segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O Amazonas na época da Elevação à categoria de Província

Bandeira do Amazonas.

Naquele 05 de Setembro de 1850, encerrava-se, pela força da lei, uma luta. Luta por emancipação política que teve início décadas antes. A antiga Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará, foi elevada, através da Lei n° 582 de 05 de Setembro daquele ano, à categoria de Província do Amazonas. Emancipada essa porção territorial, criada uma nova unidade política, era preciso organizar a administração, ver o que existia, o que faltava, cuidar da arrecadação. Enfim, planejar o futuro da nova Província.

Os limites da Província do Amazonas seriam os mesmos da antiga Capitania de São José do Rio Negro, “com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da Cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro de Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro” (REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas, 2° ed, 1989, p. 121).

Quando a Província foi entregue a seu primeiro Presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851, esta contava com um Comando Geral, criado em 05 de julho de 1737, que compreendia todo o território; a Guarda Policial, criada em 04 de abril de 1837, formada por dois Batalhões com uma força de 1339 praças; nos portos existiam 12 oficiais militares destacados; e as Companhias de Trabalhadores, instituídas pela Lei n° 02 de 25 de abril de 1838, que eram instituições que recrutavam trabalhadores, índios e mestiços, para a prestação de serviços compulsórios para o Estado e particulares. Foi criada uma Companhia Provisória de Caçadores de 1° Linha, que contava com 84 praças. Existiam também 39 praças destacadas que pertenciam ao 3° Batalhão de Artilharia a pé. Com 2 Termos com foro independente, o Amazonas possuía 4 municípios, 20 freguesias, 18 Distritos de Paz, 2 Delegacias e 11 Subdelegacias.

O estado da segurança pública era considerado lisonjeiro, ainda que as maiores ameaças consideradas pelos administradores locais fossem os ataques de indígenas das tribos arara, macûs, muras e karipuna, que vez ou outra assaltavam embarcações e matavam seus passageiros. Tenreiro Aranha tomou medidas para coibir esses ataques e punir seus autores.

No que diz respeito ao culto público, representado pela religião Católica, existiam 3 Missões na região para a catequese dos indígenas: a de Porto Alegre, em São Joaquim do Rio Branco, no Alto Rio Branco, onde eram catequizados uapixanas, macuxis, jaricunas, anhuaques, arutanis, procutus e saparás; a de Japurá, Içá e Tonantins, na margem esquerda do Solimões, cujos trabalhos eram feitos com ticunas, mariatés, xomanas, juris e passés; e a do Andirá, em Vila Nova da Rainha (Parintins), voltada para a catequese de maués e muras. As missões não estavam dando os resultados esperados, o que era atribuído “a carencia de Missionarios esclarecidos, e animados de fervor religioso, e de patriotismo; a insufficiencia dos meios pecuniarios, de que se tem disposto; e a falta de um systema de educação mais apropriada” (EXPOSIÇÃO, 1851).

Em aspectos educacionais, em seus anos iniciais a Província possuía 8 escolas de ensino primário, das quais 7 estavam plenamente providas de todos os materiais necessários para o funcionamento. A única instituição de ensino secundário, o Seminário de São José, criado em 1848, ficava na capital, Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro (Manaus). Nela eram ensinada gramática latina, língua francesa, música e canto. À época era frequentado por 17 alunos, sendo 13 internos. Em trabalho de recenseamento realizado em 1851, a população foi estimada em 29.798 habitantes, sendo 7.815 homens livres e 225 escravos, 8.772 mulheres livres e 272 escravas, 6.776 menores do sexo masculino livres e 117 escravos, e 5.685 menores do sexo feminino livres e 136 escravas.

Assim se encontrava a Província do Amazonas, de acordo com a Exposição apresentada em 09 de dezembro de 1851 por Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província do Pará, a João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Fausto concluiu sua exposição desejando sucesso a Tenreiro Aranha e ao Amazonas: "Concluindo, felicito a V. Exa. pela gloria, que lhe caberá, de dar á Provincia do Amazonas o impulso, que deve acceleral-a na carreira do progresso, desenvolvendo largamente os grandes meios que ella possue, e que lhe afiançam, no porvir, um logar a par das que mais hajam florescido" (EXPOSIÇÃO, 1851).

A par dessas informações, do lugar que primeiro administraria, Tenreiro Aranha pôde enfim instalá-la em 01 de Janeiro de 1852, no prédio da Câmara Municipal de Manaus. Instalada, nomeados seus vice-presidentes e demais funcionários, seguiram-se os festejos e dois tradicionais atos religiosos, o de Ação de Graças, na capela do Seminário de São José, e o Te Deum Laudamus (A Ti Louvamos, Deus), na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, que estava servindo de Igreja Matriz.

Em 1852 foi levantada a planta de Manaus. Nela, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, do Espírito Santo e do Aterro, que cortavam seus poucos bairros, Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente. As ruas continuavam estreitas e curtas, como nos tempos coloniais, definidas de forma natural pelo terreno. Registra-se, ainda, como acontecimento marcante para a região, a introdução da navegação a vapor mediante a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Manaus no tempo dos ingleses

Bosque Municipal, ponto de encontro da colônia inglesa em Manaus. Foto de 1927. FONTE: Fanpage Manaus Sorriso.

Não tem como falar da História de Manaus sem fazer referência à presença e influência inglesa entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Nesse período a cidade era o principal polo econômico da Amazônia e um dos mais importantes centros comerciais do mundo, enriquecida graças à exploração da goma elástica. Os ingleses, assim como outros estrangeiros, aqui se estabeleceram em busca de auferir lucros com a corrida da borracha. Deixaram suas marcas na economia, na arquitetura, na moda e nos costumes.

O mundo vivia sob influência política e econômica do poderoso Império Inglês, que estava no auge de seu crescimento industrial, possibilitado pelo investimento do capital acumulado durante a expansão marítima entre os séculos XVI e XVIII na indústria. As grandes potências realizavam investimentos onde era possível adquirir matérias-primas para suas indústrias e onde estavam localizados mercados consumidores para seus produtos manufaturados. O capital inglês, registra o historiador Eric Hobsbawn em A Era do Capital (1996), foi responsável por desenvolver a infraestrutura da América do Sul e de outros continentes. Surgiram ferrovias, portos e serviços, explorados por longos anos por empresas sediadas em Londres. O pacto colonial já havia deixado de ser uma realidade, mas a dependência em relação às metrópoles continuaria nessa nova fase de expansão do capitalismo, que dominaria os mais distantes rincões do mundo.

A primeira ação inglesa no Amazonas se deu por volta de 1860. O governo inglês pressionou o Império Brasileiro para que ele abrisse os portos do Rio Amazonas às nações estrangeiras, fechados desde o período Colonial. Após longos debates, foi lavrada em 07 de setembro de 1867 a lei que abria os portos do Rio Amazonas às grandes potências, favorecendo principalmente a Inglaterra, que em pouco tempo passou a dominar a navegação na região. Conforme estudos do historiador amazonense Antonio José Souto Loureiro, autor de O Amazonas na Época Imperial (1989, p. 154-155), em 1871 empresários ingleses compram a Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá em 1852, a transformando na The Amazon Steamship Navigation Company Limited. A Companhia Fluvial do Alto Amazonas também teve seus direitos transferidos para aquela companhia em 1874.

