segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre fontes primárias e secundárias


A distinção entre fontes primária e secundária é clássica e de fundamental importância para a pesquisa histórica. As fontes primárias são consideradas documentos originais, contemporâneos ao evento ou período ao qual se referem, como, por exemplo, as cartas dos Inconfidentes Mineiros, do século XVIII. As fontes secundárias seriam, então, documentos indiretos posteriores a um determinado evento ou período, como uma compilação das cartas anteriormente citadas, só que já no século XXI. No entanto, essa diferenciação não é tão simples como se pensa.

Até onde vai a definição de contemporâneo? Seria contemporânea ou considerada fonte primária um relato de 1300 produzido sobre uma batalha ocorrida em 1280? E como ficaria um escrito sobre uma manifestação produzido posteriormente e por alguém que não esteve presente naquele momento, mas que colheu boatos para sua produção? Para o historiador inglês John Tosh (2012, p. 100), algumas fontes são mais “primárias” que outras. Os historiadores, em suas pesquisas, vão preferir fontes que estão mais próximas no tempo do evento ou recorte que analisam. Voltando ao exemplo anterior do escrito produzido posteriormente e através de relatos, ele também tem sua importância a partir do momento em que permite a análise de sua confiabilidade e seu viés no momento da produção.

Se pararmos para pensar, encontramos em certos documentos tanto elementos primários quanto secundários. John Tosh cita como exemplo as crônicas medievais (2012, p. 101). Elas sempre começam com a História do mundo desde a Criação até o nascimento de Cristo, mas interessam para os historiadores os eventos anualmente registrados pelos cronistas. Os contextos também influenciam, podendo um trabalho ser primário em um momento e secundário em outro. Um livro de História Geral escrito em 1850 é uma fonte secundária em sua época, mas torna-se uma fonte primária para os que estudam as práticas historiográficas da segunda metade do século XIX ou a preferência literária dessa época.

Os exemplos acima são claros, mas todos possuem uma ideia popularmente difundida e que implica na concepção de fontes, a de que “os documentos históricos são os registros formais e dignificados pelo passado” (TOSH, 2012, p. 101). Os registros formais, geralmente, são os mais utilizados pelos historiadores e os que melhor sobrevivem no tempo. Todos os dias são produzidos o que podem ser documentos históricos primários: anotações em diários, notas fiscais, exercícios escolares etc. Se eles serão utilizados como tal, dependerá de suas sobrevivências e usos pelos historiadores, pois os documentos não são históricos em si, mas ganham tal status a partir da importância que lhes são dadas, importância que varia com os contextos em que estão inseridos. “Muda mais o olhar sobre a fonte do que a fonte em si” (KARNAL e TATSCH, 2013, p. 16).

Em 1500, a Carta de Pero Vaz de Caminha não tinha outro uso que não o de informar à Coroa sobre a nova terra conquistada. Era uma carta, um manuscrito. Não passava disso. Esse documento permaneceu por mais de trezentos anos esquecido na Torre do Tombo, até que passou a ser utilizado como fonte histórica, “certidão de nascimento” do país, pelos historiadores que passaram a buscar uma identidade para o Brasil, no contexto da segunda metade do século XIX, com a fundação do IHGB, no Rio de Janeiro. O documento está em permanente diálogo com o presente em que está inserido. Da mesma forma que este foi visto como carta testamento do país, entre 1840 e 1850, pode ser lido, mais de um século depois, como o atestado de óbito das nações indígenas que aqui viviam.

Em um arquivo, seja de qual natureza for, público ou particular, o pesquisador fará a seleção dos documentos que lhe interessam. Imaginem um historiador cujo tema seja o comércio atlântico no período pré Primeira Guerra (1910-1913). No meio das fontes que lhe ajudarão em sua pesquisa, encontrará outras, de 1914, 1915 etc, com informações diversas. Elas, no entanto, não terão serventia naquele momento, sendo deixadas de lado. O historiador é o “juiz” que decide quais fontes devem “sobreviver” e quais devem “morrer”. Jacques Le Goff, no capítulo Documento/Monumento de seu livro História e Memória, afirma que

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores (1990, p. 462).

As fontes secundárias podem ser consideradas apropriações de fontes primárias. Elas podem ser cópias, réplicas de objetos e transcrições. Obras do período greco-romano muitas vezes foram produzidas através de documentos originais que já não existem mais e forma integral, restando apenas fragmentos ou resumos. Existe uma terceira categoria de fontes, pouco conhecidas, as terciárias, que aglutinam as primárias e secundárias, que podem ser manuais, almanaques e fichas catalográficas.

Os registros, diretos ou indiretos, primários ou secundários, só se tornam fontes históricas a partir do momento em que são considerados como tal, em uma ligação que parte do presente para o passado. Se hoje um documento de 1500 é amplamente utilizado como fonte histórica, daqui a um século, dependendo dos contextos, ele pode voltar a cair no esquecimento. "O presente e o historiador que conferem sua mutabilidade" (KARNAL e TATSCH, 2013, P. 13).


FONTES:

TOSH, John. A Busca da História - Objetivos, métodos e as tendências no estudo da história moderna. Petrópolis (RJ), Editora Vozes, 2012.

KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de. O Historiador e suas fontes. São Paulo, Editora Contexto, 2013, p. 9-29.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas (SP), Editora da Unicamp, 1990 (Coleção Repertórios).


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quarta-feira, 19 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, III parte: Ataques, mudanças e uma 'communicação espírita' no bairro dos Educandos

Estabelecimento dos Educandos Artífices, na antiga Olaria Provincial.

Passara-se um dia da sessão realizada no Alto de Nazareth, na qual revelou-se que o espírito que atormentava a família Alencar, no bairro da Cachoeirinha estava inquieto e obcecado, procurando vingar-se das injustiças que lhe foram cometidas em vida. Os fenômenos naquele bairro continuavam a se manifestar, chamando a atenção de espíritas, leigos ou de associações. Dessa vez, durante uma sessão realizada no bairro dos Educandos, um espírito vindo de muito longe deixaria sua marca no caso...

Manáos, 06 de agosto de 1917

Seguidores e estudiosos da doutrina espírita mostraram-se bastante interessados com o caso, como pode ser visto com a reveladora sessão realizada um dia antes no Alto de Nazareth, na qual descobriram-se as motivações do espírito da Cachoeirinha. Um desses estudiosos era Manoel dos Santos Castro, porteiro da Alfândega, morador da rua Barroso, no Centro, e há muito dedicado às leituras sobre o espiritismo.

Castro, naquele momento, amigo da caridade, assumiu para si a tarefa de tentar evangelizar o espírito que estava atormentando a família Alencar e, de certa forma, os moradores do arrebalde da Cachoeirinha. Ele, no entanto, não informava os resultados de suas pesquisas para a imprensa, apenas afirmava que “trata-se de espíritos, e muitos outros factos psychicos vão se reproduzir nessa cidade”.

As manifestações na Cachoeirinha continuavam e, agora, não atingiam apenas membros da família Alencar. Um jovem que zombava do caso, criticando-o e afirmando ser ele uma mentira, declarou, na redação do jornal A Capital, ter recebido um forte golpe no rosto, o qual não sabia a procedência, pois estava sozinho no momento.

O Sr. Alencar se encontrava bastante abatido pelo que vinha ocorrendo em sua casa desde o início do mês de agosto. Sua saúde, assim como a vigilância e a perseguição ao ‘phantasma’, ia diminuindo. Alice Alencar, a jovem que via o espírito, foi enviada para a residência de um amigo da família, o advogado Antônio Batista de Aquino, localizada na rua Visconde de Porto Alegre, para ver se cessavam as perseguições. Mal entrou na casa, foi atingida com um golpe vindo do “nada”.

Além do trabalho de Manoel dos Santos Castro, outros espíritas realizavam sessões em diferentes pontos da cidade, sendo que em todas elas o espírito que se comunicava afirmava ter ocorrido um crime, de que foi vítima o cidadão desconhecido que, agora no plano espiritual, buscava vingança. Em um encontro realizado no bairro dos Educandos, separado do local dos eventos por um igarapé, recebeu-se a comunicação de um espírito que se dizia ter sido um jesuíta português em vida, tendo vindo para o Brasil junto de um grupo de religiosos que acompanhavam Duarte da Costa, em 1553. O espírito fez revelações sobre o futuro da humanidade, do Brasil, durante e após a Guerra:

Meus amados irmãos, convidado por vós para dizer alguma coisa sobre os recentes acontecimentos da Cachoeirinha, devo vos declarar que não posso ir além do que já se pronunciou um respeitável mestre do espaço, na sessão ultimamente levada a efeito no Alto de Nazareth.

É justa a vossa curiosidade no sentido de se conhecer a vítima da Cachoeirinha, mormente quando agora já se base, que um crime bárbaro presidiu a tudo isso, crime esse que foi revestido da mais revoltante hediondez.
Mas, essa revelação não pode ser feita pelos espíritos que ascenderam a grande escala da evolução espiritual. Somente os espíritos que ainda pairam num plano bastante inferior, podem assim proceder, porque a verdade é como diz o venerando apóstolo São Paulo, na Epístola aos Efésios, cap. 6° verso 12°: Nós temos de lutar contra os espíritos de malícia espalhados por esses ares.

Mantendo os mesmos princípios externados pelo mestre que me precedeu em outra sessão (porque dou graças a Deus de já ter atingido um grau mais ou menos considerável na eterna vida do cosmo), me abstenho de proclamar o nome desse irmão, que ora se manifesta na Cachoeirinha, vítima da terrível tragédia referida pelo outro mestre.

Demais a mais, o fenômeno psíquico ora observado, não é o primeiro, nem será o último, mesmo porque, se aproximando os tempos anunciados, a reprodução desses fenômenos se manifestará por todos os pontos da terra, com maior intensidade.

O aparecimento da nova raça no planeta, ocasionará os mais extravagantes fenômenos, até que venha o reinado da fraternidade humana.

É por isso que vos posso afirmar que muito breve a maçonaria, que teve um importante papel na civilização atual, estará de mãos dadas com a igreja, porque nada mais separará o homem, mas tudo os unirá.

