segunda-feira, 9 de novembro de 2020

9 de Novembro de 1823: Adesão do Lugar da Barra à Independência do Brasil

Praça IX de Novembro. Foto de 2012. FONTE: Blog do Karinha.

No dia 09 de Novembro de 1823 a população do Lugar da Barra do Rio Negro (Manaus), capital da Capitania do Rio Negro, aderiu, após 1 ano e 2 meses, à Independência proclamada por Dom Pedro I em 07 de setembro de 1822. Como em outros lugares do Brasil, não foi um processo uníssono, sendo marcado por embates entre os favoráveis à emancipação e os portugueses.

D. Pedro I, sabendo da resistência que encontraria em algumas Províncias, antigas capitanias com fortes relações econômicas, políticas e culturais com Portugal, contratou para impor a adesão ao Império Brasileiro através do poderio bélico, os militares da Marinha Real Britânica Thomas John Cochrane (1775-1860) e John Pascoe Grenfell (1800-1869), ambos com experiência em processos de Independência na América do Sul.

Grenfell, sob comando de Cochrane, se dirigiu, no brigue de guerra 'Maranhão', ao Grão-Pará. Chegou na barra de Belém em 10 de agosto de 1823. Comunicou ao Governo do Pará (Junta Provisória), através de ofício, que este deveria aderir ao Império de D. Pedro I. No dia 11, temendo um ataque à cidade, a Independência foi reconhecida pela junta, com exceção do Governador das Armas, logo substituído. O auto de juramento foi lavrado em 15 de agosto.

A notícia da adesão do Grão-Pará ao Império de D. Pedro I foi, morosamente, chegando nos povoados e vilas através de navios e também dos regatões. Ela chegaria ao Lugar da Barra em novembro.

A adesão à Independência ocorreu no Largo da Trincheira (Praça IX de Novembro) na manhã do dia 09 de novembro de 1823. A Câmara de Serpa instala-se no Lugar da Barra no dia 19, sendo o juramento de fidelidade à D. Pedro I realizado às 9 horas do dia 22. Os moradores iluminaram suas casas por três dias e três noites. No dia 23 é eleita uma Junta Governativa formada por Bonifácio João de Azevedo, Raymundo Barroso de Bastos, Placido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha.

Apesar da adesão, a Capitania do Rio Negro, para o descontentamento de sua população e de seus dirigentes, não foi transformada em Província, sendo transformada em Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará.

A pequena praça, localizada entre as ruas Governador Vitório, Visconde de Mauá e Tamandaré, há muito está sem uso recreativo, servindo como estacionamento para carros em uma área degradada do Centro, ao lado de prédios arruinados e do Museu do Porto, igualmente abandonado.


FONTES CONSULTADAS:


15 de Agosto de 1823. O Liberal do Pará, 15/08/1884, p. 02-03.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:


BRAGA, Genesino. A praça berço. In: Chão e Graça de Manaus. 2° ed. Manaus: Imprensa Oficial do Estado, 1987, p. 65-68.


LIMA, Bertino de Miranda. A cidade de Manaus: sua história e seus motins políticos, 1700-1852. Manaus: Ed. Humberto Calderaro, 1984. [original de 1908].


Menezes, Aprígio Martins de. História da Província do Amazonas. In: Almanach Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas para o anno de 1884. Manáos: Imp. na Typ. do Amazonas de José Carneiro dos Santos, 1884, p. 87-115.


Martiz, Vasco. Lorde Cochrane, o turbulento Marquês do Maranhão. Revista Navigator, v.8, n. 16, 2012, p. 11-20.


REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Os que não morrem na gratidão dos amazônidas

Busto de Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) localizado em seu túmulo no Cemitério de São João Batista, em Manaus. Foto de 1984. FONTE: Revista Manchete.

O presente texto foi escrito pelo historiador Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-1993) e publicado no suplemento do dia 02 de novembro de 1932 da Revista Redempção, produzido especialmente para o Dia de Finados. Nele o autor discorre, brevemente, sobre três personalidades amazônidas sepultadas no Cemitério de São João Batista, em Manaus: Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900), Frederico José de Sant' Anna Nery, Barão de Sant' Anna Nery (1848-1901) e Clementino José Pereira Guimarães, Barão de Manaus (1828-1906).


Os que não morrem na gratidão dos amazônidas


Arthur Cezar Ferreira Reis.
Secretario Perpetuo do Instituto Geographico e Historico do Amazonas


Aquelle é o Pensador. Manáos é creação delle. Antes da acção dynamica, cyclopica por que se assignalou no mando, o que não havia aqui era tosco.

Manáos dava ares de burgo. Os homens do Imperio nada tinham realizado. Nada ou pouco. Se duvidam consultem os aspectos velhos, leiam as palavras dos viajantes, alarmados todos com o quadro que enxergavam.

Pensador fez tudo. Imaginou e executou.

E' verdade que errou. Talvez grandes, enormes, imperdoaveis erros. Um delles, o maior, o mais grave, foi o pouco caso pelo futuro economico. As rendas cresciam, avolumando-se espantosamente, sem que se visse a medida governativa que as impulsionavam, que lhes davam vida. Era tudo naturalmente. O ouro negro operava o milagre. Não é mentira o que se affirma aqui. Ha provas.

A palavra de Pensador não será bastante? Elle escreveu uma confissão franca, que as arcas se enchiam, sem as attenções directas do officialismo.

*
*  *

Pensador, como Lobo d' Almada, foi uma victima do seu grandioso querer pelo Amazonas. Ambos, em prodigios, construindo, zelando, civilizando. Ambos cobertos da maledicência dos incapazes, dos inimigos de todo homem que tem idéas, defende-as e as realiza alheio ácção peçonhenta desses malvados. Hontem como hoje, como agora, frisemos.

