quarta-feira, 6 de junho de 2018

Breve História do Conjunto Isaias Vieiralves, em Manaus

Vista parcial do bairro Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul de Manaus. Foto de 2011.

O Conjunto Isaias Vieiralves, ou apenas Vieiralves, está localizado no bairro Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul de Manaus. Dadas suas dimensões, características e instituições que abriga, é muitas vezes confundido com um bairro, sendo mesmo chamado de bairro Vieiralves. O bairro Nossa Senhora das Graças, deve-se destacar, é formado, conforme ficou estabelecido pelo Decreto N° 2924, de 07 de agosto de 1995, que instituiu a divisão geográfica da cidade de Manaus, por cinco conjuntos habitacionais: Conjunto Manauense, Conjunto Vila Amazonas, Conjunto Ica Maceió, Conjunto Haideia III e Conjunto Vieiralves¹.

Esse conjunto, assim como o bairro Nossa Senhora das Graças, destoa do restante da cidade, tanto pela estética quanto pela estrutura. Casas, mansões e condomínios de alto padrão, construídas com materiais de ótima qualidade, avenidas largas e, aparentemente, melhor cuidadas que outras, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais de renome. É quase um mundo paralelo. "Esse conjunto sempre foi assim desde suas origens?" Me questionou um jovem que está fazendo uma monografia relacionada a essa região da capital. Aproveito a documentação que levantei para ajudá-lo para produzir o presente texto.

A construção desse conjunto está inserida no processo de crescimento dos bairros "planejados" e de projetos habitacionais verificados com maior força desde a segunda metade da década de 1960 até a década de 1970. No entanto, diferente dos que iam sendo construídos no restante da cidade, voltados para uma população de baixa renda, oriundas da antiga Cidade Flutuante ou de ondas migratórias vindas do interior e de outros Estados brasileiros, dada a expansão da Zona Franca, o Conjunto Isaias Vieiralves foi planejado desde o início para ser um conjunto de alto padrão. De acordo com a arquiteta, urbanista e historiadora Vládia Pinheiro Cantanhede Heimbecker, 

"A implantação do Sistema Financeiro de Habitação, em 1964, estimulou o setor produtivo da construção, e em Manaus, ainda nesta mesma década, identificou-se a implantação significativa de conjuntos não mais para os pobres urbanos, mas para uma classe média e para ricos" (HEIMBECKER, 2014, p. 28).

A construção ficou a cargo da firma Incorporadora Irmãos Valle Ltda, de Goiânia, especializada na construção de apartamentos de luxo, que teve financiamento do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1964. O projeto, do arquiteto Rubens Madela, foi aprovado em 23/11/1970. Em 22/08/1971 uma edição especial do Jornal do Comércio anunciava: "Incorporadora Irmãos Valle e EMBRATEC constroem o Conjunto ISAIAS VIEIRALVES². A EMBRATEC era a Empresa Técnica de Construções, responsável pela contratação de funcionários para as obras. Ainda de acordo com esse documento, a primeira etapa do conjunto contaria com 120 residências, todas com 3 quartos, com 111m² de área construída, sendo as primeiras 20 unidades entregues em 30/10/1970 e as outras 100 em 31/12/1970.

No local da construção, entre o bairro de Adrianópolis e a Avenida João Coelho (Constantino Nery), a Incorporadora Irmãos Valle implantou uma indústria de apoio que produzia tijolos, tanques e esquadrias, de forma a entregar as obras nos prazos previstos. A incorporadora tinha como diretores em Manaus os engenheiros Nilton Cordeiro do Valle e Marcos Borela.

Através de um anúncio de 1972 da ICAL, Imobiliária Cavalcanti Limitada, podemos ter uma ideia de como era a estrutura das casas desse conjunto: "Casa no melhor conjunto de Manaus - pronta entrega, três quartos, dois banheiros, garagem, quarto de empregada, área de serviço, sala ampla, sala de jantar, copa-cozinha. Conjunto Isaias Vieiralves"³.

Trabalho de terraplanagem no Conjunto Residencial Isaias Vieiralves. Foto de 1974.

O nome do conjunto é uma homenagem a Isaias Vieiralves (1884-1958), cearense de Sobral que veio para o Amazonas em 1914, estabelecendo-se como guarda livros no rio Juruá, contador e fundador da Vieiralves Imobiliária S. A. em Manaus.

Percebe-se que, desde suas origens, o Conjunto Isaias Vieiralves estava destinado a um público de alto poder aquisitivo, uma classe média em ascensão e pessoas da elite manauara que já não tinham mais a área central da cidade como local preferencial de moradia. Essa área da cidade destaca-se como uma das melhores para se viver, bem como uma das mais caras, ao lado dos bairros de Adrianópolis e Ponta Negra. A Incorporadora Irmãos Valle também foi responsável pela construção do Conjunto Abílio Nery, no bairro Aleixo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HEIMBECKER, Vládia Pinheiro Cantanhede. Habitar na cidade: Provisão estatal da moradia em Manaus, de 1943 a 1975. Manaus, UFAM, 2014. Dissertação (Mestrado em História).

NOTAS:

¹ Decreto N° 2924, de 07 de agosto de 1995, p. 5. Cita-se, além desses conjuntos, um de nome Conjunto Parque Amazonense. Não foi constatada a existência de algum conjunto habitacional com esse nome, podendo ser uma confusão com o terreno do antigo Parque Amazonense.

² Jornal do Comércio, 22/08/1971.

