Casas na região do Rio Amazonas. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
A
casa, do latim domus,
domínio, é um espaço que vem chamando a atenção historiadores
que buscam analisar suas
transformações
ao longo do tempo, pois ela é o
local de desenvolvimento da vida privada, de toda uma sociabilidade
que diz respeito à família. Como era a casa manauara dos primeiros
séculos? Como era mobiliada? No presente texto buscaremos responder
essas perguntas.
As
casas da maior parte dos habitantes do Brasil Colônia
eram bastante simples, sem maior apuro arquitetônico. Também eram
pouco confortáveis e pobremente mobiliadas. Poucas tinham algum
estilo e mobília refinada, pertencendo a senhores de engenho,
militares de alta patente e ricos comerciantes. A
historiadora Leila Mezan Algranti elenca como causas dessa
simplicidade, vista por cronistas e viajantes como marca de um
primitivismo, a condição de colônia do território, ou seja, um
local de passagem; a vida marcada pela dureza, que deixava pouco
tempo sobrando para se pensar de forma detalhada na organização
residencial; e o pouco interesse em relação à vida íntima.
Nos dão notícia sobre a casa manauara viajantes estrangeiros e
brasileiros que estiveram na cidade entre os
séculos
XVIII
e XIX.
No
final do século XVIII (1786),
o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, durante sua
Viagem
Filosófica,
passou pelo então Lugar da Barra. Seu relato nos revela algumas
particularidades sobre as residências daquela época. Ele registrou
que a casa do vigário era térrea, coberta de palha e dividida em
quatro casas interiores, todas com portas, janelas de madeira e
fechaduras, o que revela o desejo de manter preservado e seguro tal
ambiente. A casa do comandante, por outro lado, também servia de
armazém. Igual à do vigário, era coberta de palha. Raras eram as
que tinham
cobertura de telhas de barro. Ferreira afirma que as melhores casas
eram as dos moradores brancos Manoel Tomé Gomes, Manoel Pinto
Catalão, Inácia Lindoza e Madalena de Vasconcelos. “Todas as
outras ficavam mais ou menos arruinadas”.
Por
volta de 1819, os naturalistas alemães Carl Friedrich Philipp von
Martius e Johann Baptist von Spix, durante sua viagem pelo Brasil,
estiveram no Lugar da Barra. As casas por eles descritas eram
simples, de um único pavimento, “[…] cujas paredes são
construídas de pau-a-pique e barro, cobertas geralmente de folhas de
palmeira”.
Restaram desse tempo apenas dois exemplares, localizados na rua
Bernardo Ramos, antiga rua de São Vicente, em bairro homônimo.
Possuem um único pavimento, tendo sido construídas de taipa de
pilão.
No lugar das folhas de palmeira, foram cobertas com telhas. Possuem
portas e janelas largas, facilitando a ventilação. São
típicas residências do período Colonial. Poucas eram mais
arrojadas, como era o caso do sobrado do Capitão Francisco Ricardo
Zany, onde Martius e Spix ficaram hospedados, que era mais imponente
que a residência do Governador da Capitania. Deve-se destacar que
Manaus não chegou a ter residências senhoriais como as do Pará,
onde se encontram belíssimos exemplares construídos entre a segunda
metade do século XVIII e o início do século XIX.
O
militar e historiador português Antônio Ladislau Monteiro Baena
informa que, em 1838, a maioria das casas do Lugar da Barra era
coberta de palha, assim como o Palácio dos Governadores, a
Provedoria, o Quartel e os edifícios da ribeira onde eram
construídas canoas e batelões. Por outro lado, “São cobertos com
telha a olaria, o hospital militar, os armazéns da provedoria e os
dos meios de guerra como aramas e pólvoras e algumas casas dos
moradores”.
A paisagem ainda era a mesma dos tempos coloniais.
Alfred
Russell Wallace, de passagem pela agora Cidade da Barra em 1849,
registrou que suas casas continuavam com um único pavimento, mas já
eram cobertas com telhas vermelhas e assoalhadas com tijolos. As
paredes eram pintadas de branco ou de amarelo, e as portas e janelas
de verde. “Quando o sol bate sobre elas, o efeito é muito
bonito”.
Ele ficou hospedado em uma residência de propriedade do comerciante
italiano Henrique Antony, um dos mais prósperos do Amazonas. Wallace
não teceu maiores comentários sobre a moradia, o que nos leva a
pensar que ela atendeu as
expectativas do visitante no que diz respeito às instalações,
móveis e outros objetos. Somente relatos posteriores nos dão
algumas notícias sobre o mobiliário.
Sala de jantar em Manaus. Gravura de Édouard Riou publicada na obra Dois Anos no Brasil, de François-Auguste Biard, 1862. FONTE: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Na
obra Dois
anos no Brasil (1862),
do pintor e desenhista francês François-Auguste Biard, temos a
gravura de uma sala de jantar em Manaus. Podemos observar alguns
aspectos do local. Existe uma mesa, mas não se veem
cadeiras. O habitante da Manaus daquele tempo, assim como o de outras
partes do Império, estava acostumado a sentar-se no chão ou em
esteiras, como se fazia desde o início
da
conquista. Chão esse, aliás, de terra batida. Os
talheres ainda eram raros na maioria das casas. O normal era comer
com as mãos. Garfo, faca e colher, geralmente importados, só em
casas de mais posse.
O
fogão, a lenha, ficava fora de casa. Só mais tarde, por volta de
1870-1880, com surgem os fogões como conhecemos atualmente. Outro
detalhe interesse é a presença de muitos macacos no recinto. Os
animais de estimação eram criados soltos, sendo encontrados
espalhados
pela casa.
Em
1865 o casal de viajantes Louis e Elisabeth Agassiz, em visita a
Manaus, ficaram hospedados na casa do Major Coutinho. Encontraram a
residência sem mobília. Para dar um bom aspecto ao local, foram
emprestadas cadeiras e mesas de um vizinho. A pobreza mobiliária se
fazia presente até mesmo nas residências dos membros mais
destacados da sociedade. Sobre o aspecto geral da cidade, afirmaram
que ela era “[…] uma pequena reunião de casas, a metade das
quais parece prestes a cair em ruínas”.
Após retornarem de uma viagem, ficaram instalados em um prédio que
havia funcionado como secretariado de finanças. Ele era espaçoso,
tinha várias portas e janelas. Um salão era usado como quarto e
sala. Nos fundos ficavam penduradas as redes, as malas e as caixas.
Do outro lado ficavam duas mesas de escrever, uma cadeira de balanço,
uma de viagem e outros móveis. Os Agassiz, agora melhor acomodados,
perceberam que essa mobília dava “[…] a esse canto do
apartamento um certo ar de intimidade e o tornam mesmo bastante
confortável”. A construção, apesar da grandeza, tinha as paredes
sem reboque, com cumieiras descobertas e “[…] pavimentos de
tijolos em que passeiam os ratos”.
Ao comentar sobre um baile a ser realizado na residência do
Presidente da Província, notaram que apesar do pomposo título de
Palácio, não passava de uma casa pequena sem maiores atrativos.

Tapuias em sua residência em Manaus. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
Também
são
de
1865 dois
registros
feitos
pelo fotógrafo alemão Albert Frisch. No
primeiro
temos
uma família de tapuias na porta de sua casa em Manaus. Entre a
numerosa família e
a casa simples, de pau-a-pique, vemos
uma esteira, absorvida pelo colono desde o início da colonização,
fazendo
a vez de cama;
um banco, do lado de fora; e um tear mecânico onde estava
trabalhando uma mulher. Em
uma cidade ainda privada de maiores divertimentos, esse aparelho
funcionava como objeto de trabalho e também de passatempo. O segundo
registro mostra duas casas na região do Rio Amazonas. É
uma paisagem bucólica quase
inalterada, lembrando as casas descritas por Martius e Spix em 1819 e
Baena em 1838.
Outros
móveis faziam parte da mobília da
casa
do manauara entre
os séculos XVII e XIX.
O historiador Mário Ypiranga Monteiro os divide da
seguinte forma:
“baú, arca, rede de dormir e canastra. Suas posições na casa, a
partir da sala de visitas, eram cativas, determinadas pelas
necessidades práticas e não pelo bom gosto: baú na sala (e rede de
dormir, não raro), arca na alcova (e rede de dormir), esteira na
sala, na alcova e na casa de refeições; rede de dormir (essencial)
na alcova e na varanda; canastra na casa de refeições ou num quarto
a mais se houver”.
Ainda demoraria algum tempo para que a residência manauara ganhasse
outro aspecto e uma mobília mais numerosa
e refinada.
Encontramos
indícios de mudanças em anúncios de jornais publicados no final do
século XIX. Em 1877 o jornal Amazonas
informava que na rocinha do Comendador Mesquita, localizada no bairro
dos Remédios, estavam disponíveis para venda os seguintes objetos:
“um bom piano, uma mobilia, uma meza elastica com vinte e dois
palmos de comprimento, uma dita para escriptorio, duas bancas para
quarto com gaveta, duas sacretarias, um espelho grande e doirado,
dois theares, bancos envernisados, cabides, camas de lona, lavatorios
e seus pertences, tamboretas com assento de palinha, dois oratorios,
e outros objecto para o uzo domestico”.
Em um leilão de móveis realizado em 1890 foram vendidas “uma
mobilia de mogno para sala, 2 cadeiras de balanço, seis cadeiras de
varanda, 1 commoda, 1 toillet, 1 cama com colchão de molla, 1
manequim, um par de candieiros, um dito de castiçaes de vidro com
pingentes, uma maquina de costura, um almofadão, uma bilheira,
quatro bancos, um berço, bidet, uma cama de madeira, um lavatorio e
outros objectos”.
Os móveis eram construídos por marceneiros profissionais, pelos
alunos do Instituto de Educandos Artífices e também importados de
outras Províncias e países.
E
o banheiro, um dos locais mais importantes da casa? Mário Ypiranga
nos informa que o manauara de baixa renda satisfazia suas
necessidades às margens dos igarapés e nas áreas de mata,
abundantes na Manaus dos primeiros séculos. Esse costume fez com que
os banheiros fossem construídos fora da residência. Eram as famosas
casinhas de madeira. Um anúncio de venda de uma casa em 1888 nos
mostra que existia uma divisão entre o banheiro, para o asseio
corporal, e a latrina, onde se faziam as necessidades: “Nesta
typographia informa-se quem vende uma boa casa com bastantes
accomodações para numerosa família: contende alem de cinco bons
quartos, de dous grandes salões, da cozinha e varanda, um quintal
regular todo plantado de arvores fructiferas, com poço, banheiro,
latrina etc”.
Além da casinha existiam utensílios como o coronel, capitão,
furriel, iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e comadre. Quando esses
objetos ficavam cheios de urina e fezes, eram recolhidos pelo
tigreiros, escravos que tinham a função de despejá-los em locais
distantes da área urbana. Os banheiros domésticos com latrinas e
bacios de louça eram privilégio das classes mais abastadas.
No
Código de Posturas Municipais de 1848 ficou estabelecido que as
edificações só poderiam ser erguidas após receberem licença da
Câmara Municipal para que a obra ficasse alinhada à rua. As casas
deveriam ser elegantes e seguir uma regularidade externa determinada
pela Câmara. No Código de Posturas de 1872 encontramos um
interessante artigo que determina que
“Fica
proibido de ora em diante, nas ruas dos Remédios, Boa-Vista,
Espírito Santo, Marcílio Dias, Flores, Imperador, Brasileira,
Manaus até o aterro, Henrique Martins, Cinco de Setembro, S.
Vicente, Independência e Travessas que lhe são correspondentes, e
em todas as praças, a edificação de casas cobertas de palha; sob a
pena de demolir-se a obra por conta de quem a fizer e sujeito a multa
de trinta mil réis ou oito dias de prisão”.
Essa
postura revela a tentativa de se modificar a aparência da cidade,
dotando-a de características modernas. O artigo 2° da Postura de
1875 determina que ficava proibida a construção de casebres ou
pequenos quartos dentro do alinhamento das ruas, praças e travessas
sem que seus proprietários, antes, levantassem um muro simulando a
fachada de uma casa. A pena era de 30$000 réis ou oito dias de
prisão. Os Códigos publicados a partir de 1890, além de
reafirmarem antigas proibições como a necessidade de autorização
da Câmara para o início de qualquer construção, determinam que os
prédios de alvenaria ou taipa que estivessem sem reboco deveriam ser
rebocados e caiados dentro de seis meses, sob pena de multa de 30$000
réis ou 4 dias de prisão.
Vivia-se
um novo período marcado por profundas transformações urbanas
gestadas pela economia da borracha. Gestores e a elite local, visando
atrair investimentos para a cidade, passam a buscar dotá-la de
melhoramentos e apagar os vestígios de uma cultura local marcada
pela simplicidade e
vista como atrasada.
De acordo com a historiadora Edinea Mascarenhas Dias,
“A
modernidade em Manaus não só substitui a madeira pelo ferro, o
barro pela alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a
carroça pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela luz
elétrica, mas também transforma a paisagem natural, destrói
antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em
trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação,
desenvolve a imigração. É a modernidade que chega ao porto de
lenha, com sua visão transformadora, arrasando com o atrasado e
feio, e construindo o moderno e belo”.
Antigo Palacete Garcia. Gravura de 1885. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le Pays des Amazones, 1885, p. 309.
Palacetes
e casarões, residências com certa imponência, surgem timidamente
na cidade a partir da segunda metade do século XIX. O Palacete
Garcia foi um dos
primeiros.
Com construção iniciada por volta de 1860, seria a residência de
Custódio Pires Garcia, Capitão da Guarda Nacional. Foi adquirido
pelo Governo da Província em 1867 para abrigar diferentes
repartições públicas, sendo a Polícia Militar a que mais tempo o
ocupou. Foi concluído em 1874. Atualmente funciona como Centro
Cultural Palacete Provincial, na Praça Heliodoro Balbi (da Polícia).
O
Palacete de Leonardo Ferreira Marques, o Barão de São Leonardo,
funcionou posteriormente como Asilo Orfanológico Elisa Souto, Museu
Botânico do Amazonas e Instituto Benjamin Constant, inaugurado em
1894. Está localizado na rua Ramos Ferreira. Data de 1899 o
belíssimo Palacete Nery, entre a Avenida Joaquim Nabuco e a rua dos
Andradas. Antiga propriedade da família Nery, foi projetado em
estilo Neoclássico pelo arquiteto e engenheiro italiano Filinto
Santoro.
A
casa manauara dos primeiros séculos, no geral, era simples,
construída de taipa, coberta com palha ou
folhas de palmeira e pobremente mobiliada. Existiam algumas exceções,
como os sobrados e
palacetes de
ricos comerciantes que
começaram
a surgir na segunda metade do século XIX. Mas mesmo nessas nobres
residências faltava conforto, que só seria plenamente encontrado ao
final de 1800, quando a economia gomífera começou a modificar o
espaço urbano, o cotidiano, a moda e os modos da sociedade.
NOTAS: