quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Filme: Aguirre, a Cólera dos Deuses



País: Antiga Alemanha Ocidental
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Helena Rojo, Ruy Guerra e Del Negro
Ano: 1972
Duração: 90 minutos


Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes), é uma das melhores produções do diretor alemão Werner Herzog, contando com a magistral atuação do também alemão Klaus Kinski no papel de Don Lope de Aguirre (1510-1561), el tirano, el loco, conquistador espanhol do século XVI.

O filme, um drama histórico, retrata, com algumas alterações significativas, os desdobramentos da Expedição de Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre (1560-1561), dois conquistadores que, após notícias dos sobreviventes da expedição de Orellana, reavivaram a crença da existência das ricas províncias de Omágua e El Dorado. Os cenários, entre o Peru e o Rio Amazonas, dão o tom de naturalidade ao filme, com vários enquadramentos que captam o enfrentamento entre homens europeus de valores cristãos medievais e a natureza selvagem, desconhecida e indomável, habitada por povos igualmente desconhecidos.

Klaus Kinski conseguiu transpor nessa obra a personalidade de Lope de Aguirre, marcante na historiografia da conquista da América: louco, sádico, disposto a tudo para liderar a expedição e alcançar os mais altos postos na Coroa Espanhola. Na América, além da busca por ouro e outras pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e inserção no mundo das cortes.

Acreditando que organizaria uma rica colônia, Aguirre ordena aos soldados que o sigam numa rebelião contra a Coroa Espanhola, assassinando quem não concordasse. Auxiliomar Silva Ugarte afirma que, na segunda etapa da expedição, ela [...] "mergulharia em sangue, pois Lope de Aguirre, utilizando-se de todos os meios de que dispunha, eliminando opositores reais ou imaginários, pôs fim às buscas a Omágua e Dorado e deu início a uma das mais sangrentas rebeliões do período" (UGARTE, 2003, p. 26). Aguirre (Klaus Kinski) usa uma das melhores armas no processo de conquista após os instrumentos bélicos: a imposição psicológica, que vai criando temores tanto entre os tripulantes de sua expedição quanto entre os nativos que vão sendo encontrados ao longo dos rios.

Apesar de a expedição retratada incluir personagens históricos que não faziam parte dela, e de apresentar um desfecho idealizado por Aguirre, o filme consegue exemplificar as relações de poder e os modos de agir característicos do processo de Conquista da América Espanhola, lembrando la espada, la cruz e la hambre que iam dizimando a família selvagem, como bem escreveu Pablo Neruda. Devidamente contextualizado, partindo de um elemento micro (a expedição) para um elemento macro (o processo de conquista entre os séculos XVI e XVII), é um filme vale a pena ser assistido e analisado, do ponto de vista dos mecanismos e mentalidades da Conquista Colonial.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens Míticas: a Amazônia no Imaginário Europeu do século XVI. In:  DEL PRIORI, Mary; GOMES, Flávio dos Santos (org). In: Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e Histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.


CRÉDITO DA IMAGEM:

maumiranda.wixsite.com

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

História da Criminalidade: O Caso Jairzinho

A atual Paróquia do bairro de São Francisco.

Esse é um daqueles casos cujos desdobramentos se arrastam por anos e, de forma abrupta, desaparecem dos noticiários. O Caso Jairzinho, diferente de casos como o do Monstro da Colina, tem uma construção narrativa mais difícil, pois até hoje, de acordo com aqueles que foram contemporâneos ao crime, teve uma conclusão envolta de incertezas.

Bairro de São Francisco, 28 de dezembro de 1991. O natal já tinha passado e esperava-se o ano novo. Mal sabiam os moradores daquele bairro que o início do novo ano seria macabro: No dia 01 de janeiro de 1992 o corpo de Jair de Figueiredo Guimarães, o ‘Jairzinho’, uma criança de oito anos, foi encontrado em uma cova rasa nas proximidades do pátio da Igreja de São Francisco. Esse crime juntava-se a outros infanticídios registrados naquela última década, deixando a população do bairro de São Francisco em alerta. Manoel Brandão Neto (32), antigo morador do bairro, lembra que os “avós, pais e demais responsáveis não deixavam que se brincasse no local onde o corpo foi achado”. Os adultos, ainda de acordo com esse depoente, diziam para as crianças que aquela situação era como na novela Carrossel, uma fantasia, para tentar minimizar o terror que passou a reinar naquele local.