Sant' Anna Nery, não é o Barão que veio do Imperio, formando ao lado do servilissimo corpo de fidalgos improvisados, sem tradicções. O Amazonas não o conhece nessas vestes canhostras e insignificantes.

A homenagem é ao revelador de sua grandeza. E' ao escriptor, ao estylista, ao sabedor immenso do Paiz das Amazonas, de Folk-lore Bresilien, de Le Bresil em 1889, aquelle primeiro o livro fundamental, em que reuniu todo o conhecimento das nossas coisas, agua e terra, flora, fauna, o homem, de cá ou de fóra amansando a jangla formidavel. Livro em que se conta o passado, mostra ao globo, em quatro idiomas, o maravilhoso do valle, sem a phantazia dos poetas, dos romancistas, sem a sciencia improvisada de certos amazonologos de livros europeus.

Tres seculos antes, fora um jesuita, frei Gaspar de Carvajal, numa chronica phantastica, farta em trechos sensacionaes que dissera, alem-mar, do gigantesco deste mundo em formação. E por tal modo, que desassocegara espiritos, inquietara governos, provocando a cubiça do gaulez.

O frade dizia do quadro verde, da selva virgem. Com os excessos que a sua imaginação ardente lhe ditou, encantado. Vendo mulheres em guerra, novas Amazonas, valentes, heroicas, dominadoras, formando o imperio que, no lendario amerindio, seria o El Dorado faiscante.

Sant' Anna Nery, embora dominado pelos encantamentos da gleba, mas um forte sobre as emoções perturbadoras, com o senso da realidade, segredo que poucos sabem guardar, não mentiu. O Paiz das Amazonas, surprehendendo muita vez pela exatidão dos conceitos, da noticia que se lê, lançou-nos. Apontou-nos. Entregou-nos ao estudo detalhado de povos servidos pela experiencia de punhados de seculos.

Antes de Barão, que nada significa para nós, Sant' Anna Nery foi, insistamos, o revelador do Amazonas, que o outro, Pensador, levantara cheio de amor. Sabio e artista. Das maiores cabeças nacionaes, ao seu tempo, e ainda hoje.

O outro, o terceiro amazonida, teve posições políticas. Barão de Manáos, titulou-o a princeza Izabel, a 27 de Julho de 1888. E' o unico amazonense do grupo. Por isso mesmo, o mais ignorado na sua terra. Triste destino de um povo!

Filiado á corrente conservadora, governou a Província, em 1885 e em 1887. Governou com decencia, com patriotismo. Administrou, é bem o termo. Não foi nunca um transfuga. Não foi nunca, porem, um escravisado ao partido para acceitar exigencias imprudentes, comprometedoras. Quantos lhe rascunharam a biographia accentuaram o prestigio popular que o animava para caminhadas pelo berço. Morreu em 1906, a 26 de Outubro, em Manáos. Sempre sob a admiração dos coestadanos. Seu nome — Clementino José Pereira Guimarães. Nascido no velho Logar da Barra, em 1828. Commendador da Ordem da Rosa, deram-lhe o nome á uma rua. Fragil homenagem, numa terra onde se louvam, nessas demonstrações, até quantos lhe sugaram as energias, lhe deram as horas amargas de agora!

Pensador, Sant' Anna Nery, Commendador Clementino, não proclama o leitor, tres homens do Amazonas? Homens, no sentido honesto!!?

Dormem, os tres, em S. João.

Porque os moços, que desejam licções no passado, não lhes estudam as vidas. E no dia de hoje, não lhes vão á necropole, numa visitação comovedora e a denotar que já se forma um espirito nosso, voltado para o que é do patrimonio amazonense?

Arthur Cezar Ferreira Reis.


REIS, Arthur Cezar Ferreira. Os que não morrem na gratidão dos amazônidas. Revista Redempção. Suplemento do dia 2 de novembro de 1932, p. 09-10. (Biblioteca Arthur Reis - CCPA).

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os enterros em Manaus antes dos cemitérios públicos

Vista da cidade tomada do bairro dos Remédios, onde ficava o cemitério de mesmo nome. Do lado direito o antigo cruzeiro de madeira que ficava na rua Leovigildo Coelho, à época conhecida como rua da Cruz. Gravura de Humbert. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le pays des Amazones. Paris, França: L. Frinzine et Cie, 1885, p. 293.

Antes da construção de cemitérios públicos em Manaus, os enterros, assim como no restante do Brasil nos períodos colonial e imperial, eram realizados no interior das Igrejas Católicas e nos terrenos ao redor destas. Era uma prática secular no país, trazida pelos portugueses, e milenar na Europa e no Oriente.

Essa antiga prática funerária tem origem na Antiguidade Tardia, nos cemitérios localizados fora das cidades, nos subúrbios, onde foram enterrados os primeiros mártires cristãos. Os cemitérios ficavam distantes da área urbana por determinação legal. A Lei das Doze Tábuas, instituída na República Romana, determinava no 1° artigo de sua 10° tábua, que versava sobre direito sacro, a proibição do enterro ou cremação de alguém falecido na cidade (LASSARD, 2014, p. 07). O Código Teodosiano, publicado no Império Romano do Oriente e posteriormente introduzido na parte Ocidental do Império, determinava o mesmo, de forma a preservar a sanctitas (santidade) das casas dos vivos (DUARTE, 2016, p. 75). Igrejas passaram a ser construídas onde os mártires eram sepultados. A população cristã, no desejo de estar em contato com esses mortos, símbolos do Sagrado, do contato com Deus, passou a querer ser enterrada junto a eles no interior desses templos. De acordo com o historiador francês Philippe Ariès, "chegou um momento em que a distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu" (ARIÈS, 1989, p. 26-27).


Praça IX de Novembro. Abandonada, sem uso recreativo, é utilizada como estacionamento. Foto de 27 de abril de 2012. FONTE: Blog do Karinha.

As posturas municipais, as falas e relatórios dos Presidentes da Província do Amazonas, os periódicos e pesquisadores indicam que desde tempos remotos, quando a cidade ainda era o Lugar da Barra, eram utilizados como locais de enterro a parte de trás da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, o largo da antiga Igreja Matriz, na Praça IX de Novembro, e as duas igrejas católicas da cidade, a dos Remédios e a antiga Matriz (destruída em um incêndio em 1850). No 1° capítulo do Código de Posturas Municipais de Manaus de 1848, sobre os cemitérios, ficou estabelecido em seus quatro artigos que as Câmaras Municipais que não construíssem cemitérios públicos com capelas, como disposto na Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828, seriam multadas pela Província, e que logo que estes fossem erguidos seriam proibidos os enterros dentro dos templos ou em seus átrios, sob pena de multa ou prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18). A lei não surtiu efeito imediato. Os enterros tradicionais continuariam por mais alguns anos.

O geógrafo, historiador e professor Agnello Bittencourt (1876-1975) afirma que, nos primórdios da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, entre os séculos XVII e XVIII, enquanto os brancos enterravam seus mortos ao redor da antiga Igreja Matriz, "os índios, para tal fim, usavam a área que ia do Forte à rua Bernardo Ramos", registrando que, quando o Governador Eduardo Gonçalves Ribeiro realizou obras na Praça Dom Pedro II, "grande número de igaçabas (urnas funerárias) foi encontrado, levando à conclusão de que o núcleo principal do cemitério ficava sob a praça e onde hoje se acham o Palácio Rio Branco e o grande edifício ao seu lado.  Centenas de urnas ali estavam, naquele miracangüera dos aborígenes" (BITTENCOURT, 1969, p. 32-33).

O jornal Estrella do Amazonas, em edição de 13 de maio de 1854, define os enterros nesses locais como uma "prática repugnante", e que

"[...] todos os dias observamos enterrarem-se os cadaveres no largo da extincta Matriz (um dos lugares mais frequentados da Cidade e que nunca servio de Cemiterio) e nas immediações da Igreja dos Remedios, onde se tem visto restos mortaes dos nossos semelhantes espalhados sobre a terra, e expostos sem o menor resguardo a voracidade dos cães e outros animais" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13/05/1854, p. 07).


Antigo cemitério indígena da Praça Dom Pedro II. Gravura de E. Riou, 1847. FONTE: MARCOY, Paul. Voyage à travers l' Amérique du Sud, de l' Océan Pacifique à l' Océan Atlantique. Tome deuxième. Paris: Librarie de L. Hachette  et Cie, 1869, p. 420.

Nesse mesmo ano, em agosto, o Presidente da Província do Amazonas, Conselheiro Herculano Ferreira Pena, ao falar sobre o cercamento do terreno da Igreja dos Remédios que funcionaria como cemitério provisório até a abertura do de São José, em 1856, informou em sua fala à Assembleia Legislativa que desde a conclusão desse trabalho "[...] cessou o triste e repugnante espetaculo dos enterramentos sem resguardo algum no Largo da antiga Matriz, e em outras paragens da Cidade igualmente frequentadas" (FALLA, 1854, p. 15).

Eram enterradas ad sanctos (dentro das igrejas) as pessoas mais abastadas da sociedade: grandes comerciantes, militares de alta patente, membros do clero e autoridades públicas. Quanto mais perto do altar mais cara era a sepultura. Nos terrenos ao redor dos templos (apud ecclesiam), em covas rasas, visitadas não só por cães, como mencionado pelo jornal Estrella do Amazonas, mas também por porcos e onças, as pessoas pobres, os escravos, os suicidas e não católicos. Era uma assustadora mistura de lama, carne e ossos.

Os enterros nas igrejas e em seus arredores, em Manaus, tiveram fim em 1854, com o cercamento e benção do Cemitério dos Remédios. A Câmara Municipal da então Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, em 29 de maio daquele ano, determinou o seguinte:

"A Camara Municipal da Cidade da Barra do Rio Negro, e seu Termo &.

Faz publico que d' ora em diante serão enterrados os cadaveres no antigo Cemiterio dos Remedios, que se acha cercado e preparado, e não nos templos, e em lugares improprios como até o presente tem sido feito, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão, como determina o artigo 5°. do Codigo de Posturas em vigor. E para que chegue ao conhecimento de todos será este publicado pelas ruas e praças publicas desta Cidade, e pela imprensa, e afixado no lugar de costume.

Paço da Camara Municipal 29 de Maio de 1854 - O Presidente Rafael d' Assumpção e Souza - Francisco Antonio Toscano de Vasconcelos, Secretario interino" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 07/06/1854, p. 03).

Em 20 de maio, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, reafirmou a proibição dos enterros em outros lugares que não fossem o Cemitério dos Remédios, sob pena de multa de 20 mil réis ou oito dias de prisão (ESTRELLA DO AMAZONAS, 1854, p. 02-03). Em 1856, durante uma grave epidemia de febre amarela, o Presidente da Província, João Pedro Dias Vieira, determinou o fechamento do Cemitério dos Remédios, entrando em atividade o Cemitério de São José (RELATÓRIO, 1856, p. 05), que funcionaria até 1891.


FONTES:


Estrella do Amazonas, 13/05/1854.

Estrella do Amazonas, 07/06/1854.

Estrella do Amazonas, 24/06/1854.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1° de agosto de 1854, em que se abrio a sua 3° sessão ordinaria, pelo presidente da provincia, o conselheiro Herculano Ferreina Penna.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, pelo excellentissimo senhor doutor João Pedro Dias Vieira, dignissimo presidente desta provincia, no dia 8 de julho de 1856 por occasião da primeira sessão ordinaria da terceira legislatura da mesma Assembléa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Tradução de Pedro Jordão. Lisboa (PT): Teorema, 1989.

