonas, propondo divisões e marcos cronológicos para seu estudo. Ele é de grande importância para a compreensão dos primeiros passos de nossa historiografia regional. Na quarta parte, sobre estatística, temos os números referentes à quantidade de habitantes, escravos, escolas, embarcações, receitas, despesas e eleitores.

A quinta e última parte é a mercantil, “industrial, scientifica, profissional, philantropica e recreativa”. As informações sobre o comércio, navegação e estado financeiro da Província foram escritas em português, francês e inglês. Nela são apresentados os tipos de estabelecimentos comerciais e seus proprietários, os profissionais liberais e seus serviços, as sociedades, instituições, companhias e corporações, e documentos como regulamentos e contratos para a construção de obras públicas e concessões de serviços. Todos os capítulos são intercalados por anúncios.

Para deleite dos pesquisadores e entusiastas da História do Amazonas, o almanaque encontra-se disponível para consulta online na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional.

sábado, 12 de dezembro de 2020

O ossuário do antigo Cemitério de São José

Ossuário do antigo Cemitério de São José. FOTOS: Fábio Augusto, 2018 e 2019.

Quase quatro décadas após a desativação do antigo Cemitério de São José, em frente a Praça da Saudade, ocorrida em 1891, os restos mortais e monumentos funerários das pessoas nele enterradas começaram a ser transferidos, após a abertura de editais, para o Cemitério de São João Batista, na Vila Municipal (Adrianópolis). Os restos não reclamados por familiares foram depositados em um ossuário construído em 1932 na administração municipal de Emmanuel de Moraes. Obra simples, em pedra, com duas placas de mármore, uma frontal, com o nome do ossuário, e outra traseira, com os nomes dos encerrados. Na parte inferior da frente consta o ano da construção. Os jazigos e o ossuário estão localizados na quadra 04 do cemitério, em uma fileira que nos leva, entre os mármores de Carrara e Lioz, à Manaus da segunda metade do século XIX.

Ali repousam os despojos fúnebres de 48 pessoas, naturais da terra e também oriundas de outras paragens nacionais e internacionais. São elas, em ordem: Antônio Manoel Soares; Anna Feio de Souza Franco; Astrogildo de Magalhães e Cresolina de Magalhães (2 anjos); Antônio Pereira da Silva; Antônia, filha de Matheus Antônio Silveira; Anna Rodrigues Palmeira; Augusto, filho de A. Ximenes de Villeroy; Avelino José de Campos; Anna Maria de Carvalho, Anna Rita de Moraes Sarmento; Arthur Ezequiel de Pinho; Estephanio, filho de José Gonçalves L. Rosas; Enilia Guimarães Ribeiro; Francisco Agapito da Veiga; Felisberto Castro e Costa; F. Leopoldo M. Ribeiro (Major); Francisco Ramon Castro Alves; Giberto de Carvalho; Gaston Victor Griffett de la Baume; Geralda Francisca Vaz; Hermenegildo de Souza Barbosa; Henriqueta Fallegmen; Heloisa, filha legítima de Herminio; João Mario da Costa; José Joaquim da Silva Pingarilho; João Carlos Ferreira Fleury; Joaquim Rita de Cla Afonso; João Velloso Barreto; João Ribeiro da Silva; Padre José Antônio Barbosa; João Cassella; Luiz Felippe Cavalcante de Albuquerque; Luiza Amelia Ribeiro e Silva; Luiz Gonçalves de Castro; Maria Castro e Costa; Maria S. Sá e Manoel; Maria Francisca C. Conceição; Manoel J. G. de Freitas; Raymundo José Rabello; Roclman Mac Avone; Raymundo de Sá Correia (Capitão); Raymundo José Ferreira de Alcântara; Theodosia Amelia Alves; Violante Mario Gonçalves; Padre Vitaliani A. Ciani; Augusto A. Santos, filho de João Alves dos Santos; e Manoel Ignacio Teixeira.

Consultando jornais e relatórios do século XIX podemos encontrar informações sobre alguns dos falecidos. Antônio Manoel Soares foi sobrinho e caixeiro dos comerciantes Antônio Joaquim da Costa & Irmão. Faleceu ainda jovem, em 1872. Astrogildo e Cresolina de Magalhães, como indicado no ossuário, foram 2 anjos, isto é, crianças falecidas precocemente. Era uma crença no Brasil daquele período de que as crianças, ao morrerem, tornavam-se anjos que passariam a proteger a família. Antônio Pereira da Silva trabalhou como comerciante e militar. Antônia foi filha de Matheus Antônio Silveira, despachante geral e guarda-livros. Augusto era filho de Augusto Ximeno de Villeroy, primeiro Governador Republicano do Amazonas. Avelino José de Campos faleceu em 1888. Francisco Agapito da Veiga foi 1° Tenente da Marinha. Francisco Leopoldo de Mattos Ribeiro foi Major, Secretário, 1° Escriturário do Tesouro Público Provincial e Deputado.

Hermenegildo de Souza Barbosa tinha uma loja e taverna que funcionou na antiga Travessa da Imperatriz (rua da Instalação) e na rua 5 de Setembro. Além de comerciante, José Joaquim Pingarilho organizava grandes bailes de Carnaval, sendo um dos pioneiros nessa área. João Velloso Barreto, proprietário de uma loja de tecidos, pertencia à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia e à Sociedade Portuguesa Beneficente, atuando como 2° Secretário nesta última. Foi também Diretor da Associação Comercial do Amazonas (ACA). Faleceu em 1886. João Ribeiro da Silva foi Engenheiro, Capitão, Coronel Inspetor das fortificações e outras obras militares da Província, Subdelegado de Polícia em Tabatinga, Professor de Matemáticas do Liceu Provincial e membro da Loja Maçônica Esperança e Porvir. Escreveu o trabalho Melhoramentos do Amazonas, comprada de sua viúva pelo Governo da Província em 1874. Raymundo José Ferreira de Alcântara foi Tenente, Procurador Fiscal da Tesouraria da Fazenda Provincial e Subdelegado de Polícia em Manaus.

Esses nomes fizeram parte da sociedade amazonense de antanho. Eram comerciantes, militares de alta patente, engenheiros, funcionários e administradores públicos. Deve-se destacar que nem todos os moradores da antiga necrópole da Saudade puderam ter um novo local de descanso. Um bom número deles “desapareceu” por completo, sem que se pudesse conhecer seus nomes e origens. Durante os trabalhos de construção da sede do Atlético Rio Negro Clubeno terreno que outrora fora ocupado pelo cemitériorealizados entre 1938 e 1942, foram encontradas ossadas, a lembrar que onde passaria a reinar a diversão, outrora imperou a saudade e o culto à memória dos que ajudaram a construir o Amazonas.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Genesino Braga (1906-1988): um apaixonado pelo chão e graça de Manaus

À esquerda, Genesino Braga (1906-1988). À direita, um de seus livros mais famosos, 'Chão e Graça de Manaus'.

No dia 06 de dezembro de 1906 nasceu em Santarém, no Pará, o acadêmico, cronista, jornalista e professor Genesino Braga (1906-1988), filho de Genésio dos Santos Braga e Silvina Pedroso Braga. Realizou seus primeiros estudos na cidade natal, concluindo-os em Belém. Aos 21 anos, em 1927, mudou-se para Manaus, conseguindo nesse ano seu primeiro emprego, o de repórter do Jornal do Commercio (MENDONÇA, 2020, p. 16-20). Uma de suas primeiras grandes reportagens foi a entrevista realizada com D. Pedro de Alcântara de Orléans e Bragança (1875-1940) durante sua chegada à cidade, em 23 de maio daquele ano. O ilustre visitante disse estar maravilhado com os aspectos amazônicos que pôde observar durante a viagem.

Em 1930 passou a trabalhar como auxiliar de Gabinete no Palácio Negro. Nesse mesmo ano, em maio, foi nomeado pelo Interventor Federal Álvaro Botelho Maia (1893-1969) para o cargo de Praticante Interino do Arquivo, Biblioteca e Imprensa Pública. Assumiu a direção da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas em 1931, ficando à sua frente até 1965 (MENDONÇA, 2020, p. 25). Na madrugada do dia 22 de agosto de 1945 um incêndio de grandes proporções destruiu por completo o acervo da biblioteca. Coube a Genesino recuperá-la, reunindo livros de outros acervos da cidade e recebendo doações de várias partes do mundo, o que possibilitou que ela voltasse a funcionar pouco tempo depois, em 1947.

As décadas de trabalho nessa instituição ficaram refletidas em suas crônicas, livros e conferências, evidenciando o pesquisador metódico que foi, que dominava como poucos a historiografia regional, nacional e internacional, além das fontes, como os relatórios dos Presidentes da Província, os jornais do século XIX e também as memórias, as suas e as das pessoas que entrevistava. À pesquisa minuciosa unia a escrita leve, agradável. Seus textos eram sobre diversos assuntos relacionados, em sua maioria, à Amazônia, sobretudo sua História: costumes, reflexões, resenhas, biografias, datas comemorativas, construções, instituições, política e economia. Ao explicar o título de seu terceiro livro, Chão e Graça de Manaus, afirmou que o chão se referia à cidade, e a graça 

"[...] provém do quanto de fascinante, de poético, de sentimento e de beleza envolve aqueles episódios; e, ainda, nos modos de fraternizar, no encanto da hospitalidade, na sensibilidade artística e no requinte de civilização da nossa gente do passado, - em tudo o hálito de um clima espiritual que nunca envelheceu e não mudou, uma espécie de primavera cuja seiva o tempo não conseguiu estancar" (BRAGA, 1987, p. 14).

De acordo com Moacir Andrade, Genesino foi repórter do Jornal do Commercio de 1927 a 1930; Redator do mesmo jornal de 1931 a 1932; Diretor da Revista Mensal Cabocla de 1935 a 1950; e Redator Secretário do jornal A Tarde de 1937 a 1943 (ANDRADE, 1995, p. 75). Teve uma breve passagem pela política como Deputado Estadual, eleito para o quatriênio de 1935 a 1939, interrompido em 1937 pela instalação do Estado Novo. Foi membro fundador, em 1937, da Associação Amazonense de Imprensa (SOUZA, 1987, s. p.) e Presidente da Associação dos Funcionários Públicos.

Em fins da década de 1930 Genesino Braga já era considerado um dos intelectuais mais expressivos do Estado do Amazonas. O escritor espanhol Álvaro de Las Casas Blanco (1901-1950), de passagem por Manaus em 1938 para a realização de uma conferência, assim descreveu o panorama intelectual da época:

"Da Manáos que eu vi e vivi, devo confessar que em poucas cidades de quantas percorri na minha vida, encontrei um grupo de intellectuaes de tanta valia. Juristas como Sá Peixoto e Waldemar Pedrosa, poetas como Violeta Branca e Antony, oradores como Leopoldo Péres e Huascar de Figueiredo, chronistas como Aristophano Antony, Genesino Braga e Caio Góes, ensaistas como Clovis Barbosa e Ramayana de Chevalier, eruditos como Vivaldo Lima, historiadores como Arthur Reis e geographos como A. Bittencourt, ahi engrandecem a literatura brasileira com livros que não devem nem podem ser ignorados" (CASAS BLANCO, 1938, p. 111).

Genesino sempre procurou se especializar e se atualizar em sua área. Realizou em 1941 o curso de Biblioteconomia do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), no Rio de Janeiro. Em 1949 realiza novo curso de Biblioteconomia, dessa vez ofertado pela Biblioteca Nacional. Entre 1950 e 1951 faz uma especialização. O diploma de graduado em Ciências Biblioteconômicas conferido pela Biblioteca Nacional foi registrado no MEC em 1962.

Em 1951 fez parte da Delegação do Brasil à Conferência Regional dos Bibliotecários Profissionais da América Latina, promovida pela UNESCO e pela OEA e em 1954 integrou a Comissão Nacional de Bibliografia, formada pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (SOUZA, 1987, s. p.).

Sua consagração intelectual se dá em 1951, quando foi eleito membro da Academia Amazonense de Letras. Na Casa de Adriano Jorge atuou como Secretário e Presidente, além de contribuir com sua revista em diferentes números, de 1955 a 1985.

Como professor, ministrou o curso de Biblioteconomia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Na então Universidade do Amazonas, atual Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foi docente do curso de Biblioteconomia, ministrando as disciplinas História do Livro e das Bibliotecas I e II e Paleografia e Arquivística (MENDONÇA, 2020, p. 70).

Publicou quatro livros: Nascença e Vivência da Biblioteca do Amazonas; Fastígio e Sensibilidade do Amazonas de Ontem; Chão e Graça de Manaus; e Assim Nasceu o Ideal. No primeiro, publicado em 1957, discorreu sobre as origens da Biblioteca Pública, desde seus primórdios enquanto uma simples sala de leitura criada em 1871. O trabalho seguinte, de 1960, é de caráter saudosista, relembrando o autor dos tempos de fausto e luxo proporcionados pela economia gomífera. No terceiro, publicado em 1975, reuniu as melhores crônicas que publicou no Jornal do Commercio sobre diferentes episódios da História da cidade. Em seu último livro, de 1980, narrou a história de um dos mais tradicionais e aristocráticos clubes de Manaus, o Ideal.

Entre 1958 e 1979 recebeu 17 condecorações. A primeira, de Sócio Benemérito do Atlético Rio Negro Clube, foi recebida em 8 de maio de 1958. Em fins de 1965 foi escolhido o Jornalista do Ano pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas, o sendo novamente em 1973. Antes, em 1970, recebeu do Governo do Pará a Medalha Cultural Paulino de Brito, do Conselho Estadual de Cultura. Em 25 de março de 1971 lhe foi concedida a Medalha do Mérito Jornalístico. No ano do sesquicentenário da Independência do Brasil, em 07 de setembro de 1972, recebeu do Governo Federal o diploma do Sesquicentenário. Nesse mesmo ano, através de portaria do dia 13 de outubro, o Ministério do Exército lhe conferiu a Medalha do Pacificador (MENDONÇA, 2020, p. 31-32).

A Associação Amazonense de Bibliotecários, em 19 de março de 1973, lhe outorgou o título de Sócio Benemérito. No ano seguinte, em 23 de abril, foi titulado Sócio Honorário da Associação dos Servidores Públicos do Amazonas (ASPA). Em 1975 aufere três medalhas: a da Ordem do Mérito Militar, em 06 de agosto; a Medalha de Honra Dom Pedro II, pelo Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), em 02 de dezembro; e a Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Em 01 de maio de 1977 o Luso Sporting Club conferiu-lhe o título de Sócio Honorário. O Comando Militar da Amazônia, em 06 de janeiro de 1978, entregou o Diploma Concurso do Serviço Militar. Da Polícia Militar do Amazonas recebeu no mesmo ano a Medalha Tiradentes, por ocasião da homenagem ao líder da Inconfidência Mineira. As últimas medalhas foram recebidas em 1979, em Belém: a Ordem do Mérito do Grão-Pará, através de decreto de 14 de março, e a Medalha do Centenário 'A Província do Pará', conferida pelo periódico homônimo na mesma data (MENDONÇA, 2020, p. 32-36). 

Genesino Braga faz parte do hall de paraenses ilustres que entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX escolheram Manaus como local de moradia e trabalho, contribuindo para o engrandecimento da capital amazonense. O afamado intelectual partiu na manhã de 19 de junho de 1988, aos 81 anos, dos quais mais de 50 foram dedicados à pesquisa e à escrita. Foi um grande homem de letras, bibliófilo e cronista incansável, apaixonado que foi pelo chão e graça de Manaus.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ANDRADE, Moacir. Antologia Biográfica de Personalidades Ilustres do Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial do Estado, 1995.

CASAS BLANCO, Álvaro de las. Visão Intelectual de Manáos. Aspectos: Mensário de ciências, letras e artes. Rio de Janeiro, nov. - dez, n° 15, 1938, p. 109-112.

MENDONÇA, Manoel Roberto de Lima. As Artes de Genesino Braga. Manaus: s. n. 2020.

SOUZA, João Mendonça de. [orelha do livro]. In: BRAGA, Genesino. Chão e Graça de Manaus. 2° ed. Manaus: Imprensa Oficial do Estado, 1987.


CRÉDITO DAS IMAGENS:


Blog do Coronel Roberto.

Fábio Augusto, 06/12/2020.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

9 de Novembro de 1823: Adesão do Lugar da Barra à Independência do Brasil

Praça IX de Novembro. Foto de 2012. FONTE: Blog do Karinha.

No dia 09 de Novembro de 1823 a população do Lugar da Barra do Rio Negro (Manaus), capital da Capitania do Rio Negro, aderiu, após 1 ano e 2 meses, à Independência proclamada por Dom Pedro I em 07 de setembro de 1822. Como em outros lugares do Brasil, não foi um processo uníssono, sendo marcado por embates entre os favoráveis à emancipação e os portugueses.