Marizete Brandão, moradora do bairro há mais de 50 anos, lembra bem desse dia:

lembro como se fosse hoje, dia 31 de dezembro. Passei na rua ao lado por volta de 13.00 hrs, era um mal cheiro horrível. Falei para meu marido que parecia carniça. Dia primeiro foi o maior alvoroço, tinham achado o corpo. O pavor era tão grande que minha filha não quis mais ir para a igreja. Mães já não deixavam seus filhos brincarem na rua”.

Após as análises do perito da Universidade de Campinas, o médico Nelson Mansini, o mesmo que realizou a perícia do assassinato de Chico Mendes, foi constatado que Jair de Figueiredo Guimarães foi morto estrangulado pelo método do torniquete, processo bastante utilizado para estancar hemorragias. Antes, um dos suspeitos afirmara que matou a criança com um forte golpe na cabeça. Outras pessoas, como Sullivan Nascimento, afirmavam que o garoto fora estuprado e teve o órgão genital cortado, e que seu assassino jogou soda cáustica ou ácido para disfarçar o odor do cadáver. Foi “um dia sinistro”, conta Anderson P. de Souza. Ainda de acordo com a perícia, no dia em que o corpo foi encontrado já haviam se passado 11 ou 12 dias do assassinato.


OS SUSPEITOS


No Jornal do Comércio de 07 de fevereiro de 1992, a principal manchete informava que 'o suspeito do crime está preso'. Era o lanterneiro Afrânio Cardoso de Moraes, de 19 anos. Ele foi preso em uma blitz de rua após ter comentado com uma pessoa que tinha sido o autor do golpe que matou Jairzinho. Levado à Delegacia, confessou que cometeu o crime a mando de Frei Silvestre, da paróquia daquele bairro.

Afrânio disse que, passando em frente a Igreja de São Francisco, foi chamado pelo Frei que perguntou se este não queria ganhar algum dinheiro. Perguntando qual era o serviço, ouviu do religioso que era para pegar um garoto que estava jogando bola e levá-lo para os fundos da Igreja. Afrânio afirmou que, quando recebeu aquele pedido, estava embriagado, aceitando-o sem qualquer objeção. Chegando ao local, disse que o Frei disse o seguinte para a criança: “Eu não disse que você estava me devendo uma”? Jairzinho disse que não sabia de nada. Foi nesse momento que Frei Silvestre ordenou que Afrânio golpeasse o menor. O lanterneiro disse que não bateu com força, saindo correndo da cena do crime. Soube dias depois que Jairzinho tinha morrido. Ao delegado, dizia-se arrependido e que não tinha intenção de matar.

O possível envolvimento de um membro do clero causou grande reboliço nas lideranças católicas da cidade, com o monsenhor da capital afirmando que “há alguém por trás fazendo com que a Igreja Católica seja desacreditada”. O Arcebispo Metropolitano de Manaus não quis se pronunciar a respeito do caso. Dias após essa matéria, a Arquidiocese de Manaus, O Centro de Defesa dos Direitos Humanos da CNBB Norte I e outras entidades da Igreja Católica se manifestaram sobre os rumos que as investigações estavam tomando. Para esses grupos, elas atingiram “pessoas e instituições, causaram prejuízos morais, retardando a elucidação do crime e confundindo a opinião pública”. Afirmavam também que estavam sendo forjados suspeitos e culpados.

Também foi investigado um senhor dono de um mercado próximo ao local do crime, mas contra ele nada foi comprovado.

Em 29 de dezembro de 1994, após três anos do assassinato de Jairzinho, mais um suspeito era investigado: Jair de Figueiredo Guimarães, técnico em eletrônica, morador da rua Valério Botelho de Andrade, em frente a Igreja. Quem era ele? O pai da criança assassinada. Nesse mesmo dia, os moradores do bairro protestavam em frente a sua casa, fixando faixas e cartazes pedindo justiça. 

Jair Guimarães, negando a todo momento o crime, teve decretada a prisão preventiva, sendo levado para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. Mas como se chegou a mais esse suspeito? O frei Silvestre foi ouvido pela Polícia, sendo constatado que nada havia contra ele. O que levou Jair Guimarães à prisão foi a existência de uma carta na qual o pai da criança pedia uma grande soma de dinheiro para sequestrar o próprio filho. Desconfiado, o titular da Delegacia Especializada de Homicídios e Sequestros solicitou um exame grafológico, no qual foi confirmado que aquela carta fora escrita pelo pai de Jairzinho. Dessa forma, o representante do Ministério Público do 1° Tribunal do Júri Popular, ao denunciar Jair Guimarães, enquadrou-o nas sanções de homicídio qualificado com o agravante da ocultação de cadáver. Moradores de São Francisco afirmavam que ele era alcoólatra e viciado em drogas. Em 1995 o Promotor João Bosco Valente reviu o caso, pensando seriamente em pedir o arquivamento do processo pela confusão e falta de provas. Uma pessoa, que não quis se identificar, afirma que, anos depois, ouviu por uma rádio que uma pessoa tinha se entregado, afirmando ter matado a criança porque seu pai lhe devia dinheiro. 