³ Jornal do Comércio, 05/11/1972.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Madison/commons.wikimedia.org
Instituto Durango Duarte

domingo, 3 de junho de 2018

Sociologia da Arte, de Gilberto Freyre (1964)

Grupo escultórico da tumba de Santo Inácio de Loyola, em Roma.

O texto a seguir foi originalmente publicado na revista O Cruzeiro em 1964 pelo sociólogo e ensaísta Gilberto Freyre (1900-1987). Nele o autor analisa as representações da arte sacra na África e no Oriente, as formas como as figuras (Santos, Cristos, Nossas Senhoras) são produzidas nessas duas regiões, influenciadas pela cultura local que lhes confere novas formas e significados.


SOCIOLOGIA DA ARTE

Interessante será o estudo do nôvo tratamento artístico que a rêde, levada pelo português do Brasil para a África, recebeu de mãos africanas, como interessante é observar-se como certas formas cristãs de arte, ligadas aos símbolos máximos do Catolicismo, receberam, ou vêm recebendo, no Oriente e na África, um tratamento artístico através do qual se nota a tendência para essas formas se harmonizarem com artes tradicionalmente ligadas à vida, à cultura, à ecologia orientais e africanas. Viajando pelo Oriente e pela África, minha atenção fixou-se em vários desses casos de transculturação.

No Convento de São Francisco de Assis, de Goa, quando lá estive em 1959, mostrou-me o Cônego Costa, no museu lapidário, um conjunto de esculturas cuja base é uma figura nua de feitio oriental, sôbre a qual se apóia a Família Sagrada vestida. Vi um altar indonésio no qual só o símbolo da cruz é, como arte simbólica, adventício: tudo o mais é arte oriental antiga, adaptada a uma nova função. O mesmo é certo de alguns dos paramentos de culto católico, bordados a ouro, que vi na basílica da chamada Velha Goa, com arabescos orientais decorando símbolos católicos.

O que, entretanto, me impressionou particularmente foi o gôsto, da parte de artistas africanos e orientais, em tratarem o Cristo crucificado como um Deus ostensivamente nu ou de tanga, identificado mais com êles, homens, em sua maioria, nus ou de tanga do que com os europeus ou ocidentais, tantas vêzes opressores de nativos ou de gente de côr. O que se nota também num Cristo do Amazonas, admiràvelmente ecológico, que figurou na exposição de Arte Sacra de Lisboa, em 1951.

O mesmo se nota numa Nossa Senhora esculpida em Timor, que vi na mesma exposição: nua da cintura para cima, com o Menino Jesus nu nos braços. Vêem-se no Oriente numerosos santos católicos, de marfim, esculpidos por artistas orientais, em trajos orientais; e até Nossas Senhoras, como a indo-portuguêsa do século XVII, pertencente ao Conde de Nova Goa, surgem-nos em trajos orientais e com o aspecto de mulheres do Oriente.

Diante dessa tendência, saudàvelmente Cristã, da parte de artistas orientais e africanos para com imagens ou símbolos de um sagrado que do plano etnocêntrico, deve ser elevado o mais possível ao cristocêntrico, é de estranhar que no Brasil, país de população em grande parte, se não mestiça, morena, artistas como certos discípulos de Mestre Cândido Portinari insistam em só pintar Cristos, Nossas Senhoras e anjos louros, ruivos, alvos, nórdicos, caucásicos. Temos, é certo, os nossos louros - tantos dêles brasileiríssimos. Êles têm direito a aparecer na nossa arte, as louras a vencer concursos de beleza, os louros a figurar entre os brasileiros mais elegantes. Nada, porém, de, na arte sacra, desprezarmos os morenos, os pardos, os prêtos, para nos fecharmos numa representação exclusivamente arianista do sagrado, como se o próprio Deus dos cristãos devesse ser sempre um Senhor alvo e louro e não um Deus ao mesmo tempo branco e prêto, alvo e moreno, louro e amarelo.

FREYRE, Gilberto. Sociologia da Arte. In: Revista O Cruzeiro, 31 de outubro de 1964, p. 95.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://goodjesuitbadjesuit.blogspot.com


sexta-feira, 1 de junho de 2018

As Grandes Províncias Indígenas da Amazônia entre os séculos XVI e XVII


Índio Cambeba com suas armas. Alexandre Rodrigues Ferreira, século XVIII.

São dos cronistas os primeiros registros escritos sobre a organização dos povos indígenas da Amazônia entre os século XVI e XVII. Nomes como os de frei Gaspar de Carvajal, Maurício de Heriarte, Cristóbal de Acuña e padre Samuel Fritz nos legaram informações valiosas sobre o estado dos indígenas da região antes do estabelecimento dos conquistadores europeus, isto é, antes de terem seu estilo de vida e organização alterados.


PROVÍNCIA DE APARIA

A Província de Aparia, também conhecida como Carari, estava localizada entre o baixo Rio Napo, afluente do rio Amazonas no território peruano, e os rios Javari e Iça, afluentes do rio Solimões, compreendendo uma extensão territorial de 600 quilômetros. A província era formada por 20 povoados, cada um dividido por grandes plantações de milho e mandioca, tendo como capital o povoado de Aparia Grande ou Aparia o Grande, na boca do rio Javari. O poder político estava nas mãos do chefe de Aparia Grande, que dominava desde a foz do rio Jandiatuba até a aldeia de Aparia Menor ou Aparia o Menor, no baixo Napo. Aparia era habitada por índios Aricanas, Arimocoas e, a partir do século XVII, Omáguas. Os habitantes de Apararia vestiam-se com tecidos de algodão pintados, as mulheres utilizando botas e roupas de meias mangas feitas com algodão e cobertas com piche negro. Os Arimocoas, no entanto, andavam nus.