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

DUARTE, Jôuldes Matos. Práticas mortuárias no cemitério do Polo Pilar do Bairro do Recife - PE. Dissertação (Mestrado em Arqueologia), UFPE, 2016. LASSARD, Yves. Lex duodecim Tabularum (Bruns). The Roman Law Library, 2014.

SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Manaus: amor e memória, de Thiago de Mello (1984)


Me acompanhou na última semana o livro ‘Manaus: amor e memória’, do poeta Thiago de Mello. Nele o escritor nos leva para a Manaus de sua juventude, entre as décadas de 1930 e 1940 (vez ou outra regredindo à década de 1920 e avançando até a de 1950), a cidade que vivia tempos amargos mas que continuava risonha, à espera de dias melhores. É um trabalho memorialístico, mas não da forma tradicional que conhecemos, em que se tenta afirmar um passado idílico, como o autor deixa claro: “Advirto que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de conversa e de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha esperança mais pelejada, está no futuro” (p. 22). Nos são apresentadas as alegrias e as dificuldades daquele jovem nascido em Barreirinha, de infância humilde e apaixonado pela terra.

Thiago de Mello idealizou o livro em 1973, durante seu exílio no Chile. Prometeu redigi-lo quando retornasse ao Brasil. O escreveu entre outubro de 1981 e outubro de 1982, quando já era um jovem senhor de 55, 56 anos, com muito para contar sobre sua infância em Manaus.

Por ser tratar de um livro de memórias, ele começa a falar sobre o tempo, tempo esse que dava e sobrava. Não era ainda a nossa unidade de medida que nos deixa todos os dias aflitos. Conversava-se sem se preocupar com atrasos. “Uma das esplêndidas instituições culturais de Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. De preferência, cadeiras de embalo. Melhor ainda se fossem de palhinha. Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, de onças e de serpentes, de febres e naufrágios, de assombrações e magias” (p. 33). Tempo de visitas, de passar o dia na casa dos amigos e vizinhos. Tempo da sesta depois do almoço, do respeito pelo sono alheio. Tempo de tomar benção aos pais. Costumes que muitos de nós ainda preservamos.

Ainda sobre a memória, é bom pontuar que Thiago de Mello não recorreu apenas às suas. Para a feitura do livro ouviu várias pessoas de sua geração e mais velhas, como sua mãe, dona Maria, Ulysses Bittencourt, Mário Ypiranga Monteiro, Luiz Bacellar, Emídio Vaz de Oliveira, Eldah Bitton, José Franco de Sá, Moura Tapajoz, Ruy Lins, Samuel Benchimol, Aderson Dutra e tantos outros amigos de infância, vizinhos e colegas de trabalho.

Como dito anteriormente, eram tempos difíceis. Ajudava a enfrentar os dissabores da vida a cordialidade entre as pessoas, umas ajudando as outras como podiam, fosse com um cumprimento, um pouco de açúcar, uma tigela de mingau de tapioca. “Isso não quer dizer”, registra Thiago, “que a vizinhança estivesse formada por pessoas excepcionais. Não. Eram pessoas comuns, mas com as triviais virtudes e imperfeições humanas, que é como deve ser. Só que sabiam valorizar a convivência” (p. 35). Foi dentro desse universo, formado pelas ruas Dr. Almínio, Isabel, José Paranaguá, Lima Bacury e Quintino Bocaiuva, que ele viveu intensamente, também se aventurando por outros lugares da cidade.

A cidade de dimensões geográficas bem definidas, dividida em pouquíssimos bairros naquele período, tinha sons e cheiros inconfundíveis. Aqui Thiago de Mello atua como um perspicaz antropólogo: Os sons dos apitos das fábricas anunciando o início das atividades, acordando seus funcionários, marcando o horário do almoço e do retorno, dos navios chegando e partindo, o badalar dos sinos das igrejas nos dias santificados, as músicas dos vendedores de comidas e miúdos, dos hidroaviões da PanAir, das casas onde se cantava e tocava piano e violino, dos alto-falantes dos cinemas e dos que informavam o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Eram sons dos mais variados. (p. 43-72). Os cheiros, assim como os sons, eram diversos. De borracha e madeiras sendo cortadas, dos óleos e essências, do sangue e das vísceras do Matadouro, dos cheiros do Porto, da fumaça dos navios, da graxa e das mercadorias transportadas, dos produtos nobres das casas comerciais refinadas, do guaraná, dos peixes, frutas, verduras, mingaus e das tartarugas do Mercado Municipal, das flores, dos remédios vermífugos e fortificantes, dos cabelos das jovens caboclas (p. 75-81).

A última parte do livro é o ABC da cidade, ou como denominou o poeta, “ABCedário íntimo para uso público – um ABC que já perdeu a voz mas nos ensina a soletrar o tempo (p. 85-251). Em cada letra são abordadas memórias sobre praças, ruas, escolas, clubes, livrarias, cinemas, personagens e brincadeiras. É o A dos árabes, que chegaram sem um tostão no bolso mas que conseguiram prosperar, dos alfaiates e alfaiatarias com suas sedas e linhos; B de borracha, cortada ao meio nas casas exportadoras, dos bondes diários, onde se conversava, se via e namorava, das brincadeiras de roda embaladas por cantigas; C de Clube da Madrugada, já na década de 1950, ali na Praça do Ginásio (como ele chama a Praça da Polícia), das catraias que levavam e traziam trabalhadores do Educandos e São Raimundo, da Carmem Doida, muitas vezes incompreendida, a dançar nas ruas do Centro. É um abecedário que revela, instiga, emociona e diverte.

Além de ser um livro de leitura agradável, ‘Manaus: amor e memória’ é uma fonte rica de informações sobre a cidade entre os anos de 1930 e 1940, período pouco estudo em detrimento de outros recortes históricos (1890-1920 e 1960-1970) mas que nos últimos anos vêm despertando o interesse de pesquisadores das mais variadas temáticas, em cujos trabalhos, nas referências, entre os memorialistas, aparece o nome do presente trabalho resenhado.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

MELLO, Thiago de. Manaus: amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984 (Coleção Ofício de viver, 1).