Com a abertura dos portos, os produtos ingleses invadiram os mercados locais. Nos jornais amazonenses encontramos aos montes anúncios de chapéus de sol, camisas, botas, sapatos, máquinas de costura, instrumentos musicais, armas, relógios, estopa, conservas, geleias, bebidas, manteigas e outras mercadorias sendo vendidos por casas comerciais de Manaus. Enfatizava-se, em cada informe, a excepcional qualidade que possuíam. Em contrapartida, a exportação de produtos animais e vegetais, com destaque para a borracha, utilizada nas indústrias de revestimento de cabos elétricos e automobilística, teve largo crescimento, possibilitando, a partir de 1880, um surto de desenvolvimento jamais antes visto na região. Isso só foi possível, deve-se lembrar, graças à criação, em 1839, pelo inventor norte-americano Charles Goodyear (1800-1860), do processo de vulcanização, no qual o uso do calor e do enxofre aumentou a durabilidade da borracha, impedindo que ela se degradasse pela ação climática. Os impostos arrecadados através da exportação foram aplicados, em diferentes administrações estaduais e municipais, na modernização de Manaus.

Membros da colônia inglesa em Manaus. Foto do início do século XX. FONTE: SCHWEICKARDT, Júlio César. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930). Tese de Doutorado, Fiocruz, 2009.

Manaus, agora transformada no principal centro financeiro da Amazônia, necessitava de uma série de melhorias. Faltava um bom sistema de comunicação, um porto flutuante, energia elétrica e abastecimento regular de água e esgoto. Como vinha ocorrendo em várias partes do mundo, o Estado, em troca da implantação desses serviços, concedeu o direito de exploração a empresas estrangeiras, leia-se inglesas. Antônio Loureiro, em A Grande Crise (2008, p. 95-97), nos dá um panorama dessas concessões: Em 1895 é fundada a The Amazon Telegraph Company Ltd., concessionária da comunicação por cabo fluvial entre Manaus e Belém e, por submarino, entre Belém e a Europa. É formada em 1909 a Booth Steamship Company, de navegação internacional entre a Europa e os Estados Unidos. A The Amazon Steamship Navigation Company Ltd. é transformada em 1911 na The Amazon River Steamship Company Ltd. Em 1902 é fundada a The Manáos Harbour Limited, responsável pela construção e exploração do Porto de Manaus, com uma concessão de exploração por 60 anos. Também foi responsável pela construção do novo prédio da Alfândega, erguido entre 1906 e 1909. A concessionária do serviço de abastecimento de água e esgotos, Manáos Improvements Ltd., foi fundada em 1906. O mercado e o matadouro público passaram a ser administrados pela The Manáos Markets and Slaughterhouse Ltd. O serviço de bondes elétricos foi concedido à The Manáos Railway Company em 1895, mesmo ano em que o serviço de energia elétrica é concedido à The Manáos Eletric Lighting Company. Em 1909 bonde e energia elétrica passaram a ser explorados pela The Manáos Tramways and Light Company Ltd.

O Governo esperava que as concessões garantissem, além da arrecadação e do melhoramento técnico da cidade, o bom funcionamento desses serviços para os moradores. No entanto, a realidade nem sempre foi essa. Várias vezes o Estado e a população tiveram que entrar em confronto com as concessionárias inglesas por conta do péssimo serviço oferecido, pelos abusos no aumento das taxas e, principalmente, pela pouca atenção aos interesses locais. A Manáos Harbour, por exemplo, desde o início oferecia um serviço muito abaixo do esperado. Em 07 de agosto de 1904 assim se manifestava o Jornal do Commercio a seu respeito: “Os atropellos que ao commercio desta praça tem imposto a archi-poderosa empreza que houve carta testamentaria para espraiar seus dominios no littoral desta cidade, são notorios já e patentes e formam um longo rosario de indestrutiveis e irritantes desmandos”. Em 1913 o escritório da Manáos Improvements foi destruído pela população, enfurecida pelos constantes e exorbitantes aumentos. A Manáos Markets foi encampada durante a Revolução de 1924. A Manáos Tramways and Light Company foi encampada pelo Estado em 1950. O porto foi a concessão inglesa que mais durou, encampado pelo Estado apenas em 1967.

Em 06 de novembro de 1901 é instalada na antiga Rua Doutor Constantino Nery, atual Monteiro de Souza, uma agência do London and Brazilian Bank Ltd. Posteriormente é aberta uma agência do The London & River Plate Bank Ltd. Os dois são fundidos em 1923, dando origem ao London Bank, com agência na rua Guilherme Moreira. A economia do Estado do Amazonas, que àquela altura já representava uma das principais arrecadações do país, circulava por essas instituições. Só para termos uma ideia em valores, em 1910 a cotação da borracha atingiu, de acordo com Samuel Benchimol em Amazônia – Formação Social e Cultural (1999, p. 209), a cifra de 665 libras por tonelada, sendo exportadas 38.206 toneladas. Consultando o Annuario de Manáos (1913-1914), encontramos os nomes de algumas das mais afamadas e poderosas casas exportadoras inglesas estabelecidas em Manaus: Adelbert H. Alden, Ahlers & Cia, De Lagotellerie & Cia, General Rubber Co. Of Brasil, W. Peters & Cia e Zarges, Ohliger & Cia.

Vieram para a cidade engenheiros, médicos, funcionários públicos, banqueiros, empresários e investidores que construíram carreiras sólidas e pequenas fortunas. O médico Hermenegildo Lopes de Campos, em sua Climatologia médica do Estado do Amazonas (1988, p. 101), calculou que em 1903 residiam em Manaus de 70 a 75 ingleses. Destacamos o Sr. Stanley Sutton, gerente da Manáos Harbour; Arthur James Billet, adjunto do Contador da Manáos Harbour, George Clawson Browne, funcionário da mesma empresa; Mr. Forbes e Mr. Turner, gerente e diretor da Manáos Tramways and Light Company respectivamente; Edmund Compton, sócio da casa comercial Compton, Meech & Cia; F. Higson, sócio da firma Higson & Fall; Fanny Hughes de Oliveira, esposa do Coronel Manoel Dias de Oliveira, corretor da Junta Comercial do Amazonas. O médico canadense Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas (1875-1931), do laboratório da Liverpool School of Tropical Medicine, fundado em Manaus em 1910, atendia cidadãos ingleses e alemães. Caminhando pelo do Cemitério de São João Batista encontramos alguns túmulos de membros da colônia. Vejamos a trajetória de Alfred John Toone (1882-1906), impressa em uma bela lápide de granito negro: Filho mais velho de Charles e Sarah Toone, nasceu no município de Liscard, na Inglaterra, tendo trabalhado por oito anos no escritório de Liverpool da Booth Steamship Company, posteriormente vindo trabalhar no Brasil. Faleceu 5 meses depois de deixar a Inglaterra, em 16 de fevereiro de 1906, possivelmente vítima de alguma doença tropical. Seu túmulo foi uma homenagem da empresa pelos serviços prestados. Muitos deles se relacionavam com a comunidade local através da presença em outros clubes, como o Luso Sporting Clube, dos portugueses, que admitia como sócios cidadãos ingleses e de outras nacionalidades.

Manáos Athletic Club. Foto de 1913. FONTE: Acervo do pesquisador Gaspar Vieira Neto.