Virá o amor, na santa lei de Buda, combatendo o ódio, para por termo às contendas das nações”.

Nesse momento, o presidente da sessão interrompe a fala, dizendo que, em outro encontro, o Dr. Jorge de Moraes, ex-prefeito da capital, disse que era impossível a paz universal, pela dificuldade da reação do Tribunal Internacional, como pela impossibilidade do desarmamento das nações. O espírito, prosseguindo, respondeu:

“O Dr. Jorge de Moraes é um talento de eleição; mas a frase que ele não encontra, para se dar isso, está na lei do amor. A ele respondo como Cristo: O que é impossível aos homens não é difícil a Deus.

Finda a guerra atual, que apavora as nações, os povos, ainda debaixo da mais terrível impressão, terão horror só em ouvirem falar em guerras sangrentas.

Esta guerra, portanto, é o primeiro ensaio para a paz permanente dos povos.

O povo alemão, instrumento inconsciente da Divindade, se aparelhando tanto quanto lhe permitiu o engenho da arte, presta grande benefício às gerações de amanhã, aniquilando o seu poderio, como destruindo as demais potências armadas”.

E o Brasil, perguntou o presidente, qual seu destino nessa Grande Guerra?

“Talhado para grande destino na humanidade, o Brasil, a terra adorada, cuja grandeza contemplamos e admiramos do espaço, terá importante papel no concerto universal, nos tratados de paz das nações.

Emigrando a civilização da Europa para a América, o Brasil se tornará o centro das mais adiantadas concepções humanas; e assim, podeis ir desde já observando a nova geração que se vai formando neste grande país do futuro.
O povo brasileiro de amanhã será essencialmente culto, dedicado às letras, artes e indústrias; numa palavra: dominará o mundo pela moral, pelo direito; a lei será a sua grande força.

Já no rompimento das relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, o Brasil deu uma grande lição perante o mundo inteiro: garantiu a vida, liberdade e propriedade dos súditos alemães residentes em seu território.

Apesar de na minha última vida material ter sido português, venho amando este pedaço de solo americano, desde que nele pisei, como jesuíta, em companhia do padre José de Anchieta, que por sua vez com mais 15 jesuítas, fizera parte da comitiva de Duarte da Costa, segundo governador geral do Brasil, em 1553.

Foi, portanto, da fundação do Colégio de São Paulo, em 25 de janeiro de 1554, que partiram meus primeiros ensaios na grande obra da proteção aos índios, ao lado do padre Anchieta, fato esse que tanto irritou os mamelucos.

Como português que fui, concorri, com o meu pequeno esforço, para a formação do grande povo brasileiro, que será a continuação da pátria portuguesa, pela raça, pela língua, pelos costumes, pela religião, enfim, e não posso, portanto, deixar de amar e muito este belo país, o El Dorado das gerações futuras".

O espírito do jesuíta português, um tanto saudosista, vindo do longínquo século XVI para o XX, terminava sua comunicação, sem fazer maiores revelações sobre os eventos da Cachoeirinha. É evidente que a maioria de suas previsões não se concretizaram. No dia seguinte, ocorreriam acalorados debates no Templo da Verdade, na rua José Clemente. Alice Alencar seria chamada para depor na delegacia e, ao fim de seu depoimento, sua vida seria alterada de forma profunda…



CONTINUA



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Blog do Coronel Roberto - Catador de Papéis

terça-feira, 18 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, II parte: Uma 'communicação espírita'

O puxadinho na residência da família Alencar. FOTO: Jornal do Comércio, 08/05/1917

Continuavam os eventos na casa da família Alencar, no arrebalde da Cachoeirinha. A grande imprensa já não especulava mais o seu fim, nomeando o caso como o do ‘Phanstama da Cachoeirinha’. A calma não deitaria tão cedo naquela parte da cidade, que por um bom tempo seria o palco de aparições e outros acontecimentos ditos sobrenaturais. Os dizeres de um médium, guiado por um espírito em uma sessão, começariam a revelar parte, mesmo que ainda encoberta pela sombra das incertezas, do mistério que rondava aquele lugar.

Manáos, 05 de agosto de 1917

A polícia continuava, sob o comando do guarda Silveira, sem sucesso, empregando seus esforços para solucionar o caso. A polícia, uma instituição humana, tentava conter, expulsar, por fim, em algo intangível, que não fazia parte desse plano. Era o choque de duas realidades muito, mas muito distintas.

A dimensão que o caso ganhou chamou atenção da comunidade espírita local, que passou a realizar sessões na tentativa de desvendar as causas das aparições na residência da família Alencar. A primeira e também mais reveladora comunicação ocorreu no Alto de Nazareth, organizada por cinco espíritas e uma senhora como médium. A sessão teve início com a leitura de algumas passagens da obra de Allan Kardec e de preces a Deus, para que o encontro ocorresse sem nenhum incidente. Oferecidos alguns Pai nossos aos espíritos sofredores e obcecados, a médium começa a receber as primeiras informações do espírito:

“Que a Paz do Senhor esteja nessa bendita casa. Meus caríssimos irmãos, o fenômeno manifestado ultimamente no bairro da Cachoeirinha, desta cidade, não constitui um mistério, como pensa a ignorância popular, ignorância essa devida a falta de leitura das sagradas letras, porque na natureza não há mistérios, nem fatos que não possam ser explicados diante da luz da verdadeira ciência.

Tudo obedece a certas e determinadas leis da natureza, na sua grande sabedoria, e, portanto, não há fenômeno algum, por mais extravagante que pareça ser aos olhos dos ingênuos, que não tenha a sua cabal explicação, a sua razão de ser. As manifestações psíquicas são uma verdade e a minha presença, neste momento, o atesta.

O que se está passando na Cachoeirinha, prende-se a fatos anteriores desenrolados nesta capital, há poucos anos, fatos esses coevos de meus irmãos.

O Amazonas, nesses últimos tempos teve o seu grande declínio, devido à perversidade de uns, a ambição descabida de outros, com o desrespeito de todos os direitos, com a violação das próprias leis de humanidade, com a manifestação das mais iníquas decisões, sob a pressão de um só homem, aparentemente bom e venerando, mas, no íntimo, de maus instintos, de modo que a população inteira, desta cidade, revoltada e indignada com os seus malfeitores, descarregava, como descarrega grande, ódio ao mesmo tempo convergindo sobre os seus algozes toda a sorte de malquerença. Outras vítimas, uma vez desencarnadas, no espaço, desenvolvem maior soma de ódio e paixão, e daí, sente-se uma atmosfera bastante pesada.

Dado isso, o que se vê, então, senão reação do plano astral sobre o plano físico.

Eis o grande fenômeno explicado.

Operado o encontro dos elementos astrais com as vibrações do plano físico, verifica-se o fenômeno psíquico.

E o caso atual da Cachoeirinha. Um nosso irmão, há anos (não faz muito tempo), foi vítima de grande suplício, martirizado selvagemente, morrendo, pode-se dizer, de inanição acompanhada de repetidos açoites.

Morava na Cachoeirinha, e de lá foi tirado para a prisão, de onde só saiu morto.

Os seus gritos cruciantes, os seus lamentos, os seus gemidos, foram inúteis: Era preciso morrer como um cão; e assim aconteceu.

Os seus algozes, diante do quadro doloroso de sua vítima indefesa, riam, muitas vezes, de satisfação. Por mais que proclamasse a sua inocência, só encontrava terríveis carrascos.

A sua desgraçada mulher, carregando um filhinho de colo, bateu em todas as portas dos magnatas da terra, e nada conseguiu em favor do seu marido, não obstante exibir as mais robustas provas da inocência do mesmo.

Foram 27 dias de martírio atrozes e contínuos.

Tudo passou, menos a ideia preconcebida de vingança desse nosso infeliz irmão (o espírito da Cachoeirinha).

Aproveitou agora o momento em que o Amazonas ressurge com o seu garbo de outrora, com a bastança de outros tempos, para operar, no sítio de sua prisão, a vingança projetada.

Para lá, quer atrair os seus algozes, a fim de que por intermédio de um médium, cujo aparelho se coadune com seus sentimentos, possa reconstituir todas as cenas de que foi vítima, diante do povo, e confundir assim os autores de sua morte, de seu martírio.

Agora, meus caríssimos amigos, devemos encaminhar esse nosso desgraçado irmão, que se acha preso à vis paixões, por uma vereda, que lhe ofereça outro conforto espiritual.

A lei da evolução do espírito não permite essas reações tangidas pelo ódio e por sentimentos de vingança, porque essas manifestações retardam o progresso espiritual; e assim, esse nosso irmão estão contraindo novas dívidas, futuras provações.

Na terra, como no espaço, o espírito só progride pelo amor, pelos sentimentos de piedade, e nunca pelo mal, pela vingança que possa exercer contra os seus inimigos.

Faça-se fervorosas preces, não só por esse nosso irmão, como pelos seus algozes, afim de que todos possam atingir a um plano superior na vida espiritual”.

Quando a médium terminou seus dizeres, o presidente da sessão pediu para que o espírito que lhe auxiliara dissesse seu nome e o do espírito da Cachoeirinha. Ele recebeu a seguinte resposta:

“Em tornar conhecido o meu nome, em nada aproveita em relação a verdade ora sabida; o que aproveita é seguir-se as sábias lições, que me inspiraram os Mestres para transmitir aos meus irmãos. Praticar sempre e bem, perdoar as faltas de nossos semelhantes, cometer atos de amor e bondade, são os fatores principais que levam o homem a presença de Deus.

Nomear o nome do espírito que se manifesta na Cachoeirinha, cometeria uma grande indiscrição apontando ao público os seus algozes, quando o papel dos espíritos evoluídos não é denunciar, mas amparar todas as quedas, sem expor ninguém a odiosidade e escárnio público.

Agora, um conselho de amigo; quem tiver, acrescentamos nós, crimes encubados nos costados, fuja e fuja de verdade da Cachoeirinha, enquanto por lá andar o fantasma”.

Um espírito inquieto, injustiçado, buscava vingança pelo que lhe foi feito em vida. Suas manifestações deixaram em alerta a sociedade manauara, pois esses eventos se espalharam por outros bairros da capital. Mas isso já é assunto para outro texto...


