sexta-feira, 10 de julho de 2020

10 de Julho de 1884: Abolição da Escravidão na Província do Amazonas

Alguns escravos fotografados em Manaus durante a Expedição Thayer (1865-1866). FONTE: umaincertaantropologia.org.

No dia 10 de julho de 1884, o Presidente da Província do Amazonas, Theodoreto Carlos de Faria Souto (1841-1893), abolia a escravidão no Amazonas, que se tornou a segunda Província do Império a abolir a escravidão, pois em 25 de março de 1884 o Ceará anunciava a emancipação de seus escravos. Antes disso, em 24 de maio do mesmo ano a escravidão fora abolida em Manaus.

Desde 1869 valores eram adicionados, mediante emendas parlamentares, ao orçamento da Província do Amazonas, para a compra de cartas de alforria.

Foi em uma quinta-feira, no dia 10 de julho de 1884, às 12 horas, que o Presidente Theodoreto Souto declarou, na Praça 28 de Setembro (hoje Heliodoro Balbi, da Polícia), cujo nome fazia alusão à Lei do Ventre Livre, que já não existiam mais escravos no Amazonas.

No relatório da Província, antes da abolição esta contava com cerca de 1.501 escravos em 1884, em sua maioria empregados em serviços domésticos. Eram carpinteiros, jardineiros, cozinheiros, amas de leite, amas-secas (empregadas domésticas) etc. Estavam distribuídos da seguinte forma:

"Manáos - 626
Manicoré - 309
Itacoatiara - 76
Teffé - 171
Maués - 9
Borba - 164
Silves - 15
Parintins - 134
Barcellos - s. n.". (AMAZONAS, Província. Relatório, 16. fev. 1884, p. 29).

Deve-se destacar que, como menciona o Presidente José Paranaguá, esses números podem não corresponder à realidade, dadas as irregularidades frequentes nos livros de matrículas de escravos. Mas quem eram esses escravos? Eram objetos que poderiam ser vendidos, alugados, usados como empréstimos, pagamento de dívidas e heranças. Tomemos como exemplo os seguinte casos: No primeiro, de 1868, mãe e filha foram vendidas:

"Compareceram Antonio Albano do Lago, representado por seu procurador bastante nesta cidade Manoel Alves dos Santos, como vendedor e Manuel Gonsalves Ferreira como comprador... e foi dito perante mim e as testemunhas que sendo o seu constituinte senhor e possuir de uma escrava de nome Marcellina de côr carafusa e idade vinte e cinco annos, natural da cidade de Obidos, filha da escrava Theodora, com uma filha por baptizar, de sete mezes de idade, tambem nascida em Obidos, fazia venda da supradita escrava Marcellina com a referida filha... (escritura de compra e venda de 20 de abril de 1868, lavrada a fls. 9 verso a 10 do Livro de Notas n°. 1 do 1° Ofício de Manaus, hoje cartório do Dr. Fernandes Barros apud ITUASSÚ, 1981, p. 20-21).

Alguns anos mais tarde, em 1875, o escravo Jordão Piauhy, um dos bens penhorados de Francisco Fernandes da Silva Júnior, foi avaliado em 1:200$000 réis (JORNAL DO AMAZONAS, 16/04/1875, p. 04).

Apesar do tratamento como objeto, o escravo não deixava de responder e ser punido pelos crimes que cometia. Em 1863, a escrava Benedita, propriedade de Joaquim Pinto das Neves, fugiu por estar "condemnada a cém açoites por sentença do sr. delegado de policia desta cidade" (O CATHECHISTA, 14/11/1863, p. 04).

Um conjunto de fatores possibilitou que o Amazonas antecipasse em quatro anos a libertação de seus escravos. Deve-se destacar o novo contexto econômico, isto é, a expansão das atividades ligadas à extração do látex; o alto custo para a manutenção dos escravos, que já não era mais sustentável; a pressão cada vez maior de setores da sociedade e instituições como a Assembleia Legislativa Provincial, a Maçonaria e as sociedades emancipadoras contra essa prática. O historiador Provino Pozza Neto registra que a abolição total da escravidão no Amazonas estava marcada para o dia 5 de setembro, mas o Gabinete Lafayette, chefiado por Lafayette Rodrigues Pereira, já insatisfeito com as ações do Presidente da Província, decide exonerá-lo do cargo. Dessa forma, os abolicionistas amazonenses decidem adiantar a libertação para o dia 10 de julho (POZZA NETO, 2011, p. 140).

Não deve ser olvidada, de forma alguma, a resistência dos escravos à condição servil, pois até hoje, quando esquecida, transmite a ideia já superada de que estes foram passivos ao processo ou de que a escravidão foi mais branda na região Norte. A libertação não ficou circunscrita a "homens ilustres e de bom coração" e ao viés parlamentar (POZZA NETO, 2011, p. 19). São abundantes, em jornais de época, registros de fugas, na capital e no interior, bem como de crimes contra seus senhores, algumas das principais formas de luta e resistência utilizadas pelos cativos.

Um dos vários anúncios de fugas de escravos na Província do Amazonas. FONTE: Estrella do Amazonas, 1857.

Os defensores da abolição, membros em sua maioria da elite, defendiam que tal prática não encontrava mais espaço em uma sociedade que buscava integrar-se aos principais centros difusores da economia capitalista e dos valores da dita modernidade. Imperavam fatores mais econômicos que humanitários.

A antiga rua do Progresso, no Largo de São Sebastião, foi batizada com o nome 10 de Julho. A rua da Constituição foi renomeada como 24 de Maio em 23 de fevereiro de 1887, por proposta dos vereadores Silvério José Nery, José Carneiro dos Santos e Manuel Ramos, ambos abolicionistas, em referência ao fim da escravidão em Manaus.

Deve-se destacar que o ato de 10 de Julho de 1884 só foi reconhecido pelo Império quase três anos mais tarde: "A Libertação do Amazonas só foi aceita legalmente, pelo Império, a 30 de março de 1887, com o encerramento do livro de matrículas de escravos, no Amazonas, oficialmente realizado na Alfândega desta cidade" (LOUREIRO, 1989, p. 219).


Costa D' África


A Costa D' África foi uma região existente em Manaus na época da Província, com referências desde a década de 1860. Essa área, considerada um bairro na época, era habitada por africanos livres. Em 1866, Gustavo Ramos Ferreira, Vice-Presidente da Província, registrava a existência de 57 africanos livres que possuíam cartas de emancipação (AMAZONAS, Província. Relatório, 05. set. 1866).

Os moradores desse bairro, na condição de livres, conseguiram integrar-se, em parte, à sociedade da época, ocupando cargos públicos, militares e servindo de mão de obra em construções na capital. Essa integração deu-se em parte, pois após a libertação os negros continuaram, e ainda hoje continuam, sendo marginalizados e postos em condições subalternas, ainda que se tente mascarar os mecanismos de segregação e minimizar seus efeitos.

A Costa D' África estava localizada, de acordo com o jornalista Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, no livro Um Olhar pelo Passado (1897), em terras ao norte do antigo Cemitério de São José, entre as ruas Leonardo Malcher e Luiz Antony. Esse lugar desapareceu, possivelmente, em fins do século XIX e início do século XX, sendo integrado ao restante do Centro da cidade.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ARANHA, Bento de Figueiredo Tenreiro. Um Olhar pelo Passado. Manaus: Prefeitura Municipal/GRAFIMA, 1990. [original de 1897].

ITUASSÚ, Oyama César. Escravidão no Amazonas. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1981.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Ed. comemorativa 45°. aniversário da T. Loureiro Ltda. Manaus, 1989.

POZZA NETO, Provino. Ave libertas: ações emancipacionistas no Amazonas Imperial. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2011.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Trajetória das obras que contam a História do Trabalho no Amazonas é apresentada pelo historiador Luís Balkar Pinheiro

O texto a seguir é de autoria da jornalista e acadêmica de História (UFAM) Betsy Bell. Nele nos é apresentado de forma didática o primeiro episódio de uma série de vídeos sobre História Social do Trabalho e Movimentos Sociais na Amazônia, apresentado pelo historiador Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro.


Betsy Bell*

Vendedor ambulante na Avenida Sete de Setembro, no Centro de Manaus. Foto de 1927. Autor: James Dearden Holmes (1873-1937).

Doutor em História Social, o historiador amazonense Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro estreou o primeiro episódio de vídeos sobre História Social do Trabalho e Movimentos Sociais na Amazônia, iniciativa do GT Mundos dos Trabalho, grupo de estudos da Faculdade de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Amazonas, que lançou o projeto no canal da plataforma digital YouTube, no último dia 30 de junho.

Com 20 anos de trabalho na área, Luís Balkar faz um panorama sobre a trajetória de pesquisas e de obras da história do trabalho no Estado do Amazonas. Na linha de tempo que ele traça, além de citar autores de obras referendadas sobre o assunto ou mesmo dissertações, o historiador apresenta uma análise pertinente sobre os motivos que despertaram o interesse pela história social do trabalho no Estado desde os anos 1980 e o que se segue até os dias de hoje.

Foi uma pena - contudo compreensível, pois poderia ser confundido com presunção -, Balkar excluir da palestra online referência às suas próprias obras sobre o tema: os livros “Vozes Operárias: Fontes para a História do proletariado amazonense” e “Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha – Trabalhadores, lideranças, associações e greves operárias em Manaus (1880-1930)”, este último uma produção em parceria com a também Doutora em História Social, a historiadora Maria Luíza Ugarte Pinheiro.

Mas nada que este texto não possa pontuar e fazer justiça. Afinal, a obra dos dois – Luís e Maria Luíza - é um mosaico de várias dissertações que Balkar cita, inclusive, no vídeo do GT Mundos do Trabalho, mas com uma condução encantadora dos que não só leem, orientam e acompanham as pesquisas, mas dominam o tema como poucos. “Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha”, assim como “Vozes Operárias” são tão cativantes quanto grandes romances literários. Sem o serem. E seus principais encantos são os trabalhadores, que surgem mais que personagens da trama, mas como protagonistas da cena.

Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha, de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro e Maria Luiza Ugarte Pinheiro.

O COMEÇO

Prof. Dr. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro.

De acordo com Luís Balkar Pinheiro, o final dos anos 1980 teve o cenário perfeito para o começo das pesquisas sobre a temática da História Social do Trabalho no Amazonas. No vídeo, ele destaca os fatores. Um deles, diz respeito ao País estar às voltas com a abertura política, outro porque explodiam greves e movimentos sociais por todos os lados e também porque várias pesquisas destacavam, justamente, a referida inflexão historiográfica.

“No contexto amazonense, questões importantes também aconteciam como as greves operárias na Zona Franca de Manaus e a profissionalização da História no Estado, diante da abertura do curso de História (na Ufam), onde o currículo direcionava para pesquisa e a própria necessidade da história escrita pelos locais”, relembra o professor.

Nessa perspectiva tão positiva para ressaltar o tema trabalho, o historiador revela que houve ainda uma espécie de simbiose entre as experiências locais e nacionais, principalmente com os historiadores Victor Leonardi e Francisco Foot Hardman, autores de “História da Indústria e do Trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte“ (1982) – obra tida como inovadora naquele momento entre os estudiosos.

Ambos, inclusive, vieram para o Amazonas diversas vezes e até Leonardi chegou a ser professor-visitante da Ufam. “Isso tudo foi um espectro de fatores que causou impulso para pesquisadores da área e que acabou refletindo nos seus trabalhos”, declara Pinheiro.