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A La Ville de Paris, em Manaus

Prédio da antiga joalheria A La Ville de Paris. FOTO: Christoph Berquet, 2020.

A joalheria A La Ville de Paris, cujo imponente prédio, entre a Avenida Sete de Setembro e a rua Lobo d' Almada, ainda existe, foi uma das mais refinadas e tradicionais de Manaus, tendo funcionado por quase um século, de 1878 a 1963.

Quando da sua inauguração, a Avenida Sete de Setembro era conhecida como Rua Brasileira, e a rua Lobo d' Almada como Travessa da Matriz. O empreendimento foi idealizado pelos comerciantes e irmãos Maurice Aron, Henri e Lucien Levy, judeus naturais da Alsácia, na França (BLAY, 2017, p. 96). A sociedade passou a ser conhecida como Levy Fréres (Irmãos Levy).

Nesse primeiro momento, em que a joalheria tinha apenas o primeiro andar, os relógios já eram o carro chefe das vendas. Por um breve momento, em 1888, a casa abrigou um relojoeiro e ourives suíço especialista em relógios (A PROVÍNCIA DO AMAZONAS, 1888, p. 04).

A La Ville de Paris em 1913. FONTE: Revista Cá & Lá, anno 1, n° 6, maio de 1914, p. 10.

Em 1900, no auge de seus negócios, os irmãos Levy decidem reformar o prédio da joalheria, lhe sendo acrescido um segundo andar. A data, até pouco tempo atrás, podia ser vista abaixo da janela principal do segundo andar. Nas últimas reformas ela desapareceu.

No início do século XX, conforme anúncios publicados no Jornal do Commercio e na revista Cá & Lá, faziam sucesso os relógios das marcas Omega, Elgin, Waltham e Roskopf. A casa comercializava jóias de ouro e platina, pedras preciosas, prataria, despertadores, instrumentos musicais de sopro e corda, gramofones da famosa marca Victor, discos, binóculos, bússolas e termômetros (JORNAL DO COMMERCIO, 29/08/1913, p. 40 e REVISTA CÁ & LÁ, maio de 1914, p. 10). A La Ville de Paris possuía casa compradora em Paris, localizada na Rua D' Hauteville, n° 89, no 10° distrito da capital francesa, na margem direita do Rio Sena.

Interior da A La Ville de Paris. FONTE: BLAY, 2017, p. 126.

A La Ville de Paris foi administrada pelos irmãos Levy até o início da década de 1920, quando foi adquirida pela firma Crehange & Cia, do diplomata francês Louis Crehange. Em 18 de abril de 1925 Louis Crehange e Maurice Aron Levy constituem a sociedade Crehange & Levy, em substituição à Crehange & Cia. Os dois empresários administram a joalheria, de acordo com o Almanak Laemmert, até 1931 (ALMANAK LAEMMERT, 1931, vol. 3, p. 163).

Em 1935 a joalheria enviou para o Jornal do Commercio alguns presentes de Natal. Na nota publicada no periódico é registrado como único proprietário Maurice Aron Levy, o que indica que Louis Crehange havia saído da sociedade (JORNAL DO COMMERCIO, 24/12/1935, p. 01). Em levantamento das empresas de judeus amazonenses e descendentes nas décadas de 1940 e 1950, o sociólogo Samuel Benchimol registra que Maurice Aron Levy ainda era seu proprietário em 1940 (BENCHIMOL, 1999, p. 326).

Anúncio de 1946 da La Ville de Paris, já com o nome traduzido para A Cidade de Paris. FONTE: Jornal do Commercio, 01/05/1946, p. 08.

Anúncio dos anos finais, de 1960. FONTE: Jornal do Commercio, 01/01/1960, p. 08.

Em algum momento da década de 1940 o negócio foi comprado pelo empresário Antônio José Pires, da A. Pires & Comp. Um dos acontecimentos mais marcantes que ocorreu na joalheria foi o grande furto que sofreu em 24 de maio de 1947, causando um prejuízo de mais de 300 mil cruzeiros. Os autores do crime, Cristóvão Bolívar e Felipe Rubiano, foram capturados em 01 de junho de 1947 e as jóias recuperadas (JORNAL DO COMMERCIO, 03/06/1947, p. 06).

Antônio José Pires foi seu último proprietário, administrando a casa até 1963. Em 23 de junho de 1964 o antigo prédio da A La Ville de Paris foi vendido para a Lojas Combrasil, que nele instalou uma unidade de suas lojas de eletrodomésticos.

De 1974 a 1995 funcionou como Drogaria São Paulo II. O prédio, para nosso deleite, segue sendo preservado pela atual proprietária, a Drogaria FarmaBem.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia - Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer/Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

BLAY, Eva Alterman. O Brasil como destino: raízes da imigração judaica contemporânea para São Paulo. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017.

domingo, 6 de setembro de 2020

Entrevista: José Geraldo Xavier dos Anjos


José Geraldo Xavier dos Anjos nasceu na cidade de Manaus, Estado do Amazonas. Tem Graduação em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Especialização em Sistema de Informações Voltados para o Usuário pela mesma instituição, Especialização em Livros Raros e Documentação Antiga pela Biblioteca Nacional e Especialização em História da Saúde na Amazônia pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Foi Membro do Conselho Estadual de Cultura do Amazonas (1993-1994), do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Alfredo da Matta (2000), do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge, Chefe de Gabinete da Fundação Hospital Adriano Jorge (2007-2010) e Chefe do Departamento de Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge até março de 2019. Atualmente é Diretor em exercício de Ensino e Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge. Coordenou, no Amazonas, o projeto de microfilmagem dos relatórios dos Presidentes da Província e da coleção de jornais do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), além de ter participado do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, que microfilmou a documentação histórica sobre o Brasil nos arquivos de Portugal e da Espanha. É membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Possui artigos publicados em jornais e revistas, bem como livros sobre a História da cidade de Manaus e História da Medicina.


