sexta-feira, 25 de março de 2022

Matéria viscosa, matéria vistosa: a escarradeira

Escarradeira de porcelana francesa. FONTE: Leslie Diniz Leilões.

A escarradeira, também conhecida como cuspideira e salivadeira, é um objeto utilizado, como revelam seus nomes, para escarrar e cuspir. Suas origens remontam à Idade Média Oriental. Na China, por exemplo, foram encontradas escarradeiras em tumbas de imperadores que remontam ao século VIII. As intensas trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente, no século XVI, fizeram as escarradeiras se popularizar nas Cortes da Europa - escarrar era um hábito - principalmente durante o apogeu das exportações de tabaco das colônias portuguesas e espanholas na América. Após o tabaco ser mascado, ele era cuspido nesses recipientes. Além desse uso, a escarradeira também era utilizada para fins médicos, com a eliminação de secreções decorrentes de doenças como a gripe e a tuberculose. 

Sua chegada ao Brasil se deu entre fins do século XVIII e início do XIX. Encontramos em jornais do Rio de Janeiro publicados entre as décadas de 1820 e 1840, pessoas anunciando a compra e a venda de escarradeiras. Em 1827, a Chácara Copacabana, do Padre Jacinto Pires Lima, foi furtada por uma quadrilha. Dentre os inúmeros itens subtraídos, consta uma escarradeira (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 30/03/1827, p. 03). Por volta de 1838, uma pessoa anônima, estabelecida na rua do Valongo, comprava objetos de segunda mão. Um dos objetos que procurava, ao lado de uma bacia e jarro de prata, era a escarradeira (O DESPERTADOR, 30/11/1838, p. 04). Em um leilão realizado em 1845 na rua do Ouvidor, foi leiloada uma escarradeira feita de mogno (JORNAL DO COMMERCIO, 20/06/1845, p. 03). O lampista Auguste Daveau, proprietário da loja 'Bule Monstro', anunciava ter para vender em 1859 "escarradeiras de latão e de folha envernizada, ditas hygienicas de patente" (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1859, p. 86).

A escarradeira, que já tinha uma origem ligada a membros do topo da hierarquia social, foi incorporada no Brasil pela nobreza, pela burguesia e pela classe média urbana. As utilizadas por esses segmentos eram feitas de porcelana, de louça, de faiança, de vidro e de madeiras e metais nobres. Eram decoradas com motivos florais, com paisagens bucólicas do campo, figuras de animais e muitas vezes suas formas, sendo mais empregada as do leão, com a representação de seu rosto e suas patas, de forma a lembrar, talvez, as origens orientais. Na geografia doméstica, a escarradeira, que poderia ser uma ou duas, ficava na sala, ao lado das cadeiras e sofás, e também debaixo ou ao lado da cama, junto do urinol. O sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre registra que elas também eram postas na porta de casa, onde recebiam os visitantes: "Os viajantes estrangeiros que aqui estiveram no fim do século XVIII e no começo do XIX não se cansam de censurar nos brasileiros daquele tempo o mau hábito de viveram cuspindo, as salas cheias de escarradeiras ou cusparadas" (FREYRE, 2013). Os viajantes estrangeiros encontraram escarradeiras aos montes nas casas grandes e nas casas da burguesia e da classe média que começava a se formar em meados de 1800. A arqueóloga e historiadora Tânia Andrade Lima, em estudo sobre a cultura material do Rio de Janeiro do século XIX, afirma que a escarradeira é um objeto que diz muito, assim como outros, da mentalidade burguesa da época e suas práticas sociais:

"Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao aoto de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos" (LIMA, 1996, p. 66).

Sobre o hábito de cuspir e escarrar eram impostas, pelo menos desde o século XVI, normas de conduta. O teólogo e filósofo holandês Erasmo de Rotterdam, no livro A civilidade pueril, publicado em 1530, recomenda que quando se fosse cuspir, a pessoa deveria virar-se para o outro lado, de forma a evitar que as gotículas atingissem alguém. Se a matéria mucosa caísse no chão, o recomendado era que se colocasse o pé em cima. Cuspir em um lenço era o mais recomendável. Apesar de ser um hábito, não deveria ser praticado rotineiramente: "Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir" (ROTTERDAM, 2006, p. 150).  Esse hábito, que se tornava cada vez mais intolerável, pôde ser mais ou menos controlado, de acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, através da escarradeira, que se tornou um utensílio bastante requisitado nas residências burguesas (ELIAS, 1994, p. 159).

As escarradeiras não ficavam restritas ao ambiente doméstico, estando presentes em hospitais, escolas, igrejas, bares e teatros. Vejamos a extensa lista de objetos solicitados pelo Presidente da Província do Amazonas para o Hospital Militar de Manaus em 1876: Nela constam xícaras, bules, copos, lamparinas, colchões, cadeiras, urinóis e "cincoenta escarradeiras de madeira" (JORNAL DO AMAZONAS, 06/07/1876, p. 03). Na lista de objetos a serem adquiridos pelo Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, consta o pedido de uma dúzia de escarradeiras, não sendo especificado de que material (DIÁRIO OFFICIAL, 22/08/1896, p. 07). As que eram encomendadas para hospitais - geralmente de ferro ou outro material mais simples - ficando ao lado das camas dos pacientes, tinham um tratamento diferente. Contra vários tipos de doenças, o jornal A Federação recomendava, em 1899, que "na bacia de cama e escarradeira deve sempre haver uma porção do soluto de sulfato de cobre" (A FEDERAÇÃO, 15/12/1899, p. 01).

Ainda de acordo com Tânia Andrade Lima, as escarradeiras eram produzidas na China e exportadas para a Europa no século XVIII. Posteriormente surgiram oficinas nas cidades portuguesas de Viana, Porto e Gaia (LIMA, 1996, p. 67). Encontrou-se em um jornal baiano de 1841 um vendedor comercializando objetos de Prata vindos da cidade do Porto. Entre facas, garfos e bules estavam as escarradeiras (CORREIO MERCANTIL, 20/03/1841, p.04). Também existiam fábricas em outros países Europeus, como a Alemanha. É de lá uma interessante peça que faz parte do acervo do Museus Ibram Goiás, datada do século XIX e produzida pela fábrica Bonn Franz Ant Mehlem (1840-1884). Veio de Limoges, na França, uma belíssima escarradeira do Museu Histórico e Pedagógico Visconde de Mauá, em Mogi das Cruzes, São Paulo. Deve-se mencionar a produção brasileira, que teve como representante a Fábrica Nacional de Vidros de São Roque, no Rio de Janeiro, que produzia "escarradeiras de diferentes côres, imitando as francesas, proprias para sala de visita" (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 03/04/1860, p. 04).

