sábado, 10 de agosto de 2019

A tartaruga na economia amazonense (séculos XVIII e XIX)

Pesca das tartarugas. FONTE: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá/Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

A tartaruga, no passado remoto do Amazonas, foi um dos principais produtos da economia local. Antes que a borracha suplantasse, ainda nos tempos da Província, outras atividades, a tartaruga e seus derivados figuravam entre os principais produtos de exportação. O sabor inigualável de sua carne, dos ovos e os usos de sua gordura a tornavam um produto bastante visado. 

Em viagem de correição das povoações da Capitania de São José do Rio Negro entre 1774 e 1775, o Ouvidor e Intendente Geral Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, em seu diário, registrou os usos da tartaruga pelas populações, da captura aos preparos:

"No tempo, em que as tartarugas estão nas praias, he que se faz o maior provimento, porque se lança mão dellas, e se virão com as costas para a terra, ficando assim impossibilitadas a moverem-se, e se carregão para as embarcações.

Os ovos não só servem para se comerem, mas tambem delles se fabrica o azeite, ou manteiga, que constitue hum importante ramo do commercio entre as capitanias do Pará, e Rio Negro. Este azeite se purifica ao fogo. Das banhas da tartaruga se extrahe tambem outra manteiga, que he na verdade excellente. Em fim a tartaruga he sadia, nutritiva, e de facil digestão. Os indios a preferem a todo o outro genero de comida, e os nossos europeos, costumados a ella, lhe dão a mesma preferencia". (SAMPAIO, 1825, p. 86).


No final do século XVIII, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) notou que, na Capitania de São José do Rio Negro, assim como em toda a região amazônica, a tartaruga era vital para os indígenas e os habitantes brancos. Sua carne substituía a rarefeita presença de gado (FERREIRA, 2005, p. 237). O governo da Capitania mantinha canoas utilizadas na condução de tartarugas dos pesqueiros, que além da população civil, também abasteciam as tropas de guarnição.

Apesar de fazer parte da economia da Capitania, a captura de tartarugas era feita de forma bastante irregular, pois muitas delas morriam ou se perdiam no processo, conforme registrado por Ferreira:

"[...] 2.896 que entraram no ano passado para o curral da capitania, morreram 1.600, que se não aproveitaram. No de 1784 entraram 2.710 e morreram 1.217. No de 1783 entraram 2.892 e morrerem 833. E por este modo vem cada tartaruga a importar em um preço que por nenhum título se acomoda com a razão e com a economia". (FERREIRA, 2005, p. 245).

Alexandre Rodrigues Ferreira produziu um interessante registro iconográfico sobre o recolhimento dos ovos de tartaruga e o preparo e engarrafamento da manteiga.

Recolhimento dos ovos de tartaruga e preparo da manteiga. FONTE: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Acervo de Antonio José Souto Loureiro.

A economia gerada em torno da tartaruga era altamente predatória, como registrou Alexandre Rodrigues Ferreira. Estima-se que para produzir um galão com o óleo eram necessários 2000 ovos. Em uma época de bom recolhimento os indígenas chegavam a produzir 2000 potes do produto (totalizando 4 milhões de ovos), comercializados nas capitanias de São José do Rio Negro e Grão Pará.

Mais de um século depois, por volta de 1849 o viajante e naturalista britânico Alfred Russel Wallace, em viagem pelos rios Amazonas e Rio Negro, experimentou diferentes pratos feitos com tartaruga, de omeletes a carne guisada. Wallace notou que a tartaruga era o principal réptil da região:

"Dos seus ovos prepara-se excelente óleo. A maior e mais abundante é a grande tartaruga do Amazonas, ou a jurará dos índios. Atinge ao comprimento de 3 pés e tem o casco oval, um tanto achatado, de cor escura e inteiramente liso. É encontrada abundantemente em todas as águas do Amazonas, e na maior parte dos lugares é o alimento comum dos habitantes". (WALLACE, 2004. p. 563).