— Primeiramente, obrigado por conceder a entrevista. Para iniciarmos, conte um pouco de sua origem e sua família.

- Sou filho de Geraldo Rocha dos Anjos, descendente de família nordestina, e Joana Vasconcelos Xavier dos Anjos, descendente de família portuguesa. Estudei o Primário no Grupo Escolar Getúlio Vargas, Ginasial e Pedagógico no Instituto de Educação do Amazonas e o Científico no Colégio Dom Pedro II. Cursei Biblioteconomia na UFAM. Meu pai era funcionário público municipal e minha mãe era do lar. Com minha mãe aprendi a ler e essa é uma paixão que perdura até hoje. Aos 12 anos comecei por sua influência a ler os grandes clássicos da literatura assim como a conhecer as obras dos grandes filósofos.


— Foi esse incentivo materno pela leitura que lhe motivou, posteriormente, a enveredar pela pesquisa histórica?

- Sim. Tanto no Primário até o término do Segundo Grau eu só tirava 10 em História e Geografia. Na Faculdade, as matérias que tinham História eram nota 10. Na Graduação em Biblioteconomia o que levou à ampliação do conhecimento em História foi a matéria História do Livro e das Bibliotecas, que me deu uma grande base de conhecimento.


— Devo supor que também foi essa influência materna que motivou a escolha pela Graduação em Biblioteconomia, correto? Ou também existiram outros fatores?

- Não. Meus pais queriam que eu estudasse Direito ou Medicina, pois a maior parte da minha família é da área do Direito. Tem juízes, desembargadores e por aí vai. Já a Medicina era desejo do meu padrinho que era o médico e político Menandro Tapajós, que presidiu a Assembleia e foi Governador do Estado. A opção pela Biblioteconomia veio porque gostava muito de ler e achava que em uma biblioteca teria muitos livros para ler, principalmente de História e Geografia.


— Após a Graduação, como foram os primeiros anos de atuação na área? Era um campo pouco explorado na época ou já estava consolidado?

- Logo no segundo ano do curso fui trabalhar na Biblioteca Pública do Estado como Auxiliar de Bibliotecário. Na época ainda não existia a internet então a Biblioteca era bem frequentada por alunos para fazer seus trabalhos. Recebíamos cerca de 300 a 400 deles. A profissão era consolidada, pois já tínhamos as bibliotecas da UFAM, CODEAMA, EMATER e ICOTI, todas com profissionais bibliotecários. Alguns destes órgãos que citei já foram extintos.


— Em que ano você se tornou membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)? Como seu deu o contato com essa instituição e o seu ingresso?

- Com a criação do Ministério da Cultura no Governo Sarney e sendo indicado como Ministro o grande Celso Furtado, as instituições de cultura tomaram um grande fôlego para organizar, planejar e restaurar o patrimônio cultural do país que estava abandonado há anos. Em 1983 a Biblioteca Nacional cria o primeiro curso de Especialização em Obras Raras e Documentos Antigos. Me inscrevi e com a autorização da minha chefia fui para o Rio de Janeiro cursar a Especialização na Biblioteca Nacional, onde tive a oportunidade de conhecer todos os tipos de acervos que compõe a memória nacional. Na volta comecei a organizar a seção de obras raras da Biblioteca Pública. Sabendo deste meu conhecimento, o Presidente do IGHA, na época Robério Braga, me convidou para fazer um diagnóstico do acervo documental e quando me deparei com o rico acervo meu diagnóstico em relatório foi que todo o acervo era raro e único. Fui convidado a fazer parte da equipe de bibliotecários, museólogos, arqueólogos e jornalistas que naquele momento também faziam a transformação e organização do IGHA para servir a sociedade. Duas semanas depois de estar no IGHA fui convidado para assumir o cargo de Diretor Administrativo, o que com muito medo aceitei. Continuamos o trabalho administrativo, organizando os acervos de manuscritos e criando um catálogo. Neste mesmo tempo é criado o Plano Nacional de Microfilmagem de Jornais. Fui convidado pela Coordenadora Nacional, Dra. Esther Bertoletti, para coordenar o projeto no Amazonas. Como resultado de anos neste projeto, o Amazonas microfilmou 80 mil páginas de jornais que hoje alunos e pesquisadores do mundo inteiro usam em suas pesquisas. Também no IGHA participamos do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, que microfilmou toda a documentação da época da Colônia que se encontra em Portugal e na Espanha. Com todo este trabalho no IGHA em 1992 fui consultado pelo Presidente da época, Comendador Junot Carlos Frederico, se não queria fazer parte da sociedade do IGHA, mas que teria que passar pelo processo de seleção. Fui aprovado pela comissão de sindicância e tomei posse no dia 25 de março de 1993 e estou até hoje numa busca incansável pela preservação desta casa de memória do Estado. Tive o prazer de ser o Secretário Geral em muitas diretorias e cheguei ao ápice de presidir o IGHA.


— Nesse período em que você se tornou membro do IGHA, ainda estavam em plena atividade pesquisadores e membros como Mário Ypiranga Monteiro, Padre Raimundo Nonato Pinheiro e outros. De que forma você percebia o panorama intelectual daquele momento?

- Nesta época de convivência no IGHA me tornei amigo de Mário Ypiranga Monteiro, que corrigiu meus primeiros escritos sobre a cidade de Manaus e me levou para a Associação Brasileira de Folclore, seção Amazonas, para fazermos pesquisas o que provocou uma ciumeira danada por ele ter me convidado. Tive e tenho até hoje uma grande amizade com o grande Antonio Loureiro, que também tem lido o que escrevo e me dá suas opiniões. Outro que entrou depois de mim e que fizemos boas parcerias de pesquisa foi o Coronel Roberto Mendonça, com Edinea Mascarenhas Dias.


— Mais recentemente você se tornou membro do IHGB, instituição mór dos institutos históricos e geográficos do Brasil, fundada por Dom Pedro II em 1838. Como se deu o ingresso nessa prestigiada casa de cultura?

- Em novembro de 2018 recebi um telefonema do Presidente do IHGB, Prof. Dr. Arno Wehling, perguntando se gostaria de fazer parte da instituição como membro correspondente e de pronto aceitei a honraria, pois nunca passou na minha cabeça ser membro de uma instituição fundada por Dom Pedro II e de muitas tradições e que já tinha abrigado as inteligências de Arthur Reis e Mário Ypiranga Monteiro. Fui o quarto amazonense a fazer parte desta plêiade de intelectuais que pensam o Brasil. Tive o prazer de tomar posse no ano passado na Presidência de meu amigo particular, Vicente Chermont de Miranda, de tradicional família paraense.


— Além do IGHA você também é Imortal da Academia Amazonense de Letras. São duas das mais antigas instituições culturais do Estado, fundadas em 1917 e 1918 respectivamente. De que forma você enxerga a relação delas com a comunidade?

- Antigamente estas duas casas de cultura eram tidas como lugares vetustos onde só penetravam seus associados e convidados. Quando assumi a administração do IGHA em 1984, comecei a conversar com a Diretoria a abertura do acervo para pesquisadores. No primeiro momento a ideia não foi bem aceita mas fui insistindo e começamos a receber pesquisadores da UFAM que precisavam de material para fazer suas monografias e teses. Me lembro que o primeiro trabalho de defesa de Mestrado foi o da historiadora Eloína Monteiro e isso foi muito bom pois os sócios viram resultados e citações do nome do IGHA no trabalho. Depois veio Selda Vale, Narciso Lobo, Neide Gondim e Edinea Mascarenhas, todos jovens professores da Universidade Federal do Amazonas. Daí em diante não paramos mais de receber pesquisadores. Já a Academia começa a ter uma relação maior com a comunidade na Presidência de José Braga, que criou o projeto Academia de Portas Abertas, no qual recebemos alunos pesquisadores para uma visita e para conversar com os membros da Academia.


— Além da formação voltada para a pesquisa documental, você também possui uma Especialização em História da Saúde na Amazônia. Quando surgiu o interesse por essa área específica da História?

- Surgiu quando trabalhava na assessoria da SUSAM. Em conversa com o Dr. Marcos Barros ele me perguntou porquê eu não me preocupava em estudar a História da saúde no Amazonas, já que tinha muita gente pesquisando a História da cidade. Fiquei pensando na ideia, aí fui organizar a biblioteca da Fundação Alfredo da Matta. Chegando lá comecei a perguntar se os funcionários conheciam o patrono da instituição e ninguém conhecia. Comecei a pesquisar quem tinha sido esta grande figura da saúde. Neste tempo foi criada a FAPEAM e apresentei um projeto e ganhei uma bolsa para pesquisar a obra de Alfredo da Matta. Daí em diante não parei mais de pesquisar sobre História da saúde. Quando em 2010 a FIOCRUZ-Manaus ofereceu o primeiro curso de Especialização em História da Saúde na Amazônia, me inscrevi, fiz a prova e logrei êxito e hoje sou um Especialista nesta área. Participo de grupos de pesquisas, seminários e congressos com esta temática, sempre apresentando pesquisas novas nesses eventos.


— Ainda sobre a História da Saúde na Amazônia, que pesquisas você vem desenvolvendo sobre essa temática?

- Temos trabalhos publicados sobre as doenças na Amazônia Colonial, Alfredo da Matta e a saúde no Amazonas, as epidemias no Amazonas (1855-1930 e 1930-2000), Djalma Batista e a tuberculose no Amazonas, Saúde no Amazonas (1890-1920 e 1930-2000), História da Hanseníase no Amazonas, Os leprosários em Manaus e agora estou desenvolvendo um projeto sobre o sanitarismo no Amazonas. Todos estes trabalhos estão publicados em anais de congressos, jornais e revistas da área.


— Durante sua trajetória acadêmica, quais autores foram marcantes?

- Jean-Jacques Rousseau, Walter Benjamin, Jacques Le Goff, Eduardo Galvão, Gore Vidal e tantos outros que no momento não me recordo.


— Em algum momento você cogitou seguir a docência?

- Quando terminei a Especialização em Livros Raros e Documentação Antiga fui convidado pelos professores do curso de Biblioteconomia para fazer parte do quadro de professores, mas recusei pois já estava desenvolvendo o projeto de organização da Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, e também já estava administrando o IGHA e não me via dentro de uma sala dando aula.


— Sobre qual tema versou seu trabalho de conclusão de curso na Especialização em História da Saúde na Amazônia?

- Alfredo da Matta e a Saúde no Amazonas.


— Poderia dar mais detalhes sobre?

- O trabalho consiste na pesquisa sobre a atuação do médico Alfredo da Matta no Estado do Amazonas como gestor público, sua produção científica, participações em congressos nacionais e internacionais e a criação da Revista Amazonas Médico.


— Para concluir, que mensagem você deixa para os futuros acadêmicos em História?

- Que os futuros pesquisadores tenham consciência de seu papel perante a comunidade científica e com a sociedade, trazendo novas luzes para a conhecimento da História de nosso Estado e tenham você, jovem apaixonado pelos meandros da História, como inspiração.

sábado, 15 de agosto de 2020

Inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Manaus (1878)

Gravura da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. FONTE: NERY, Frederico José de Sant' Anna. Le pays des Amazones. Paris, França: L. Frinzine et Cie, 1885, p. 269.