Diferentes esportes praticados pelos ingleses foram introduzidos na cidade. Partidas de futebol já eram realizadas em Manaus desde o início do século XX. Eles fundaram em 1908 um clube de futebol, o Manáos Athletic Club, constituído unicamente por súditos da velha Albion. O corpo administrativo desse clube eleito em 1911 nos dá uma ideia dessa composição: “Presidente, W. Robilliard; secretario, T. C. Shaw; thesoureiro, A. H. Samuels; capitain, E, Compton; director-fiscal, W. Baumann; vogaes, Aimers, Gordon. Higson, Douglas, Dening”. Por volta de 1900-1904 foram fundados o Cricket Club e o Manáos Tennis Club. Todos esses esportes eram praticados em um local de uso exclusivo, o aristocrático Bosque Municipal, também conhecido como Bosque dos Ingleses, localizado na antiga Estrada de Flores, atual Avenida Constantino Nery. O Jornal do Commercio informava em edição de 17 de abril de 1904 que “No bosque municipal haverá hoje jogo de cricket pelas turmas que no domingo passado estiveram ali disputando um match”. Eles comemoravam com grandes festividades as principais datas do calendário britânico, com especial destaque para os aniversários de membros da Família Real. Os eventos aumentaram consideravelmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que eram angariados fundos para a Cruz Vermelha.

Os memorialistas lembram com saudosismo da Manaus dos ingleses. Agnello Bittencourt (1876-1975), renomado professor e historiador amazonense, pontua, em Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências (1969, p. 70), que nesse período, apesar do clima tropical, os membros da elite vestiam-se seguindo o rigor da moda europeia, em especial a francesa e a inglesa, com “as mulheres espartilhadas e vestidas até aos pés em pesadas sêdas; os homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso estilo “fin-de-siècle”. Os homens procuravam estar sempre apresentáveis, vestindo belíssimos ternos de linho branco H.J. inglês, comercializados nas melhores lojas da cidade. Desde o século XIX a língua inglesa era ensinada nos estabelecimentos de educação e cobrada nos concursos públicos.

Restam hoje alguns exemplares de arquitetura genuinamente inglesa. O primeiro é o Porto Flutuante, popularmente conhecido como Roadway. É o maior porto flutuante do mundo, acompanhando as cheias e as vazantes do Rio Negro. Na mesma região encontra-se a Alfândega, pré-fabricado na Inglaterra e projetado pelos arquitetos Edmund Fisher, H. M. Fletcher e G. Pinkerton. Nas palavras do historiador paraense Leandro Tocantins, em O Rio Comanda a Vida (2000, p. 234), é um edifício “vistoso, arquitetura eclética, sendo uma reprodução de prédio inglês comum nas ruas londrinas de 1900”. Próximo dali, entre a Travessa Vivaldo Lima e a Rua Taqueirinha, estão o prédio do antigo Museu do Porto, construído em 1903 para abrigar a usina de força do cais do porto; e a antiga Administração do Porto. Assim como a Alfândega, foram construídos em estilo inglês, com tijolos aparentes.

O tempo dos ingleses se esvaiu juntamente à bancarrota que atingiu a região amazônica entre 1913-1920. A borracha produzida nos seringais planejados das colônias inglesas e holandesas no sudeste asiático, fruto do contrabando por eles feito por volta de 1870, superou a produção nativa. Empresas fecharam, serviços foram paralisados, obras deixaram de ser construídas. Parte daqueles que se aventuraram no passado deixando a Terra da Rainha em direção ao “Inferno Verde”, rumaram de volta para Londres, Liverpool, Manchester e outras cidades de médio e pequeno porte, levando, com certeza, lembranças da vida nos trópicos. O capital inglês, que por mais de duas décadas foi aqui aplicado, agora seria direcionado para a Ásia. Terminava assim a saga inglesa em Manaus.


FONTES:


Annuario de Manáos, 1913-1914. Acervo particular do pesquisador Ed Lincon Barros Silva.

Correio Sportivo, 12/03/1911.

Jornal do Commercio, 07/08/1904.

Jornal do Commercio, 17/04/1904.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer, 1999.

CAMPOS, Hermenegildo Lopes de. Climatologia médica do Estado do Amazonas. Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1988 (fac-similado, 1909).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de ManausPródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. 5° ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

___________________________. A Grande Crise. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2008.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia. 9° ed. rev. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Índex de Livros Proibidos e a Inquisição Católica

Inquisição. Pintura de Edouard Moyse (1872). FONTE: commons.wikimedia.org.

No período da Contrarreforma, em que a Igreja Católica se viu diante das ameaças do Protestantismo, que ganhava, naquele contexto da Modernidade, grande número de adeptos, já fazendo-se presente em algumas das principais Cortes europeias, a autoridade papal utilizou poderosos mecanismos de controle e repressão, destacando-se o Index librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos), datado de 1559, e a Inquisição, já utilizada na Idade Média e reativada na Idade Moderna.

As listas de livros proibidos já circulavam em universidades de Teologia pelo menos desde o início do século XVI. Coube ao Papa Paulo IV a promoção de uma lista de trabalhos considerados hereges e que, por isso, deveriam ser proibidos em toda a Cristandade. Interessante destacar que não foram apenas os livros protestantes a serem proibidos, mas também os trabalhos clássicos de humanistas. Autores como Dante Alighieri, Michel de Montaigne, René Descartes, Montesquieau, La Fontaine, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire tiveram suas obras listadas no índex. Deve-se destacar que a censura já se fazia presente desde os tempos de Paulo de Tarso. Em Atos 19, Paulo se dirigiu à cidade de Éfeso para converter judeus e gregos. Nessa ocasião, os recém convertidos se desfizeram de seus antigos livros de magia:

"E foi isto notório a todos que habitavam em Éfeso, tanto judeus como gregos; e caiu temor sobre todos eles, e o nome do Senhor Jesus era engrandecido. E muitos dos que tinham crido vinham, confessando e publicando os seus feitos. Também muitos dos que seguiam arte mágicas trouxeram os seus livros, e os queimaram na presença de todos e, feita a conta do seu preço, acharam que montava a cinquenta mil peças de prata" (ATOS 19:17-19).

Não só os autores sofriam com a censura. Os impressores de livros e jornais e os livreiros também eram vigiados pela Igreja. A fiscalização, feita com frequência, era severa e muitas vezes arruinava as vendas, pois o material, caso não estivesse de acordo com as determinações da Santa Sé, era confiscado e posteriormente eliminado. O historiador britânico Toby Green registra que a repressão acabava estimulando a procura pelos livros proibidos, que se tornavam cada vez mais valiosos. Surgia assim um contrabando rentável de obras, que chegavam aos seus destinos escondidas em baús, roupas e navios.

O historiador norte-americano Carter Lindberg, autor de História da Reforma (2017), registra, no entanto, que a historiografia mais recente afirma que o Index não teve um efeito tão devastador como se imagina, sendo “menos uma “cortina de ferro” que uma rede de malha” (LINDBERG, 2017, p. 492). Lindberg mostra que as visões sobre o período, ainda falando sobre o Index, são marcadas pela ponderação entre a rigidez e a continuidade da produção de cultural, embora autores como Gleason e Silvana Menchi mostrem os efeitos da repressão. A proibição de obras, pela Igreja, durou, embora já bastante enfraquecida, até 1966.

A Inquisição poder ser definida, de forma pedagógica, como um instrumento legal de perseguição a heresias, tendo suas raízes na repressão ao catarismo no século XIII. Na Espanha, no final do século XV, ela teve como alvo o judaísmo, determinando a conversão ao Cristianismo aos seus praticantes. Esses cristãos-novos, assim como seus descendentes, continuaram a ser perseguidos por conta da suspeita da continuidade de seus antigos cultos. Durante e após a Reconquista, além dos judeus, também foram perseguidos e mortos muçulmanos recém-convertidos. 