Wallace nos informa que as tartarugas, no mês de setembro, logo após a descida dos níveis dos rios, depositavam seus ovos nos bancos de areia que se formavam, fazendo buracos profundos. Os indígenas, conhecedores há séculos dessa periodicidade, ia às praias, recolhendo milhares de ovos. Wallace nos descreve o processo de preparo do óleo, seus usos e consequências:

"Enchem as suas canoas com os ovos que, em seguida, dentro da própria canoa, são quebrados e misturados a um só tempo. O óleo sobrenada, e, em seguida, é escumado e cozido, sendo guardado, depois dessa operação, a fim de ser usado para a iluminação ou culinariamente. Destroem-se assim, anualmente, milhões de ovos. Em conseqüência dessa devastação, estão-se tornando cada vez mais raras as tartarugas grandes do Amazonas". (WALLACE, 2004, p. 563).

Os indígenas capturavam as tartarugas com anzol, rede ou flechadas, sendo o último método o mais utilizado. As estimativas de Wallace da quantidade de ovos empregados na produção de óleo são maiores que as de Alexandre Rodrigues, levando-se em conta, claro, o espaço de tempo que separa os escritos de cada um:

"Nas praias mais extensas, chega-se a produzir dois mil potes de óleo por ano. Cada pote contém 5 galões, e são necessários cerca de 2.500 ovos para cada pote, o que dá a cifra de 5.000.000 de ovos destruídos em uma só localidade". (WALLACE, 2004, p. 563).

A captura desenfreada de tartarugas e o uso desmedido de seus ovos, denunciadas por Alexandre Rodrigues Ferreira no século XVIII, já mostravam seus efeitos na segunda metade do século XIX. Wallace notou que as tartarugas começavam a se tornar cada vez mais raras. Isso refletia no preço que o animal e seus derivados atingiam nas cidades. Em Manaus, por volta de 1859, D. Lourença de Barros França vendia o pote de manteiga de ovos de tartaruga a 9 mil réis (ESTRELLA DO AMAZONAS, 01/01/1859). 

A Província do Amazonas tinha uma arrecadação significativa com a exportação de tartarugas. No ano de 1858 foram cobrados mil réis por cada uma que foi exportada (ESTRELLA DO AMAZONAS, 10/03/1858). Em 27 de dezembro de 1870, o paquete a vapor Belém saiu de Manaus com uma carga de 295 latas e 57 potes de manteiga de tartaruga com destino ao Pará (COMÉRCIO DO AMAZONAS, 31/12/1870).

O óleo de tartaruga era empregado na iluminação das vilas e cidades. O historiador Otoni Moreira Mesquita afirma que o viajante e naturalista alemão Johann Baptist von Spix, em 1819, "notou que o óleo de tartaruga de "pior qualidade" era empregado em lâmpadas, como azeite de iluminação" (SPIX apud MESQUITA, 2006, p. 106). A iluminação não era das melhores, pois eram frequentes as queixas de administradores e da população, que a partir das 18 horas encontravam-se em uma quase completa escuridão, não fossem alguns poucos focos de iluminação com óleo de tartaruga ou de peixe-boi. Objetos também eram confeccionados com seus ossos e casco. Em 1864 o Centro Comercial Amazonense, do 'Teixeira Barateiro', anunciava que tinha para vender "[...] pentes de tartaruga para senhoras, um rico sortimento de obras de tartaruga malhetadas a ouro: como seja grampos para cabellos, pentes, alfinetes para peito, fivellas para cinto, botões para punhos & tudo obras de gostos admiraveis" (O CATEQUISTA, 23/01/1864).