CONTINUA

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, I parte: Pedradas, ameaças e vultos no ‘Caso Mysterioso’ da Cachoeirinha

A casa que se tornou palco dos eventos sobrenaturais, no bairro da Cachoeirinha, entre agosto e setembro de 1917. FOTO: Jornal A Capital, 04/08/1917.

Desde os tempos mais remotos e em diferentes sociedades, homens e mulheres desenvolvem relações com o sobrenatural, este definido como um plano que escapa à ordem das explicações físicas e materiais. Essa relação vai se modificando, com maior ou menor intensidade, de acordo com os contextos históricos em que estão inseridos determinados grupos humanos. No texto a seguir será abordada uma série de fenômenos considerados sobrenaturais, que se tornaram caso de polícia, ocorridos com uma jovem de uma família do bairro da Cachoeirinha, em Manaus, entre agosto e setembro de 1917, sendo o caso amplamente noticiado pelos principais jornais da época. Não se procura, aqui, fazer um julgamento tacanho sobre crenças ou não crenças, mas sim compreender parte da mentalidade daquele período, a repercussão desses eventos na sociedade manauara e a forma como estes foram veiculados na imprensa.

No Arrebalde da Cachoeirinha, o vulto de um homem aterroriza uma família…

Manáos, 03 de agosto de 1917

"Os espíritos, em nossa região, atravessam o Rio Negro para a outra vida. Outros, no entanto, ainda não estão preparados para a travessia, permanecendo presos ao mundo terreno, onde deixaram assuntos inacabados ou simplesmente não queriam partir"...

Na parte de trás da Feira da Cachoeirinha, em uma casa simples imprensada entre outras duas, as quais o tempo já deu cabo, residia a família de Alfredo Alencar, casado, sem filhos, mas na companhia de sua sobrinha, Alice Alencar, de 13 anos. Naquele 03 de agosto de 1917, faziam dias que a família Alencar e a vizinhança se encontravam inquietos por uma série de eventos de natureza desconhecida. Em um puxadinho na parte de trás da residência, dia e noite choviam pedras sobre o telhado de zinco. Além das pedras, Alice Alencar era ameaçada pelo vulto de um homem que se movia em alta velocidade, sendo visto pela jovem e por sua tia no fundo do quintal da casa.

Alfredo Alencar, questionado sobre essa situação, dizia a um jornalista: “Não sei explicar e estou farto de vigiar dia e noite, com os meus visinhos, procurando quem seja, perseguindo e até dando tiros, na direcção de onde partem as pedras o que ora é de um lado, ora de outro”. Nesse mesmo dia, foi capturado um jovem na mata do quintal, o que levou um subdelegado e alguns praças até o local. Estes presenciaram, atônitos, novos apedrejamentos. As autoridades fizeram buscas em todos os terrenos da vizinhança, sem encontrar ninguém num primeiro momento. Rápido silêncio, uma brisa e o reflexo de uma garrafa que ficou em pedaços, na varanda. Um soldado avistou uma figura que, estando cercada, desapareceu.

O Sr. Alencar, vigilante desde o início desses eventos, ainda não tinha visto o vulto, apenas Alice, sua mulher e uma outra parente que, saindo até o quintal, foi acertada com uma pedra por uma pessoa. A Sra. Alencar afirmava que o vulto era de um homem alvo, nem alto, nem baixo e com características italianas. Aparecia hora vestido de branco, hora vestido de preto. Certa vez, ele estava agarrado na cerca do quintal, e a Sra. Alencar o insultou. Ele, sem nada dizer ou esboçar qualquer reação, foi se afastando lentamente até sumir na mata. O único momento em que o homem falou foi quando, através de uma fresta da cerca, com uma arma, ameaçou matar sua sobrinha.

O jornalista perguntou se esse vulto não poderia ser algum admirador de Alice, no que retrucou o Sr. Alencar: “Também desconfiei, mas não vejo fundamento. Além de muito creança e socegada, esse negocio de dia, de noite e as pedradas não pódem fazer suppôr namoros. Demais, o risco em que já está, afasta com a insistencia, qualquer possibilidade”.

Alice, a pedido de seu tio, andou pela varanda, pois o entrevistador era o único que ainda não tinha visto as pedras caírem sobre a casa. Em poucos minutos, a primeira atravessara o telhado. Um soldado da Delegacia foi até o local para saber de mais ocorrências e conter a grande quantidade de curiosos que se amontoavam nos arredores. Para o jornalista, a polícia deveria agir para desvendar esse caso, mostrando não haver nada de sobrenatural, como pensava boa parte das pessoas. Sugerindo a derrubada do matagal do fundo da casa, e a formação de um cerco apertado, estava certo de que o “caso mysterioso da Cachoeirinha” desaparecia de vez.

Bem, pelo menos foi isso que pensou o jornalista do Jornal A Capital…


CONTINUA

sábado, 8 de julho de 2017

Análise de documentos: Os testamentos de Anna Pinheiro (1795) e Manoel Francisco Marques (1769)

Testamento de Anna Pinheiro (Cliquem para ampliar).

Testamento de Manoel Francisco Marques (Cliquem para ampliar).


Introdução

Os testamentos são uma das fontes mais utilizadas em estudos históricos, destacando-se nas vertentes da História Social, História Cultural e das Mentalidades, permitindo aos pesquisadores identificar elementos socioculturais de determinadas épocas. Partindo dessa premissa, o presente trabalho tem como principais objetivos analisar os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques, oriundos do século XVIII; e construir um quadro comparativo entre esses dois documentos, a fim de serem destacadas semelhanças e diferenças entre seus conteúdos. Pretende-se, dessa forma, compreender os modos de viver, os comportamentos, da sociedade (ou de parte dela) colonial brasileira.

O testamento de Anna Pinheiro (1795)

O testamento de Anna Pinheiro, viúva, data de 25/07/1795. Esta era oriunda da Vila de Santo Antônio de Alcantara, fundada na segunda metade do século XVII no então Estado do Maranhão e Grão-Pará. Expressando a religiosidade da população da colônia, majoritariamente católica, Anna inicia o testamento em nome da “Santissima Trindade Padre Filho Espírito Santo, tres pessoas distintas e hum só Deos Verdadeiro” (Testamento, 1795, p. 1). A viúva, mais adiante, afirma estar em perfeito juízo, entendendo que está doente, temendo a morte e desejando a salvação de sua alma. Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2) afirmam que o testamento

estava geralmente associado às disposições de últimas vontades manifestadas pelo sujeito, geralmente ancião ou enfermo, para as medidas espirituais e temporais a serem tomadas depois de sua morte, principalmente em relação ao destino de sua alma no post-mortem, para além do destino de seus bens.

O primeiro pedido de Anna é a encomenda de sua alma a Santíssima Trindade, rogando a Deus, que pela morte de seu único filho, que a aceite; à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (Santa Ana, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que a mesma da Igreja de Roma, para que seja salva pelo “merecimento da paixão e morte de meo Senhor Jezus Christo” (Testamento, 1795, p. 1).

Seus testamenteiros são Severo de Abreu, cunhado, Francisco Pinheiro, irmão, e Cristóvão da Costa, primo. A eles pede que, no dia de seu falecimento, sejam feitas missas de corpo presente por todos os sacerdotes, e que, no dia seguinte, seu corpo seja sepultado no Convento de Nossa Senhora do Carmo e acompanhado pelo reverendo, pelo vigário com a cruz do Fabrica (?), e pelos demais reverendos e clérigos que se acharem mais a comunidade de Nossa Senhora do Carmo, sendo seu corpo levado para a Sepultura na Tumba das Almas.

No testamento temos mais informações sobre sua família. Anna era filha de João Pinheiro e de Eugenia Pinheiro, ambos falecidos. Foi casada com Manoel de Abreu, falecido, não tendo filhos dessa união. Anna não fez a declaração de seus bens e de seus pais, confiando a tarefa aos seus testamenteiros. Declaro dever sua sogra Perpetua Saurez, dívida essa que será paga pelos encarregados de seu testamento.

Seus testamenteiros deverão mandar que se realizem por sua alma dez capelas de missas e que seja dada a esmola costumada [parte ilegível do documento]. Também deverão ser realizadas três missas para o anjo da guarda, três para o santo que lhe dá nome, três a Nossa Senhora da Conceição e cinco às cinco chagas de Jesus Cristo. Também será dada e esmola costumada. Para as almas de seus pais, serão realizadas missas e dada e esmola costumada.

Deixa, para uma sobrinha de nome Victoria de Araujo, suas casas e a escrava Sebastiana com sua filha Benedita e Raimundo, pelos benefícios que dela recebeu. No entanto, essa herança tem a condição de que, caso Victoria se casasse, seu marido nunca poderia vender seus bens para pagar algumas dívidas por sua morte, sendo estes passados para seus herdeiros. Caso estes não existissem, seus testamenteiros os utilizaram para mandar rezar missas pela alma de Anna e de Victoria.

São deixados trinta mil réis para obras de caridade. Declarando satisfeitos seus legados e obras pias, declara como herdeiros dos bens que restaram seu irmão Francisco Pinheiro, e os filhos do seu irmão falecido Bento Pinheiro. Esses bens serão repartidos em duas partes iguais, uma para Francisco e outra para os filhos de Bento. Esta foi sua última vontade, pedindo a seus testamenteiros que fossem dados os devidos cumprimentos às disposições e outros pedidos feitos através do testamento.

O testamento foi escrito, assinado e declarado por Manoel Feliz da Costa, pois, afirma Anna, era mulher e não sabia ler nem escrever. O testamento foi aberto em 26/07/1795, estando Anna Pinheiro já falecida a essa data.


O testamento de Manoel Francisco Marques (1769)

O testamento de Manoel Francisco Marques se inicia da mesma maneira que o de Anna, em nome da Santíssima Trindade, “Padre Filho Espírito Santo, três pessoas distintas de um só Deus verdadeiro” (Testamento, 1769, p. 1). Manoel também estava em juízo perfeito e também temia sua morte, desejando para a sua alma o caminho da salvação. Dessa forma, em seu testamento, encomenda a sua alma à Santíssima Trindade, rogando a Deus, pelo amor deste com seu único filho, que a aceite. Roga também à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (São Manuel ou São Francisco, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que é a mesma da Igreja de Roma. Pede que seja salvo não por seus méritos, mas pela paixão de Jesus Cristo.