PROVÍNCIA DOS OMÁGUAS

A Província dos Omáguas é a transformação da Província de Aparia, ocupada pelos Omáguas desde o século XVII. Ela se estendia desde a parte baixa da boca do rio Napo, mais de 100 quilômetros acima da foz do rio Javari, até a boca do rio Mamoriá, entre os rios Jutai e Juruá, compreendendo 700 quilômetros. Pedro Teixeira, em 1639, contabilizou 400 aldeias, cujas casas eram protegidas com estacas de madeira. No entanto, no final do século XVII, padre Samuel Fritz contabilizou 38 aldeias, possivelmente uma consequência das epidemias que passaram a dizimar os Omáguas. Essas aldeias possuíam chefes locais, tendo a Província um chefe supremo, o Tururucari (Deus), que representava o poder central. Além de chamarem a atenção por possuírem a cabeça achatada, os Omáguas também se destacavam pela inclinação à guerra, conquistando outras províncias e possuindo vários escravos, frutos das conquistas.

PROVÍNCIA DE MACHIFARO

A Província de Machifaro, no século XVI, estava localizada na margem direita do rio Solimões, em um território que tinha início acima da boca do rio Tefé e se estendia até o rio Coari, totalizando 200 quilômetros. Era uma Província bastante povoada, com aldeias próximas umas das outras. No século XVII também ficou conhecida como Província de Curuzirari, Província de Carapuna e Província de Aisuari.


PROVÍNCIA DE AISUARI

A Província de Aisuari tinha a mesma localização da Província de Machifaro, com o adicional de ter se estendido 120 quilômetros a Oeste, ultrapassando a foz do rio Juruá; além de ser populosa da mesma forma. Os Curuzaris, habitantes dessa Província, mantinham relações comerciais com os índios Manaus. Os Manaus comercializavam ouro, urucum, raladores de mandioca, redes de miriti, cestarias e tacapes, enquanto os Curuzuraris comercializavam cerâmicas de alta qualidade.

PROVÍNCIA DE ONÍGUAYAL OU OMÁGUA

A Província de Oníguayal estava localizada abaixo da de Machifaro, que se estendia acima da barra do rio Coari até as proximidades da foz do rio Purus, com cerca de 250 quilômetros. Ocupavam também a margem esquerda da região de Codajás. A maior aldeia de Oníguyal estava localizada na ilha de Codajás, e era conhecida como Aldeia da Louça, por nela serem fabricadas cerâmicas policrômicas de grande qualidade. Para rituais e festividades, seus habitantes construíam grandes ídolos de fibras vegetais trançadas. Também eram bons navegantes, comercializando com outras tribos. No século XVII seria conhecida como Província de Yoriman, Solimões ou Yurimágua.

PROVÍNCIA DE YORIMAN, SOLIMÕES OU YURIMÁGUA

Com extensão semelhante à Província de Oníguayal, a Província de Yoriman estava localizada na margem direita do rio Amazonas (rio Solimões), com uma extensão territorial de 250 quilômetros. As comunidades eram bastante povoadas, com seus habitantes, os Solimões, vivendo em casas comunais, que abrigavam quatro ou cinco famílias. Seus habitantes comercializavam intertribalmente e com outros povos, negociando manufaturas e escravos. De acordo com o padre Cristóbal de Acuña, os Solimões eram bastante belicosos, fazendo frente às esquadras portuguesas que tentavam penetrar na região.


PROVÍNCIA DE PAGUANA

O território da Província de Paguana estava localizado acima da boca do rio Purus e se estendia 100 quilômetros acima do encontro das águas do rio Negro e do rio Solimões. Essa Província era dividida em dois grandes e populosos povoados: A Aldeia dos Bobos, com duas léguas de extensão e vários caminhos para o interior; e a Aldeia dos Viciosos.  No século XVII, a região de Paguana era habitada por diferentes tribos, das quais destacam-se os Caripunas e Zurinas, na margem direita do Encontro das Águas; e os Carabuyunas, na margem esquerda, estendendo-se pelos lagos de Manacapuru e pelo baixo Rio Negro. Com exceção dessas referências, as informações sobre Paguana são escassas.


PROVÍNCIA DO ENCONTRO DAS ÁGUAS E ILHA DE TUPINAMBARANA

Entre os rios Negro e Urubu, existiu um grande número de aldeias fortificadas com paliçadas de toras grossas e, em um povoado na margem esquerda entre esses dois rios, existia um altar para celebrações religiosa, onde eram ofertadas bebidas fermentadas para uma divindade solar. Passando a boca do rio Madeira, existiu a Província de Picotas, onde seus habitantes fincavam estacas com as cabeças dos que matavam nas guerras. No século XVII, da barra do Rio Negro até o rio Urubu, viviam os Tarumãs. A Ilha de Tupinambarana era habitada pelos Tupinambás que vieram da costa leste do Brasil.