A escarradeira possivelmente chegou ao Amazonas por volta de 1850, assim como outros objetos domésticos, favorecida que foi a região pelo estabelecimento de uma linha regular de vapores da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852), propriedade do Barão de Mauá que mais tarde, em 1871, seria adquirida por empresários ingleses. A primeira referência encontrada data de 1859, na lista de objetos da Enfermaria Militar localizada em Manaus (ESTRELLA DO AMAZONAS, 20/07/1859, p. 03). Já por volta de 1870 a encontramos sendo comercializada. O comerciante Bernardo Truão, proprietário da Loja Esperança, importou em 1877 variadas "fazendas de luxo e miudezas" de Paris, Viena e Hamburgo, de onde vieram escarradeiras de porcelana (CORREIO DO NORTE, 21/07/1877, p. 04). Na Livraria Clássica, de Silva & Gomes, podiam ser encontradas, em 1892, "escarradeiras nickeladas e de zinco" (DIÁRIO DE MANÁOS, 06/04/1892, p. 04). Em 1898 a Casa Pekim, na rua Henrique Martins, comercializava "escarradeiras finas" (COMMERCIO DO AMAZONAS, 31/05/1898, p. 03).

O uso desse utensílio era tão arraigado na sociedade burguesa manauara que ele acabava tornando-se sinônimo de imundície em algumas situações. O jornal humorístico A Marreta, ao se referir a uma prostituta polaca que residia na Avenida Epaminondas, afirmou que ela era "peior do que uma escarradeira de tysico (tuberculoso)" (A MARRETA, 10/11/1912, p. 02). "Vae lavar tuas escarradeiras, sujo", bradavam os redatores de O Pimpão contra um português que estava tentando conquistar uma jovem (O PIMPÃO, 05/09/1911, p. 04). O Rebenque, protestando contra as moças que iam à missa e, ao invés de prestarem atenção nos ofícios, ficavam tagarelando, as alertava que "[...] as cabeças dos catholicos que vão a igreja, assistir religiosamente os seus actos, não podem nem devem servir de escarradeiras" (O REBENQUE, 11/01/1913, p. 03).

As mais belas escarradeiras do Amazonas encontram-se em exposição no museu do Teatro Amazonas. São de procedência holandesa e alemã, produzidas pela histórica fábrica Villeroy & Boch, em atividade desde 1748. São decoradas com figuras de animais, principalmente de pássaros, e cenas urbanas como um passeio de charrete, algo bastante característico do período. Outras, possivelmente de igual qualidade e beleza, devem ter se perdido nos antigos palacetes aristocráticos e residências pequeno-burguesas, a arruinar-se no Centro da cidade. Fazendo um exercício imaginativo, podemos nos transportar para a Manaus do final do século XIX e início do século XX para visualizar os usos da escarradeira. Quantas cusparadas e escarradas não foram dadas nos intervalos dos grandes espetáculos nas vistosas escarradeiras espalhadas pelo Salão Nobre do teatro, ou nas reuniões realizadas nos salões das casas mais suntuosas da Avenida Joaquim Nabuco e da Avenida Eduardo Ribeiro. Matéria viscosa de artistas, políticos, militares de alta patente, homens de negócios, cônsules, expectorada entre um gole de champagne francês Veuve Clicquot Ponsardin, vinho português do Porto e uma tragada de charuto cubano, o melhor do mundo. Expectoração que poderia anteceder ou suceder a assinatura de algum tratado, de acordo comercial entre seringalistas e casas aviadoras, ou de simples agendamento de convescote nos bosques do Tarumã no final de semana.

Até quando as escarradeiras foram utilizadas? É difícil precisar. As encontramos sendo vendidas ou leiloadas em anúncios de jornais até a década de 1940. A partir daí elas praticamente somem de circulação. As antigas escarradeiras de porcelana, de prata e de vidro, são substituídas por novos modelos hidráulicos, instalados em pontos estratégicos de espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como bem exemplifica um anúncio de 1926 da Escarradeira Hygéa, criada no Rio de Janeiro, que possuía limpeza automática: "Os regulamentos de saúde publica exigem escarradeiras deste systhema". A revista Careta, do Rio de Janeiro, registra a instalação desse tipo de escarradeira em Manaus, no consultório do médico José Garcia e no Posto de Profilaxia Miranda Leão (CARETA, 17/09/1927, p. 37). É provável também que entraram em decadência juntamente aos hábitos de mascar fumo e usar cachimbo, e que tornaram-se, disso não tenhamos dúvida, menos toleráveis com o passar do tempo: o refinamento deu lugar ao estranhamento, à repugnância, reação que ainda temos quando vemos essas peças expostas em museus e lembramos dos seus usos no passado.


FONTES:

Diário do Rio de Janeiro, 30/03/1827.

O Despertador, RJ, 30/11/1838.

Correio Mercantil, BA, 20/03/1841.

Jornal do Commercio, RJ, 20/06/1845.

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, 1859.

Estrella do Amazonas, 20/07/1859.

Diário do Rio de Janeiro, 03/04/1860.

Jornal do Amazonas, 06/07/1876.

Correio do Norte, 21/07/1877.

Diário de Manáos, 06/04/1892.

Commercio do Amazonas, 31/05/1898.

A Federação, 15/12/1899.

O Pimpão, 05/09/1911.

A Marreta, 10/11/1912.

O Rebenque, 11/01/1913.

Careta, RJ, 17/09/1927.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1994.

FREYRE, Gilberto de Mello. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.

LIMA, Tânia Andrade Lima. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v. II, n.3, p. 44-96, 1996.

ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Brasil Colônia: uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida

Vista de um Engenho Real no Brasil. Franz Post, século XVII. FONTE: Musée du Louvre/René-Gabriel Ojéda.

O texto aqui apresentado é fruto de uma resenha do primeiro capítulo do livro Casa Grande & Senzala, do sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre. Nessa primeira parte é discutida a formação da sociedade colonial brasileira, assentada na monocultura, na mão de obra escrava e no hibridismo cultural entre o colonizador, o indígena e o escravo africano.

Por volta de 1532 - ponto de partida proposto por Freyre - quando a Coroa Portuguesa enviou a primeira expedição colonizadora, comandada pelo nobre, militar e administrador colonial Martim Afonso de Souza, teve início a empreitada portuguesa nessa parte dos trópicos, quando estes já tinham, pelo menos, um século de experiência na Índia e na África, vide a conquista da cidade de Ceuta em 1415. A estrutura mercantil da extração do Pau-brasil deu lugar à atividade agrícola, que garantiu estabilidade, diferente do que ocorria quando a organização era feita através de feitorias para a estocagem da madeira. A colonização foi organizada tendo como base a agricultura, a regularidade do trabalho escravo e a união do português com a mulher indígena e mais tarde a africana. Surge, assim, uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida.

A aptidão do português para a colonização de caráter híbrido e escravocrata é fruto de seu passado cultural entre a África e a Europa, das influências da cultura e clima africanos sobre a europeia, tornando maleáveis suas instituições, a alimentação, a vida sexual e a religião. Tiveram grande contribuição para atenuar o caráter português as relações tensas entre a Europa e a África. Contato através da guerra, do uso dos cativos conquistados no trabalho agrícola e industrial. A origem portuguesa também é marcada pelo contato com populações africanas e árabes, o que contribuiu para a constituição de uma sociedade marcada pela bicontinentalidade, pelo equilíbrio de antagonismos e pela flexibilidade de se ajustar às diferenças culturais. É a partir dessa convivência entre sentimentos e valores antagônicos que terá origem a formação da sociedade brasileira. Contribuiu enormemente a mobilidade e adaptabilidade para a vida nos trópicos, herança da presença semita na Península Ibérica, o que compensou o baixo índice demográfico de Portugal, que com “[…] um pessoalzinho ralo, insignificante em número – sobejo de quanta epidemia, fome e sobretudo guerra afligiu a Península na Idade Média” (FREYRE, 2003, p. 70), conseguiu se espraiar por várias partes do mundo, através da mobilidade e miscibilidade. Freyre afirma que os membros da administração reinol, administradores, guerreiros e técnicos, moviam-se entre as possessões como se estivessem em um tabuleiro de gamão.

Freyre afirma que miscibilidade do português jamais foi igualada por outro povo colonizador. Foi através do intercurso com as nativas e as mulheres de origem africana que se compensou o baixo índice demográfico, possibilitando a colonização em larga escala em territórios vastíssimos. Intercurso já praticado na Península, com as mulheres árabes, cuja semelhança os portugueses encontrarão nas indígenas da América Portuguesa. Outro elemento que favoreceu o empreendimento português foi o clima. O clima de Portugal é aproximado do africano, o que facilitou a vitória portuguesa nos trópicos. Esse se adaptou perfeitamente, diferente dos colonizadores vindos de países de clima frio. O português, por sua predisposição de clima e cultura, venceu o meio, marcado pelo

clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua lavou tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado” (FREYRE, 2003, p. 76).

O português, nos Trópicos, mudou seu sistema de alimentação e o seu sistema de lavoura. O colonizador do Norte da Europa, nesse ponto, teve vantagem, pois na América do Norte encontrou um clima semelhante ao de sua cultura agrícola natural. Ao enfrentar todos esses desafios, registra o autor, o português criou uma obra original. Não foi uma tarefa fácil. Grandes eram os desequilíbrios, como a terra pouco fértil, os rios caudalosos e as grandes secas. O português fez um enorme esforço civilizador nos trópicos. Antes do reconhecimento do território, estabeleceu-se uma exploração comercial através de feitorias, sem o objetivo de fixar o homem ao solo. Aos poucos o colonizador modificou essa estrutura, buscando criar riqueza e fixar-se. Desenvolveu-se, através da iniciativa particular, incentivada pela Coroa, uma colônia de plantação, a plantation, que tinha como base a grande lavoura e o trabalho escravo. Diferente do que ocorrera na América Espanhola, onde houve extermínio ou segregação entre os colonizadores e os nativos, o homem lusitano buscou constituir família com a mulher da terra conquistada e mais tarde com a escrava importada. Desenvolveu-se uma sociedade patriarcal e aristocrática. O elemento dinâmico da colonização brasileira foi a família, família dita rural ou semi-rural, cujo domínio só rivalizava com o da Igreja. A família colonial fez pesados investimentos, desbravando e cuidando da terra. Some-se à isso a moral sexual e religiosa, lírica, amaciada pelo contato anterior com a cultura árabe. A religião Católica tinha caráter mais popular que oficial.

O caráter agrícola da colonização se impôs como uma necessidade, haja vista não terem sido encontrados, em um primeiro momento, matérias-primas que atendessem às necessidades do comércio mercantilista europeu. A natureza era esmagadora, em estado bruto, concorrendo, na maioria das vezes, contra a atividade agrícola. Mas o português conseguiu adaptar-se. Um exemplo disso é o uso que fez dos rios. Os grandes rios, com suas cheias, destruíam plantações e criações de gado. Dessa forma, foram de grande valia os rios de pequeno porte, regulares, que contribuíram para o florescimento da lavoura, da pecuária, sendo utilizados também no transporte de mercadorias. Gilberto Freyre afirma que prolongou-se no brasileiro a tendência portuguesa de expandir-se ao invés de condensar-se. Isso fica bastante claro na figura do bandeirante, que fundava, de forma imperialista, subcolônias, expandindo o território. Apesar das conquistas territoriais, os ímpetos imperialistas e separatistas dos bandeirantes foram anestesiados pela geografia do território. Outro tipo social móvel foi o jesuíta, que se moviam pelo território educando a catequizando os nativos. A mobilidade não oferecia riscos para a unidade política pois não se desenvolveram no território separatismos como os que vieram com os espanhóis, ingleses e franceses. “O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça” (FREYRE, 2003, p. 91). Importava muito mais a religião Católica que a raça, pois foi através do Catolicismo que se constituíram laços profundos de solidariedade e unidade política.

Após refletir sobre a inconstância cultural do português e sua propensão para a miscibilidade, Freyre discorre sobre como as diferenças geográficas da América Portuguesa poderiam ter concorrido para o surgimento de extremismos regionais. No entanto, elas influenciaram apenas no tipo de agricultura praticada e no sistema alimentar. Essa diferença era visível na mesa colonial, com influências mais indígenas em uma parte, mais africanas em outras e, principalmente, da cozinha portuguesa, africana e indígena. Interessante a relação que o autor faz entre o latifúndio escravocrata e o mal abastecimento alimentar da população colonial. A plantation dominava a economia, deixando em segundo plano a agricultura de subsistência. Dessa forma compreende-se que “Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais em nutrição” (FREYRE, 2003, p. 95). O luso-brasileiro dos primeiros séculos era mal alimentado. Viviam-se extremos alimentares, como a alimentação servida na casa grande e na senzala. Daí Freyre afirmar que dos escravos descendiam os melhores elementos da população, elementos fortes e sadios, diferente do que ocorria na população pobre e livre, cujos representantes eram mal nutridos e sobre os quais recaíam diferentes tipos de doenças. Nesse ponto vemos o pioneirismo de Freyre, que discorda dos sociólogos que viam na mestiçagem ou no clima tropical as causas da degeneração do brasileiro. O que age sobre a população são os efeitos nefastos da economia escravocrata, esterilizante, que gera a fuga de braços da agricultura, a instabilidade de abastecimento, a má conservação dos alimentos. Mesmo nas casas grandes, entre os senhores, a alimentação não era tão boa como se supõe: carne uma vez ou outra, poucas frutas e legumes e de baixa qualidade. A pobreza de cálcio do solo brasileiro escapava ao controle, mas a deficiência alimentar causada pelo modelo econômico poderia ser corrigida. Escapa à generalização sobre a deficiência alimentar a realidade paulista, por sua formação semi rural, agrícola e pastoril, que garantiu um abastecimento regular e variado de gêneros alimentícios.

Ainda sobre o regime alimentar, Gilberto Freyre afirma que a influência mais benéfica, fortificante, foi a africana, através dos alimentos vindos daquele continente e do regime alimentar do negro durante a escravidão. Essa última influência se explica pelo fato de que os senhores de engenho, buscando o melhor aproveitamento da mão de obra, investiam em uma alimentação que, se não era das melhores, atendia às necessidades do trabalho. Por essa nutrição relativamente melhor que a da maior parte da população, descendem do negro os melhores representantes de força e beleza, como as mulatas, os atletas e os fuzileiros navais. A figura do caboclo, união entre o branco e o índio e exaltada no passado como sendo a maior representante do vigor brasileiro, é na verdade fruto das três raças, principalmente do negro. Outras heranças da miscigenação, vindas do Europeu, foram as doenças venéreas, com destaque para a sífilis, que agiram negativamente sobre a população brasileira; e a relação de sadismo do branco sobre os dominados e masoquismo destes últimos. Sadismo sexual que penetrou nas instituições e na política. Masoquismo no gosto de sofrer, de buscar um redentor, um messias. E assim foi se constituindo a sociedade brasileira colonial, através do equilíbrio entre elementos antagônicos:

Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo” (FREYRE, 2003, p. 116).

Foram essenciais para a compreensão desse capítulo de Casa Grande & Senzala as notas de rodapé, em que Freyre expressa, assim como no corpo do texto, grande erudição e diálogo com a historiografia de seu tempo e estudos de outras áreas. As notas também são utilizadas pelo autor para manter diálogos com os pesquisadores dessas áreas, diálogos que vão do elogio, passam pela crítica e muitas vezes chegam à discordância, sempre acompanhada por uma gota de acidez, característica do autor. Essas notas foram sendo revisadas e incrementadas em novas edições. Foram escolhidas algumas para a análise. A escolha levou em conta, principalmente, a extensão das notas, algumas ocupando mais de duas laudas. A primeira nota que considerou-se foi a 16, em que Freyre debate com outros autores, como D. G. Dalgado, Emile Béringer e Luís Pereira Barreto, a questão da aclimatabilidade do português em várias partes do mundo. Eles defendem, muitas vezes de forma apologética, que o português, por suas disposições genéticas, constituídas através do contato com povos semitas e africanos, se aclimatam melhor que outros povos europeus. Freyre discorda de uma superioridade puramente étnica, dando como exemplo o fato de a Amazônia brasileira não ter sido plenamente colonizada por ele. “Essa área provavelmente só será colonizada plenamente com o desenvolvimento e barateamento da técnica de ar condicionado e de outras formas de domínio do clima pelo homem civilizado” (FREYRE, 2003, p. 121).

Outra interessante nota é 18, em que o autor analisa a relação entre as embarcações vindas da Índia para Lisboa e de Lisboa para a Índia e o Brasil. Estudando portarias, cartas, leis, provisões, alvarás e outros tipos de documentação, ele mostra como se deu esse contato, contato comercial que deu vazão a trocas culturais entre a América e o Oriente. Ele nota influências na arquitetura, nos costumes e nos objetos:

São esses contatos, que parecem ter sido frequentes, que explicam o fato de terem a vida, os costumes e a arquitetura no Brasil colonial recebido constante influência direta do Oriente, acusada pelo uso, generalizado entre a gente de prol, de palanquins, banguês, chapéus-de-sol, leques da China com figuras de seda estofada e caras de marfim, sedas, colchas da Índia, porcelana, chá etc., e ainda hoje atestada pelos antigos leões de louça de feitio oriental – ou, especificamente, chinês – que guardam, com expressão ameaçadora e zangada, os portões de velhas casas e o frontão da igreja do convento de São Francisco do Recife” (FREYRE, 2003, p. 123).

Possivelmente uma das notas mais notáveis seja a 55, em que Gilberto Freyre discute a formação da família patriarcal mantendo diálogo com os estudos de Caio Prado Júnior, autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942), e Nelson Werneck Sodré, autor de Formação da sociedade brasileira (1944). Ele mostra ser inegável a importância da família patriarcal ou parapatriarcal na unidade colonizadora, mas essa importância é mais qualitativa do que quantitativa, pois em boa parte do Brasil, como mostraram Caio Prado e Sodré, foi difícil, por conta da escravidão, da instabilidade e segurança econômicas, a constituição de uma família tradicional assentada em bases sólidas e estáveis. Mas coube à minoria patriarcal influenciar o restante da população na constituição familiar ou no familismo, que não é só patriarcal, mas engloba outras organizações familiares: “E do ponto de vista sociológico, temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto, o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade” (FREYRE, 2003, p. 130-131). Essas organizações se desenvolveram tendo influência da cultura africana, de sociabilidade mais elástica que a tradicional lusitano-católica. Importante destacar a recuperação da historicidade desses grupos familiares que o autor faz, alertando aos pesquisadores que estes não devem relacioná-los ao imoral, indecente, mas sim compreendê-los em seu tempo.

Em outra nota, a 74, Gilberto Freyre rebate as críticas de Sérgio Buarque de Holanda, que afirma que o português não tinha predisposição para a agricultura, sendo um povo mais comerciante que rural. Em Raízes do Brasil ele descreve o colonizador português como um utilitarista que buscava resultados mais práticos que planejados, um semeador, explorador. Freyre rebate os argumentos de Sérgio Buarque, mostrando que o português não foi um completo desapegado em relação ao trabalho agrícola, dando como exemplo, entre outros, os dos colonos portugueses açorianos, que menos influenciados pela dinâmica do trabalho escravo, foram bons lavradores e pastores, tendo um verdadeiro amor pela terra e seu cultivo.”Tanto não foi absoluto”, escreve Freyre, ao falar sobre o empreendimento português na América, “que os portugueses fundaram no Brasil, sobre base principalmente agrária, a maior civilização moderna nos trópicos, tornando-se também lavradores notáveis em outras partes da América” (FREYRE, 2003, p. 133-134). Os rios, pequenos rios, são melhor analisados na nota 77. Através de trabalhos de autores como Durval Vieira de Aguiar e Teodoro Sampaio, Freyre mostra como os grandes rios, como o São Francisco e o Amazonas, impediam o florescimento de uma sociedade fixa, próspera e organizada, tendo como base a agricultura, fosse no Nordeste ou na Amazônia, respectivamente. Foram nos rios de pequeno porte que se desenvolveram as plantações, que foram construídas as moendas e as casas grandes.

Gilberto Freyre volta a debater com um autor na nota 113. Nela ele fala sobre a afirmação feita pelo pesquisador A. Machant na obra Do escambo à escravidão, publicada em 1943. Marchant, apoiando-se na obra de Fernão Cardim, afirma que na Bahia de 1580 os habitantes tinham um bom acesso à legumes, frutas e verduras, tanto da terra quanto de Portugal. Freyre lembra que, se houve algum tempo em que existiu uma agricultura regular na Bahia, foi nos princípios da colonização, pois logo depois a monocultura da cana de açúcar dominou a vida econômica e prejudicou o abastecimento de víveres. O autor alerta que deve-se levar em conta o fato de que Cardim, assim como outros cronistas desse tempo, era um padre visitador, figura que costumava ser bem recebida nas cidades e engenhos. A abundância de alimentos era uma exceção nessas ocasiões. Para corroborar sua visão, Freyre cita estudos modernos sobre o tema:

Do ponto de vista da alimentação, estudiosos modernos do assunto, interessados em preparar, baseados em inquéritos regionais, um mapa da alimentação no Brasil, e também Josué de Castro, confirmam o que neste ensaio se diz desde 1933 sobre as relações entre o sistema feudal-capitalista de plantação e a paisagem. Segundo o professor Josué de Castro, no Nordeste, “a monocultura intempestiva de cana, destruindo quase que inteiramente o revestimento florestal da região subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, constitui-se degradante da alimentação regional” (FREYRE, 2003, p. 144-145).

Por último, destacamos a nota 170, na qual o autor apresenta uma discussão bibliográfica sobre as origens da sífilis, doença que atacava as populações brasileiras desde o início da colonização. Esse assunto, destaca Freyre, é marcado por controvérsia, pois não se tem uma origem definida. Alguns autores, como Milton J. Rosenau, afirmam, tendo como base vestígios de esqueletos, que a doença tem origem americana. Outros, como L. W. Wyde, advertem que ninguém pode afirmar onde e quando surgiu qualquer doença. É ainda mais interessante a defesa que Freyre faz do interesse de pesquisadores e sociólogos pelas doenças e outras áreas como a arquitetura. Ele afirma que “Esquecem-se médicos e engenheiros assim melindrados de que se procuramos arranhar tais assuntos, sempre o fazemos do ponto de vista ou sob aspectos que pouco têm que ver com a técnica da medicina ou da engenharia, isto é, o encaramos do ponto de vista da história ou antropologia social; do ponto de vista da sociologia genética” (FREYRE, 2003, p. 152-153).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


FREYRE, Gilberto. Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. In: Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003, p. 64-156.






terça-feira, 8 de março de 2022

Os bravos do Paraguai

No presente texto, escrito pelo pesquisador e jornalista Adriel França, conheceremos como se deu a participação do contingente militar do Amazonas na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado da História da América do Sul


OS BRAVOS DO PARAGUAI

Por Adriel França*


7° Brigada Brasileira comandada pelo Tenente Cel. Antônio Paranhos. FONTE: L' Illustration, 1866.

No dia 27 de fevereiro de 1865 às 9:30 da manhã, entraram em forma no Largo do Quartel (atual praça D. Pedro II), 339 soldados amazonenses que ali embarcaram rumo à Guerra do Paraguai1. Com o início do conflito, ficou acertado que todas as províncias do então Império do Brasil, iriam contribuir com tropas que deveriam ser remetidas para a Corte, no Rio de Janeiro.

O Império era um Estado unitário, no qual o poder central mandava nas outras esferas menores sem grandes autonomias, ou seja, o que fosse decidido no centro político da nação, valeria para todas as demais partes do território, sendo assim, por decreto imperial de 7 de janeiro de 1865 criou-se o corpo de “Voluntários da Pátria", onde todas as províncias ficavam obrigadas a organizar e enviar os voluntários para a campanha no Paraguai2.

Governava a Província do Amazonas o pernambucano Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque Lacerda (1834-1905)3 que em 3 de fevereiro de 1865, recebia no Palácio do Governo uma carta do Ministro da Guerra, solicitando o envio de tropas para combaterem no sul do Império, prontamente em 7 de fevereiro o presidente publicou o ato n° 9, onde revogou todas as dispensas concedidas às patentes menores concedidas no seu governo e, apelando para o patriotismo dos oficiais para renunciar as suas licenças.

No dia 23 de fevereiro Adolfo de Barros Lacerda dirigiu uma proclamação ao povo amazonense convidando-os para que pudessem auxiliar na defesa da honra e na integridade do Império. Assim disse o presidente: “A vindicta da honra nacional já começou esplêndida e grandiosa, como o reclamam a brutal ofensa que recebemos dos nossos vizinhos do sul [...] todas as províncias do Império acodem ao brado da pátria. Cada brasileiro é um soldado e heróis bravos se reúnem, formando os corpos de voluntários. A centelha que inflama os corações dos nossos irmãos do sul, não está amortecida no Amazonas [...] eia amazonenses, sede fiéis ao nosso augusto soberano.”

No dia seguinte a publicação da proclamação feita pelo presidente, o comandante de armas da província Innocêncio Eustáquio Ferreira d’Araújo baixou a ordem dia n°181 onde dizia: “O coronel comandante de armas da província, em cumprimento às ordens da presidência exaradas no ofício n°57, datado de ontem, determina que os corpos de “Guarnição” e o contingente do 5° batalhão de infantaria em serviço nesta província estejam prontos a seguirem no vapor Tapajós, que no dia 27 do corrente, deve seguir deste porto para a capital do Pará.”

A força militar de 1° linha que aqui se encontrava e que seguirá para Belém do Pará no dia 27 de fevereiro era os seguintes corpos: Corpo de Guarnição; Corpo de Artilharia; contingente do 5° Batalhão de Infantaria e Corpo de Saúde. Com essa força seguiram ainda 4 Voluntários da Pátria e ainda 8 recrutas para a marinha imperial.

No contingente do 5° Batalhão de infantaria continha 101 homens, no Corpo de Guarnição 157, no Corpo de Artilharia 80, e apenas um homem no Corpo de Saúde, totalizando 339 homens que ao raiar do dia 27 entraram em forma no Largo do Quartel, como dito no início. Desde muito cedo a população da pequena cidade de Manaus, já se aglomerava aos arredores do largo, após lidos alguns discursos iniciou-se a marcha heroica dos soldados amazonenses dirigindo-se ao vapor Tapajós ao som da melodia do hino imperial, até então sem letra. O navio levantou suas âncoras e partiu rumo ao conflito.

Muitos amazonenses se destacaram na campanha do Paraguai, e como exemplo temos o italiano naturalizado brasileiro Henrique Antony e por seus atos de bravura em Itapiru foi promovido ao posto de tenente. Seu filho Luiz Antony, também fora promovido por atos de bravura em Itapiru, e por seu destaque sua patente foi a de capitão, foi agraciado com a “Ordem da Rosa” após participar da Batalha de Tuiuti em 24 de maio de 1866, mas morreu devido a complicações acometidas por ferimentos na perna após a tomada de Humaitá ambos sendo homenageados emprestando seus nomes às ruas do centro da cidade de Manaus.

Outro amazonense que tombou em combate foi o jovem parintinense Alferes Joaquim Benjamin da Silva. Foi promovido a tenente após a Batalha de Itapiru. Morreu na Batalha do Sauce em 18 de julho de 1866 vitimado por estilhaços de granada. Foi agraciado com a Ordem de Cristo, mas não recebeu a comenda devido a seu falecimento.

O jovem que perdeu sua vida nesta batalha, chegou em Manaus no dia 22 de abril de 1865, mas não sabia que seu fim estava próximo. E assim foi com mais outros amazonenses que jamais retornaram do campo de batalha. Muitos destes homens também morreram atacados por cólera na triste “Retirada de Laguna” onde 89 homens que formavam uma bateria de artilharia foram vitimados pela doença. Entre 1865 e 1868 foram remetidos entre 1.300 e 1.400 soldados amazonenses para a Guerra do Paraguai.

Quando do fim da guerra em 1° de março de 1870 os amazonenses retornaram para a capital, mas com o número assombroso de apenas 55 soldados, comandados pelo capitão honorário Silvério José Nery. Chegaram em Belém no dia 15 de julho de 1870 onde foram homenageados e desfilaram na Rua do Imperador, saíram em 20 de julho, chegando a Manaus em 25 de julho. O presidente da província achou por bem desfazer o contingente no dia seguinte de sua chegada à capital, acabando assim a saga da contribuição amazonense para aquele que foi o maior conflito armado que já ocorreu na América do Sul.


NOTAS:


1 SOUZA, João Batista de Faria e. O contingente do Amazonas à guerra do Paraguai. Homenagem de J. B. De Faria e Souza ao jubileu do término da guerra com o Paraguai. Manáos: Imprensa Pública, 1920.

2 Jornal do Commercio, 26/02/2021.

3 SOUZA, João Batista de Faria e. Op Cit.


 * Adriel França, 19, é pesquisador e acadêmico de Jornalismo na Faculdade Martha Falcão, exercendo a função de jornalista desde 2020. Possui mais de 30 textos publicados no Jornal do Commercio de Manaus, todos sobre História do Amazonas e com ênfase em ensaios históricos e biográficos. Colecionador de selos, é membro do Clube Filatélico do Amazonas e seu atual Secretário. Colaborador da Web Rádio Censura Livre, Rádio JCAM, de revistas filatélicas e do Centro Cultural dos Povos da Amazônia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A casa manauara entre os séculos XVIII e XIX

 
Casas na região do Rio Amazonas. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

A casa, do latim domus, domínio, é um espaço que vem chamando a atenção historiadores que buscam analisar suas transformações ao longo do tempo, pois ela é o local de desenvolvimento da vida privada, de toda uma sociabilidade que diz respeito à família. Como era a casa manauara dos primeiros séculos? Como era mobiliada? No presente texto buscaremos responder essas perguntas.

As casas da maior parte dos habitantes do Brasil Colônia eram bastante simples, sem maior apuro arquitetônico. Também eram pouco confortáveis e pobremente mobiliadas. Poucas tinham algum estilo e mobília refinada, pertencendo a senhores de engenho, militares de alta patente e ricos comerciantes. A historiadora Leila Mezan Algranti elenca como causas dessa simplicidade, vista por cronistas e viajantes como marca de um primitivismo, a condição de colônia do território, ou seja, um local de passagem; a vida marcada pela dureza, que deixava pouco tempo sobrando para se pensar de forma detalhada na organização residencial; e o pouco interesse em relação à vida íntima1. Nos dão notícia sobre a casa manauara viajantes estrangeiros e brasileiros que estiveram na cidade entre os séculos XVIII e XIX.

No final do século XVIII (1786), o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, durante sua Viagem Filosófica, passou pelo então Lugar da Barra. Seu relato nos revela algumas particularidades sobre as residências daquela época. Ele registrou que a casa do vigário era térrea, coberta de palha e dividida em quatro casas interiores, todas com portas, janelas de madeira e fechaduras, o que revela o desejo de manter preservado e seguro tal ambiente. A casa do comandante, por outro lado, também servia de armazém. Igual à do vigário, era coberta de palha. Raras eram as que tinham cobertura de telhas de barro. Ferreira afirma que as melhores casas eram as dos moradores brancos Manoel Tomé Gomes, Manoel Pinto Catalão, Inácia Lindoza e Madalena de Vasconcelos. “Todas as outras ficavam mais ou menos arruinadas”2.

Por volta de 1819, os naturalistas alemães Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix, durante sua viagem pelo Brasil, estiveram no Lugar da Barra. As casas por eles descritas eram simples, de um único pavimento, “[…] cujas paredes são construídas de pau-a-pique e barro, cobertas geralmente de folhas de palmeira”3. Restaram desse tempo apenas dois exemplares, localizados na rua Bernardo Ramos, antiga rua de São Vicente, em bairro homônimo. Possuem um único pavimento, tendo sido construídas de taipa de pilão. No lugar das folhas de palmeira, foram cobertas com telhas. Possuem portas e janelas largas, facilitando a ventilação. São típicas residências do período Colonial. Poucas eram mais arrojadas, como era o caso do sobrado do Capitão Francisco Ricardo Zany, onde Martius e Spix ficaram hospedados, que era mais imponente que a residência do Governador da Capitania. Deve-se destacar que Manaus não chegou a ter residências senhoriais como as do Pará, onde se encontram belíssimos exemplares construídos entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX.

O militar e historiador português Antônio Ladislau Monteiro Baena informa que, em 1838, a maioria das casas do Lugar da Barra era coberta de palha, assim como o Palácio dos Governadores, a Provedoria, o Quartel e os edifícios da ribeira onde eram construídas canoas e batelões. Por outro lado, “São cobertos com telha a olaria, o hospital militar, os armazéns da provedoria e os dos meios de guerra como aramas e pólvoras e algumas casas dos moradores”4. A paisagem ainda era a mesma dos tempos coloniais.

Alfred Russell Wallace, de passagem pela agora Cidade da Barra em 1849, registrou que suas casas continuavam com um único pavimento, mas já eram cobertas com telhas vermelhas e assoalhadas com tijolos. As paredes eram pintadas de branco ou de amarelo, e as portas e janelas de verde. “Quando o sol bate sobre elas, o efeito é muito bonito”5. Ele ficou hospedado em uma residência de propriedade do comerciante italiano Henrique Antony, um dos mais prósperos do Amazonas. Wallace não teceu maiores comentários sobre a moradia, o que nos leva a pensar que ela atendeu as expectativas do visitante no que diz respeito às instalações, móveis e outros objetos. Somente relatos posteriores nos dão algumas notícias sobre o mobiliário.


Sala de jantar em Manaus. Gravura de Édouard Riou publicada na obra Dois Anos no Brasil, de François-Auguste Biard, 1862. FONTE: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Na obra Dois anos no Brasil (1862), do pintor e desenhista francês François-Auguste Biard, temos a gravura de uma sala de jantar em Manaus. Podemos observar alguns aspectos do local. Existe uma mesa, mas não se veem cadeiras. O habitante da Manaus daquele tempo, assim como o de outras partes do Império, estava acostumado a sentar-se no chão ou em esteiras, como se fazia desde o início da conquista. Chão esse, aliás, de terra batida. Os talheres ainda eram raros na maioria das casas. O normal era comer com as mãos. Garfo, faca e colher, geralmente importados, só em casas de mais posse. O fogão, a lenha, ficava fora de casa. Só mais tarde, por volta de 1870-1880, com surgem os fogões como conhecemos atualmente. Outro detalhe interesse é a presença de muitos macacos no recinto. Os animais de estimação eram criados soltos, sendo encontrados espalhados pela casa.

Em 1865 o casal de viajantes Louis e Elisabeth Agassiz, em visita a Manaus, ficaram hospedados na casa do Major Coutinho. Encontraram a residência sem mobília. Para dar um bom aspecto ao local, foram emprestadas cadeiras e mesas de um vizinho. A pobreza mobiliária se fazia presente até mesmo nas residências dos membros mais destacados da sociedade. Sobre o aspecto geral da cidade, afirmaram que ela era “[…] uma pequena reunião de casas, a metade das quais parece prestes a cair em ruínas”6. Após retornarem de uma viagem, ficaram instalados em um prédio que havia funcionado como secretariado de finanças. Ele era espaçoso, tinha várias portas e janelas. Um salão era usado como quarto e sala. Nos fundos ficavam penduradas as redes, as malas e as caixas. Do outro lado ficavam duas mesas de escrever, uma cadeira de balanço, uma de viagem e outros móveis. Os Agassiz, agora melhor acomodados, perceberam que essa mobília dava “[…] a esse canto do apartamento um certo ar de intimidade e o tornam mesmo bastante confortável”. A construção, apesar da grandeza, tinha as paredes sem reboque, com cumieiras descobertas e “[…] pavimentos de tijolos em que passeiam os ratos”7. Ao comentar sobre um baile a ser realizado na residência do Presidente da Província, notaram que apesar do pomposo título de Palácio, não passava de uma casa pequena sem maiores atrativos.


Tapuias em sua residência em Manaus. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

Também são de 1865 dois registros feitos pelo fotógrafo alemão Albert Frisch. No primeiro temos uma família de tapuias na porta de sua casa em Manaus. Entre a numerosa família e a casa simples, de pau-a-pique, vemos uma esteira, absorvida pelo colono desde o início da colonização, fazendo a vez de cama; um banco, do lado de fora; e um tear mecânico onde estava trabalhando uma mulher. Em uma cidade ainda privada de maiores divertimentos, esse aparelho funcionava como objeto de trabalho e também de passatempo. O segundo registro mostra duas casas na região do Rio Amazonas. É uma paisagem bucólica quase inalterada, lembrando as casas descritas por Martius e Spix em 1819 e Baena em 1838.

Outros móveis faziam parte da mobília da casa do manauara entre os séculos XVII e XIX. O historiador Mário Ypiranga Monteiro os divide da seguinte forma: “baú, arca, rede de dormir e canastra. Suas posições na casa, a partir da sala de visitas, eram cativas, determinadas pelas necessidades práticas e não pelo bom gosto: baú na sala (e rede de dormir, não raro), arca na alcova (e rede de dormir), esteira na sala, na alcova e na casa de refeições; rede de dormir (essencial) na alcova e na varanda; canastra na casa de refeições ou num quarto a mais se houver”8. Ainda demoraria algum tempo para que a residência manauara ganhasse outro aspecto e uma mobília mais numerosa e refinada.

Encontramos indícios de mudanças em anúncios de jornais publicados no final do século XIX. Em 1877 o jornal Amazonas informava que na rocinha do Comendador Mesquita, localizada no bairro dos Remédios, estavam disponíveis para venda os seguintes objetos: “um bom piano, uma mobilia, uma meza elastica com vinte e dois palmos de comprimento, uma dita para escriptorio, duas bancas para quarto com gaveta, duas sacretarias, um espelho grande e doirado, dois theares, bancos envernisados, cabides, camas de lona, lavatorios e seus pertences, tamboretas com assento de palinha, dois oratorios, e outros objecto para o uzo domestico”9. Em um leilão de móveis realizado em 1890 foram vendidas “uma mobilia de mogno para sala, 2 cadeiras de balanço, seis cadeiras de varanda, 1 commoda, 1 toillet, 1 cama com colchão de molla, 1 manequim, um par de candieiros, um dito de castiçaes de vidro com pingentes, uma maquina de costura, um almofadão, uma bilheira, quatro bancos, um berço, bidet, uma cama de madeira, um lavatorio e outros objectos”10. Os móveis eram construídos por marceneiros profissionais, pelos alunos do Instituto de Educandos Artífices e também importados de outras Províncias e países.

E o banheiro, um dos locais mais importantes da casa? Mário Ypiranga nos informa que o manauara de baixa renda satisfazia suas necessidades às margens dos igarapés e nas áreas de mata, abundantes na Manaus dos primeiros séculos. Esse costume fez com que os banheiros fossem construídos fora da residência. Eram as famosas casinhas de madeira. Um anúncio de venda de uma casa em 1888 nos mostra que existia uma divisão entre o banheiro, para o asseio corporal, e a latrina, onde se faziam as necessidades: “Nesta typographia informa-se quem vende uma boa casa com bastantes accomodações para numerosa família: contende alem de cinco bons quartos, de dous grandes salões, da cozinha e varanda, um quintal regular todo plantado de arvores fructiferas, com poço, banheiro, latrina etc”11. Além da casinha existiam utensílios como o coronel, capitão, furriel, iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e comadre. Quando esses objetos ficavam cheios de urina e fezes, eram recolhidos pelo tigreiros, escravos que tinham a função de despejá-los em locais distantes da área urbana. Os banheiros domésticos com latrinas e bacios de louça eram privilégio das classes mais abastadas12.

No Código de Posturas Municipais de 1848 ficou estabelecido que as edificações só poderiam ser erguidas após receberem licença da Câmara Municipal para que a obra ficasse alinhada à rua. As casas deveriam ser elegantes e seguir uma regularidade externa determinada pela Câmara. No Código de Posturas de 1872 encontramos um interessante artigo que determina que

Fica proibido de ora em diante, nas ruas dos Remédios, Boa-Vista, Espírito Santo, Marcílio Dias, Flores, Imperador, Brasileira, Manaus até o aterro, Henrique Martins, Cinco de Setembro, S. Vicente, Independência e Travessas que lhe são correspondentes, e em todas as praças, a edificação de casas cobertas de palha; sob a pena de demolir-se a obra por conta de quem a fizer e sujeito a multa de trinta mil réis ou oito dias de prisão”13.

Essa postura revela a tentativa de se modificar a aparência da cidade, dotando-a de características modernas. O artigo 2° da Postura de 1875 determina que ficava proibida a construção de casebres ou pequenos quartos dentro do alinhamento das ruas, praças e travessas sem que seus proprietários, antes, levantassem um muro simulando a fachada de uma casa. A pena era de 30$000 réis ou oito dias de prisão. Os Códigos publicados a partir de 1890, além de reafirmarem antigas proibições como a necessidade de autorização da Câmara para o início de qualquer construção, determinam que os prédios de alvenaria ou taipa que estivessem sem reboco deveriam ser rebocados e caiados dentro de seis meses, sob pena de multa de 30$000 réis ou 4 dias de prisão.

Vivia-se um novo período marcado por profundas transformações urbanas gestadas pela economia da borracha. Gestores e a elite local, visando atrair investimentos para a cidade, passam a buscar dotá-la de melhoramentos e apagar os vestígios de uma cultura local marcada pela simplicidade e vista como atrasada. De acordo com a historiadora Edinea Mascarenhas Dias,

A modernidade em Manaus não só substitui a madeira pelo ferro, o barro pela alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a carroça pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela luz elétrica, mas também transforma a paisagem natural, destrói antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação, desenvolve a imigração. É a modernidade que chega ao porto de lenha, com sua visão transformadora, arrasando com o atrasado e feio, e construindo o moderno e belo”14.

Antigo Palacete Garcia. Gravura de 1885. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le Pays des Amazones, 1885, p. 309.

Palacetes e casarões, residências com certa imponência, surgem timidamente na cidade a partir da segunda metade do século XIX. O Palacete Garcia foi um dos primeiros. Com construção iniciada por volta de 1860, seria a residência de Custódio Pires Garcia, Capitão da Guarda Nacional. Foi adquirido pelo Governo da Província em 1867 para abrigar diferentes repartições públicas, sendo a Polícia Militar a que mais tempo o ocupou. Foi concluído em 1874. Atualmente funciona como Centro Cultural Palacete Provincial, na Praça Heliodoro Balbi (da Polícia). O Palacete de Leonardo Ferreira Marques, o Barão de São Leonardo, funcionou posteriormente como Asilo Orfanológico Elisa Souto, Museu Botânico do Amazonas e Instituto Benjamin Constant, inaugurado em 1894. Está localizado na rua Ramos Ferreira. Data de 1899 o belíssimo Palacete Nery, entre a Avenida Joaquim Nabuco e a rua dos Andradas. Antiga propriedade da família Nery, foi projetado em estilo Neoclássico pelo arquiteto e engenheiro italiano Filinto Santoro.

A casa manauara dos primeiros séculos, no geral, era simples, construída de taipa, coberta com palha ou folhas de palmeira e pobremente mobiliada. Existiam algumas exceções, como os sobrados e palacetes de ricos comerciantes que começaram a surgir na segunda metade do século XIX. Mas mesmo nessas nobres residências faltava conforto, que só seria plenamente encontrado ao final de 1800, quando a economia gomífera começou a modificar o espaço urbano, o cotidiano, a moda e os modos da sociedade.


NOTAS:


1 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 111.

2 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CIFEFIL, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, 2005, p. 355.

3 SPIX, F., Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2017, p. 196.

4 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. 289.

5 WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Notas de Basílio de Magalhães. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. 214.

6 AGASSIZ, Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Tradução e notas de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 196.

7 Ibidem, p. 245.

8 MONTEIRO, Mário Ypiranga. O recheio das casas nos séculos XVII a XIX. 6° ed. Manaus: Secretaria de Estado de Cultura, Turismo e Desporto, n° 88, novembro de 2002.

9 Amazonas, 16/01/1877, p. 04.

10 Amazonas, 03/07/1890, p. 03.

11 Jornal do Amazonas, 04/02/1888, p. 04.

12 MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Tigreiro. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.

13 SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.

14 DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. Manaus: Editora Valer, 2° Ed, 2007, p. 29.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

O jornal A Marreta e os homossexuais de Manaus (1912)

Edição de 03/11/1912 do jornal A Marreta.

Em 03 de novembro de 1912 o jornal A Marreta, dirigido por Chico Piaba, denunciou o crescimento vertiginoso do número de homossexuais - ou invertidos, como se dizia à época - em Manaus. Ele cobrava providências urgentes das autoridades, apresentando soluções como o encarceramento deles em uma ilha isolada, onde realizariam trabalhos forçados. Nesse período, marcado pelo controle social de práticas e saneamento urbano, a homossexualidade era entendida como um "distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção" (MOREIRA, 2012, p. 263). Esse recorte de jornal constitui-se, dessa forma, em uma importante fonte para os estudos sobre a História da sexualidade na cidade. Jornais desse tipo, explica a historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, se apresentavam como humorísticos, mas "[...] nada mais faziam do que externar críticas moralistas e propor ações segregadoras" (PINHEIRO, 2015, p. 231):

"A MARRETA

Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos.

Esses infelizes, inuteis a sociedade, que cospurcam os direitos sagrados da natureza, que envergonham o lar e a patria, gosam aqui de toda a liberdade no exercicio de suas infames profissões.

Nas immediações do botequim "O Malho", nas proximidades do Mercado Publico e em outros pontos desta cidade, á noite se encontram, a cada passo esses miseraveis de olhares languidos, de gestos afeminados, de falla docil, confabulando com os seus pares, se ajustando para a pratica dos actos indecorosos de que fazem vida.

Eles se conhecem, ao mais insignificante signal, segundo affirmam muitos medicos que tem estudado essa questão.

O dr. Jules Proust em sua importante obra, sobre este assumpto, affirma que entre os invertidos, existe como uma especie de maçonaria, de maneira que, os de todas as nacionalidades do mundo, se conhecem e se entendem logo da primeira vista.

Esse vicio terrivel, essa aberração, que une o homem de bem ao ladrão o elegante ao sujo, o miseravel ao abastado; essa infamia que torna o homem mais altivo - um timido, um covarde, um nada, vae progredindo em Manáos de tal forma, que se os homens que nos governam não tomarem providencias urgentes e sevéras, em breve as immediações do nosso Mercado estará como os Altos da Avenida da Liberdade e outros pontos da nossa cidade como o Poço dos Negros, em Lisbôa.

Em Portugal, (embora não haja uma justificativa para esse crime) muitos o praticam para saciarem a fome. E a fome é uma coisa negra!

Em Manáos, porém, não ha em absoluto derimente. Aqui, soffre a fome quem é inutil e o que é inutil deve ser lançado fóra do nosso meio.

Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos.

Convidamos pois a todos os homens de bem a levantarem campanha contra taes.

Se os nossos governantes quizerem expurgal-os de nosso meio, bem o podem. E' só uma questão de querer.

Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados.

E a se fazer isso, deve-se começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade.

Aqui de "Marreta" em punho, estamos promptos a trabalhar pelo saneamento moral de Manáos".

(A Marreta, 03/11/1912, p. 01).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1880-1920). 3° ed. Manaus: EDUA, 2015.