Seus testamenteiros são o Reverendo Padre Manoel da Graça, João Vieyra Torres e Antônio Gonsalves. A eles, pede que no dia de seu falecimento se realizem duas missas para Jesus Cristo, duas para Nossa Senhora da Conceição, duas para Santa Ana, duas para Nossa Senhora da Oliveira, uma para São João Batista, uma para Santo Antônio, duas ao anjo da guarda, duas para São Bartolomeu. Será paga uma esmola de duzentos réis para cada uma.

Manoel pede que seu corpo seja sepultado na Igreja de São João, e que seja amortalhado em um lençol. Pede aos irmãos dessa confraria, da qual também faz parte, de que todos os anos faz os pagamentos, que seja levado para a sepultura no Esquife dessa Irmandade. Se morrer antes de realizar o pagamento, este deverá ser descontado de seus bens. Também fazia parte da confraria de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de São José de Ribamar, estando devendo quatro ou cinco anos, devendo seus testamenteiros pagarem dos bens deixados.

Seu corpo será acompanhado do Reverendo e da Cruz da Fabrica, por oito capelães da Catedral, principalmente os sacerdotes, mas a comunidade da Virgem Nossa Senhora do Carmo. No terceiro ou sétimo dia, pede que seus testamenteiros mandem fazer um ofício paroquial de trez noturnos, e que paguem a esmola costumada. Manoel era natural de Lisboa, sendo batizado na Freguesia de São Paulo, filho de Julião Francisco e Joanna Micaella, ambos falecidos. Foi casado com Maria Duarte, já falecida, tendo um filho de nome Pedro Paulo, o qual faleceu solteiro.

Como bens, Manoel possuía ferragens, casas, uma arma de fogo, uma toalha de Bertanha, uma almofadinha, uma rede grande de fio branco e azul. Deixa, mais trinta mil réis, tudo para sua afilhada Maria Jozepha de Siqueira. Para outra afilhada, Antonia Pinheiro, deixa vinte mil réis, fronha de almofadinha, uma almofada, um catre e outros objetos que possuir, louças e miudezas. Para o afilhado Antonio Gomes deixa dez mil réis, postos a juros até este ser capaz de administrá-los. Se o pai de Antonio e ele falecerem, o dinheiro deverá ser utilizado em missas para suas almas. Deixa uma caixa grande para a afilhada Antonia Pinheyro, uma canastra pequena para a afilhada Jozepha, uma canastra grande, uma serra e um socador de grãos ao Padre Manoel da Graça. Deixa ao seu sobrinho e afilhado João uma serra. Para a sobrinha e afilhada Roza vinte mil réis e para Inácia Maria dez mil réis.

Pede que suas casas sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, que poderão dizer se estas podem ser vendidas. Se, não, irão a leilão. O que for arrecadado será utilizado tanto para as esmolas que deixa quanto para sua Universal Herdeira (?). Devia Manoel de Assunção, por alimentação, e o Alferes Manoel da Sylva, que lhe emprestou dinheiro. Pede cinco missas de tensão (?) a Virgem Nossa Senhora, a qual se pagará esmola costumada de duzentos réis. Deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista e que se realizem oito capelas de missas, sendo duas por sua alma, duas pela alma de seu filho, uma pela alma de sua mulher, uma pela alma de seu pai, uma pela alma de sua mãe e uma pelas almas em geral.

A quantidade de bens deixados por Manoel é grande, indo desde instrumentos de trabalhos técnicos, como serras e esmagadores de grãos, a objetos domésticos, como louças, redes, canastras, almofadas e peças menores. No testamento não temos informações de profissão, mas a quantidade de bens deixados podem evidenciar ser Manoel uma pessoa abastada.

Manoel Francisco Marques pede que se de cumprimento a esse testamento em dois anos, estando tudo o que nele estiver escrito sob responsabilidade de seus testamenteiros. O que restar deverá ser utilizado em missas por sua alma e pelas almas de outros parentes. Por não poder escrever, o testamento fora escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. O testamento foi aberto em 27/07/1770.


Os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques: Análise comparativa

Entre o testamento de Manoel Francisco Marques e Anna Pinheiro temos 26 anos de diferença. Ambos são oriundos do Maranhão. Anna Pinheiro vem de uma cidade fundada na segunda metade do século XVII, Santo Antônio de Alcântara. Manoel Francisco Marques vem de Lisboa, estabelecendo-se em São José de Ribamar, fundada em 1627.

Anna, por ser mulher e não saber ler e escrever, teve seu testamento redigido e assinado por Manoel Feliz da Costa. Manoel, por não poder escrever, teve o testamento escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. De acordo com Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2), a produção dos testamentos “era feita ou pelo próprio sujeito que testava ou, a seu rogo, por um indivíduo de sua confiança, podendo ser um sacerdote (em geral o confessor), pessoa leiga de confiança (que podia ser um membro de irmandades ou amigo) ou notário”.

