quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Morte de um bravo: Os necrológios de Joaquim Benjamin da Silva (AM) e Frederico Albano Cardoso Pinto (PA), combatentes na Guerra do Paraguai

Cadáveres de paraguaios após a Batalha de Boquerón, em julho de 1866.

Os necrológios, elogios fúnebres publicados em periódicos locais ou nacionais, são interessantes fontes para a pesquisa histórica, ainda que não tenham sido plenamente explorados em trabalhos acadêmicos na região. Neles é possível encontrar informações de grupos ou de indivíduos, dados biográficos, de escolaridade, religião, carreira, causa mortis e local de sepultamento. A quantidade das informações, o número de páginas e as homenagens dependem da importância que a pessoa teve em vida. Esse tipo de material é utilizado em estudos prosopográficos, podendo ser citados os trabalhos de Andrius Estevam Noronha (1), que utiliza os necrológios para analisar as trajetórias dos membros da elite de Santa Cruz do Sul (RS); e de Juarez José Tuchinski dos Anjos (2), que investigou os modelos de educação familiar contidos nos elogios fúnebres da Província do Paraná (1853-1889).

Como todas as fontes históricas, os necrológios possuem suas possibilidades e limites, devendo ser analisados criticamente. A utilização destes pela história social, cultural e das mentalidades permite aos pesquisadores a identificação de elementos socioculturais de determinadas épocas, os modos de viver e os comportamentos da sociedade ou parte dela diante da morte. No entanto, como salienta Andrius Estevam Noronha, não se deve esgotar os necrológios, “pois esses textos além de omitir várias informações individuais são carregados de um discurso narrativo de estilo romantizado” (NORONHA, 2012, p. 73). Os necrológios publicados em jornais trazem informações resumidas sobre o falecido, em um tom bastante romântico, o que torna necessária a utilização de outras documentações para confrontar esses textos. O historiador deve estar ciente, como citou Noronha, de que esses elogios estão carregados de discursos, pois possuem o objetivo de preservar e distinguir a memória do falecido e de sua família.

Escolhi dois necrológios da segunda metade do século XIX para fazer a análise de seus conteúdos: O do alferes Joaquim Benjamin da Silva, amazonense, e do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, paraense, ambos combatentes na Guerra do Paraguai (1864-1870) e mortos em batalha.


Morte de um bravo (I)

Mais um bravo da nobre família amazonense sacrificado no altar da patria!

Mais uma victima dos horrores da guerra desaparecida para sempre do numero dos vivos!

O alferes Joaquim Benjamin da Silva, que, por seu valor e denodo, havia merecido do governo as honras de uma condecoração, e um posto de accesso, não chegou siquer a receber a noticia desse premio tao bem merecido; porque na sanguinolenta batalha de 16 de julho, avançando contra o inimigo, recebeo no peito uma granada, que o fez voar á mansao dos justos.

O Amazonas deve orgulhar-se de ter tal filho, que, morrendo, legou a sua patria e família um nome gloriozo.

Joaquim Benjamin da Silva foi um heróe, que nos campos do Paraguay, soube honrar o nome brasileiro; e, embora morresse, elle vive e viverá eternamente, porque os heròes residem na historia, e a historia não risca, nem jamais pode riscar seu nome.

O bravo amazonense, quatro dias antes de o matarem, escrevendo a um seu amigo, predisse o triste fim que o aguardava: no dia 12 lançava elle no papel as seguintes expressões:

<<Prefiro uma morte glorioza nestes campos, à voltar para o meu paiz sem ver arrazado o covil da féra>>.

E morreu com effeito antes de ser arrazado o covil da féra!

Oh! Que valor, e que santo patriotismo lhe ardia n’aquelle craneo de mancebo!

Amazonenses! Já não existe Joaquim Benjamin da Silva; resta-nos portanto pranteal-o e orar por sua alma: choremos e oremos, pois, pela alma desse bravo martyr da patria. - A terra lhe seja leve.

Amazonas, 26/09/1866


O necrológio de Joaquim Benjamin da Silva é bastante resumido, não sendo indicado o local de nascimento, a vida em família e a educação que recebeu. Arthur Cézar Ferreira Reis (1989, p. 231), baseado em uma monografia escrita em 1920 por João Batista de Faria e Souza, cita o alferes Benjamin da Silva como natural de Parintins, tendo servido no batalhão de engenheiros. Seria condecorado por suas ações no campo de batalha, o que não ocorreu devido seu falecimento. O autor se confunde apenas quanto a data , citando a batalha do Capão Pires em 16 de julho de 1868 (ocorrida em 16 de julho de 1866), enquanto seu necrológio foi publicado no jornal Amazonas em 26 de setembro de 1866, dois meses após sua morte.

Ainda de acordo com Arthur Cézar Ferreira Reis, até o final do conflito contra o Paraguai o Amazonas contribuiu com mais de mil e quinhentos soldados, os Voluntários da Pátria, tendo regressado, em 25 de julho de 1870, apenas 55 soldados desse total (REIS, 1989, p. 232).

Foi “sacrificado no altar da patria”, legando a sua “patria e família um nome gloriozo”. Preferiu uma morte gloriosa nos campos de batalha do que voltar a ser país sem ver a queda do inimigo. Ardia naquele “crâneo mancebo” um santo patriotismo. No necrológio não fica indicado seu número de posses, sendo seu legado ao Estado e à família sua bravura durante a guerra, que ganha um tom dramático quanto este, quatro dias antes, chegou a prever que pereceria em ação.

Elle vive e viverá eternamente, porque os heròes residem na historia, e a historia não risca, nem jamais pode riscar seu nome”. Essa passagem exemplifica uma noção clássica de história, de que esta era feita pelos grandes homens e centradas em suas ações, que serviriam de exemplo para a posteridade. Joaquim Benjamin da Silva entrou para a história onde residiam os heróis, tornando-se um deles, um “martyr da patria”. Mais que uma homenagem, o necrológio é um instrumento de construção da memória biográfica.

Morte de um bravo (II)

Lê-se no Supplemento do Jornal do Commercio de 27 de novembro:

O inimigo jogou sua artilheria por meia hora, e por meia hora respondemos com fogos crusados de nossos morteiros admiravelmente. A nossa fortificação do Potrero Piris fez tambem excellentes tiros, as da esquerda e frente do mesmo modo.

Parece incrivel que tantas granadas e balas somente nos roubassem uma vida não ferindo a mais ninguém: mas é verdade. Verdade seja que a vida que nos roubou foi por demais apreciavel, por que nada menos foi que a morte de um jovem tenente tão brioso, quanto corajoso: fallamos do tenente de commissão Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do Pará, cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do brioso 6° corpo de voluntarios da patria, em cujas fileiras mereceu a commissão de alferes, e depois de tenente, por assignalados serviços prestados com a dedicação e zelo do bom soldado.

Dotado de maneiras polidas e bastante intelligente o tenente Cardoso Pinto era geralmente estimado. Sua morte foi produzida pelo choque de uma bomba, que, dando-lhe sobre as costellas do lado direito, determinou-lhe a morte instantaneamente. Conduzido na tarde desse dia para o hospital da 2° divisão, seu cadaver foi depozitado na capella do mesmo hospital, e guardadas as ceremonias que se fazem em casos taes; foi na manhã de 31 sepultado no cemiterio deste hospital, sendo seu corpo conduzido pelos drs Macedo Soares, Firmino Doria e pharmaceutico Doria, e De Bertue.

Mais tarde, depois de mudado da guarnição dos morteiros o 6° corpo de volumtarios, compareceram com a banda de muzica do mesmo corpo alguns srs. Officiaes, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes Almeida Castro, e alferes Rego Barros que foi encarregado pelo commandante de dirigir a muzica para o seu funeral, sendo que o finado era inspector da mesma muzica.

Receba a família do finado os nossos sentimentos, e com tanta maior dôr quando eramos amigo do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto.

A terra lhe seja leve.

A Voz do Amazonas, 12/01/1867


Esse necrológio é mais detalhado, tendo além da causa mortis o local para onde o corpo foi enviado, o local de sepultamento, as pessoas que o conduziram e os militares que dirigiram a música do funeral, já que se tratava de um militar de patente mais alta, um tenente. Ele foi publicado no suplemento do Jornal do Commercio em 27 de novembro de 1866 e republicado no jornal A Voz do Amazonas em 12 de janeiro de 1867. Em um tom bastante dramático, o autor do texto nos transporta para o campo de batalha, descrevendo as investidas do inimigo e a defesa da fortificação brasileira em Potrero Piris.

No dia desse ataque, entre tantos tiros e granadas, apenas um militar faleceu: tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do Pará, cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do 6° corpo de voluntários da pátria, onde ascendeu às patentes de alferes e, depois, tenente. Também foi inspetor da banda de música. Morreu instantaneamente ao ser atingido nas costelas pelo choque de uma bomba. Não é informada a data exata de sua morte. O morto tinha qualidades: era brioso, tinha maneiras polidas e era bastante inteligente.

Seu corpo foi levado para o hospital da 2° divisão, sendo depositado na capela dessa instituição, onde foram realizadas “ceremonias que se fazem em casos taes”, possivelmente uma missa de corpo presente. Na manhã do dia 31 foi sepultado no cemitério do hospital, tendo seu corpo sido conduzido pelos drs. Macedo Soares, Firmino Doria, farmacêutico Doria e De Bertue.

Mais tarde, após o enterro, quando o 6° corpo de voluntários foi mudado da guarnição de morteiros, compareceram com a banda de música alguns oficiais, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes Almeida Castro e alferes Rego Barros, encarregado pelo comandante de dirigir a música do funeral. Isso evidencia a importância do tenente Frederico Albano Cardoso, seu capital social para com os colegas militares.

Quanto a família, assim como no necrológio de Joaquim Benjamin da Silva, não são citados nomes. No Decreto N° 1.408, de 10 de agosto de 1867 (3), em que são aprovadas as pensões concedidas ao Major Henrique José Lazary e outros dependentes de militares falecidos, foi possível encontrar o nome da mãe do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, D. Maria Izabel Prestes Cardoso Pinto, que passaria a receber uma pensão de 42$000 réis.

NOTAS:

(1) NORONHA, Andrius Estevam. 'Dados biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo prosopográfico de elites locais (os necrológios). In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos (1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.
(2) ANJOS, J. J. T. . Os necrológios e a educação da criança pela família na província do Paraná (1853-1889). Pro-Posições (Unicamp), v. 28, p. 81-102, 2017.
(3) Decreto Nº 1.408, de 10 de Agosto de 1867. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1408-10-agosto-1867-553582-publicacaooriginal-71707-pl.html Acesso em 14/02/2018.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


NORONHA, Andrius Estevam. 'Dados biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo prosopográfico de elites locais (os necrológios). In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos (1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 2° ed, 1989.


FONTES:

Amazonas, 26/09/1866.
A Voz do Amazonas, 12/01/1867.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

domingo, 11 de fevereiro de 2018

O Entrudo na Província do Amazonas

Entrudo familiar no Rio de Janeiro. Pintura de 1822 de Augusto Earle.

 “O carnaval com o seo cortejo de folias,
caretas e momices, nos bate á porta; mesmo já nos parece ouvir
um desconchavado você me conhece, d’algum ratão coberto de
trapos e burundangas, cujo espirito o barometro gradua zero”.
Chronica. Esperança: Periodico litterario e critico do Amazonas
21/01/1877.

Pedimos a polícia providências”, escreveu o redator do jornal A Voz do Amazonas sobre os mascarados que saíam nas ruas das vilas da província durante a realização do entrudo, folguedo popular de raízes ibéricas coloniais marcado por brincadeiras informais em que valia tudo, desde o arremesso de limas com água perfumada até ovos podres, trigo e tinta. Ele salienta também que na Europa e na corte do Rio de Janeiro haviam bailes mascarados, os “bailes masqueés1, mas que estes eram vigiados pela polícia, e que só se poderia utilizar máscaras no recinto em que estava sendo realizada a festa.

O entrudo, do latim introitu, uma introdução à Quaresma, começava pela madrugada. As limas, laranjas e limões de cheiro, feitas com cera derretida em formas e onde eram colocados diferentes tipos de líquidos (água, água aromatizada, urina, tinta etc), eram previamente preparadas pelas donas de casa, escravas e agregados. Se a residência tivesse dois pisos, seus moradores dirigiam-se para o segundo e, quem passasse pela rua, era atingido por esses objetos. Esse era o entrudo familiar, privado. Nas ruas ocorria o entrudo mais popular, uma verdadeira guerra em que participavam tapuios, brancos e escravos, arremessando uns nos outros pó de arroz, trigo, tinta, água, ovos podres e o que tivessem em alcance.

Na Lei N° 101 de 08 de julho de 1859, em que foi aprovado o Regulamento n° 10 de maio daquele ano, para o Colégio de Nossa Senhora dos Remédios, os dias de realização do entrudo são considerados feriados, ao lado dos “dias santos de guarda, os de festa nacional, ou provincial marcados por Lei, os de lucto nacional declarados pelo Governo […] os de quarta feira Santa até o domingo da Paschoa, e os que decorrem desde 20 de dezembro até 6 de janeiro2. A festa, ou jogo, como também era chamado, era realizada costumeiramente de segunda até quarta-feira, mas também poderia ocorrer em dias variados.

Até determinado período do século XIX existia a separação entre o ‘entrudo’ e o ‘carnaval’. O Entrudo era mais popular, desorganizado, enquanto o carnaval era sinônimo de festa mais organizada, destinada às elites. Os termos entrudo e carnaval, na segunda metade do XIX, passaram a confundir-se. Talvez tivessem o mesmo sentido. As ‘providências’ pedidas pelo redator parecem que ainda não tinham sido tomadas. Em 1867, no jornal Amazonas, comemorava-se que o Carnaval daquele ano “esteve como sempre, alegre, e folgasão: alem dos mascarados que na tarde de domingo e terça-feira percorreram as ruas, tivemos alguns bailes dados por uma sociedade; bem como no salão do sr. Pingarilho, que sempre proporciona aos diletantes estes bellos passatempos3.


Se até aquele momento essa prática festiva era tolerada, a introdução de novas práticas culturais consideradas mais refinadas, como os bailes mascarados, privados, realizados em estilo francês ou veneziano, fizeram os dirigentes da província tomar medidas que combatessem o que passava a ser considerado impróprio e nocivo para os novos padrões. Em 1870, na Vila de Serpa, o entrudo é proibido, como ficou estabelecido no Art.20 do Código de Posturas: “Á ninguém é permittido andar pelas ruas e lugares publicos jogando o entrudo, nem das casas lançar cousa alguma sobre os viandantes, sob pena de incorrer cada um dos infractores na multa de cinco mil réis, ou dous dias de prizão4. Os escravos que fossem encontrados na rua a partir das 21 horas até o amanhecer, se não estivessem com as autorizações escritas de seus senhores, com a declaração do nome do escravo, seriam presos. Em 1872, no Código de Posturas Municipais de Silves, ocorre o mesmo5. No mesmo ano, no Código de Posturas Municipais de Manaus, no Art. 82, ficou determinado que:

Art. 82 - E’ prohibido andar-se pelas ruas e logares publicos á jogar entrudo ou lançar alguma cousa sobre os transeuntes.

Pena de dez mil réis de multa ou tres dias de prisão.

§ 1. - Permitte-se as mascaradas e danças carnavalescas, de modo que não se offenda a moral tranquilidade publica e não contenhão allusão as autoridades ou a religião.

§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo os que tiverem para isso licença da autoridade policial. Os infratores incorrerão na multa de cinco mil réis ou dous dias de prisão6.

No Código de Posturas de 1875 o texto permanece quase que inalterado, com exceção de algumas mudanças:

Art. 91 – E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.

§ 1. - Permitte-se as mascaradas, dansas carnavalescas de modo que não offendam a moral, a tranquillidade publica e não contenham aluzões á religião, ás autoridades ou a pessoas gradas, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de prisão.

§ 2. - Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em cinco mil réis ou vinte e quatro horas de prisão7.

Interessante notar as proibições sobre a religião, as autoridades e as pessoas da elite. Nas pequenas vilas da Província, onde a vida social estava centrada nas modestas paróquias, no acanhado comércio e por onde corriam facilmente os boatos, era difícil que algo passasse despercebido por seus habitantes. A época do entrudo era a oportunidade para se fazer zombarias com escândalos envolvendo religiosos, autoridades políticas e militares, e membros da alta sociedade. Ferreira Penna & Companhia tinha um grande e variado sortimento de máscaras em sua loja, das mais requintadas até as “nunca esquecidas caricatas8.


Locais “apropriados” foram construídos para a realização do carnaval. Em 1872 Demetrio Antonio Peixoto apresentava a sua ‘Nova Sociedade Carnaval Amazonense’, instalada em seu hotel de nome Amazonas, na rua do Imperador, onde passaria a receber as famílias da sociedade “[…] em lugares decentemente decorados e independentes n’ uma extensa galeria no primeiro grande salão collocada, aonde os Srs. Elegantes phantasiados formaráõ o primeiro divertimento”. Em um segundo salão os participantes poderiam encontrar um toilete e, em outras câmaras iluminadas, “[…] reffrescos, fiambres, salames, chá, chocolate, café, cerveja, tortas, queijos de diversas qualidades, tudo pelos preços estabelecidos, e equidade9. A tabela de preços para os participantes estava dividida da seguinte forma:

Senhoras – Grátis
Cavalheiros – 2$000
Phantasiados (par) – 3$000
Ditos (singularmente) - 2$00010

Essas proibições já vinham ocorrendo há tempos em outras províncias, tendo iniciado no Rio de Janeiro. O caráter privado e elitista ganhou cada vez mais espaço. Os jogos ficaram restritos ao ambiente familiar, impondo dessa forma a separação entre os grupos que antes festejavam entre si. Os que tivessem maior poder aquisitivo podiam recorrer às lojas especializadas na venda de artigos para a festa. O senhor Santos, no canto da rua Brasileira, oferecia roupas à fantasia, tendo “23 costumes, tanto para homens como para senhoras […] feitas na França, algumas novas, outras com pouco uso11. Theresa Pereira Tavares, a Teté, em sua loja na rua da Instalação, tinha por volta de 1879 um rico e variado sortimento de máscaras, “fantasias de pierrôs, vivandeiras e chicard de cetim bordado12. Em um anúncio de 1881, a Loja Brinquinho, na então rua da Matriz, anunciava a “Alta novidade para o carnaval”, pois acabara de receber “um grande sortimento de bisnagas com os mais finos extractos e pós de arroz, próprias para jogar o entrudo em casas de familia13.


As festas, agora, tinham início e fim para acabar, como ficou estabelecido nas alterações de 1879 no Código de Posturas de Manaus, indo “desde a Dominga de Quinquagesima até as 11 horas da noite de terça-feira, véspera de quarta-feira de Cinza14. Em 1884, prestes a começar o Carnaval daquele ano, a Secretaria de Polícia, por ordem do chefe de polícia, publicou as disposições do Código de Posturas Municipais sobre os festejos. Em parte ele ainda lembrava os de 1872 e 1875, mas tinha acrescidas novas proibições e punições:

Art. 81. Todo aquelle que insultar com palavras ou acções á qualquer pessôa, será multado em 20$000 rs ou 5 dias de prisão. Art. 91. E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os, sob pena da multa de 10$000 ou 3 dias de prisão. 1° Permitte-se as mascaradas, danças carnavalescas, de modo que não offendam a moral, a tranquilidade publica e não contenham allusão á religião, ás autoridades ou á pessoas gradas sob pena da multa de 10$000 rs, ou 3 dias de prisão. 2° Pelas ruas, praças e estradas da cidade não se andará com mascaras na cara depois das ‘Ave Marias’, salvo tendo para isso licença por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em 5$000 rs ou 24 horas de prisão15.