PROVÍNCIA DOS TAPAJÓS

A Província dos Tapajós compreendia o trecho do rio Amazonas que vai da boca do rio Nhamundá até o baixo curso do rio Tapajós. De acordo com frei Gaspar de Carvajal, na região no século XVI, as duas margens do rio Amazonas eram ocupadas por aldeias, estando as maiores na margem direita. O padre Cristóbal de Acuña, no século XVII, constatou a existência de 2500 pessoas em apenas uma aldeia, o que nos permite ter uma noção da grandiosidade da Província como um todo. Os Tapajós eram bastante conhecidos e temidos pelas tribos vizinhas, pois utilizavam flechas envenenadas nas guerras. De acordo com Maurício de Heriarte, na região em 1662, os Tapajós estavam organizados em povoados que possuíam entre 20 e 30 casas. Cada povoado era governado por um 'principal', e a Província como um todo pelo 'Principal grande'. Foi nessa Província que aconteceu o combate entre os soldados Francisco de Orellana e as Amazonas, registrado por Gaspar de Carvajal.

PROVÍNCIA DOS NEGROS

A Província dos Negros se estendia da região de Monte Alegre até o rio Xingu. Os homens dessa região, de acordo com Carvajal, eram altos, tosquiados e tinha a pele pintada de negro. O chefe dessas terras se chamava Arripuna. Até os limites na foz do Amazonas, foram registradas várias povoações indígenas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° Ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.



CRÉDITO DA IMAGEM:

Alexandre Rodrigues Ferreira. Viagem Filosófica. In: SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° Ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

domingo, 20 de maio de 2018

Entrevista: Prof. Me. Tiago José Cavalcanti Atroch



Tiago José Cavalcanti Atroch nasceu em Recife, Pernambuco, em 1982, tendo vindo para Manaus em 1999, onde graduou-se em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 2009) e titulou-se Mestre em História Cultural pela mesma instituição (2012). Teve passagens por várias escolas públicas, estaduais e municipais, atualmente ocupando os cargos de professor substituto na graduação em História na Universidade Federal do Amazonas e de professor de História na Escola Municipal Aristóteles Comte de Alencar.

- Professor, conte-nos um pouco da sua infância em sua terra natal, da sua família e do processo de mudança para Manaus.

- Eu já nasci dentro de uma universidade. Meu avô trabalhava na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Então há mais ou menos 60 anos minha família se mudou para o campus de Zootecnia para ficar próxima dele, que cuidava de galinhas, coelhos, porcos e outros animais de criação e também fazia bico de pedreiro. Ele colecionou livros sobre ciência, dos quais consegui salvar três das sombras do esquecimento e os conservo comigo. Atribuo quem eu sou academicamente à posse desses livros.

- E sua infância e adolescência?

- Foram boas, mas passei boa parte delas viajando por muitas cidades. Já vim para Manaus quase adulto, aos 17 anos. Vim de Minas Gerais para cá.

- Algum motivo especial para a realização de tantas viagens?

- Talvez o fato de meu pai ser engenheiro agrônomo e ter se especializado no cultivo do arroz, o que fez eu e minha mãe acompanhá-lo para morar no então Projeto Jari (Jari Florestal e Agropecuária). Depois fomos para Minas Gerais por conta do Mestrado de meus pais. Antes disso, o Projeto Jari faliu e meu pai passou no concurso da Embrapa, em Macapá. Viemos para Manaus porque nesse meio tempo meu pai mudou do cultivo de arroz para o de guaraná.

- Ao chegar em Manaus, o senhor teve algum impacto geográfico ou cultural?

- Acho que sair de uma média de 8 graus para 38. De resto, a Amazônia já era uma velha conhecida.

- Parece uma pergunta clichê, mas desde quando o senhor nutre interesse pela História? E como ele surgiu?

- Comecei com História Natural. Só depois me interessei pela história dos homens. Bem depois, no fim da adolescência.

- O vestibular, para a maioria dos jovens, é a fase decisiva da vida. Quando o senhor teve que escolher um curso a seguir, a história já estava em primeiro plano ou existiam outras áreas de interesse?

- Eu pensei primeiro em Filosofia, mas disseram que eu não ia arranjar emprego. Depois pensei na Psicologia, mas ficou 'cult', e na época eu não queria ser 'cult' (risos). Depois eu pensei na História. É que nesse tempo eu não curtia transformar paixão em trabalho, então história não poderia ser a minha primeira opção.

- O ambiente familiar, de alguma forma, influenciou na escolha pela graduação em História?

- Bom, não sei se pela escolha da História, mas me influenciou muito no amor que sinto pela ciência, apesar de existirem muitas historiadoras em minha família. Mas minha decisão foi independente pois eu nem sabia que minhas primas eram historiadoras (risos).

- Como foram suas passagens como professor de História no ensino público?

- Primeiro foi difícil. Depois eu consegui construir minhas estratégias para dar aula aos desinteressados, e hoje sinto que o que faço faz diferença positiva na sociedade. 

- Quais as principais semelhanças e diferenças, em sua opinião, entre os ambientes acadêmico e escolar básico?

- No ambiente acadêmico a pessoa está lá porque quer. No escolar, geralmente, porque os pais obrigaram. Isso faz toda a diferença.

- Infelizmente as escolas públicas, estaduais e municipais, ainda são vistas por boa parte das pessoas como depósitos de pequenos humanos.

- Isso, quase mini presídios. Nisso Foucault tem toda a razão: Os ensinamos a ficar atrás das grades desde pequenos. 

- Na Universidade o senhor já foi professor substituto de várias disciplinas, mas é mais conhecido pelas de História Medieval I e II, das quais tive a oportunidade de ser monitor. Quando e como o senhor decidiu se dedicar a essa área?

- Foi com o Mestrado, quando comecei a estudar o Giordano Bruno e não conseguia entender o que ele estava dizendo ou criticando sem uma base muito boa de História Medieval. Eu sempre gostei de História Medieval, mas até então ainda não conhecia o Professor Sínval. Só no Mestrado o conheci, aí ele me ajudou a construir uma base, Antiguidade-Medieval-Moderna.

- Aproveitando que o senhor citou o professor Sínval, boa parte do corpo docente atual da graduação é o mesmo que formou a sua geração. Qual ou quais professores influenciaram ou continuam influenciando sua trajetória intelectual/profissional?

- (Risos) Acho que todos contribuíram, por exemplo o professor Auxiliomar sempre deve ser citado, mas os fundamentais para mim foram o Sínval, o Morga, o Almir e a Maria Eugênia. A professora Márcia também ajudou muito, mas estes três aí me ajudaram a procurar um campo de estudo. Também devo citar o professor Aloysio Nogueira, pois sem ele eu nem entenderia o que é dialética.

- Pelos nomes que o senhor citou, com exceção de alguns, dá para perceber o peso da História Cultural em sua formação, na qual o senhor foi titulado Mestre em 2012.

- É, eu acho que desde o início do curso eu me atraí pela História Cultural, pela Antropologia.

- Acredito que nós, voltados para a História Cultural, temos uma relação mais profunda com a Antropologia do que outras áreas da História. Quais autores foram influentes em seus estudos?

- Sim. Muitos, mas destaco o Gilbert Durand, autor de 'As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral', e também Mircea Eliade, com 'O Sagrado e o Profano', que já vai na vertente da Filosofia das Religiões.

- Sua dissertação de Mestrado versa sobre uma obra de Giordano Bruno (1548-1600). Como ocorreu o contato com os escritos do frade dominicano italiano?

- Devo confessar que foi obra do acaso. Eu comprei o livro e achei interessante a ponto de tentar desvendá-lo. O professor Sínval me incentivou, pois no Brasil o 'Tratado da Magia' era quase desconhecido.

- Então pode-se dizer que seu trabalho é uma das contribuições recentes para a compreensão do pensamento desse autor italiano no Brasil?

- Sim, ao menos no que diz respeito ao 'Tratado da Magia' em nosso país. Eu apenas tentei organizar o conhecimento que encontrei para auxiliar o iniciante. Nosso país tem estudiosos sobre Giordano Bruno. Patrícia Lessa, professora da Unicamp, escreveu sobre ele, e também Luiz Carlos Bombassaro, professor da UFRGS. Minha intenção era colocar a magia em foco durante o surgimento da ciência, utilizando o livro de Giordano, e assim captar alguns ecos de permanência medieval na Europa do final do Renascimento.

- Permanências me fazem lembrar a História de Longa Duração, a estrutura temporal inaugurada por Fernand Braudel e que se tornou uma tendência marcante nos estudos de História Medieval. Acredito que seja a melhor forma de se encontrar a continuidade de certos elementos na estrutura social ao longo do tempo.

- Eu também acho.

- Nas conversas que já tivemos, o senhor mostra ter uma grande preferência pela escrita de ensaios em relação aos textos monográficos acadêmicos. Isso se dá pela maior liberdade que o ensaio oferece ou por outros motivos?

- É porque quando passo artigo para os alunos acabo reprovando muitos pela ausência das regras da ABNT, e parece não adiantar advertir sobre isso (risos).

- Por falar em artigos, ano passado, em História Medieval II, tivemos algumas surpresas ao passar a produção de artigos como uma das notas da disciplina. No geral, o que o senhor achou do que foi produzido?

- Achei que li muita coisa com potencial para virar pesquisa.

- Os alunos que decidiram adiantar a disciplina, na minha opinião, apresentaram os artigos mais interessantes. Isso seria o reflexo de uma precocidade para a escrita ou uma guinada voltada mais para o caráter de pesquisa do curso?

- Talvez seja as duas coisas.

- O senhor percebe isso nas turmas pelas quais passou a partir de 2017?

- Não em todas. A sua turma e a de História Antiga, assim como a turma passada, eram muito boas, enquanto outras são menos interessadas.

Além de historiador, o senhor também é artista plástico. São duas áreas que possuem uma relação mais do que próxima, se vermos o historiador como um criador de narrativas, ou “tecelão dos tempos”, como diria Durval Muniz; e o artista plástico como alguém que dá forma à diferentes matérias. Os dois têm a capacidade de “dar vida”.

- Eu creio que sim. Acho que um acaba alimentando o outro, a Arte e a História.

- Professor, eu costumo dizer que se Eric Hobsbawm (1917-2012) ainda estivesse vivo ele já teria publicado a obra “O Ano dos Extremos”, dado os recentes acontecimentos na política nacional e internacional. Algumas pessoas acham que nós, historiadores, gostamos de ser os “sabe tudo”. No entanto, como partimos da relação presente-passado, não podemos deixar de analisar o contexto em que vivemos. Quais cenários o senhor vê sendo delineados em um futuro não muito distante?

- Olha, Fábio, se você leu os comentários do último texto que eu postei (risos), viu que o povo está em pé de guerra. Não sou otimista. O mundo está aplaudindo o massacre do povo palestino. Trump no poder nos Estados Unidos, Vladimir Putin na Rússia e Bolsonaro liderando as pesquisas no Brasil. Eu temo pela minha vida. Não quero acabar numa sala de tortura ou morto e jogado em uma vala comum. Mas, infelizmente, parece que é justamente isso que vai acontecer no futuro. Deus me livre! Eu não posso me calar, e não vou.

- Alguns autores sempre tentam nos lembrar do lado “doce” do ofício do historiador, mas sempre acabamos nos vendo diante da máxima do historiador iluminista britânico Edward Gibbon (1737-1794), autor de 'História do Declínio e Queda do Império Romano', de que a História é "pouco mais que o registro de crimes, loucuras e desventuras da humanidade".

- É por aí. Tento ter otimismo mas o mundo mostra que devo ter cautela. E muita!

- O senhor, diferente de outros professores, parece não ser o que poderíamos chamar de militante extremado. Esses extremos, em qualquer linha de pensamento ideológico, nunca terminam em coisas boas. O senhor crê em um atual colapso da esquerda no mundo Ocidental?

- Mais do que isso, Fábio. Eu vejo um colapso do Humanismo no mundo Ocidental. O que a direita chama de esquerda é o humanismo. Vejo as pessoas querer matar e ficando chateadas quando a lei não lhes permite fazer justiça com as próprias mãos. A esquerda enquanto tal entrou em colapso com a queda da URSS, mas a social democracia, um capitalismo mais humanizado, é o que vem sendo atacado sob o símbolo "esquerda".

- E sobre os recentes ataques à educação (devo dizer novos, pois ela sempre foi atacada), em especial às Ciências Humanas, o senhor também acredita em um futuro desolador?

- A curto prazo sim. Nós mostramos o que a sociedade não quer ver, mas a longo prazo, acho que essa volta à direita, à ditadura e esses ataques às Ciências Humanas vão acabar desacreditados, pois sempre levam à ruína do país e do mundo. O que me preocupa é por quanto tempo esse surto de loucura vai durar.

- Nessas últimas partes da entrevista, ficou fácil para os leitores identificarem sua vertente política/ideológica (risos). No que diz respeito ao conservadorismo, aos costumes e práticas de nossa sociedade, o senhor considera importante cultivar alguns dos elementos anteriormente citados?

- Claro que sim. Não sou um iconoclasta. Mas sempre na medida do bom senso. Perder as referências nunca foi bom para sociedade nenhuma. Mas, quanto à passagem do tempo, alguns valores devem ser adaptados, mas não acho que devemos desvalorizar as raízes da sociedade.

- Disciplina em sala de aula seria um desses elementos tradicionais que deveriam ser mantidos de forma atemporal (risos)?

- Com certeza. Autoridade é importante. Repare que eu falei autoridade, não autoritarismo (risos).

- Algum novo projeto de pesquisa ou planos para a carreira?

-
Estou escrevendo meu projeto de Doutorado. Vou voltar à fonte e ver se o meu plano é exequível (risos).

- Do que trata o seu projeto de Doutorado?

- Ainda estou analisando escrever sobre isso, mas trata-se do papel dos sonhos nos escritos herméticos da Renascença. Na realidade em dois escritos, no 'Tratado da Magia' e no extenso livro de Cornelius Agrippa (1486-1535).

- Então o senhor vai continuar seguindo a linha do imaginário e das representações?

- Sim. Creio que com mais probidade. Quero levar o debate com o Malleus Maleficarum a um nível maior. Eu ensaiei isso no Mestrado, mas timidamente.

- Como disse em outras perguntas, o senhor é o professor do Departamento com o qual mais tenho contato. Em nossas conversas mais recentes, discutimos as condições de trabalho dos professores substitutos. O que o senhor tem a dizer para os leitores sobre esse trabalho?

- Para mim é sempre uma honra lecionar na UFAM. Mas sabendo que o leitor possivelmente é historiador, digo para perseverar em nossa disciplina. Acho que, nesse momento pelo qual o nosso país passa, temos um papel central a desempenhar, no caso como mantenedores da História e da Memória.


Manaus, 08/05/18 - 18/05/18


As fases de ocupação humana da Amazônia

Urna funerária marajoara.

Diferente do que ocorre com a Pré-História da Europa, dividida em Paleolítico,  Mesolítico e Neolítico, a Pré-História da Amazônia é dividida em três fases diferentes das propostas por Thomsem, Lubbock e Mortillet: fase Paleoindígena, fase Arcaica e fase da Pré-História Tardia. Isso se dá pelo fato de a Pré-História da região amazônica ainda não ter sido plenamente estudada e possuir suas próprias especificidades.


FASE PALEOINDÍGENA

A ocupação humana da Amazônia, de acordo com os estudos mais recentes, data de 11.000 a 7.500 anos a. C. Seus primeiros habitantes não possuíam habitação fixa, isto é, eram nômades, e praticavam a coleta de frutos e moluscos, bem como a caça de animais de pequeno porte (diferente dos primeiros povos da América do Norte, que caçavam animais da megafauna - preguiças gigantes, cervos e bisões). Nas regiões do norte do Rio Orenoco, no escudo e na costa da Guiana e no rio Galera, no Mato Grosso, foram encontradas ferramentas de pedra como machados, pontas de lanças e raspadores. Apesar de pontas de lanças terem sido encontradas, a caça de grande porte na região era algo raro.


FASE ARCAICA

A fase arcaica compreende o período que vai de 7.500 a.C. a 1000 a.C., estando caracterizada pela existência de complexos pré-cerâmicos, evidenciando a transição dos grupos coletores para grupos mais complexos que praticavam a agricultura de subsistência. Os sambaquis, depósitos artificiais de conchas, são as principais fontes de informações desse tempo. No sambaqui de Taperinha, em Santarém, no Pará, foram encontrados instrumentos de pedra lascada (machados, moedores e quebradores de grãos), de ossos e alguns exemplares de cerâmica avermelhada com desenhos geométricos. O tamanho dos sambaquis indica o aumento demográfico e o surgimento de grupos humanos que passaram a se fixar em um único local.


FASE DA PRÉ-HISTÓRIA TARDIA

A fase da Pré-História Tardia vai de 1000 a.C. a 1000 d.C. Surgem, à margem dos principais rios da Amazônia, sociedades indígenas bastante complexas em aspectos demográficos, econômicos e políticos. Essas sociedades recebem o nome de cacicados complexos. Por volta do ano 1000 a.C. surgiram as culturas dos construtores de tesos, aterros artificiais inundáveis onde eram erguidas as aldeias. Essas foram sucedidas por sociedades mais desenvolvidas, divididas em hierarquias, apresentando uma cerâmica altamente refinada, cujos maiores exemplos são as encontradas na ilha do Marajó e na região de Santarém.

Vale lembrar que, entre os antropólogos, historiadores e arqueólogos dedicados ao estudo da Pré-História Amazônica, principalmente no que diz respeito ao processo de ocupação humana na região, não existe um consenso sobre esse divisão e suas especificidades, sendo esse um esquema, até o momento, provisório.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° Ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.


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www.hak.com.br


quinta-feira, 17 de maio de 2018

Diálogos com Historiadores Amazonenses

Thomas Carlyle (1795-1881). Pintura de 1879 de Mrs. Helen Allingham.

Para este ano, colocarei em prática um projeto antigo, há tempos esboçado, para aproximar os historiadores, acadêmicos e de outras instituições como institutos históricos e academias de ciências, dos leitores do blog, sejam eles especializados (graduandos, graduados) ou apenas amantes de boas leituras. 

Através da série de postagens intitulada Diálogos com Historiadores Amazonenses, entrevistas informais produzidas com uma linguagem acessível (nem muito acadêmica, nem muito simples), pretende-se apresentar as trajetórias intelectuais desses profissionais da região, aspectos de suas vidas privadas (não tratam-se, no entanto, de textos biográficos), seus projetos de pesquisa, suas reflexões, visões de mundo e as formas como exercem o ofício de historiador, para assim aproximar as pessoas desses homens e mulheres que se dedicam ao ensino e à pesquisa, e que muitas vezes passam despercebidos pelo grande público.

A primeira entrevista, que em breve será publicada, foi realizada com Tiago José Cavalcanti Atroch, professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e professor da rede pública municipal de ensino. Pretendo, se possível, para uma primeira leva de publicações, entrevistar os demais professores substitutos da instituição. Posteriormente, os professores doutores e, por último, os historiadores de institutos históricos, academias de ciências e também os independentes.

Os leitores, ao terem contato com essas entrevistas, poderão identificar continuidades, rupturas, antigas e novas tendências historiográficas, bem como debates e críticas sobre o que foi produzido nos últimos anos na região no campo da História.


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quinta-feira, 10 de maio de 2018

Analisando um periódico local


Jornal do Comércio, 01/01/1914.

Relatório de análise de documento (periódico) apresentado na disciplina Metodologia da Pesquisa Histórica, ministrada pela Professora Dra. Maria Luiza Ugarte Pinheiro, do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM):

O Jornal do Comércio é o jornal mais antigo ainda em circulação no Amazonas, fundado em Manaus em 02 de janeiro de 1904 pelo Major Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), português que veio para a capital do Amazonas em 1862, tendo ocupado os cargos de Delegado de Polícia, Deputado Estadual, Presidente do Congresso Amazonense, Deputado Federal, administrador do trapiche da Recebedoria do Estado e provedor da Santa Casa de Misericórdia.

O documento a ser analisado é uma edição de 01/01/1914 do referido jornal. Este possui oito páginas. A quantidade de laudas variou com o passar do tempo, tendo a primeira edição sido lançada com trinta e duas e, posteriormente, sendo publicadas diariamente edições de quatro e oito páginas. À época dessa publicação, o Jornal do Comércio tinha como proprietário o advogado Vicente Torres da Silva Reis, que o comprou da família de Rocha dos Santos em 1907. No canto superior direito da primeira página está estampada uma tabela de assinaturas, forma pela qual o jornal era comercializado. A assinatura anual, na capital, custava 50$000 réis, 60$000 para o interior do Estado e 70$000 para outros países. Semestralmente, a assinatura custava 25$000 réis na capital, 30$000 no interior do Estado e 35$000 para outros países. No canto superior esquerdo, o subtítulo: “No Estado do Amazonas o JORNAL DO COMMERCIO é a folha de maior circulação”.

Nota-se uma divisão logo na primeira página, estando o lado esquerdo destinado à publicação de anúncios, com o título ‘avisos úteis’ (vendas, aluguel de casas e produtos diversos); o centro para a publicação gravuras e fotografias, estas últimas mais comuns a partir de 1913; e o lado direito para a publicação de alguns artigos, de notas do colunismo social (aniversários, nascimento, visitas e óbitos), de notícias meteorológicas e dos principais eventos do dia. A partir de 1912-13, o artigo em destaque, na verdade uma série de publicações, era o Ouro Negro, publicado por Armindo R. da Fonseca, comerciante da praça de Manaus que acompanhava todos os desdobramentos do comércio internacional de borracha, instável naqueles últimos anos.

Na segunda página são publicados os informes sobre teatros, clubes e cinemas; a coluna ‘os buliçosos’, sobre furtos e roubos; as ‘Queixas do Povo’, reclamações dos mais variados tipos (críticas a serviços públicos, ao estado das ruas, das moradias etc) vindas de diferentes pontos da cidade; as ‘Várias’, publicações rápidas e resumidas; os ‘Ineditoriais’, parte do jornal vendida para a publicação de informações de terceiros; os ‘Actos funebres’, notas sobre velórios, enterros e missas de sétimo dia; e mais alguns anúncios de estabelecimentos comerciais. Na terceira página é publicada a coluna ‘Bastidores da política’, sobre os desfechos de administrações federais e estaduais, eleições, deposições e revoltas; e artigos diversos sobre acontecimentos internacionais e em outras partes do país, em sua maioria pitorescos. Essa página é dividida, sendo a parte de cima para as publicações anteriormente citadas e a debaixo para anúncios, poesias e contos. A quarta página é dedicada exclusivamente à publicação de anúncios de produtos e estabelecimentos comerciais, bem como para a continuação dos poemas e contos.

A página cinco tem a mesma divisão da primeira página, sendo diferentes apenas alguns elementos. Do lado esquerdo, anúncios de vendas, de aluguel de casas e de produtos variados. Do lado direito, mais alguns anúncios, só que agora trabalhados iconograficamente. No centro, as informações telegráficas ‘O que vae pelo mundo’, trazendo notícias sobre a capital federal e outros estados, e de países como Portugal, França e Reino Unido, e a entrada e saída de embarcações. Na parte de baixo, mais anúncios e a continuação de contos de edições passadas.

Na sexta página são publicadas informações detalhadas sobre o comércio, a indústria, as finanças e a navegação, a cotação de gêneros alimentícios, a cotação da bolsa, das taxas de câmbio de instituições financeiras como o London Bank, o Banco do Brasil e o Banco Amazonense, as pautas estabelecidas pela Alfândega, pela Associação Comercial e pelo Tesouro do Estado, os preços das estivas, a arrecadação da alfândega, a variação de preços da borracha, a relação de funcionários em serviço na Alfândega, o boletim da Associação Comercial, o movimento de embarcações no porto e a entrada e saída de passageiros. As páginas sete e oito são voltadas exclusivamente para a publicação de anúncios.

Para uma análise mais teórica desse periódico, destaca-se, em um primeiro momento, a divisão espacial das matérias. É fácil perceber o peso dos anúncios dos estabelecimentos comerciais da capital no jornal, estando estes dispostos do lado esquerdo e do lado direito das páginas, quando não utilizados em páginas inteiras, tornando-os bastante visíveis aos leitores. Isso revela o forte caráter comercial do periódico. No centro, em tamanho grande, uma fotografia, elemento visual que também auxilia a dar destaque ao periódico.

Quanto ao conteúdo jornalístico, o maior artigo é o do comerciante Armindo R. da Fonseca, ‘Ouro Negro’, no qual o autor trata da situação da borracha brasileira e do cenário desolador que o comércio desta estava enfrentando frente aos preços praticados por negociantes do Reino Unido. O desta edição era o 18° artigo sobre a mesma temática, comércio gomífero, todos assinados por Armindo R. da Fonseca. O plano 'Defesa Econômica da Borracha', criado em 1912, ficou sediado no Rio de Janeiro, distante da região problema. Foram feitos gastos exorbitantes em compras e pesquisas desnecessárias, o que fez o Congresso dar fim ao plano em 1913. Armindo faz críticas a esse projeto. Quando do início da Primeira Guerra Mundial, quando algumas rotas comerciais foram temporariamente fechadas e os preços caíram mais bruscamente, os artigos ganhariam um tom mais dramático.

A historiadora Maria Helena Capelato chama a atenção para a utilização desses artifícios, que eram “empregados tanto com objetivos de lucro, como para fins políticos” (CAPELATO, 1988, p. 16). Dessa forma, deve-se refletir sobre o uso, em boa parte do periódico, de anúncios e propagandas de produtos e casas comerciais, uma das possíveis fontes de lucro do Jornal do Comércio, assim como de outros periódicos, revelando também sua teia de relações com a elite política e empresarial da região, bem como o impacto das publicações dos artigos sobre a crise do mercado gomífero.

Das cinco grandes linhas da imprensa brasileira ao longo dos séculos, o Jornal do Comércio aparenta estar inserido entre as linhas do jornalismo político e do jornalismo informativo, surgidas entre fins do século XIX e início do século XX. Sobre esse período no Amazonas e a influência na imprensa, diz Santos et al:

Na medida em que o Amazonas vai aumentando o volume produzido de borracha exportada para a Europa e os Estados Unidos, equipamentos mais modernos de impressão são importados, e com eles, tipógrafos, sobretudo portugueses. Mas a imprensa nem sempre correspondeu plenamente à velocidade da informação que a nova situação exigia. O “fumaréu” de incenso continuava “turibulando muitos governos”, com o surgimento de jornais – em geral de edição única – destinados a homenagear as autoridades (SANTOS, 1990, p. 19)

O Jornal do Comércio, por suas articulações políticas com as elites locais e pelo caráter político e informativo, rompeu com essa linha de elogios particulares dispensados diretamente às autoridades políticas da região. No entanto, como todo periódico e outro tipo de fonte, deve ser visto a partir da luz da crítica interna, sem ser tomado como uma parte objetiva do passado, uma informação que vale por si mesma, devendo ser buscada as relações no momento em que essa documentação foi produzida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988.

SANTOS, Francisco Jorge et al. Cem Anos de Imprensa no Amazonas (1851 – 1950) – catálogo de jornais. Manaus, 1990.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Acervo da Prof. Dra. Maria Luiza Ugarte Pinheiro