D. Pedro I, sabendo da resistência que encontraria em algumas Províncias, antigas capitanias com fortes relações econômicas, políticas e culturais com Portugal, contratou para impor a adesão ao Império Brasileiro através do poderio bélico, os militares da Marinha Real Britânica Thomas John Cochrane (1775-1860) e John Pascoe Grenfell (1800-1869), ambos com experiência em processos de Independência na América do Sul.

Grenfell, sob comando de Cochrane, se dirigiu, no brigue de guerra 'Maranhão', ao Grão-Pará. Chegou na barra de Belém em 10 de agosto de 1823. Comunicou ao Governo do Pará (Junta Provisória), através de ofício, que este deveria aderir ao Império de D. Pedro I. No dia 11, temendo um ataque à cidade, a Independência foi reconhecida pela junta, com exceção do Governador das Armas, logo substituído. O auto de juramento foi lavrado em 15 de agosto.

A notícia da adesão do Grão-Pará ao Império de D. Pedro I foi, morosamente, chegando nos povoados e vilas através de navios e também dos regatões. Ela chegaria ao Lugar da Barra em novembro.

A adesão à Independência ocorreu no Largo da Trincheira (Praça IX de Novembro) na manhã do dia 09 de novembro de 1823. A Câmara de Serpa instala-se no Lugar da Barra no dia 19, sendo o juramento de fidelidade à D. Pedro I realizado às 9 horas do dia 22. Os moradores iluminaram suas casas por três dias e três noites. No dia 23 é eleita uma Junta Governativa formada por Bonifácio João de Azevedo, Raymundo Barroso de Bastos, Placido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha.

Apesar da adesão, a Capitania do Rio Negro, para o descontentamento de sua população e de seus dirigentes, não foi transformada em Província, sendo transformada em Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará.

A pequena praça, localizada entre as ruas Governador Vitório, Visconde de Mauá e Tamandaré, há muito está sem uso recreativo, servindo como estacionamento para carros em uma área degradada do Centro, ao lado de prédios arruinados e do Museu do Porto, igualmente abandonado.


FONTES CONSULTADAS:


15 de Agosto de 1823. O Liberal do Pará, 15/08/1884, p. 02-03.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:


BRAGA, Genesino. A praça berço. In: Chão e Graça de Manaus. 2° ed. Manaus: Imprensa Oficial do Estado, 1987, p. 65-68.


LIMA, Bertino de Miranda. A cidade de Manaus: sua história e seus motins políticos, 1700-1852. Manaus: Ed. Humberto Calderaro, 1984. [original de 1908].


Menezes, Aprígio Martins de. História da Província do Amazonas. In: Almanach Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas para o anno de 1884. Manáos: Imp. na Typ. do Amazonas de José Carneiro dos Santos, 1884, p. 87-115.


Martiz, Vasco. Lorde Cochrane, o turbulento Marquês do Maranhão. Revista Navigator, v.8, n. 16, 2012, p. 11-20.


REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Os que não morrem na gratidão dos amazônidas

Busto de Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) localizado em seu túmulo no Cemitério de São João Batista, em Manaus. Foto de 1984. FONTE: Revista Manchete.

O presente texto foi escrito pelo historiador Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-1993) e publicado no suplemento do dia 02 de novembro de 1932 da Revista Redempção, produzido especialmente para o Dia de Finados. Nele o autor discorre, brevemente, sobre três personalidades amazônidas sepultadas no Cemitério de São João Batista, em Manaus: Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900), Frederico José de Sant' Anna Nery, Barão de Sant' Anna Nery (1848-1901) e Clementino José Pereira Guimarães, Barão de Manaus (1828-1906).


Os que não morrem na gratidão dos amazônidas


Arthur Cezar Ferreira Reis.
Secretario Perpetuo do Instituto Geographico e Historico do Amazonas


Aquelle é o Pensador. Manáos é creação delle. Antes da acção dynamica, cyclopica por que se assignalou no mando, o que não havia aqui era tosco.

Manáos dava ares de burgo. Os homens do Imperio nada tinham realizado. Nada ou pouco. Se duvidam consultem os aspectos velhos, leiam as palavras dos viajantes, alarmados todos com o quadro que enxergavam.

Pensador fez tudo. Imaginou e executou.

E' verdade que errou. Talvez grandes, enormes, imperdoaveis erros. Um delles, o maior, o mais grave, foi o pouco caso pelo futuro economico. As rendas cresciam, avolumando-se espantosamente, sem que se visse a medida governativa que as impulsionavam, que lhes davam vida. Era tudo naturalmente. O ouro negro operava o milagre. Não é mentira o que se affirma aqui. Ha provas.

A palavra de Pensador não será bastante? Elle escreveu uma confissão franca, que as arcas se enchiam, sem as attenções directas do officialismo.

*
*  *

Pensador, como Lobo d' Almada, foi uma victima do seu grandioso querer pelo Amazonas. Ambos, em prodigios, construindo, zelando, civilizando. Ambos cobertos da maledicência dos incapazes, dos inimigos de todo homem que tem idéas, defende-as e as realiza alheio ácção peçonhenta desses malvados. Hontem como hoje, como agora, frisemos.

Sant' Anna Nery, não é o Barão que veio do Imperio, formando ao lado do servilissimo corpo de fidalgos improvisados, sem tradicções. O Amazonas não o conhece nessas vestes canhostras e insignificantes.

A homenagem é ao revelador de sua grandeza. E' ao escriptor, ao estylista, ao sabedor immenso do Paiz das Amazonas, de Folk-lore Bresilien, de Le Bresil em 1889, aquelle primeiro o livro fundamental, em que reuniu todo o conhecimento das nossas coisas, agua e terra, flora, fauna, o homem, de cá ou de fóra amansando a jangla formidavel. Livro em que se conta o passado, mostra ao globo, em quatro idiomas, o maravilhoso do valle, sem a phantazia dos poetas, dos romancistas, sem a sciencia improvisada de certos amazonologos de livros europeus.

Tres seculos antes, fora um jesuita, frei Gaspar de Carvajal, numa chronica phantastica, farta em trechos sensacionaes que dissera, alem-mar, do gigantesco deste mundo em formação. E por tal modo, que desassocegara espiritos, inquietara governos, provocando a cubiça do gaulez.

O frade dizia do quadro verde, da selva virgem. Com os excessos que a sua imaginação ardente lhe ditou, encantado. Vendo mulheres em guerra, novas Amazonas, valentes, heroicas, dominadoras, formando o imperio que, no lendario amerindio, seria o El Dorado faiscante.

Sant' Anna Nery, embora dominado pelos encantamentos da gleba, mas um forte sobre as emoções perturbadoras, com o senso da realidade, segredo que poucos sabem guardar, não mentiu. O Paiz das Amazonas, surprehendendo muita vez pela exatidão dos conceitos, da noticia que se lê, lançou-nos. Apontou-nos. Entregou-nos ao estudo detalhado de povos servidos pela experiencia de punhados de seculos.

Antes de Barão, que nada significa para nós, Sant' Anna Nery foi, insistamos, o revelador do Amazonas, que o outro, Pensador, levantara cheio de amor. Sabio e artista. Das maiores cabeças nacionaes, ao seu tempo, e ainda hoje.

O outro, o terceiro amazonida, teve posições políticas. Barão de Manáos, titulou-o a princeza Izabel, a 27 de Julho de 1888. E' o unico amazonense do grupo. Por isso mesmo, o mais ignorado na sua terra. Triste destino de um povo!

Filiado á corrente conservadora, governou a Província, em 1885 e em 1887. Governou com decencia, com patriotismo. Administrou, é bem o termo. Não foi nunca um transfuga. Não foi nunca, porem, um escravisado ao partido para acceitar exigencias imprudentes, comprometedoras. Quantos lhe rascunharam a biographia accentuaram o prestigio popular que o animava para caminhadas pelo berço. Morreu em 1906, a 26 de Outubro, em Manáos. Sempre sob a admiração dos coestadanos. Seu nome — Clementino José Pereira Guimarães. Nascido no velho Logar da Barra, em 1828. Commendador da Ordem da Rosa, deram-lhe o nome á uma rua. Fragil homenagem, numa terra onde se louvam, nessas demonstrações, até quantos lhe sugaram as energias, lhe deram as horas amargas de agora!

Pensador, Sant' Anna Nery, Commendador Clementino, não proclama o leitor, tres homens do Amazonas? Homens, no sentido honesto!!?

Dormem, os tres, em S. João.

Porque os moços, que desejam licções no passado, não lhes estudam as vidas. E no dia de hoje, não lhes vão á necropole, numa visitação comovedora e a denotar que já se forma um espirito nosso, voltado para o que é do patrimonio amazonense?

Arthur Cezar Ferreira Reis.


REIS, Arthur Cezar Ferreira. Os que não morrem na gratidão dos amazônidas. Revista Redempção. Suplemento do dia 2 de novembro de 1932, p. 09-10. (Biblioteca Arthur Reis - CCPA).

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os enterros em Manaus antes dos cemitérios públicos

Vista da cidade tomada do bairro dos Remédios, onde ficava o cemitério de mesmo nome. Do lado direito o antigo cruzeiro de madeira que ficava na rua Leovigildo Coelho, à época conhecida como rua da Cruz. Gravura de Humbert. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le pays des Amazones. Paris, França: L. Frinzine et Cie, 1885, p. 293.

Antes da construção de cemitérios públicos em Manaus, os enterros, assim como no restante do Brasil nos períodos colonial e imperial, eram realizados no interior das Igrejas Católicas e nos terrenos ao redor destas. Era uma prática secular no país, trazida pelos portugueses, e milenar na Europa e no Oriente.

Essa antiga prática funerária tem origem na Antiguidade Tardia, nos cemitérios localizados fora das cidades, nos subúrbios, onde foram enterrados os primeiros mártires cristãos. Os cemitérios ficavam distantes da área urbana por determinação legal. A Lei das Doze Tábuas, instituída na República Romana, determinava no 1° artigo de sua 10° tábua, que versava sobre direito sacro, a proibição do enterro ou cremação de alguém falecido na cidade (LASSARD, 2014, p. 07). O Código Teodosiano, publicado no Império Romano do Oriente e posteriormente introduzido na parte Ocidental do Império, determinava o mesmo, de forma a preservar a sanctitas (santidade) das casas dos vivos (DUARTE, 2016, p. 75). Igrejas passaram a ser construídas onde os mártires eram sepultados. A população cristã, no desejo de estar em contato com esses mortos, símbolos do Sagrado, do contato com Deus, passou a querer ser enterrada junto a eles no interior desses templos. De acordo com o historiador francês Philippe Ariès, "chegou um momento em que a distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu" (ARIÈS, 1989, p. 26-27).


Praça IX de Novembro. Abandonada, sem uso recreativo, é utilizada como estacionamento. Foto de 27 de abril de 2012. FONTE: Blog do Karinha.

As posturas municipais, as falas e relatórios dos Presidentes da Província do Amazonas, os periódicos e pesquisadores indicam que desde tempos remotos, quando a cidade ainda era o Lugar da Barra, eram utilizados como locais de enterro a parte de trás da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, o largo da antiga Igreja Matriz, na Praça IX de Novembro, e as duas igrejas católicas da cidade, a dos Remédios e a antiga Matriz (destruída em um incêndio em 1850). No 1° capítulo do Código de Posturas Municipais de Manaus de 1848, sobre os cemitérios, ficou estabelecido em seus quatro artigos que as Câmaras Municipais que não construíssem cemitérios públicos com capelas, como disposto na Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828, seriam multadas pela Província, e que logo que estes fossem erguidos seriam proibidos os enterros dentro dos templos ou em seus átrios, sob pena de multa ou prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18). A lei não surtiu efeito imediato. Os enterros tradicionais continuariam por mais alguns anos.

O geógrafo, historiador e professor Agnello Bittencourt (1876-1975) afirma que, nos primórdios da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, entre os séculos XVII e XVIII, enquanto os brancos enterravam seus mortos ao redor da antiga Igreja Matriz, "os índios, para tal fim, usavam a área que ia do Forte à rua Bernardo Ramos", registrando que, quando o Governador Eduardo Gonçalves Ribeiro realizou obras na Praça Dom Pedro II, "grande número de igaçabas (urnas funerárias) foi encontrado, levando à conclusão de que o núcleo principal do cemitério ficava sob a praça e onde hoje se acham o Palácio Rio Branco e o grande edifício ao seu lado.  Centenas de urnas ali estavam, naquele miracangüera dos aborígenes" (BITTENCOURT, 1969, p. 32-33).

O jornal Estrella do Amazonas, em edição de 13 de maio de 1854, define os enterros nesses locais como uma "prática repugnante", e que

"[...] todos os dias observamos enterrarem-se os cadaveres no largo da extincta Matriz (um dos lugares mais frequentados da Cidade e que nunca servio de Cemiterio) e nas immediações da Igreja dos Remedios, onde se tem visto restos mortaes dos nossos semelhantes espalhados sobre a terra, e expostos sem o menor resguardo a voracidade dos cães e outros animais" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13/05/1854, p. 07).


Antigo cemitério indígena da Praça Dom Pedro II. Gravura de E. Riou, 1847. FONTE: MARCOY, Paul. Voyage à travers l' Amérique du Sud, de l' Océan Pacifique à l' Océan Atlantique. Tome deuxième. Paris: Librarie de L. Hachette  et Cie, 1869, p. 420.

Nesse mesmo ano, em agosto, o Presidente da Província do Amazonas, Conselheiro Herculano Ferreira Pena, ao falar sobre o cercamento do terreno da Igreja dos Remédios que funcionaria como cemitério provisório até a abertura do de São José, em 1856, informou em sua fala à Assembleia Legislativa que desde a conclusão desse trabalho "[...] cessou o triste e repugnante espetaculo dos enterramentos sem resguardo algum no Largo da antiga Matriz, e em outras paragens da Cidade igualmente frequentadas" (FALLA, 1854, p. 15).

Eram enterradas ad sanctos (dentro das igrejas) as pessoas mais abastadas da sociedade: grandes comerciantes, militares de alta patente, membros do clero e autoridades públicas. Quanto mais perto do altar mais cara era a sepultura. Nos terrenos ao redor dos templos (apud ecclesiam), em covas rasas, visitadas não só por cães, como mencionado pelo jornal Estrella do Amazonas, mas também por porcos e onças, as pessoas pobres, os escravos, os suicidas e não católicos. Era uma assustadora mistura de lama, carne e ossos.

Os enterros nas igrejas e em seus arredores, em Manaus, tiveram fim em 1854, com o cercamento e benção do Cemitério dos Remédios. A Câmara Municipal da então Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, em 29 de maio daquele ano, determinou o seguinte:

"A Camara Municipal da Cidade da Barra do Rio Negro, e seu Termo &.

Faz publico que d' ora em diante serão enterrados os cadaveres no antigo Cemiterio dos Remedios, que se acha cercado e preparado, e não nos templos, e em lugares improprios como até o presente tem sido feito, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão, como determina o artigo 5°. do Codigo de Posturas em vigor. E para que chegue ao conhecimento de todos será este publicado pelas ruas e praças publicas desta Cidade, e pela imprensa, e afixado no lugar de costume.

Paço da Camara Municipal 29 de Maio de 1854 - O Presidente Rafael d' Assumpção e Souza - Francisco Antonio Toscano de Vasconcelos, Secretario interino" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 07/06/1854, p. 03).

Em 20 de maio, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, reafirmou a proibição dos enterros em outros lugares que não fossem o Cemitério dos Remédios, sob pena de multa de 20 mil réis ou oito dias de prisão (ESTRELLA DO AMAZONAS, 1854, p. 02-03). Em 1856, durante uma grave epidemia de febre amarela, o Presidente da Província, João Pedro Dias Vieira, determinou o fechamento do Cemitério dos Remédios, entrando em atividade o Cemitério de São José (RELATÓRIO, 1856, p. 05), que funcionaria até 1891.


FONTES:


Estrella do Amazonas, 13/05/1854.

Estrella do Amazonas, 07/06/1854.

Estrella do Amazonas, 24/06/1854.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1° de agosto de 1854, em que se abrio a sua 3° sessão ordinaria, pelo presidente da provincia, o conselheiro Herculano Ferreina Penna.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, pelo excellentissimo senhor doutor João Pedro Dias Vieira, dignissimo presidente desta provincia, no dia 8 de julho de 1856 por occasião da primeira sessão ordinaria da terceira legislatura da mesma Assembléa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Tradução de Pedro Jordão. Lisboa (PT): Teorema, 1989.

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

DUARTE, Jôuldes Matos. Práticas mortuárias no cemitério do Polo Pilar do Bairro do Recife - PE. Dissertação (Mestrado em Arqueologia), UFPE, 2016. LASSARD, Yves. Lex duodecim Tabularum (Bruns). The Roman Law Library, 2014.

SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.