Nos bailes, os que perturbassem a ordem ou não se portassem como pedia a ocasião seriam retirados do recinto, como ficou instituído em um antigo regulamento dos tempos da Comarca do Alto Amazonas, de N° 120 de 31 de Janeiro de 1842. A prática do entrudo continuaria nas décadas seguintes, assim como as investidas para a sua proibição e minimização, de forma a tornar o Carnaval uma festa popular sadia, ou, pelo menos, passar essa imagem. No grande Carnaval de 1905, retratado em pinturas, desenhos e fotografias, por exemplo, um cidadão foi multado em 50$000 réis por estar praticando, com um grupo de foliões, o entrudo em cima de um caminhão na Avenida Eduardo Ribeiro; e outro por “consentir que de sua casa se entrudasse os transeuntes com água suja16.

No Amazonas e no restante do Brasil, o Carnaval realizado desde o início do século XX guardou inúmeras práticas do antigo entrudo ibérico colonial, prevalecendo a tomada das ruas por foliões que realizam toda a ordem de brincadeiras, zombarias, sátiras e danças. Os Códigos de Posturas já não são mais uma ameaça aos brincantes, mas, assim como o entrudo foi mal visto no passado por parte dos dirigentes e das elites, o Carnaval é alvo da reprovação por parte de alguns paladinos da ‘moral e dos bons costumes’.


NOTAS:

1 A Voz do Amazonas, 03 de Fevereiro de 1867.
2 Lei N° 101 – de 8 de Julho de 1859. Regulamento N° 10 de 7 de Maio de 1859, para o Collegio de Nossa Senhora dos Remédios. Estrella do Amazonas, 7 de Setembro de 1859.
3 Amazonas, 07 de Março de 1867.
4 Amazonas, s.d., 1870.
5 Amazonas, 18 de Maio de 1872.
6 Amazonas, 03 de Julho de 1872.
7 Amazonas, 30 de julho de 1875.
8 Amazonas, 19 de Janeiro de 1879.
9 Amazonas, 17 de Janeiro de 1872.
10 Amazonas, 24 de Janeiro de 1872
11 Amazonas, 01 de Janeiro de 1879.
12 Amazonas, 31 de Janeiro de 1879.
13 Amazonas, 18 de Fevereiro de 1881.
14 Amazonas, 8 de Junho de 1879.
15 Amazonas, 01 de Janeiro de 1884.
16 Jornal do Comércio, 28 de Fevereiro de 1905.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

O destino dos antigos bondes elétricos de Manaus


Uma das principais dúvidas dos leitores das páginas sobre a história da cidade é o destino de seus antigos bondes elétricos, que pararam de circular em 1957, e dos quais se tem como lembranças os trilhos em algumas áreas do Centro, os inúmeros registros em cartões-postais e os relatos dos que chegaram a utilizar esse meio de transporte. O pesquisador Ed Lincon, para ajudar a sanar essa questão, recuperou duas matérias, uma de 1960 do falecido jornalista Irizaldo Godot intitulada Cemitério de Bondes!, e uma de 1995 da jornalista Etelvina Garcia com o título Por que os bondes desapareceram? Nos dois textos, de décadas diferentes, temos um panorama do funcionamento desse meio de transporte, das tentativas de sua recuperação e o seu destino nada animador.


Cemitério de Bondes
Coletivos Elétricos Abandonados na Garagem como Ferro velho – Recuperação de Fachada – História de Uma das Mais Fantásticas Burlas Infligidas ao Povo.


Está definitivamente afastada a hipótese de Manaus voltar a possuir bondes no seu sistema de transporte coletivo. Os elétricos que tanto bons serviços prestaram a população, hoje não passam de um montão de ferro velho sem nenhuma utilidade, servindo apenas para comprovar a criminosa atuação de administradores sem escrúpulos e sem responsabilidade, que deixaram destruir um patrimônio considerado do mais alto valor.

A história relacionado com os transportes elétricos nestes últimos anos, principalmente depois de um trabalho de recuperação que se pretendeu fazer, com alardes e foguetórios, e até com um governador transformado em motorneiro, nos mostra fatos que denunciam criminosa irresponsabilidade. Isso, principalmente, pelo caráter político emprestado à coisa que se tinha como certo o seu efeito nas massas, tinha por igual, a certeza de gastos desnecessários numa das mais fantásticas burlas ao povo deste Estado.

Iremos aos poucos até atingir esse ponto culminante da história dos bondes.


Instalação dos primeiros bondes

Os primeiros bondes que circularam em Manaus foram adquiridos no governo de Eduardo Ribeiro, o “Pensador” e a sua instalação deu-se no governo de Fileto Pires. O primeiro fato histórico relacionado com o sistema de transportes recém-introduzido na capital do Estado, foi o de terem os bondes formado o cortejo fúnebre que conduziu Eduardo Ribeiro à sua última morada, justamente aquele governante que adquirira a frota popular. E a sua exploração coube a firma Travassos & Maranhão, que antecedeu a empresa inglesa The Manáos Tramways And Light Co. Ltda.

O serviço de bondes era feito por 45 veículos, considerados da mais alta qualidade e qualificados como os melhores do Brasil.

Mas, os anos foram passando, o material desgastando e o serviço tornando-se ineficaz até que poucos ou quase nenhum bonde era empregado no transporte coletivo.


Recuperação ou Golpe Político

Em 1955, quando era administrador dos Serviços Elétricos do Estado o engenheiro Carlos Eugênio Chauvin, foi determinado pelo governador da época, que se procedesse a recuperação dos bondes parados e amontoados na sub-usina da Cachoeirinha*.

Não se tratava de uma recuperação verdadeira, mas, apenas, de uma manobra de caráter político que serviria tão somente para projetar o Executivo como órgão realmente interessado em trabalhar pela solução dos problemas que afligiam a população, e dentre os quais figurava em plano de destaque o dos transportes coletivos.

Verdade é que essa recuperação, que se fosse concretizada em toda a sua plenitude, não seria mais que o cumprimento de uma obrigação do Governo, não passou de uma simples pintura. Na parte ligada ao maquinário, pequenos reparos foram feitos pelos próprios empregados das oficinas dos Serviços Elétricos do Estado, apenas com a supervisão técnica do engenheiro Carlos Eugênio Chauvin. E cada bonde, supostamente recuperado custou aos cofres públicos importância superior a 50 mil Cruzeiros.

Cada bonde que saía das oficinas ensejava uma nova festa. O próprio Governador, entusiasmado com os efeitos políticos desse trabalho abandonou o seu gabinete para, de quepe na cabeça, dirigir pelas ruas da cidade o bonde n° 40 (a dezena é pura coincidência).

Acontece que apenas quatro ou cinco bondes foram recuperados. Quando se anunciava a saída de um carro, outro era recolhido já imprestável. Os poucos bondes que trafegavam com a nova pintura, não prestaram serviço por mais de 3 meses, quando voltaram, definitivamente para o ferro velho de onde haviam saído. O mérito dessa recuperação foi permitir que a Companhia mantivesse em serviço ativo, motoristas e cobradores, transferindo a responsabilidade sobre os mesmos para a Companhia de Eletricidade de Manaus e obrigando que essa Companhia de economia mista se veja, atualmente em dificuldade para indenizar funcionários para os quais não há serviço e cuja indenização é da ordem de 13 milhões de Cruzeiros ou mais.


Da Pena a Situação

Da pena verificar a situação em que se encontram atualmente, recolhidos na sub-usina da Cachoeirinha, os bondes que tantos e tão bons serviços prestaram a coletividade. Nada mais resta dos mesmos. Suas máquinas, Trolleys, fios, material em cobre e metal, tudo foi vendido ou desviado. Atente-se para o fato de que referido material foi adquirido na Inglaterra, sendo mesmo considerado produto que hoje não mais se fabrica.

Houve mesmo uma firma local que arrematou quase tudo como se o importante acervo da Companhia de Eletricidade de Manaus estivesse sendo leiloado.

Enfim, desapareceram os bondes da circulação. Se a Companhia de Eletricidade de Manaus desejar explorar o transporte coletivo, como prevê, aliás, o seu Estatuto, terá que recorrer para ônibus elétricos. E isso se não conseguirem tirar antes, os fios de alta-tensão que servirão para acionar aqueles veículos.

* No local funciona o prédio da Eletrobras Distribuição Amazonas, no final da Avenida Sete de Setembro.

Irizaldo Godot

A Crítica, 11 de abril de 1960.





Por que os bondes desapareceram?
Etelvina Norma Garcia*


Lembro de uma reportagem de página inteira que o nosso colega Irizaldo Godot (falecido), meu chefe de redação nos jornais da empresa Archer Pinto, publicou, no começo dos anos 50 (começo dos anos 60, observação nossa), na edição do “Diário da Tarde”. Título: Cemitério dos Bondes. Ele fez uma denúncia grave e séria da criminosa situação dos bondes, abandonados a céu aberto na chamada sub-usina da Cachoeirinha, lá no fim da Sete de Setembro.

Infelizmente, porém, Manaus não é uma caixa de ressonância eficiente para esse tipo de denúncia, que acaba tendo o efeito contrário. Ou seja, desperta a atenção dos vândalos, dos desonestos… E os bondes se acabaram, foram desmontados peça a peça, e transportados em pedacinhos para os fornos privilegiados das metalúrgicas…

Com eles acabou-se um pedaço delicioso da história social de Manaus. Chegamos a ter uma frota de cerca de 60 bondes, com 46 ou 47 em plena circulação, limpos, ágeis, elegantes, correndo nos trilhos com pontualidade britânica… Saíam da Praça do Comércio, depois chamada Oswaldo Cruz, onde ficava o prédio da Manáos Tramways, com seu relógio sorridente, que abria um olho e fechava o outro, tinha cheiro de pipoca e gosto de sorvete Mimosa…

Alguns bondes tinham uma só lança, eram pequenos, faziam as linhas mais curtas – Saudade, Nazaré-Remédios, Fábrica de Cerveja. Outros, os grandes, tinham duas lanças e faziam os percursos mais longos, os chamados “circulares”.

O Governador Plínio Coelho tentou botar os bondes nos trilhos outra vez, mas o sistema gerador de energia elétrica estava falido. Deles, agora, de concreto mesmo, só alguns pedaços de trilho que teimam em empurrar o asfalto e voltar a aparecer…

*Etelvina Norma Garcia é jornalista

A Crítica, 19 de março de 1995




terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O espanhol que veio para a América

Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.

A América, o novi orbis (novo mundo) de Pedro Mártir de Anglería, era um lugar de oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista, agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos que procuravam a estabilidade e a ascensão social.

No continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia” (HOLANDA, 1996, p. 40).

O conquistador que vem para a América traz consigo o mito da superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da conquista é assentada, em certas proporções, em elementos feudais, na Igreja Católica e nas guerras de reconquista. Na encomienda – sistema mais difundido – os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se transformam em unidades autônomas. Nobres ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a seu modo e sem medo de intervenções do poder central.

A presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em especial, assombraram os índio da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas: vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p. 50). Elementos do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior, padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:

Desde un punto de vista icnográfico el Miles Christi, o también llamado Matamoros, que había acompañado a los españoles en la reconquista de la Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de España se convierte de Matamoros en Mataindios (CAPPONI, 2006, p. 253)

A chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios. Tzvetan Todorv, em a Conquista da América: a questão do outro, recupera o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre franciscano Martín Jesus de la Coruão:

Essa gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo, fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu (TODOROV, 1983, p. 54).

O espanhol, a contrário do que afirma Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador, não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As cidades da América Espanhola são articuladas, pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas cidades históricas do México, da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias instituições, com destaque para as universidades.

Foi citado no início a existência de elementos que lembram o sistema feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço sobre a América. Para vários autores a encomienda não é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano. O encomendero é uma espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero Romano, os encomenderos receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras, obtidas a título de ‘merced’ (concessão de terras, estímulo para o assentamento colonial). Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.

Na ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço, acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o historiador italiano Ruggiero Romano faz a família indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de construir o núcleo de um mundo futuro.

O Estado por eles formado é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa Espanhola; e Juan Ginés Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos, os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI, Anna Sulai. El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritual. Imaginário - USP, 2006, vol. 12, no 13, 249-277.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.estherlederberg.com