Nesse período as autoridades locais começaram a condenar a forma como a tartaruga era explorada, de forma altamente predatória e danosa ao meio ambiente. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, 1° Vice-Presidente da Província do Amazonas, sancionou a Lei N° 102, de 08 de Julho de 1859, sobre a viração, captura e pesca de tartarugas e pirarucus. Sobre as tartarugas, ficou estabelecido nos incisos 1° e 2° do Artigo 1:

"Art. 1°. Fica prohibido em toda a Provincia:

§ 1°. A condução de tartarugas em canôas ou jangadas de modo que fiquem apinhoadas ou cavalgadas uma sobre as outras, e por isso em numero maior de uma por cada 4 arrobas, que lotar a conoa, ou de treze por cada tonellada. Os infractores soffrerão a multa de 1.000 reis, ou meio dia de prisão, por cada tartaruga excedente do numero fixado por arrobas ou tonelladas.

Fica sujeito ao dobro d'estas penas, por cada tartaruga todo aquelle que as conservarem em curraes ou depositos, em espaço menor de quatro palmos.

§ 2°. A' viração ou frechação das tartarugas, durante a epocha da desovação, que deve contar-se dez dias antes de principiarem ellas a reunirem-se em cada praia ou localidade, com a pena de tres mil reis, ou dia e meio de prisão á cada pessoa emprega n'este serviço, e de 1.000 reis, ou meio dia de prisão por cada tartaruga virada, ou frechada". (ESTRELLA DO AMAZONAS, 10/09/1859).

Apesar da proibição, a captura desmedida de tartarugas e o recolhimento de seus ovos continuou. Três anos depois, em 1862, o Presidente da Província do Amazonas Manoel Clementino Carneiro da Cunha chamou de "desenfreada orgia" a forma como os ovos continuavam a ser recolhidos e esmagados:

"E' revoltante o que se pratica nas praias depois que as tartarugas ali sobem para depositarem os ovos! Para as mulheres começa o trabalho, para os homens a mais desenfreada orgia, segundo o que se me informa. Milhares de milhares de ovos, desses germens de uma futura e abundante riquesa, permitta-se-me a expressão, são safrificados á voracidade dessas aves de rapina, para o fabrico da manteiga" (AMAZONAS, 1862, p. 50).

Falando sobre a produção de azeites na Província, Manoel Clementino Carneiro da Cunha informa que, se ela fosse aperfeiçoada, traria grandes benefícios. No entanto, ela permanecia

"[...] no seu estado de irregularidade, e imperfeição primitivas, tornando-se antes um elemento de damno do que de utilidade para a Provincia, que vê todos os annos a grande perda que por ahi vai em suas praias, de immensos ovos de tartarugas estragados brutalmente no emprego que delles fazem sem methodo, e sem proporção no fabrico do azeite resultando desse estrago soffrer a população falta, de abastança de tartarugas, de que faz a sua alimentação ordinaria; e isso sem que ao menos uma vantagem, ou uma utilidade real, e conveniente, resulte dessa manipulação, que indemnise, ou que compense esse prejuiso". (AMAZONAS, 1862, p. 55).

Apesar das críticas e alertas feitos pelos viajantes nos séculos XVIII e XIX e, mais tarde, pelos administradores públicos locais, e das proibições, a tartaruga continuaria sendo explorada comercialmente de forma predatória por pelo menos mais de um século. 


FONTES:

Estrella do Amazonas, 10/03/1858.

Estrella do Amazonas, 01/01/1859.

Estrella do Amazonas, 10/09/1859.

AMAZONAS. Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa da provincia do Amazonas pelo exm.o senr. dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha, presidente da mesma provincia, na sessão ordinaria de 3 de maio de 1862.

Commercio do Amazonas, 31/12/1870.

REFERÊNCIAS:

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Diários, p. 209-350, 22/10/2005.

MESQUITA, Otoni Moreira. Manaus: História e Arquitetura - 1852-1910. 3° ed. Manaus: Editora Valer, Prefeitura de Manaus e Uninorte, 2006.

SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da viagem que em visita, e correição, das povações da Capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma, no anno de 1774 e 1775. Lisboa: Typographia da Academia, 1825. (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,  2004.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

Acervo de Antonio José Souto Loureiro.


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