Falta de paciência de um Frei, por causa das brincadeiras de uma criança? As ações de um comerciante, com motivações ainda não esclarecidas? Um pai em um momento de descontrole? Acerto de contas? Quem, de fato, matou Jairzinho naquele final de ano de 1991? Essa é uma de várias perguntas cujas respostas nem o tempo foi capaz de dar…

FONTES: 

Jornal do Comércio, 07 de fevereiro de 1992.
Jornal do Comércio, 29 de dezembro de 1994.
Jornal do Comércio, 29 de abril de 1995.

DEPOIMENTOS:

Manoel Brandão, 18/06/17.
Marizete Brandão, 18/06/17.
Anderson P. de Souza, 18/06/17.
Sullivan Nascimento, 18/06/17.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Rederiomar.com.br

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Manaus das Catraias

O texto a seguir foi publicado entre 23 e 24 de outubro de 2005 no Jornal do Comércio pelo escritor, artista plástico e imortal da Academia Amazonense de Letras Moacir Andrade (1927-2016), por ocasião do aniversário da cidade. Em Manaus das Catraias, Moacir Andrade, através de pesquisas e de memórias que vão da década de 1940 até 1980, tece um breve histórico desse antigo meio de transporte que por séculos fez parte do cotidiano da cidade.

Moacir Andrade


Passageiros em uma catraia. Foto de 1964.

Dois grandes igarapés cortam a cidade no sentido norte sul; o igarapé de São Raimundo, que separa aquele populoso bairro por uma largura de aproximadamente duzentos metros, próximo a sua foz, segundo, o igarapé de Educandos que tem três tributários, o da primeira ponte, também conhecido como igarapé de Manaus, cuja nascente despontava nas proximidades da rua Tarumã e desembocava ao lado do Palácio Rio Negro, no chamado de igarapé da segunda ponte, teve o seu curso interrompido várias vezes, ao longo de seu comprimento por aterros executados pela Prefeitura de Manaus, para dar lugar ao procedimento das ruas Apurinã, Tarumã, Leonardo Malcher, cujo trecho se chamava "Buraco do Pinto", Ramos Ferreira, avenida Ipixuna e finalmente a avenida 7 de Setembro, por onde desliza sob uma ponte de pedra em estilo romano. A segunda a partir da sua foz, no entroncamento com os igarapés da segunda ponte, também denominado de igarapé da rua Jonathas Pedrosa, e o igarapé da Cachoeirinha, o trecho até a sua confluência com o Rio Negro, que era livre de pontes ou aterros, daí, a necessidade dos catraieiros. A palavra catraia é de origem portuguesa e veio para Manaus, com os primeiros navios a vela que aportaram aqui, com a abertura dos nossos portos para o mundo. Originalmente a catraia era um pequeno barco a vela que servia os transportes fluviais em Portugal e colônias. Possuía um mastro central com velas de painel em um mastro e outro mastro na popa para vela catita, onde se içava também a bujarrona.

O uso efetivo da catraia tornou-se necessidade imperiosa a partir da grande e permanente afluência de navios estrangeiros que mensalmente aportavam as águas das nossas praias fronteiras no fim do século passado, para transportar borracha, castanha e madeira, couro e óleos vegetais produzidos no chamado ciclo áureo da borracha.

Aí por volta de 1885 não havia ancoradouro, nem muros de arrimo, de cais flutuantes, e os navios que chegavam a Manaus para receber a borracha baixavam a âncora muito distante das praias livres que contornavam a margem esquerda do Rio Negro em toda sua extensão desde o igarapé dos Educandos até São Raimundo.