A VEZ DOS EXCLUÍDOS


A trajetória, levantada por Luís Balkar, segue com o relato que destaca o aparecimento da dissertação de Mestrado, na Pontifícia Universidade Católica (PUC), que depois virou o livro “A Ilusão Do Fausto: Manaus (1890-1920)”, de Edinea Mascarenhas Dias.

Não é pra menos. A obra – que completa 21 anos – repensa mesmo todo o processo de formação da cidade de Manaus e, segundo Balkar, “renova a abordagem historiográfica, a partir de uma história social, preocupada com os excluídos e os marginalizados, com o conflito social, com a dominação, mas também com a resistência”.

No entanto, apesar da importância até hoje editorial e histórica da “A Ilusão do Fausto”, Luís Balkar Pinheiro explica que a questão do trabalho, na obra, surge de forma periférica e não como protagonista – o que, realmente, não era o objetivo do livro.

E o surgimento de obras que evidenciam, de maneira mais direta, a história social do trabalho e do trabalhador urbano no Amazonas, ocorrerá apenas na década de 1990. Com isso, Balkar menciona tanto “Quando Viver Ameaça a Ordem Urbana: trabalhadores urbanos em Manaus (1890/1915)”, de Francisca Deusa Sena da Costa (1997), quanto “A Cidade Sobre Os Ombros: Trabalho e Conflito no Porto de Manaus, 1899-1925”, de Maria Luiza Ugarte Pinheiro.

Trata-se de duas dissertações de Mestrado em História (PUC-SP) e, ambas, partem do objetivo de contar a história da cidade de Manaus, mas sob a ótica do trabalho. Um outro elemento interessante em comum, destacado pela narração de Balkar, é o fato das duas receberem influências das obras dos historiadores da Escola Inglesa, como Edward Palmer Thompson e Eric Hobsbawn – os dois, marxistas. “No trabalho de Francisca Deusa, que mostra certos cenários da cidade, os atores centrais são os populares, os povos urbanos e o ponto forte no estudo é a questão da moradia”, relata Pinheiro.

No entanto, a obra de Maria Luíza Ugarte, “A cidade sobre os ombros”, é tida como um trabalho mais totalizado, um marco mesmo, diante do tema História Social do Trabalho. Isso porque, segundo Balkar, o estudo se debruça sobre os trabalhadores portuários, os estivadores, e esquematiza tudo a respeito deles, como cotidiano, lazer, moradia, alimentação, além de “avançar na questão das relações de trabalho, com o patronato e, mais importante, no estudo sistemático sobre os processos de associações e de suas lutas, mapeando greves operárias”.


ANOS 2000 – UMA ODISSEIA NO TRABALHO


O adensamento de historiadores amazonenses interessados na História Social do Trabalho, conta o historiador Luís Balkar Pinheiro, teve o ano de 2005, uma divisa. Tudo porque deu-se a montagem do programa de pós-graduação em História da Ufam, com linha de pesquisa específica para o trabalho urbano em Manaus e na própria Amazônia.

Tanto que o número de dissertações e pesquisas, ao longo desses 15 anos, gira em torno de 155 trabalhos, sendo 50 apenas de História Social do Trabalho e 18 específicos sobre a história operária. Nesse contexto, Luís Balkar salienta algumas pesquisas determinantes à temática como a de Luciano Ewerton Teles (“A vida operária em Manaus: imprensa e mundos do trabalho (1920)”), de 2008; a de Alba Barbosa Pessoa, “Infância e Trabalho: Dimensões do Trabalho Infantil na Cidade de Manaus (1890-1930)”, de 2010, e a de Luciane Dantas de Campos (“Trabalho e emancipação: um olhar sobre as mulheres de Manaus (1890-1940), também de 2010.

“Veremos ainda alguns trabalhos sobre a visão do patronato, de Alexandre Avelino, e greves operárias, de Moisés Araújo, que envolve greves durante a Grande Guerra, entre 1914 e 1918, Manaus”, completa Pinheiro. Os trabalhos e autores citados são “O patronato Amazonense e o mundo do trabalho: a Revista da Associação Comercial e as representações acerca do trabalho no Amazonas (1908-1919)”, de Alexandre Avelino e “O grito dos trabalhadores: movimento operário, reivindicações e greves na Manaus da Grande Guerra (1914-1918)”, de Moisés Dias de Araújo.
Luís Balkar dá ênfase ainda, neste período, ao grande número de dissertações, que passaram a acompanhar categorias profissionais, desde caixeiros, tipógrafos, carregadores, carvoeiros até condutores de bonde, carteiros, metalúrgicos e portuários. Para isso, ele cita trabalhos de Kleber Moura, Dhyene Santos, Sérgio Lima e Cláudia Barros.

São eles, “Caixeiros: organização e vivências em Manaus (1906-1929)”, Kleber Barboza de Moura; “Motoristas e Condutores de Bondes em Manaus: Sociabilidade, Cultura Associativa e Greves (1899-1930)”, de Dhyene Vieira dos Santos; “Carvoeiros: trajetória do trabalho e dos trabalhadores da carvoaria em Manaus (1945-1967)”, de Sergio Lima e “Os trabalhadores e o Estado Novo em Manaus: uma história de resistências e conflitos”, de Cláudia Amélia Barros.


OS VANGUARDISTAS


Para Luís Balkar, as pesquisas mais recentes sobre o tema História Social do Trabalho no Amazonas ficaram mais livres do tópico sempre revisitado da expansão e crise da borracha em Manaus e os recortes foram ampliados, seja recuando no tempo, falando na província, ou escapando para os anos 1930 até 2015.

“Nesse caso, tenho que citar o trabalho de Tenner Abreu que estuda a escravidão e mestiçagem na província entre 1850 até 1889 e mesmo a importância da orientação de pesquisa do professor Doutor César Augusto Queirós sobre estudos políticos nos anos 1930 e 1940 e como se relaciona com a emergência do populismo na cidade”, diz o professor.

Balkar se refere, respectivamente a “Grêmio da Sociedade”: racialização e mestiçagem entre os trabalhadores na Província do Amazonas”, de Tenner Abreu e “Trabalho e cidade em Manaus nos anos 30: o patronato e as relações de trabalho”, de Jessica Cristine Duarte, trabalho que está sendo orientado pelo historiador César Augusto Bubolz Queirós.

Das temáticas mais contemporâneas, o professor Luís Balkar cita o trabalho de Célia Santiago sobre a greve dos metalúrgicos de 1985 (“Clandestino e mobilização nas linhas de montagem: a construção da greve dos metalúrgicos de 1985, em Manaus”) e também a de Rafaela Bastos que segue até 2015 (“Entre memórias: as experiências dos carregadores e carregadoras da Manaus Moderna e Estação Hidroviária de Manaus - Roadway, 1993-2015”).

Com memória primorosa e abordagens sensatas, o historiador Luís Balkar encerra a palestra online ainda com informações surpresas: aconselhamentos sobre a utilização atual das fontes diferenciadas e questões a serem superadas na contação dessas histórias. Mas, pra isso, o leitor terá que assistir ao vídeo, disponível no https://youtu.be/m5V61HsDm2w.




(*) Betsy Bell é jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas e graduanda do 3º período do curso de Licenciatura em História (também Ufam)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Escravas ou livres, sadias e de bons costumes: Amas de leite na cidade de Manaus (séculos XIX e XX)

Lucílio de Albuquerque (1877-1939): Mãe Preta, 1912. FONTE: commons.wikimedia.org.

As amas de leite eram mulheres que tinham como ocupação a amamentação dos filhos das classes mais abastadas da sociedade. No Brasil as escravas eram forçadas a amamentar e cuidar dos filhos de seus senhores, também sendo alugadas por estes e obrigadas a deixar seus rebentos sem esse contato maternal, o que gerava uma alta taxa de mortalidade entre os recém nascidos escravos (SILVA, 2016, p. 302). 

De acordo com o sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre, esse costume tinha raízes portuguesas: "De Portugal transmitira-se ao Brasil o costume das mães ricas não amamentarem os filhos, confiando-os ao peito de saloias ou escravas" (FREYRE, 2003, p. 443). Tal costume não se reproduzia apenas por puro modismo ou indiferença . Imperavam questões de saúde. As sinhás, ainda muito jovens, tinham vários filhos em um curto intervalo de tempo, ficando esgotadas e impossibilitadas de lhes dar os devidos cuidados. Dessa forma, as escravas, "adaptadas" aos trópicos e consideradas mais resistentes, eram ideais para o aleitamento. "A tradição brasileira", escreve Freyre, "não admite dúvida: para ama-de-leite não há como a negra" (FREYRE, 2003, p. 444).

O historiador Luiz Felipe de Alencastro cita o aluguel de amas de leite como uma importante atividade econômica das cidades brasileiras do Império. "Pequenos senhores de escravos exploravam esse mercado, alugando a terceiros suas cativas em período pós-natal" (ALENCASTRO, 1997, p. 63). Ainda conforme Alencastro, a partir 1850 a presença de mulheres imigrantes de origem portuguesa "traz para a corte uma oferta de amas-de-leite brancas que passam a competir com as mucamas de aluguel, tornando complicado o debate sobre a amamentação" (ALENCASTRO, 1997, p. 64).

As libertas e as imigrantes citadas por Alencastro, para se sustentarem, também ofereciam esse serviço, que não se restringiu ao período do Império. As amas de leite continuaram a atuar ao longo do século XX, tanto no Brasil rural, profundo, quanto no urbano. Nos jornais publicados em Manaus entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX foram encontrados anúncios desse serviço, bem como registros em leis e decretos. Ainda que em menor quantidade quando comparados aos do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, são fontes importantes para a compreensão dessa prática na região.

Uma das referências mais antigas à atuação das amas de leite em Manaus surge no Código de Posturas Municipais de 1848. No artigo 137 do capítulo 16, sobre a economia municipal, ficou estabelecido que "As Câmaras marcarão salários às amas dos expostos pelo trabalho da criação, e educação, e prestarão enxoval preciso aos mesmos" (SAMPAIO, 2016, p. 35). Os expostos citados no artigo, de acordo com o historiador Renato Franco, eram 

"[...] as crianças recém-nascidas, anonimamente abandonadas pelos pais, que, assim, abriam mão da tutela e da criação dos filhos. Diferentemente dos órfãos, para quem a morte dos progenitores era uma referência incontornável, a criança exposta era considerada em seu grau zero de ascendência, portanto, por definição, livre" (FRANCO, 2018, s. p.).

O Capitão Clementino José Pereira Guimarães, Barão de Manaus, foi autorizado em 1865 "[...] a alugar escravas sadias e proprias para o serviço de casa de familia" (O Catechista, 28/01/1865, p. 04). De acordo com a Mestre em Educação Damiana Valente Guimarães Gutierres, "uma das principais características mais recorrentemente abordadas nos discursos dos anúncios é da ama de leite ser sadia, saudável e sem vício" (GUTIERRES, 2013, p. 113).

Em 1880, o jornal Amazonas, de propriedade do Coronel José Carneiro dos Santos, anunciava que em sua tipografia existia uma pessoa que precisava dos serviços de uma ama de leite, podendo ser livre ou escrava, e que esta oferecia um bom pagamento (Amazonas, 21/11/1880, p. 04).

As amas de leite poderiam ser escravas ou livres. FONTE: Amazonas, 21/11/1880, p. 04.

O trabalho dessas mulheres não ficava restrito ao ambiente familiar, também sendo sendo solicitado em instituições governamentais. Em 1888 o Instituto dos Educandos Artífices, instituição de ensino em regime de internato para meninos órfãos e carentes, fez publicar no Jornal do Amazonas que precisava de uma ama de leite, pagando bem a quem estivesse disponível (Jornal do Amazonas, 10/05/1888, p. 04).

Instituições como o Instituto dos Educandos Artífices solicitavam o serviço das amas de leite. FONTE: Jornal do Amazonas, 10/05/1888, p. 04.

Os anúncios do final do século XIX e início do século XX tornam-se mais detalhados, possibilitando conhecer os requisitos e as condições de trabalho dessas mulheres. Em 1898 o jornal Commercio do Amazonas publicou uma série de anúncios de um morador da rua Lima Bacury, no Centro, que precisava de uma ama de leite: "AMA DE LEITE. - Precisa-se de uma, a tratar na rua Lima Bacury, casa n. 44. Garante-se bom ordenado" (Commercio do Amazonas, 22/06/1898, p. 02, 01/07/1898, p. 02, 03/07/1898, p. 04 e 06/07/1898, p. 03). Em anúncio de 1906 veiculado no Correio do Norte solicitava-se uma ama de leite para trabalhar no interior: "Ama de leite. Precisa-se de uma, para o interior, logar sadio, paga-se bem. Quem estiver nas condições, dirija-se a Estrada Epaminondas n. 140 (Avenida Dr. Constantino Nery)" (Correio do Norte, 23/02/1906, p. 03). Em alguns casos amas da capital passaram a viver no interior do Estado com as famílias contratantes, em um verdadeiro movimento de migração interna.

Não raro amas de leite da capital mudavam-se com as famílias contratantes para o interior do Estado. FONTE: Jornal do Commercio, 24/06/1907, p. 02.

São raros os anúncios que informam a idade da criança que seria amamentada. Foi encontrado apenas um, de 1917, no qual a criança, filha de um casal morador da Praça da Constituição (Heliodoro Balbi, da Polícia), teria 8 meses (Jornal do Commercio, 26/08/1917, p. 01).

As amas de leite estrangeiras, portuguesas e espanholas, surgem nos anúncios de jornais nesse período. É possível que já atuassem na cidade há mais tempo. Na rua Mundurucus, por volta de 1905, uma portuguesa tinha "[...] leite abundando e novo" (Jornal do Commercio, 27/12/1905, p. 03), o que sugere que acabara de ter filho (s), estando apta para o trabalho de ama. Em outro anúncio publicado no Jornal do Commercio podemos observar que as amas de leite deveriam ser jovens, na casa dos 20 anos:

Anúncio de uma ama de leite espanhola, com idade entre 26 e 27 anos. As amas europeias passaram a rivalizar com as amas locais. FONTE: Jornal do Commercio, 17/12/1907, p. 03.

Além da boa saúde e ausência de vícios, uma das preferências dos usuários de seus serviços era que não tivessem filhos, já que toda a atenção deveria ser dada à (s) criança (s) do (s) contratante (s). Como no Império, não deveriam existir vínculos maternais mais profundos entre as amas e seus próprios filhos no século XX. Na ausência da mãe a criança deveria ser cuidada por terceiros, geralmente os avós. Essas mulheres acabavam criando sentimentos pelas crianças que amamentavam,  e vice-versa, como deixou registrado o poeta Agesilao Jorge no poema Ao passado, escrito em 1908 e publicado em 1911, no qual lembra de sua antiga ama de leite negra:

"Minha velha ama preta, alvinha de bonança,
conta, inda outra vêz, as lucidas historias
repletas de dragões e cheias de victorias,
como naquelle tempo em que eu inda era criança...

Conta-m'as, novamente, agora ao homem feito;
minh' alma aspira, olhando o teu rosto enrugado
e ouvindo o teu fallar dolorido e pausado
reviver o bom tempo em que me deste o peito!...

Que importa sejas preta e, talvêz mesmo, feia,
si no teu coração nevado de pureza
estão sempre a sorrir a Bondade, a Belleza
e o Amôr, a refulgir como uma lua cheia!...

Já nem conheces tu o rosto que beijavas
(agora tão mudado); o mesmo rosto anjo,
dormindo no teu collo, ó Santa, ó nobre Archanjo
que em minha doce Infancia, á noite, me emballavas!...

Quanto lastimo a ver-te hoje nessa velhice,
vivendo do Passado e esquecendo o Presente,
no cruel abatemente insano dessa mente
que se desfaz no occaso atro da caduquice!...

Pudesse eu despender um pouco de vigor
de minha mocidade e l' o insufflar á vida
que desffallce e morre, ora rão succumbida...
Provar-te ia assim esse meu grande amor!...

1908.

Agesilão Jorge" (Correio do Norte, 21/05/1911, p. 01).

Uma família da rua Municipal (Avenida Sete de Setembro) precisava de uma ama de leite que tivesse boa saúde e que não tivesse filho. FONTE: Jornal do Commercio, 07/01/1914, p. 01.

As agências de aluguel entram em cena nesse período. Têm-se o registro, em 1907, da Agência 'Locadora', localizada na então Avenida Silvério Nery (Joaquim Nabuco), alugando diversos serviços, dentre eles o de ama de leite:

"Agencia "Locadora"
Aluga-se cosinheiras, cosinheiros, copeiras, lavadeiras, criados, caixeiros e uma ama de leite.
Na mesma agencia trata-se de qualquer negocio.
Avenida Silverio Nery n. 88.
A. Araújo & Cia" (Jornal do Commercio, 31/01/1907, p. 04).

Os anúncios nos informam uma série de requisitos para o trabalho, sendo a boa saúde o mais frequentemente citado. FONTE: Jornal do Commercio, 19/03/1912, p. 01.

Desde fins do século XIX o trabalho das amas de leite passou a ser alvo de regulamentações, frutos da difusão de políticas sanitaristas há muito reclamadas por médicos e administradores públicos. No inciso 5 do capítulo 2 do Regulamento para o serviço sanitário do Estado do Amazonas (1894), sobre a atribuição dos empregados, determinou-se que estes tinham de "incumbir-se dos exames das amas de leite" (Diário Oficial, 14/01/1894, p. 01).

Existiam no mercado produtos utilizados para "otimizar" o trabalho das amas, isto é, fortificar o leite e deixá-lo livre de impurezas. Os jornais recomendavam o Vinho Iodo-Phosphatado de V. Werneck, o Vinho Toni-Nutritivo do dr. Lima Guimarães, "[...] empregado com vantagens nos casos de anemia, chlorose, enfraquecimento nas mulheres paridas e nas amas de leite" (Commercio do Amazonas, 28/09/1899, p, 04).

Essas questões higiênicas andavam de mãos dadas com o evolucionismo científico e as teorias raciais. O historiador Robson Roberto Silva registra que "a mentalidade cientificista do final do século XIX, fundamentada no racismo, justificava os cuidados que deveriam ter com o leite materno das escravas, pois havia a crença que esse leite transmitiria padrões de imoralidade para as crianças" (SILVA, 2016, p. 312). As escravas e as negras libertas eram acusadas de degenerar as crianças e o ambiente familiar. Não é de se estranhar que, em 1913, uma família da rua dos Andradas anunciasse que precisava de "[...] uma ama de leite séria e de bons costumes" (Jornal do Commercio, 20/03/1913, p. 01) ou que um agenciador informasse ter uma "[...] ama de leite portugueza com bom comportamento e de bôa familia" (Jornal do Commercio, 07/04/1913, p. 01).

As amas de leite, assim como os negociantes de gêneros alimentícios, seus empregados, vendedores ambulantes (peixeiros, leiteiros, garapeiros, doceiros, padeiros, merceeiros, confeiteiros), donos e empregados de restaurantes, hotéis, pensões, botequins, refinações, torrefações, açougueiros, magarefes, cozinheiros, copeiros, carregadores e condutores, deveriam comparecer na sede da Prefeitura, durante todo o mês, das 9 às 11 e das 13 às 16, para serem inspecionadas e receber a licença de atividade, sob a pena de multa (Inspecção Sanitaria. In: A Capital, 07/12/1917, p. 03).

Na década de 1930 as inspeções sanitárias obrigatórias para as categorias anteriormente citadas, estando aí incluídas as amas de leite, passaram a ocorrer duas vezes por ano. Ficou estabelecido no parágrafo único do artigo 321 do capítulo 8 do Código de Posturas de 1938, sobre a saúde pública, que caso a pessoa não comparecesse e fosse encontrada exercendo seu ofício sem a carteira sanitária seria multada em 20 mil réis e, no artigo 322, "caso o portador da carteira sanitária venha a contrair qualquer moléstia contagiosa, não poderá continuar a exercer sua atividade, enquanto não ficar curado, sob pena de multa de cinquenta mil réis" (SAMPAIO, 2016, p. 328).

É perceptível a importância que as amas de leite tiveram como trabalhadoras urbanas na cidade de Manaus, atuando em instituições de caridade, educacionais e, principalmente, casas particulares. Toleradas no século XIX por necessidades, garantindo ganhos a seus senhores e, no caso das mulheres livres, atuando de forma independente, as amas se tornaram alvo de críticas e da fiscalização sanitária, o que contribuiu para o seu desaparecimento.


FONTES:

O Catechista, 28/01/1865.

Amazonas, 21/11/1880.

Jornal do Amazonas, 10/05/1888.

Diário Oficial, 14/01/1894.

Commercio do Amazonas, 22/06/1898.

Commercio do Amazonas, 01/07/1898.

Commercio do Amazonas, 03/07/1898.

Commercio do Amazonas, 06/07/1898.

Commercio do Amazonas, 28/09/1899.

Jornal do Commercio, 27/12/1905.

Correio do Norte, 23/02/1906.

Jornal do Commercio, 17/12/1907.

Jornal do Commercio, 31/01/1907.

Jornal do Commercio, 24/06/1907.

Correio do Norte, 21/05/1911.

Jornal do Commercio, 19/03/1912.

Jornal do Commercio, 20/03/1913.

Jornal do Commercio, 07/04/1913.

Jornal do Commercio, 07/01/1914.

Jornal do Commercio, 26/08/1917.

A Capital, 07/12/1917.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11-93.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003.

FRANCO, Renato. Órfãos e expostos no império luso-brasileiro. O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira, 23/05/2018. Disponível em:http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.phpoption=com_content&view=article&id=5201&Itemid=344. Acesso em 02/07/2020.

GUTIERRES, Damiana Valente Guimarães. No colo da ama de leite: a prática cultural da amamentação e dos cuidados das crianças na Província do Grão-Pará no século XIX. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Belém, 2013.

SILVA, Robson Roberto. A presença das amas-de-leite na amamentação das crianças brancas na cidade de São Paulo no século XIX. Antíteses (Londrina), v. 9, n. 17, p. 297-322, jan./jun. 2016.

SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.

sábado, 13 de junho de 2020

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, em Manaus

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo. Foto de Euzivaldo Queiroz. FONTE: A Crítica, 13/06/2016.

Hoje, 13 de junho, para os católicos, é dia de Santo Antônio, Santo Antônio de Pádua ou Santo Antônio de Lisboa. O orago de origem portuguesa, a lembrar as raízes lusitanas das crenças brasileiras, muito mais que santo casamenteiro, atribuição pela qual é mais conhecido, é também protetor das mulheres, dos pobres e padroeiro dos objetos perdidos.

Não pretendo falar sobre o Santo, escrever uma Hagiografia. Me interessa, na realidade, uma construção relacionada ao seu culto: A Capela de Santo Santo Antônio do Pobre Diabo, localizada na rua Borba, bairro Cachoeirinha, zona Sul de Manaus, Tombada como Patrimônio Histórico Estadual. O nome ‘Pobre Diabo’ ao lado de ‘Santo Antônio’ é estranho a alguns, geralmente aos que anseiam um catolicismo brasileiro oficial, romanizado. Analisarei as origens do nome ‘Pobre Diabo’, que confunde-se com a construção da capela.

O historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), em seu Roteiro Histórico de Manaus, afirma que essa nomenclatura tem origem popular. Um comerciante português de nome Antônio José da Costa, estabelecido na rua da Instalação, mandou fazer uma tabuleta com a figura de um pobre vestindo trapos, com os dizeres “Ao Pobre Diabo”, uma referência irreverente ao proprietário, que não vendia fiado pois era uma pessoa “pobre”.

Em outra versão, que consta em uma matéria do Diário Oficial do Estado do Amazonas publicada em 11 de junho de 1927 e recuperada pelo pesquisador Durango Martins Duarte no livro Manaus entre o passado e o presente, Antônio José da Costa era sócio de José Joaquim de Souza Júnior. O português, que tinha uma imagem de Santo Antônio em uma das prateleiras do estabelecimento, todos os dias ao fechá-lo dizia: “Meu Santo Antônio, protegei este pobre Diabo” (1). Desfeita a sociedade em 1878, Antônio abriu, na mesma rua, um estabelecimento de nome ‘O Pobre Diabo’. Encontrei, em edição de 26 de fevereiro de 1888 do jornal A Província do Amazonas, um comércio com o nome ‘Pobre Diabo’, localizado na rua da Instalação (2).

Ainda de acordo com essa publicação, Antônio José da Costa mudou-se da rua da Instalação para o bairro da Cachoeirinha, onde adquiriu, em 1896, um terreno na antiga Praça Floriano Peixoto, local onde foi erguida a capela. Mário Ypiranga Monteiro afirma que coube a mulher de Antônio, Cordolina Rosa de Viterbo, financiar a construção da capela dedicada a Santo Antônio, santo de devoção da família, após uma promessa pela recuperação da saúde do marido. Ao nome de Santo Antônio uniu-se o termo Pobre Diabo, possivelmente por lembrança dos dizeres diários do comerciante ou pelo nome de seu antigo comércio. Ao que tudo indica, a construção data de 1897, como consta em matéria daquele ano publicada no Jornal do Amazonas e transcrita por Mário Ypiranga:

A muito conhecida e laboriosa Sra. D. Cordolina Rosa de Viterbo tendo feito erigir à sua custa no bairro da Cachoeirinha, Praça Floriano Peixoto, desta capital, uma pequena e elegante capela, sob a invocação do glorioso Santo Antônio, estava disposta a mandar benzê-la no dia 15 de agosto deste ano, a fim de mais realçar as festas desta data memorável para o Estado do Pará, de onde é natural a referida senhora, entendendo, porém, a que os nossos irmãos brasileiros estão presentemente expondo a sua vida pela pátria, onde o fanatismo faz milhares de vidas, resolveu adiar a benção da capela para outro dia que será previamente anunciado” (3).

O antropólogo Manoel Nunes Pereira (1893-1985), no texto Igrejas de Manaus, publicado em 1938 na Revista da Semana, do Rio de Janeiro, registrou que a Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo despertava a curiosidade em quem visitava a cidade: “- Olhe só… O Pobre Diabo aqui tem sua igreja! E entrechocam-se os mais espirituosos e irreverentes commentarios” (4).

A Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo em 1938. FONTE: PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7, 22/01/1938, p. 16.

Nunes Pereira adverte os leitores de que apenas o bairro em que estava a capela (Cachoeirinha), é que pertencia ao Diabo, “a igreja, entretanto, pertence ao orago portuguez, miraculosamente casamenteiro”. “Durante os festejos anuais, que se realizam na referida igreja”, escreve Pereira com uma leve dose de humor, “o Pobre Diabo até fica do lado de fóra, com os joelhos na poeira humilde do arraial. Lá dentro officia o padre, acolytos agitam thuribulos, cantôras sacras elevam hymnos, mas ao pobre diabo só é permittido bater no peito, contrictamente” (5).

O nome Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo é contemporâneo à construção. Em uma nota publicada no Jornal do Commercio em 29 de maio de 1910, informava-se que o serviço de bondes seria reforçado aos domingos, desde as 15 horas, com mais de um bonde e dois reboques, por ocasião da realização da “Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo” (6).

Além do nome pitoresco, a capela também foi palco de acontecimentos um tanto curiosos. Em 1907, Bibiano de Oliveira Costa, praticante da Marinha Mercante, tinha encontros amorosos com a jovem Maria da Costa Carneiro, de 16 anos, no interior desse templo. A mãe de Maria, Felizarda da Costa Carneiro, descobrindo o relacionamento e sentindo-se ofendida por ele ocorrer dentro de um lugar sagrado, denunciou Bibiano ao Delegado do 2° Distrito, Elviro Dantas, que o prendeu no dia 11 de abril de 1907. Preso, Bibiano disse que pediria Maria da Costa Carneiro em casamento. O Delegado, então, determinou que a união fosse realizada no dia seguinte (7). Santo Antônio, indiretamente, concretizou um enlace matrimonial, ainda que em circunstâncias pouco formais.

O nome Santo Antônio do Pobre Diabo é uma característica do Catolicismo popular brasileiro, que foi se desenvolvendo à margem do poder institucionalizado, maleável e influenciado por elementos do meio em que se estabeleceu. Ao nome do santo lusitano uniu-se o de ‘Pobre Diabo’, surgindo daí algo novo, único em nossa cidade, estranho aos mais conservadores mas acessível aos grupos populares e por eles já incorporado.

Salve Grande Antônio. Salve Santo Antônio do Pobre Diabo...


NOTAS:

(1) DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009, p. 140.

(2) Agências. A Província do Amazonas, 26/02/1888, p. 01.

(3) O jornal se refere à Guerra de Canudos. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998 Apud MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

(4) PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

(5) Ibid, p. 16.

(6) Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo. Serviço de Bondes. Jornal do Commercio, 29/05/1910, p. 02.

(7) Cupido e… polícia. Travessuras e casório. Jornal do Commercio, 12/04/1907, p. 01.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

sábado, 6 de junho de 2020

Antonio José Souto Loureiro

Antônio José Souto Loureiro e alguns de seus trabalhos.

Hoje, dia 06 de junho, o médico e historiador Antônio José Souto Loureiro comemora 80 anos. É um amigo muito estimado, sendo sete de anos de uma boa amizade, que teve início quando nos conhecemos nos sebos da Feira da Avenida Eduardo Ribeiro e nos eventos do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), do qual é membro.

Para quem não o conhece, Antônio José Souto Loureiro nasceu em Manaus no dia 06 de junho de 1940, realizando seus estudos no Rio de Janeiro, onde graduou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especializando-se em Reumatologia. É membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras (AAL) e da Academia Amazonense de Medicina.

Antônio Loureiro é dos intelectuais mais humildes que já conheci, sempre aberto a boas conversas. Certa vez, durante o lançamento de um livro no IGHA, nos encontramos e começamos a conversar. Me perguntou se concordava com a perspectiva histórica da autora do trabalho, de base marxista, da tão citada e já esgotada luta de classes. Disse que sim, em partes, e rebati a pergunta, recebendo a seguinte resposta: - Não concordo!. Vejo a História como uma eterna luta entre o bem e o mal!.  Continuando, perguntei: Como anda a sua relação com a academia (universidade)? Me disse: - Ninguém me lê, nem me convida para palestrar!. Lhe informei que sim, o liam e citavam em trabalhos, e que quase fiquei sem um livro seu quando o emprestei para um acadêmico finalizar o TCC. Rimos bastante e concordamos que, apesar das críticas de ambos os lados, não se faz História sem o mínimo de diálogo entre as correntes, das mais conservadoras às mais inovadoras.

Desses 80 anos bem vividos, já são quase 50 dedicados à pesquisa histórica, da qual surgiram trabalhos hoje considerados clássicos de nossa historiografia, essenciais aos historiadores e entusiastas que pretendem conhecer a constituição de nosso Estado e também expandir suas possibilidades de pesquisa.

São de sua autoria cerca de 16 obras, às quais poderia dedicar inúmeros artigos fazendo análises minuciosas. No entanto, destaco três que considero essenciais, devendo ser lidas, relidas, resenhadas e apreciadas: A Grande Crise (1907-1916) (1986), O Amazonas na Época Imperial (1989) e Tempos de Esperança - Amazonas (1917-1945) (1994).

Com um grande arsenal de dados estatísticos, oriundos principalmente do arquivo da Associação Comercial do Amazonas (ACA), e bibliográficos, analisa da derrocada da economia gomífera em A Grande Crise (1907-1916) (1986). O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuou alheio à região quando ela mais precisou. A União tardiamente tomou medidas para sanar a crise, medidas essas que se mostraram ineficazes, bem como os empresários e outras camadas da sociedade extrativista, que no frenesi da Belle Époque descapitalizaram a região e não fizeram planos a longo prazo, com algumas raras exceções.

Em O Amazonas na Época Imperial (1989), Loureiro analisa o período que vai de 1852 até o advento da República. A obra foi escrita quando o autor se deu conta da exiguidade de trabalhos mais detalhados e abrangentes sobre o Amazonas nessa época. Como fontes, utilizou relatórios, falas e exposições dos Presidentes e Vice-Presidentes desse período, de forma que a narrativa é constituída da visão desses homens que serviram ao Império no Amazonas. O conteúdo, denso, de mais de 300 páginas, é rico em dados estatísticos das atividades comerciais e administrativas do Amazonas (instrução pública, obras públicas, missões religiosas, aldeamentos indígenas etc), o que torna a obra de fundamental importância para os estudos sobre o Segundo Reinado na região Norte que lhe sucederam.

Tempos de Esperança - Amazonas (1917-1945) foi um trabalho pioneiro em sua época, pois surgiu para preencher a lacuna historiográfica existente sobre o período posterior ao boom da economia gomífera e sua crise. No período analisado por Loureiro, o Estado do Amazonas, combalido economicamente, teve breves surtos de reavivamento econômico motivados por fatores externos como a Segunda Guerra Mundial. Foram tempos difíceis, sem dúvidas. Gripe Espanhola em 1918, Revolução Tenentista em 1924, embates entre as oligarquias tradicionais, uma dívida crescente e uma população ainda mais empobrecida. Apesar dos pesares, o Estado continuou produzindo, como nos mostra Loureiro, e não apenas borracha: castanha, couros e peles, pau rosa, madeiras, pirarucu, fibras vegetais, guaraná e outras matérias primas. O ápice da esperança se deu com os Acordos de Washington durante a Segunda Guerra, entre 1942 e 1945.

Parabéns e vida longa a Antônio José Souto Loureiro. Que continue na sua eterna luta histórica entre o bem e o mal, sendo ele fiel defensor do primeiro.