Por semelhança, Anna e Manoel eram católicos. Seus pedidos iniciais eram a encomenda de suas almas à Santíssima Trindade, intercessão pela Virgem Maria, pelo anjo da guarda e demais santos de devoção. Jurava-se, também, morrer na fé Católica, a mesma que emanava da Igreja de Roma. Missas eram encomendadas aos testamenteiros. Missas para Jesus Cristo, para os santos de devoção, para os santos que lhes dava nome, para os anjos da guarda, para os parentes já falecidos ou para as almas em geral, como no caso de Manoel.

Parte dos bens é utilizada em obras de caridades e pagamentos de dívidas para irmandades ou outras instituições. Anna deixou trinta mil réis para obras pias, além de esmolas costumadas. Enquanto Manoel deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista, bem como esmolas costumadas. Essas obras de caridade, pagamentos de dívidas, financiamento de construções, eram formas de se redimir pelos pecados cometidos em vida, e ter o que é conhecido por boa morte.

Não temos informações do que ambos foram em vida, mas a quantidade de bens deixados em testamento podem evidenciar suas posições sociais. A quantidade de objetos e pessoas beneficiadas por Manoel é grande. São instrumentos de trabalhos técnicos e itens domésticos que foram destinados a inúmeros afilhados e até a um membro da ala eclesiástica da sociedade de São José de Ribamar. Este tem o cuidado de pedir que suas propriedades sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, para que sejam vendidas ou leiloadas. Anna, além de valores monetários e propriedade, deixa para sua sobrinha sua escrava doméstica e sua filha também escrava, mais um possível escravo de nome Raimundo.

Ainda sobre prestígio e posição social, Manoel faz parte das irmandades de São João Batista e de Nossa Senhora da Conceição. Fazer parte de irmandades religiosas garantia certo prestígio para seus membros. Anna não parece fazer parte de algum grupo, pedindo apenas para ser sepultada no convento de Nossa Senhora do Carmo. Manoel é cuidado em seus pedidos para o post-mortem, escolhendo até mesmo a mortalha para seu corpo. Segundo Paiva (2009, p. 205), essa

liturgia da morte cristã incluía itens que, geralmente, eram encontrados em todos os casos, como, por exemplo, o tipo de mortalha a ser utilizada; a cera a ser distribuída entre os acompanhantes do cortejo; as missas por diversas intenções; as irmandades que acompanhariam o féretro; o local do enterro e, até mesmo, o pagamento de anuais atrasados, devidos às irmandades às quais o testador era filiado. Quanto mais rico fosse o testador, maior era a pompa fúnebre planejada por ele, salvo raras exceções.

O que mais chama a atenção é a densidade dos dois testamentos. O primeiro a ser analisado, de Anna Pinheiro, possui duas páginas. O de Manoel Francisco Marques é maior, tendo quatro páginas. Existe, também, um maior cuidado nos trâmites post-mortem no testamento de Manoel, com especificações de diferentes naturezas. Porque um é maior do que o outro? Devemos levar em conta, claro, a quantidade de bens e beneficiados deixados por Manoel. Anna deixa os elementos mais significativos para sua sobrinha.

No atestado de Ana, de 25/07/1795, temos por escrito as vontades de uma pessoa em perfeito juízo, mas doente. Anna Pinheiro morreu em 27/07/1795, dois dias após a elaboração de seu testamento. Manoel Francisco Marques manda escrever um testamento para ser cumprido após dois anos de sua validação (testamento escrito em 27/07/1769). Manoel falece em 27/07/1770, um ano após a sua morte. Possivelmente, o testamento de Anna possui duas páginas por ter sido escrito para uma pessoa prestes a morrer, com pouco tempo para preparo e talvez às pressas, tendo falecido um dia após sua publicação. Manoel, no início do testamento, tem medo de morrer, mas não afirma estar doente, tendo tido tempo para que redigissem suas vontades em testamento, de forma detalhada.


Conclusão

Ainda em vida, através de testamentos, homens e mulheres tratavam dos cuidados para suas almas no post-mortem, evidenciando o forte peso da religião cristã e sua crença na vida pós-morte. Era uma forma, também, de se redimir e ter uma “boa morte”, livre de qualquer arrependimento. Os testamentos também nos revelam parte da vida material dessa sociedade. Portanto, a partir da análise desses dois testamentos, com uma leitura crítica, e também de bibliografia concernente ao tema, foi possível identificar, mesmo partindo de dois estudos de caso oriundos de uma região específica, o Maranhão, elementos do cotidiano, do viver, das práticas da sociedade colonial brasileira.


FONTES:

Testamento de Anna Pinheiro, Arquivo Público do Maranhão, 25/07/1795
Testamento de Manoel Francisco Marques, Arquivo Público do Maranhão, 27/07/1769


Bibliografia

DILLMANN, Mauro; RODRIGUES, Cláudia. “Desejando pôr a minha alma no caminho da salvação”: modelos católicos de testamentos no século XVIII. Porto Alegre, História Unisinos, janeiro/abril de 2013.

PAIVA, Eduardo França. Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas Gerais setecentistas. Sevilha, Espanha, Anuário de Estudios Americanos, 66, 1. Jan/Jun, 2009