Lindberg pontua que existiam na Europa sistemas legais seculares mais severos que a Inquisição, como a pena das galés, mas nenhum com efeitos psicológicos tão duradouros quanto ela, que promovia uma intensa exploração do medo, através, principalmente, da humilhação pública dos condenados. O historiador britânico Toby Green, autor de Inquisição: O Reinado do Medo (2012), recuperou bem essa dimensão psicológica, mostrando como o medo era almejado pelas autoridades inquisitoriais:

"Esse terror era cuidadosamente cultivado pelas autoridades inquisitoriais. Em 1564, um advogado escreveu à Suprema para dizer que na Galícia era necessário que as pessoas "alimentassem o medo", respeitando a Inquisição. Em 1578, ao reeditar o Directorium Inquisitorium, texto sobre os procedimentos inquisitoriais de Nicolas de Eymeric, inquisidor de Aragão no século XIV, Francisco Peña escreveu: "Devemos recordar que o objetivo essencial do julgamento e da sentença de morte não é salvar a alma do acusado, mas fazer o bem público e aterrorizar as gentes" (GREEN, 2012, p. 28).

Mais uma vez o autor nos convida a contextualizar esse instrumento, mostrando que a tortura, na qual logo se pensa quando se fala em Inquisição, tinha uma dinâmica própria, sendo mais moderada do que se imagina. A Inquisição espanhola tinha relação com o Estado, este último a utilizando como mecanismo de controle social não apenas de hereges, mas também de estrangeiros que poderiam comprometer a organização social. O Papa Paulo IV, interessado pelos resultados da Inquisição, a aplicou na Itália e posteriormente a toda a Cristandade, organizando o tribunal romano, com juízes dominicanos e cardeais escolhidos pelo Papa. Lindberg afirma que a Inquisição “serviu de arma defensiva da Contrarreforma” (LINDBERG, 2017, p. 497).

Após nos inteirarmos brevemente sobre o funcionamento do Index librorum prohibitorum e da Inquisição, tendo como base as pesquisas de Carter Lindberg e Toby Green, concluímos que eles foram mecanismos importantes na Reforma Católica ou Contrarreforma, muito mais de defesa do que de ataque, em um período em que o enfrentamento ao Protestantismo tornou-se mais rígido, embora fique claro que a natureza de ambos foi revisitada pela historiografia mais recente, que buscou contextualizá-los e historicizá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LINDBERG, Carter. História da Reforma. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

sábado, 18 de junho de 2022

O que é História Cultural?

A Dança Camponesa. Pintura de Pieter Bruegel, o Velho (1567). FONTE: commons.wikimedia.org.

O que é História Cultural? Essa pergunta é antiga. De acordo com o historiador inglês Peter Burke, autor de O que é História Cultural? (2005), ela foi formulada no final do século XIX pelo historiador alemão Karl Lamprechet. Desde então muito já se escreveu e se refletiu sobre, mas ainda não existe uma resposta concreta, ou, pelo menos, uma resposta totalmente aceita pela comunidade acadêmica. Como entender a História Cultural, dada a sua complexidade? A presente reflexão, singela, abordará a História Cultural como um campo historiográfico.

A História Cultural pode ser entendida como um campo historiográfico em que seus praticantes realizam uma interpretação cultural da História. Cultura é um conceito polissêmico, o que garante certas especificidades a esse campo, que é estudado e praticado desde a segunda metade do século XIX, sendo redescoberto na década de 1970. Em uma definição simples, mas não satisfatória, cultura pode ser entendida como um conjunto de práticas que caracterizam determinado grupo social. Existe a cultura popular, a cultura erudita, a cultura material, a cultura imaterial etc.

Peter Burke (2005) divide a História Cultural em quatro fases: fase clássica, fase da História social da arte, fase da descoberta da História da cultura popular e a fase da Nova História cultural. A primeira vai de 1800 a 1950. Os historiadores desse período voltam-se para o estudo dos clássicos da arte, da filosofia, da literatura e da ciência. A segunda tem início na década de 1930, sendo marcada pela produção de trabalhos que abordavam a arte através de uma perspectiva social. A terceira fase, surgida na década de 1960, tem como principal característica a “descoberta do povo”, isto é, a descoberta do protagonismo das classes populares (operários, camponeses, artesãos), anteriormente relegadas ao esquecimento. A quarte e última fase, denominada Nova História Cultural, está em pleno desenvolvimento desde a década de 1980. Caracteriza-se pelo diálogo com outras ciências como a Antropologia, a Sociologia e as Ciências Sociais.

Essa redescoberta ocorrida na década de 1970 está ligada às transformações pelas quais passaram as ciências humanas nesse período, transformações essas que dizem respeito à valorização das diferenças culturais, dos modos de vida das sociedades. Em síntese, tudo que está relacionado à identidade cultural. Os historiadores culturais buscam significados, práticas e representações, elementos simbólicos construídos pelo homem ao longo de sua trajetória. Por dedicar-se ao simbólico e ao abstrato, a História Cultural possui uma abordagem diferente do que ocorre, por exemplo, nas histórias política e econômica. Ela oferece uma gama de possibilidades de estudos. O pesquisador que se dedica a esse campo pode produzir uma História do cotidiano, História da vida privada, História dos costumes, História da morte, História da sexualidade etc. Aparentemente não existem fronteiras para os estudos culturais, pois tudo está permeado pela cultura humana.

Outro fator que possibilitou essa redescoberta de História Cultural foi a crise dos paradigmas, que atingiu principalmente o marxismo, enfraquecido pela denúncia dos crimes cometidos por Josef Stálin na União Soviética, o que causou uma cisão na intelectualidade marxista. A historiadora Sandra Jatahy Pesavento, em História & História Cultural (2003), explica que a visão mecanicista, etapista, materialista e economicista do marxismo tradicional passou a ser criticada e vista como insuficiente para a produção do conhecimento histórico. A abordagem cultural, dessa forma, tornou-se uma alternativa para superar essa crise.

Uma característica importante da História Cultural, brevemente destacada anteriormente, é sua interdisciplinaridade, a relação com outros campos do conhecimento humano. Os historiadores culturais, em seus estudos, lançam mão de conhecimentos em Ciências Sociais, Sociologia, Antropologia, Linguística e outras ciências que auxiliem nos estudos sobre a cultura em suas mais diferentes dimensões. O diálogo com outras áreas torna-se essencial. Os pesquisadores desse campo também procuram utilizar métodos qualitativos em vez de quantitativos, como o levantamento seriado de fontes. Isso não quer dizer, no entanto, que não existam historiadores culturais que o façam. Um exemplo que pode ser dado são os estudos culturais que utilizam a demografia, sendo necessária a utilização de fontes seriadas como registros de nascimento e de óbito.

Como todo campo historiográfico, a História Cultural está ligada à diferentes tradições culturais de origem nacional. Existem as tradições germânica, holandesa, inglesa, norte-americana e francesa, para ficarmos apenas em alguns exemplos básicos. Cada uma possui sua particularidade. A francesa possui algumas especificidades que devem ser destacadas, como, por exemplo, suas abordagens, surgidas através da Escola dos Annales, sobre as mentalidades, as sensibilidades, as representações coletivas, a cultura material e o imaginário social. São autores renomados Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie e Alain Corbain.

A História Cultural é, portanto, um campo historiográfico no qual a cultura é o prisma da análise histórica de seus historiadores praticantes. Isso quer dizer que práticas, pensamentos, gestos, símbolos, são seus objetos de estudo. Os métodos utilizados podem ser qualitativos e, em menor ocorrência, quantitativos. E por ser a cultura um conceito com diferentes significados, em constante mudança, a História Cultural está em plena expansão, oferecendo diferentes possibilidades aos pesquisadores.


sexta-feira, 25 de março de 2022

Matéria viscosa, matéria vistosa: a escarradeira

Escarradeira de porcelana francesa. FONTE: Leslie Diniz Leilões.

A escarradeira, também conhecida como cuspideira e salivadeira, é um objeto utilizado, como revelam seus nomes, para escarrar e cuspir. Suas origens remontam à Idade Média Oriental. Na China, por exemplo, foram encontradas escarradeiras em tumbas de imperadores que remontam ao século VIII. As intensas trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente, no século XVI, fizeram as escarradeiras se popularizar nas Cortes da Europa - escarrar era um hábito - principalmente durante o apogeu das exportações de tabaco das colônias portuguesas e espanholas na América. Após o tabaco ser mascado, ele era cuspido nesses recipientes. Além desse uso, a escarradeira também era utilizada para fins médicos, com a eliminação de secreções decorrentes de doenças como a gripe e a tuberculose. 

Sua chegada ao Brasil se deu entre fins do século XVIII e início do XIX. Encontramos em jornais do Rio de Janeiro publicados entre as décadas de 1820 e 1840, pessoas anunciando a compra e a venda de escarradeiras. Em 1827, a Chácara Copacabana, do Padre Jacinto Pires Lima, foi furtada por uma quadrilha. Dentre os inúmeros itens subtraídos, consta uma escarradeira (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 30/03/1827, p. 03). Por volta de 1838, uma pessoa anônima, estabelecida na rua do Valongo, comprava objetos de segunda mão. Um dos objetos que procurava, ao lado de uma bacia e jarro de prata, era a escarradeira (O DESPERTADOR, 30/11/1838, p. 04). Em um leilão realizado em 1845 na rua do Ouvidor, foi leiloada uma escarradeira feita de mogno (JORNAL DO COMMERCIO, 20/06/1845, p. 03). O lampista Auguste Daveau, proprietário da loja 'Bule Monstro', anunciava ter para vender em 1859 "escarradeiras de latão e de folha envernizada, ditas hygienicas de patente" (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1859, p. 86).

A escarradeira, que já tinha uma origem ligada a membros do topo da hierarquia social, foi incorporada no Brasil pela nobreza, pela burguesia e pela classe média urbana. As utilizadas por esses segmentos eram feitas de porcelana, de louça, de faiança, de vidro e de madeiras e metais nobres. Eram decoradas com motivos florais, com paisagens bucólicas do campo, figuras de animais e muitas vezes suas formas, sendo mais empregada as do leão, com a representação de seu rosto e suas patas, de forma a lembrar, talvez, as origens orientais. Na geografia doméstica, a escarradeira, que poderia ser uma ou duas, ficava na sala, ao lado das cadeiras e sofás, e também debaixo ou ao lado da cama, junto do urinol. O sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre registra que elas também eram postas na porta de casa, onde recebiam os visitantes: "Os viajantes estrangeiros que aqui estiveram no fim do século XVIII e no começo do XIX não se cansam de censurar nos brasileiros daquele tempo o mau hábito de viveram cuspindo, as salas cheias de escarradeiras ou cusparadas" (FREYRE, 2013). Os viajantes estrangeiros encontraram escarradeiras aos montes nas casas grandes e nas casas da burguesia e da classe média que começava a se formar em meados de 1800. A arqueóloga e historiadora Tânia Andrade Lima, em estudo sobre a cultura material do Rio de Janeiro do século XIX, afirma que a escarradeira é um objeto que diz muito, assim como outros, da mentalidade burguesa da época e suas práticas sociais:

"Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao aoto de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos" (LIMA, 1996, p. 66).

Sobre o hábito de cuspir e escarrar eram impostas, pelo menos desde o século XVI, normas de conduta. O teólogo e filósofo holandês Erasmo de Rotterdam, no livro A civilidade pueril, publicado em 1530, recomenda que quando se fosse cuspir, a pessoa deveria virar-se para o outro lado, de forma a evitar que as gotículas atingissem alguém. Se a matéria mucosa caísse no chão, o recomendado era que se colocasse o pé em cima. Cuspir em um lenço era o mais recomendável. Apesar de ser um hábito, não deveria ser praticado rotineiramente: "Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir" (ROTTERDAM, 2006, p. 150).  Esse hábito, que se tornava cada vez mais intolerável, pôde ser mais ou menos controlado, de acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, através da escarradeira, que se tornou um utensílio bastante requisitado nas residências burguesas (ELIAS, 1994, p. 159).

As escarradeiras não ficavam restritas ao ambiente doméstico, estando presentes em hospitais, escolas, igrejas, bares e teatros. Vejamos a extensa lista de objetos solicitados pelo Presidente da Província do Amazonas para o Hospital Militar de Manaus em 1876: Nela constam xícaras, bules, copos, lamparinas, colchões, cadeiras, urinóis e "cincoenta escarradeiras de madeira" (JORNAL DO AMAZONAS, 06/07/1876, p. 03). Na lista de objetos a serem adquiridos pelo Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, consta o pedido de uma dúzia de escarradeiras, não sendo especificado de que material (DIÁRIO OFFICIAL, 22/08/1896, p. 07). As que eram encomendadas para hospitais - geralmente de ferro ou outro material mais simples - ficando ao lado das camas dos pacientes, tinham um tratamento diferente. Contra vários tipos de doenças, o jornal A Federação recomendava, em 1899, que "na bacia de cama e escarradeira deve sempre haver uma porção do soluto de sulfato de cobre" (A FEDERAÇÃO, 15/12/1899, p. 01).

Ainda de acordo com Tânia Andrade Lima, as escarradeiras eram produzidas na China e exportadas para a Europa no século XVIII. Posteriormente surgiram oficinas nas cidades portuguesas de Viana, Porto e Gaia (LIMA, 1996, p. 67). Encontrou-se em um jornal baiano de 1841 um vendedor comercializando objetos de Prata vindos da cidade do Porto. Entre facas, garfos e bules estavam as escarradeiras (CORREIO MERCANTIL, 20/03/1841, p.04). Também existiam fábricas em outros países Europeus, como a Alemanha. É de lá uma interessante peça que faz parte do acervo do Museus Ibram Goiás, datada do século XIX e produzida pela fábrica Bonn Franz Ant Mehlem (1840-1884). Veio de Limoges, na França, uma belíssima escarradeira do Museu Histórico e Pedagógico Visconde de Mauá, em Mogi das Cruzes, São Paulo. Deve-se mencionar a produção brasileira, que teve como representante a Fábrica Nacional de Vidros de São Roque, no Rio de Janeiro, que produzia "escarradeiras de diferentes côres, imitando as francesas, proprias para sala de visita" (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 03/04/1860, p. 04).

A escarradeira possivelmente chegou ao Amazonas por volta de 1850, assim como outros objetos domésticos, favorecida que foi a região pelo estabelecimento de uma linha regular de vapores da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852), propriedade do Barão de Mauá que mais tarde, em 1871, seria adquirida por empresários ingleses. A primeira referência encontrada data de 1859, na lista de objetos da Enfermaria Militar localizada em Manaus (ESTRELLA DO AMAZONAS, 20/07/1859, p. 03). Já por volta de 1870 a encontramos sendo comercializada. O comerciante Bernardo Truão, proprietário da Loja Esperança, importou em 1877 variadas "fazendas de luxo e miudezas" de Paris, Viena e Hamburgo, de onde vieram escarradeiras de porcelana (CORREIO DO NORTE, 21/07/1877, p. 04). Na Livraria Clássica, de Silva & Gomes, podiam ser encontradas, em 1892, "escarradeiras nickeladas e de zinco" (DIÁRIO DE MANÁOS, 06/04/1892, p. 04). Em 1898 a Casa Pekim, na rua Henrique Martins, comercializava "escarradeiras finas" (COMMERCIO DO AMAZONAS, 31/05/1898, p. 03).

O uso desse utensílio era tão arraigado na sociedade burguesa manauara que ele acabava tornando-se sinônimo de imundície em algumas situações. O jornal humorístico A Marreta, ao se referir a uma prostituta polaca que residia na Avenida Epaminondas, afirmou que ela era "peior do que uma escarradeira de tysico (tuberculoso)" (A MARRETA, 10/11/1912, p. 02). "Vae lavar tuas escarradeiras, sujo", bradavam os redatores de O Pimpão contra um português que estava tentando conquistar uma jovem (O PIMPÃO, 05/09/1911, p. 04). O Rebenque, protestando contra as moças que iam à missa e, ao invés de prestarem atenção nos ofícios, ficavam tagarelando, as alertava que "[...] as cabeças dos catholicos que vão a igreja, assistir religiosamente os seus actos, não podem nem devem servir de escarradeiras" (O REBENQUE, 11/01/1913, p. 03).

As mais belas escarradeiras do Amazonas encontram-se em exposição no museu do Teatro Amazonas. São de procedência holandesa e alemã, produzidas pela histórica fábrica Villeroy & Boch, em atividade desde 1748. São decoradas com figuras de animais, principalmente de pássaros, e cenas urbanas como um passeio de charrete, algo bastante característico do período. Outras, possivelmente de igual qualidade e beleza, devem ter se perdido nos antigos palacetes aristocráticos e residências pequeno-burguesas, a arruinar-se no Centro da cidade. Fazendo um exercício imaginativo, podemos nos transportar para a Manaus do final do século XIX e início do século XX para visualizar os usos da escarradeira. Quantas cusparadas e escarradas não foram dadas nos intervalos dos grandes espetáculos nas vistosas escarradeiras espalhadas pelo Salão Nobre do teatro, ou nas reuniões realizadas nos salões das casas mais suntuosas da Avenida Joaquim Nabuco e da Avenida Eduardo Ribeiro. Matéria viscosa de artistas, políticos, militares de alta patente, homens de negócios, cônsules, expectorada entre um gole de champagne francês Veuve Clicquot Ponsardin, vinho português do Porto e uma tragada de charuto cubano, o melhor do mundo. Expectoração que poderia anteceder ou suceder a assinatura de algum tratado, de acordo comercial entre seringalistas e casas aviadoras, ou de simples agendamento de convescote nos bosques do Tarumã no final de semana.

Até quando as escarradeiras foram utilizadas? É difícil precisar. As encontramos sendo vendidas ou leiloadas em anúncios de jornais até a década de 1940. A partir daí elas praticamente somem de circulação. As antigas escarradeiras de porcelana, de prata e de vidro, são substituídas por novos modelos hidráulicos, instalados em pontos estratégicos de espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como bem exemplifica um anúncio de 1926 da Escarradeira Hygéa, criada no Rio de Janeiro, que possuía limpeza automática: "Os regulamentos de saúde publica exigem escarradeiras deste systhema". A revista Careta, do Rio de Janeiro, registra a instalação desse tipo de escarradeira em Manaus, no consultório do médico José Garcia e no Posto de Profilaxia Miranda Leão (CARETA, 17/09/1927, p. 37). É provável também que entraram em decadência juntamente aos hábitos de mascar fumo e usar cachimbo, e que tornaram-se, disso não tenhamos dúvida, menos toleráveis com o passar do tempo: o refinamento deu lugar ao estranhamento, à repugnância, reação que ainda temos quando vemos essas peças expostas em museus e lembramos dos seus usos no passado.


FONTES:

Diário do Rio de Janeiro, 30/03/1827.

O Despertador, RJ, 30/11/1838.

Correio Mercantil, BA, 20/03/1841.

Jornal do Commercio, RJ, 20/06/1845.

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, 1859.

Estrella do Amazonas, 20/07/1859.

Diário do Rio de Janeiro, 03/04/1860.

Jornal do Amazonas, 06/07/1876.

Correio do Norte, 21/07/1877.

Diário de Manáos, 06/04/1892.

Commercio do Amazonas, 31/05/1898.

A Federação, 15/12/1899.

O Pimpão, 05/09/1911.

A Marreta, 10/11/1912.

O Rebenque, 11/01/1913.

Careta, RJ, 17/09/1927.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1994.

FREYRE, Gilberto de Mello. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.

LIMA, Tânia Andrade Lima. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v. II, n.3, p. 44-96, 1996.

ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Brasil Colônia: uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida

Vista de um Engenho Real no Brasil. Franz Post, século XVII. FONTE: Musée du Louvre/René-Gabriel Ojéda.

O texto aqui apresentado é fruto de uma resenha do primeiro capítulo do livro Casa Grande & Senzala, do sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre. Nessa primeira parte é discutida a formação da sociedade colonial brasileira, assentada na monocultura, na mão de obra escrava e no hibridismo cultural entre o colonizador, o indígena e o escravo africano.

Por volta de 1532 - ponto de partida proposto por Freyre - quando a Coroa Portuguesa enviou a primeira expedição colonizadora, comandada pelo nobre, militar e administrador colonial Martim Afonso de Souza, teve início a empreitada portuguesa nessa parte dos trópicos, quando estes já tinham, pelo menos, um século de experiência na Índia e na África, vide a conquista da cidade de Ceuta em 1415. A estrutura mercantil da extração do Pau-brasil deu lugar à atividade agrícola, que garantiu estabilidade, diferente do que ocorria quando a organização era feita através de feitorias para a estocagem da madeira. A colonização foi organizada tendo como base a agricultura, a regularidade do trabalho escravo e a união do português com a mulher indígena e mais tarde a africana. Surge, assim, uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida.

A aptidão do português para a colonização de caráter híbrido e escravocrata é fruto de seu passado cultural entre a África e a Europa, das influências da cultura e clima africanos sobre a europeia, tornando maleáveis suas instituições, a alimentação, a vida sexual e a religião. Tiveram grande contribuição para atenuar o caráter português as relações tensas entre a Europa e a África. Contato através da guerra, do uso dos cativos conquistados no trabalho agrícola e industrial. A origem portuguesa também é marcada pelo contato com populações africanas e árabes, o que contribuiu para a constituição de uma sociedade marcada pela bicontinentalidade, pelo equilíbrio de antagonismos e pela flexibilidade de se ajustar às diferenças culturais. É a partir dessa convivência entre sentimentos e valores antagônicos que terá origem a formação da sociedade brasileira. Contribuiu enormemente a mobilidade e adaptabilidade para a vida nos trópicos, herança da presença semita na Península Ibérica, o que compensou o baixo índice demográfico de Portugal, que com “[…] um pessoalzinho ralo, insignificante em número – sobejo de quanta epidemia, fome e sobretudo guerra afligiu a Península na Idade Média” (FREYRE, 2003, p. 70), conseguiu se espraiar por várias partes do mundo, através da mobilidade e miscibilidade. Freyre afirma que os membros da administração reinol, administradores, guerreiros e técnicos, moviam-se entre as possessões como se estivessem em um tabuleiro de gamão.

Freyre afirma que miscibilidade do português jamais foi igualada por outro povo colonizador. Foi através do intercurso com as nativas e as mulheres de origem africana que se compensou o baixo índice demográfico, possibilitando a colonização em larga escala em territórios vastíssimos. Intercurso já praticado na Península, com as mulheres árabes, cuja semelhança os portugueses encontrarão nas indígenas da América Portuguesa. Outro elemento que favoreceu o empreendimento português foi o clima. O clima de Portugal é aproximado do africano, o que facilitou a vitória portuguesa nos trópicos. Esse se adaptou perfeitamente, diferente dos colonizadores vindos de países de clima frio. O português, por sua predisposição de clima e cultura, venceu o meio, marcado pelo

clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua lavou tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado” (FREYRE, 2003, p. 76).

O português, nos Trópicos, mudou seu sistema de alimentação e o seu sistema de lavoura. O colonizador do Norte da Europa, nesse ponto, teve vantagem, pois na América do Norte encontrou um clima semelhante ao de sua cultura agrícola natural. Ao enfrentar todos esses desafios, registra o autor, o português criou uma obra original. Não foi uma tarefa fácil. Grandes eram os desequilíbrios, como a terra pouco fértil, os rios caudalosos e as grandes secas. O português fez um enorme esforço civilizador nos trópicos. Antes do reconhecimento do território, estabeleceu-se uma exploração comercial através de feitorias, sem o objetivo de fixar o homem ao solo. Aos poucos o colonizador modificou essa estrutura, buscando criar riqueza e fixar-se. Desenvolveu-se, através da iniciativa particular, incentivada pela Coroa, uma colônia de plantação, a plantation, que tinha como base a grande lavoura e o trabalho escravo. Diferente do que ocorrera na América Espanhola, onde houve extermínio ou segregação entre os colonizadores e os nativos, o homem lusitano buscou constituir família com a mulher da terra conquistada e mais tarde com a escrava importada. Desenvolveu-se uma sociedade patriarcal e aristocrática. O elemento dinâmico da colonização brasileira foi a família, família dita rural ou semi-rural, cujo domínio só rivalizava com o da Igreja. A família colonial fez pesados investimentos, desbravando e cuidando da terra. Some-se à isso a moral sexual e religiosa, lírica, amaciada pelo contato anterior com a cultura árabe. A religião Católica tinha caráter mais popular que oficial.

O caráter agrícola da colonização se impôs como uma necessidade, haja vista não terem sido encontrados, em um primeiro momento, matérias-primas que atendessem às necessidades do comércio mercantilista europeu. A natureza era esmagadora, em estado bruto, concorrendo, na maioria das vezes, contra a atividade agrícola. Mas o português conseguiu adaptar-se. Um exemplo disso é o uso que fez dos rios. Os grandes rios, com suas cheias, destruíam plantações e criações de gado. Dessa forma, foram de grande valia os rios de pequeno porte, regulares, que contribuíram para o florescimento da lavoura, da pecuária, sendo utilizados também no transporte de mercadorias. Gilberto Freyre afirma que prolongou-se no brasileiro a tendência portuguesa de expandir-se ao invés de condensar-se. Isso fica bastante claro na figura do bandeirante, que fundava, de forma imperialista, subcolônias, expandindo o território. Apesar das conquistas territoriais, os ímpetos imperialistas e separatistas dos bandeirantes foram anestesiados pela geografia do território. Outro tipo social móvel foi o jesuíta, que se moviam pelo território educando a catequizando os nativos. A mobilidade não oferecia riscos para a unidade política pois não se desenvolveram no território separatismos como os que vieram com os espanhóis, ingleses e franceses. “O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça” (FREYRE, 2003, p. 91). Importava muito mais a religião Católica que a raça, pois foi através do Catolicismo que se constituíram laços profundos de solidariedade e unidade política.

Após refletir sobre a inconstância cultural do português e sua propensão para a miscibilidade, Freyre discorre sobre como as diferenças geográficas da América Portuguesa poderiam ter concorrido para o surgimento de extremismos regionais. No entanto, elas influenciaram apenas no tipo de agricultura praticada e no sistema alimentar. Essa diferença era visível na mesa colonial, com influências mais indígenas em uma parte, mais africanas em outras e, principalmente, da cozinha portuguesa, africana e indígena. Interessante a relação que o autor faz entre o latifúndio escravocrata e o mal abastecimento alimentar da população colonial. A plantation dominava a economia, deixando em segundo plano a agricultura de subsistência. Dessa forma compreende-se que “Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais em nutrição” (FREYRE, 2003, p. 95). O luso-brasileiro dos primeiros séculos era mal alimentado. Viviam-se extremos alimentares, como a alimentação servida na casa grande e na senzala. Daí Freyre afirmar que dos escravos descendiam os melhores elementos da população, elementos fortes e sadios, diferente do que ocorria na população pobre e livre, cujos representantes eram mal nutridos e sobre os quais recaíam diferentes tipos de doenças. Nesse ponto vemos o pioneirismo de Freyre, que discorda dos sociólogos que viam na mestiçagem ou no clima tropical as causas da degeneração do brasileiro. O que age sobre a população são os efeitos nefastos da economia escravocrata, esterilizante, que gera a fuga de braços da agricultura, a instabilidade de abastecimento, a má conservação dos alimentos. Mesmo nas casas grandes, entre os senhores, a alimentação não era tão boa como se supõe: carne uma vez ou outra, poucas frutas e legumes e de baixa qualidade. A pobreza de cálcio do solo brasileiro escapava ao controle, mas a deficiência alimentar causada pelo modelo econômico poderia ser corrigida. Escapa à generalização sobre a deficiência alimentar a realidade paulista, por sua formação semi rural, agrícola e pastoril, que garantiu um abastecimento regular e variado de gêneros alimentícios.

Ainda sobre o regime alimentar, Gilberto Freyre afirma que a influência mais benéfica, fortificante, foi a africana, através dos alimentos vindos daquele continente e do regime alimentar do negro durante a escravidão. Essa última influência se explica pelo fato de que os senhores de engenho, buscando o melhor aproveitamento da mão de obra, investiam em uma alimentação que, se não era das melhores, atendia às necessidades do trabalho. Por essa nutrição relativamente melhor que a da maior parte da população, descendem do negro os melhores representantes de força e beleza, como as mulatas, os atletas e os fuzileiros navais. A figura do caboclo, união entre o branco e o índio e exaltada no passado como sendo a maior representante do vigor brasileiro, é na verdade fruto das três raças, principalmente do negro. Outras heranças da miscigenação, vindas do Europeu, foram as doenças venéreas, com destaque para a sífilis, que agiram negativamente sobre a população brasileira; e a relação de sadismo do branco sobre os dominados e masoquismo destes últimos. Sadismo sexual que penetrou nas instituições e na política. Masoquismo no gosto de sofrer, de buscar um redentor, um messias. E assim foi se constituindo a sociedade brasileira colonial, através do equilíbrio entre elementos antagônicos:

Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo” (FREYRE, 2003, p. 116).

Foram essenciais para a compreensão desse capítulo de Casa Grande & Senzala as notas de rodapé, em que Freyre expressa, assim como no corpo do texto, grande erudição e diálogo com a historiografia de seu tempo e estudos de outras áreas. As notas também são utilizadas pelo autor para manter diálogos com os pesquisadores dessas áreas, diálogos que vão do elogio, passam pela crítica e muitas vezes chegam à discordância, sempre acompanhada por uma gota de acidez, característica do autor. Essas notas foram sendo revisadas e incrementadas em novas edições. Foram escolhidas algumas para a análise. A escolha levou em conta, principalmente, a extensão das notas, algumas ocupando mais de duas laudas. A primeira nota que considerou-se foi a 16, em que Freyre debate com outros autores, como D. G. Dalgado, Emile Béringer e Luís Pereira Barreto, a questão da aclimatabilidade do português em várias partes do mundo. Eles defendem, muitas vezes de forma apologética, que o português, por suas disposições genéticas, constituídas através do contato com povos semitas e africanos, se aclimatam melhor que outros povos europeus. Freyre discorda de uma superioridade puramente étnica, dando como exemplo o fato de a Amazônia brasileira não ter sido plenamente colonizada por ele. “Essa área provavelmente só será colonizada plenamente com o desenvolvimento e barateamento da técnica de ar condicionado e de outras formas de domínio do clima pelo homem civilizado” (FREYRE, 2003, p. 121).

Outra interessante nota é 18, em que o autor analisa a relação entre as embarcações vindas da Índia para Lisboa e de Lisboa para a Índia e o Brasil. Estudando portarias, cartas, leis, provisões, alvarás e outros tipos de documentação, ele mostra como se deu esse contato, contato comercial que deu vazão a trocas culturais entre a América e o Oriente. Ele nota influências na arquitetura, nos costumes e nos objetos:

São esses contatos, que parecem ter sido frequentes, que explicam o fato de terem a vida, os costumes e a arquitetura no Brasil colonial recebido constante influência direta do Oriente, acusada pelo uso, generalizado entre a gente de prol, de palanquins, banguês, chapéus-de-sol, leques da China com figuras de seda estofada e caras de marfim, sedas, colchas da Índia, porcelana, chá etc., e ainda hoje atestada pelos antigos leões de louça de feitio oriental – ou, especificamente, chinês – que guardam, com expressão ameaçadora e zangada, os portões de velhas casas e o frontão da igreja do convento de São Francisco do Recife” (FREYRE, 2003, p. 123).

Possivelmente uma das notas mais notáveis seja a 55, em que Gilberto Freyre discute a formação da família patriarcal mantendo diálogo com os estudos de Caio Prado Júnior, autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942), e Nelson Werneck Sodré, autor de Formação da sociedade brasileira (1944). Ele mostra ser inegável a importância da família patriarcal ou parapatriarcal na unidade colonizadora, mas essa importância é mais qualitativa do que quantitativa, pois em boa parte do Brasil, como mostraram Caio Prado e Sodré, foi difícil, por conta da escravidão, da instabilidade e segurança econômicas, a constituição de uma família tradicional assentada em bases sólidas e estáveis. Mas coube à minoria patriarcal influenciar o restante da população na constituição familiar ou no familismo, que não é só patriarcal, mas engloba outras organizações familiares: “E do ponto de vista sociológico, temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto, o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade” (FREYRE, 2003, p. 130-131). Essas organizações se desenvolveram tendo influência da cultura africana, de sociabilidade mais elástica que a tradicional lusitano-católica. Importante destacar a recuperação da historicidade desses grupos familiares que o autor faz, alertando aos pesquisadores que estes não devem relacioná-los ao imoral, indecente, mas sim compreendê-los em seu tempo.

Em outra nota, a 74, Gilberto Freyre rebate as críticas de Sérgio Buarque de Holanda, que afirma que o português não tinha predisposição para a agricultura, sendo um povo mais comerciante que rural. Em Raízes do Brasil ele descreve o colonizador português como um utilitarista que buscava resultados mais práticos que planejados, um semeador, explorador. Freyre rebate os argumentos de Sérgio Buarque, mostrando que o português não foi um completo desapegado em relação ao trabalho agrícola, dando como exemplo, entre outros, os dos colonos portugueses açorianos, que menos influenciados pela dinâmica do trabalho escravo, foram bons lavradores e pastores, tendo um verdadeiro amor pela terra e seu cultivo.”Tanto não foi absoluto”, escreve Freyre, ao falar sobre o empreendimento português na América, “que os portugueses fundaram no Brasil, sobre base principalmente agrária, a maior civilização moderna nos trópicos, tornando-se também lavradores notáveis em outras partes da América” (FREYRE, 2003, p. 133-134). Os rios, pequenos rios, são melhor analisados na nota 77. Através de trabalhos de autores como Durval Vieira de Aguiar e Teodoro Sampaio, Freyre mostra como os grandes rios, como o São Francisco e o Amazonas, impediam o florescimento de uma sociedade fixa, próspera e organizada, tendo como base a agricultura, fosse no Nordeste ou na Amazônia, respectivamente. Foram nos rios de pequeno porte que se desenvolveram as plantações, que foram construídas as moendas e as casas grandes.

Gilberto Freyre volta a debater com um autor na nota 113. Nela ele fala sobre a afirmação feita pelo pesquisador A. Machant na obra Do escambo à escravidão, publicada em 1943. Marchant, apoiando-se na obra de Fernão Cardim, afirma que na Bahia de 1580 os habitantes tinham um bom acesso à legumes, frutas e verduras, tanto da terra quanto de Portugal. Freyre lembra que, se houve algum tempo em que existiu uma agricultura regular na Bahia, foi nos princípios da colonização, pois logo depois a monocultura da cana de açúcar dominou a vida econômica e prejudicou o abastecimento de víveres. O autor alerta que deve-se levar em conta o fato de que Cardim, assim como outros cronistas desse tempo, era um padre visitador, figura que costumava ser bem recebida nas cidades e engenhos. A abundância de alimentos era uma exceção nessas ocasiões. Para corroborar sua visão, Freyre cita estudos modernos sobre o tema:

Do ponto de vista da alimentação, estudiosos modernos do assunto, interessados em preparar, baseados em inquéritos regionais, um mapa da alimentação no Brasil, e também Josué de Castro, confirmam o que neste ensaio se diz desde 1933 sobre as relações entre o sistema feudal-capitalista de plantação e a paisagem. Segundo o professor Josué de Castro, no Nordeste, “a monocultura intempestiva de cana, destruindo quase que inteiramente o revestimento florestal da região subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, constitui-se degradante da alimentação regional” (FREYRE, 2003, p. 144-145).

Por último, destacamos a nota 170, na qual o autor apresenta uma discussão bibliográfica sobre as origens da sífilis, doença que atacava as populações brasileiras desde o início da colonização. Esse assunto, destaca Freyre, é marcado por controvérsia, pois não se tem uma origem definida. Alguns autores, como Milton J. Rosenau, afirmam, tendo como base vestígios de esqueletos, que a doença tem origem americana. Outros, como L. W. Wyde, advertem que ninguém pode afirmar onde e quando surgiu qualquer doença. É ainda mais interessante a defesa que Freyre faz do interesse de pesquisadores e sociólogos pelas doenças e outras áreas como a arquitetura. Ele afirma que “Esquecem-se médicos e engenheiros assim melindrados de que se procuramos arranhar tais assuntos, sempre o fazemos do ponto de vista ou sob aspectos que pouco têm que ver com a técnica da medicina ou da engenharia, isto é, o encaramos do ponto de vista da história ou antropologia social; do ponto de vista da sociologia genética” (FREYRE, 2003, p. 152-153).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


FREYRE, Gilberto. Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. In: Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003, p. 64-156.