A Catedral de Nossa Senhora da Conceição, ponto de referência de fé, tradição e cultura na vida dos amazonenses, está localizada na Praça Oswaldo Cruz, popularmente conhecida como da Matriz, no Centro. É a principal e mais antiga igreja da cidade, erguida no período Provincial entre 1858 e 1878.

Essa construção substituiu a antiga, dos tempos da administração do Brigadeiro Manuel da Gama Lobo d' Almada (1788-1799), destruída em um incêndio em 1850. Até sua conclusão, serviu de Igreja Matriz da cidade a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, localizada em bairro homônimo. A pedra fundamental do novo templo foi lançada às 7 da manhã do dia 23 de julho de 1858 pelo Presidente da Província do Amazonas Francisco José Furtado. A data não foi escolhida ao acaso. Nesse mesmo dia comemorou-se Santo Apolinário e o aniversário da ascensão de Dom Pedro II ao trono (23 de julho de 1840). Estiveram presentes no evento autoridades militares, religiosas, comerciantes, funcionários públicos e grande número de populares.

Terminadas as cerimônias religiosas, o Presidente e o Vigário Geral colocaram no centro da parede da capela mór uma pedra quadrangular com uma cavidade, depositando nela um cofre de madeira com o auto de lançamento da pedra fundamental e duas moedas, uma de ouro e outra de prata:

"[...] a primeira do pezo de quatro oitavas e do valor de deseseis mil reis, cunhada no anno de mil oitocentos e quarenta e sete, tendo de um lado a Efigie de Sua Magestade o Imperador o Senhor DOM PEDRO SEGUNDO com a inscripção seguinte - PETRUS II D. G. C. IMP. ET PERP. BRAZ. DEF. - e no verso as Armas Imperiaes com a inscripção seguinte - IN HOC SIGNO VINCES -; e a de prata, do valor de dous mil reis, cunhada no anno de mil oitocentos e cincoenta e sete, tendo de um lado o algarismo do seu valor com a mesma inscripção da moeda de ouro e no verso as Armas Imperiaes com a seguinte inscripção - IN HOC SIGNO VINCES" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 28/07/1858, p. 03).

Falta de mão de obra especializada, de materiais, de recursos e mudanças nos projetos fizeram as obras se arrastarem por 20 anos, como se pode atestar a partir da leitura das falas e relatórios dos Presidentes da Província.

O então Diretor Interino de Obras Públicas, João Wilkens de Mattos, informou ao Presidente Francisco José Furtado que os sapadores utilizados nas obras da Matriz eram "[...] africanos livres dados á continuada embriaguez, que só fazem algum trabalho emquanto estou presente; logo que me retiro da obra, onde não me é possivel permanecer o dia inteiro, fazem a cêra que querem, por que nenhum respeito guardão ao feitor" (AMAZONAS. Relatório. 07/09/1858, p. 03-04). Para que isso fosse evitado, além de descontar nas diárias dos sapadores, sugeriu que a área da construção fosse cercada, existindo um único portão para entrada e saída. Os trabalhadores entrariam às 6 da manhã e sairiam às 16 horas. A cerca também impediria que os materiais fossem furtados (AMAZONAS. Relatório. 07/09/1858, p. 04).

Em 1864, o Presidente Adolfo de Barros Cavalcante de Albuquerque Lacerda informava em seu relatório que as obras da Matriz estavam paralisadas "por se ter esgotado o saldo de 815$065 rs., que restava, quando tomei conta da administração, do credito de 10:000$000 rs. consignado no orçamento d' aquelle exercicio, e do producto de uma loteria extrahida na côrte, na importancia de 11:100$000 rs" (AMAZONAS. Relatório. 01/10/1864, p. 16).

O Presidente João Wilkens de Mattos, em relatório de 1869, afirmou que as obras da Matriz poderiam estar mais adiantadas se não fossem as dificuldades em se obter materiais, sobretudo tijolos. "As olarias", registra, "por mais que s' exforcem, não produzem bastante para satisfazer as necessidades do publico" (AMAZONAS. Relatório. 04/04/1869, p. 34).

Anos mais tarde, em 1873, o Presidente Domingos Monteiro Peixoto registrou em sua fala à Assembleia Legislativa que Manaus poderia ter, já em sua administração, um excelente templo católico "[...] si desde o começo se adoptasse um plano definitivo e fosse executado com systema; assim não aconteceu, o plano primitivo da Matriz soffreu constantes modificações, cada um imprimiu-lhe o seu gosto, de forma que a construcção tem-se executado com vagar, com demasiada despeza, e apresenta defeitos que hoje é impossivel corrigir" (AMAZONAS. Falla. 25/03/1873, p. 31).

Depois de 20 anos, chegara o tão aguardado dia da inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, esperada pelos administradores e pela população. O Presidente da Província do Amazonas, Rufino Enéas Gustavo Galvão, o Barão de Maracajú, informa em fala à Assembleia Legislativa que a Igreja foi concluída no mês de agosto de 1877 e inaugurada em 15 de agosto de 1878, quando foi benta (AMAZONAS. Falla, 25/08/1878, p. 52).


FONTES:

Estrella do Amazonas, 28/07/1858.

Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão ordinaria em o dia 7 de setembro de 1858. Francisco José Furtado, presidente da mesma provincia.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Amazonas na sessão ordinaria de 1° de outubro de 1864, pelo dr. Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, presidente da mesma provincia.

Relatorio com que o exmo. sr. presidente da provincia do Amazonas, tenente coronel João Wilkens de Mattos, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 4 de abril de 1869.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11° Legislatura em 25 de março de 1873 pelo presidente da provincia, bacharel Domingos Monteiro Peixoto.

Falla com que o Exmo. Sr. Barão de Maracajú, presidente desta provincia, abrio no dia 25 de agosto de 1878 a Assembléa Legislativa do Amazonas.