No princípio do século , todos ou quase todos os catraieiros eram portugueses da província da Póvoa de Varzim, de onde trouxeram esse tipo característico de veículos e se aglomeravam na antiga praia da Imperatriz, em frente a Igreja da Matriz, onde hoje está construído o cais flutuante da Portobras, antiga Manáos Harbour. Naquela época as catraias eram de extrema necessidade, pois os passageiros e cargas só poderiam desembarcar através desses veículos fluviais que eram pequenos barcos com aproximadamente 8 metros de comprimento, dotados de um banco inteiriço de mais ou menos 35 centímetros de largura em volta do barco, onde os passageiros se acomodavam sentados. A popa era adornada com uma placa de madeira, de forma semi-circular, onde estavam escritos os nomes das pequenas embarcações, geralmente de origem portuguesa, talvez como recordação da terra distante. Todos os barcos portavam uma bandeirinha com nome do proprietário ou da entidade que servia, eram pintados de cores múltiplas lembrando barcos que singram o rio Tejo, ou barcos pesqueiros das praias de Póvoa de Varzim e Nazaré em Portugal. As catraias originais ficavam esperando os seus eventuais fregueses ao longo da praia fronteiriça à Igreja da Matriz até o aterrado igarapé do Espírito Santo, exatamente no trecho onde ancoravam os navios que aqui aportavam. Com a construção do muro de arrimo e também do lado da ponte do igarapé em que o povo chegava rente as catraias, e do cais flutuante, pela antiga Manáos Harbour, as catraias se aglomeravam ao longo do trecho do cais que liga a parte que recebe os grandes navios e o continente. Aí se podiam ver as pequeninas e policrômicas embarcações balouçarem ao sabor das ondas do Rio Negro, num bonito espetáculo de balé aquático.

Seus tripulantes e proprietários, todos portugueses, usavam camisa de mangas compridas e geralmente quadriculadas, à moda dos pescadores de Póvoa de Varzim, com a cabeça sempre coberta com um boné de lã portuguesa. A construção do moderno cais pelos ingleses determinou a extinção dos catraieiros, porque já não necessitavam mais desse pequeno barco que tanto e inestimáveis serviços prestaram ao Amazonas e ao Brasil, no tempo em que no Amazonas se "amarrava cachorro com linguiça" e se "acendia charuto com nota de 100.000 réis". Eu mesmo cheguei a conhecer muitos portugueses que trabalharam nesse meio de transporte no ano de 1946, entre eles: Maravalhas Campos, Aurélio e Milhases, alguns já na quarta geração trabalhando no mesmo serviço, o Maravalhas e o Campos, só que agora a prestação de serviços é feita somente para firmas como Abraham Pazuello, Isaac Benzecry Serfaty, Sefair J. A. Leite, JG Araújo, J. S. Amorim, Abrahim & Irmãos e Booth Line, entre outras. Os remanescentes dos antigos barcos são: "Luz do dia", "Sempre Federal", "União", "Maravalhas", "Campos", "Aurélio", "Portugal", "Brasil", entre outros que continuam levando e trazendo trabalhadores para o serviço de estivas em navios ancorados e onde é feito o serviço de escolha e seleção de castanha para embarque.

Outro tipo de serviço de catraia que agora está se extinguindo, é o feito diariamente nos igarapés de São Raimundo e Educandos, trazendo principalmente trabalhadores para o Centro da cidade, e do Centro da cidade para os referidos bairros. Muita gente pensava que com a construção da ponte de São Raimundo que liga a cidade ao bairro de Santo Antônio através da avenida Leopoldo Neves, o serviço de catraia iria desaparecer, o que não aconteceu, embora tenha diminuído muito com a quantidade de pessoas que se deslocam utilizando esse tipo de transporte. No bairro de São Raimundo o serviço de catraia é ininterrupto, se desloca da rua 5 de Setembro sobre o igarapé de mesmo nome até a rua Doutro Aprígio do lado norte da serraria Hore. Os catraieiros se revezam trabalhando 24 horas por dia numa escala determinada por portaria da Capitania dos Portos do Amazonas, Acre e territórios federais de Rondônia e Roraima.

No bairro de Educandos, embora a Prefeitura Municipal de Manaus tenha construído recentemente uma ponte de concreto armado sobre o referido igarapé, ligando a rua Quintino Bocaiuva, no Centro de Manaus, ao bairro de Educandos, o serviço de catraia continua da Manoel Urbano até a rua dos Andradas ao lado da cidade, também nas mesmas condições, isto é, revezando-se ininterruptamente de acordo coma determinação da Capitania dos Portos.

O pagamento de cada passagem custa um terço do preço da passagem de ônibus, a razão por que da escolha do grande público que prefere se transportar em catraia ao utilizar o serviço de ônibus, três vezes mais caro, principalmente para os que moram nas proximidades dos igarapés de Educandos e São Raimundo.


FONTE:

ANDRADE, Moacir. Manaus das Catraias. Manaus, Jornal do Comércio, 23 e 24 de outubro de 2005.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte