Bosque Municipal, ponto de encontro da colônia inglesa em Manaus. Foto de 1927. FONTE: Fanpage Manaus Sorriso.
Não
tem como falar da História de Manaus sem fazer referência à
presença e influência inglesa entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do XX. Nesse período a cidade era
o principal polo econômico da Amazônia e um dos mais importantes
centros comerciais do mundo, enriquecida graças à exploração da
goma elástica. Os ingleses, assim como outros estrangeiros, aqui se
estabeleceram em busca de auferir lucros com a corrida da borracha.
Deixaram suas marcas na economia, na arquitetura, na moda e nos
costumes.
O
mundo vivia sob influência política e econômica do poderoso
Império Inglês, que estava no auge de seu crescimento industrial,
possibilitado pelo investimento do capital acumulado durante a
expansão marítima entre os séculos XVI e XVIII na indústria. As
grandes potências
realizavam investimentos onde era possível adquirir matérias-primas
para suas indústrias e onde estavam localizados mercados
consumidores para seus produtos manufaturados. O capital inglês,
registra
o historiador Eric Hobsbawn em A
Era do Capital (1996),
foi
responsável por desenvolver a infraestrutura da América do Sul e de
outros continentes. Surgiram ferrovias, portos e serviços,
explorados por longos anos por empresas sediadas em Londres.
O
pacto colonial já havia deixado de ser uma realidade, mas a
dependência em
relação às
metrópoles continuaria nessa nova fase de expansão do capitalismo,
que dominaria os mais distantes rincões do mundo.
A
primeira ação inglesa no Amazonas se deu por volta de 1860. O
governo inglês pressionou o Império Brasileiro para que ele
abrisse os portos do Rio Amazonas às nações estrangeiras, fechados
desde o período Colonial. Após longos debates, foi lavrada em 07 de
setembro de 1867 a lei que abria os portos do Rio Amazonas às
grandes potências, favorecendo principalmente a Inglaterra, que em
pouco tempo passou a dominar a navegação na região. Conforme
estudos do historiador amazonense Antonio José Souto Loureiro, autor
de
O Amazonas na Época Imperial (1989,
p. 154-155), em
1871
empresários ingleses compram a Companhia de Comércio e Navegação
do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá em 1852, a transformando na
The Amazon Steamship Navigation Company Limited. A Companhia Fluvial
do Alto Amazonas também teve seus direitos transferidos para aquela
companhia em 1874.
Com
a abertura dos portos, os produtos ingleses invadiram os mercados
locais. Nos jornais amazonenses encontramos aos montes anúncios de
chapéus de sol, camisas, botas, sapatos, máquinas de costura,
instrumentos musicais, armas, relógios, estopa, conservas, geleias,
bebidas, manteigas e outras mercadorias sendo vendidos por casas
comerciais de Manaus. Enfatizava-se, em cada informe, a excepcional
qualidade que possuíam. Em contrapartida, a exportação de produtos
animais e vegetais, com destaque para a borracha, utilizada nas
indústrias de revestimento de cabos elétricos e automobilística,
teve largo crescimento, possibilitando, a partir de 1880, um surto de
desenvolvimento jamais antes visto na região. Isso só foi possível,
deve-se
lembrar,
graças à criação, em 1839, pelo inventor norte-americano Charles
Goodyear (1800-1860), do processo de vulcanização, no qual o uso do
calor e do enxofre aumentou a durabilidade da borracha, impedindo que
ela se degradasse pela
ação climática. Os impostos arrecadados através da exportação
foram aplicados, em diferentes administrações estaduais e
municipais, na modernização de Manaus.
Membros da colônia inglesa em Manaus. Foto do início do século XX. FONTE: SCHWEICKARDT, Júlio César. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930). Tese de Doutorado, Fiocruz, 2009.
Manaus,
agora transformada no principal centro financeiro da Amazônia,
necessitava de uma série de melhorias. Faltava um bom sistema de
comunicação, um porto flutuante, energia elétrica e abastecimento
regular de água e esgoto. Como vinha ocorrendo em várias partes do
mundo, o Estado, em troca da implantação desses serviços, concedeu
o direito de exploração a empresas estrangeiras, leia-se inglesas.
Antônio Loureiro, em A
Grande Crise (2008,
p. 95-97), nos dá um panorama dessas concessões: Em
1895 é fundada a The Amazon Telegraph Company Ltd., concessionária
da comunicação por cabo fluvial entre Manaus e Belém e, por
submarino, entre Belém e a Europa. É formada em 1909 a Booth
Steamship Company, de navegação internacional entre a Europa e os
Estados Unidos. A The Amazon Steamship Navigation Company Ltd.
é transformada em 1911 na The Amazon River Steamship Company Ltd.
Em 1902 é fundada a The Manáos Harbour Limited,
responsável pela construção e exploração do Porto de Manaus, com
uma concessão de exploração por 60 anos. Também foi responsável
pela construção do novo prédio da Alfândega, erguido entre 1906 e
1909. A concessionária do serviço de abastecimento de água e
esgotos, Manáos Improvements Ltd.,
foi fundada em 1906. O mercado e o matadouro público passaram a ser
administrados pela The Manáos Markets and Slaughterhouse Ltd.
O serviço de bondes elétricos foi concedido à The Manáos Railway
Company em 1895, mesmo ano em que o serviço de energia elétrica é
concedido à The Manáos Eletric Lighting Company. Em 1909 bonde e
energia elétrica passaram a ser explorados pela The Manáos Tramways
and Light Company Ltd.
O
Governo esperava que as concessões garantissem, além da arrecadação
e do melhoramento técnico da cidade, o bom funcionamento desses
serviços para os moradores. No
entanto, a realidade nem sempre foi essa.
Várias vezes o Estado e a população tiveram que entrar em
confronto com as concessionárias inglesas por conta do péssimo
serviço oferecido, pelos abusos no aumento das taxas e,
principalmente, pela
pouca atenção aos
interesses locais. A Manáos Harbour, por exemplo, desde
o início oferecia um serviço muito abaixo do esperado. Em 07 de
agosto de 1904 assim se manifestava o Jornal
do Commercio a
seu respeito: “Os
atropellos que ao commercio desta praça tem imposto a archi-poderosa
empreza
que
houve carta testamentaria para espraiar seus dominios no littoral
desta cidade, são notorios já e patentes e formam um longo rosario
de indestrutiveis e irritantes desmandos”.
Em 1913 o escritório da Manáos Improvements foi destruído pela
população, enfurecida pelos constantes e exorbitantes aumentos. A
Manáos Markets foi encampada durante a Revolução de 1924. A Manáos
Tramways and Light Company foi encampada pelo Estado em 1950. O porto
foi a concessão inglesa que mais durou, encampado pelo Estado apenas
em 1967.
Em
06 de novembro de 1901 é instalada na antiga Rua Doutor Constantino
Nery, atual Monteiro de Souza, uma agência do London and Brazilian
Bank Ltd. Posteriormente é aberta uma agência do The London &
River Plate Bank Ltd. Os dois são fundidos em 1923, dando origem ao
London Bank, com agência na rua Guilherme Moreira. A economia do
Estado do Amazonas, que àquela altura já representava uma das
principais arrecadações do país, circulava por essas instituições.
Só para termos uma ideia em valores, em 1910 a cotação da borracha
atingiu, de acordo com Samuel Benchimol em Amazônia
– Formação Social e Cultural (1999,
p. 209), a cifra de 665 libras por tonelada, sendo exportadas 38.206
toneladas.
Consultando
o Annuario
de Manáos
(1913-1914),
encontramos os nomes de algumas das mais afamadas e poderosas casas
exportadoras inglesas estabelecidas em Manaus: Adelbert H. Alden,
Ahlers & Cia, De Lagotellerie & Cia, General Rubber Co. Of
Brasil, W. Peters & Cia e Zarges, Ohliger & Cia.
Vieram
para a cidade engenheiros, médicos, funcionários públicos,
banqueiros, empresários e investidores que construíram carreiras
sólidas e pequenas fortunas. O médico Hermenegildo Lopes de Campos,
em sua Climatologia
médica do Estado do Amazonas (1988,
p. 101), calculou que em 1903 residiam em Manaus de 70 a 75 ingleses.
Destacamos o Sr. Stanley Sutton, gerente da Manáos Harbour; Arthur
James Billet, adjunto do Contador da Manáos Harbour, George Clawson
Browne, funcionário da mesma empresa; Mr. Forbes e Mr. Turner,
gerente e diretor da Manáos Tramways and Light Company
respectivamente; Edmund Compton, sócio da casa comercial Compton,
Meech & Cia; F. Higson, sócio da firma Higson & Fall; Fanny
Hughes de Oliveira, esposa do Coronel Manoel Dias de Oliveira,
corretor da Junta Comercial do Amazonas. O médico canadense Harold
Howard Shearme Wolferstan Thomas (1875-1931), do laboratório da
Liverpool School of Tropical Medicine, fundado em Manaus em 1910,
atendia cidadãos ingleses e alemães. Caminhando
pelo do Cemitério de São João Batista encontramos alguns
túmulos de membros
da colônia.
Vejamos a trajetória de Alfred John Toone (1882-1906), impressa em
uma bela lápide de granito negro: Filho
mais velho de Charles e Sarah Toone, nasceu
no município de Liscard, na Inglaterra, tendo trabalhado por oito
anos no escritório de Liverpool da Booth Steamship Company,
posteriormente
vindo trabalhar no Brasil.
Faleceu 5 meses depois de deixar a Inglaterra, em 16 de fevereiro de
1906, possivelmente vítima de alguma doença tropical. Seu túmulo
foi uma homenagem da empresa pelos serviços prestados. Muitos deles
se relacionavam com a comunidade local através da presença em
outros clubes, como o Luso Sporting Clube, dos
portugueses,
que admitia como sócios cidadãos ingleses e de outras
nacionalidades.
Manáos Athletic Club. Foto de 1913. FONTE: Acervo do pesquisador Gaspar Vieira Neto.
Diferentes
esportes praticados pelos ingleses foram introduzidos na cidade.
Partidas de futebol já eram realizadas em Manaus desde o início do
século XX.
Eles fundaram em 1908 um clube de futebol, o Manáos Athletic Club,
constituído unicamente por súditos da velha Albion. O corpo
administrativo desse
clube
eleito em 1911 nos dá uma ideia dessa composição: “Presidente,
W. Robilliard; secretario, T. C. Shaw; thesoureiro, A. H. Samuels;
capitain, E, Compton; director-fiscal, W. Baumann; vogaes, Aimers,
Gordon. Higson, Douglas, Dening”.
Por volta de 1900-1904 foram fundados o Cricket Club e o Manáos
Tennis Club. Todos esses esportes eram praticados em um local de uso
exclusivo, o aristocrático Bosque Municipal, também conhecido como
Bosque dos Ingleses, localizado na antiga Estrada de Flores, atual
Avenida Constantino Nery. O Jornal
do Commercio informava
em edição de 17 de abril de 1904 que “No
bosque municipal haverá hoje jogo de cricket pelas turmas que no
domingo passado estiveram ali disputando um match”.
Eles
comemoravam com grandes festividades as principais datas do
calendário britânico, com especial destaque para os aniversários
de membros da Família Real. Os eventos aumentaram consideravelmente
durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que eram
angariados fundos para a Cruz Vermelha.
Os
memorialistas lembram com saudosismo da Manaus dos
ingleses.
Agnello Bittencourt (1876-1975), renomado professor e historiador
amazonense, pontua, em Fundação
de Manaus – Pródromos e Sequências (1969,
p. 70), que
nesse período, apesar do clima tropical, os
membros
da
elite
vestiam-se seguindo o rigor da moda europeia, em especial a francesa
e a inglesa, com “as
mulheres espartilhadas e vestidas até aos pés em pesadas sêdas; os
homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas
vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito
engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados
bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso
estilo “fin-de-siècle”.
Os homens procuravam estar sempre apresentáveis, vestindo belíssimos
ternos de linho branco H.J. inglês, comercializados nas melhores
lojas da cidade. Desde o século XIX a língua inglesa era ensinada
nos estabelecimentos de educação e cobrada nos concursos públicos.
Restam
hoje alguns exemplares de arquitetura genuinamente inglesa. O
primeiro é o Porto Flutuante, popularmente conhecido como Roadway. É
o maior porto flutuante do mundo, acompanhando as cheias e as
vazantes do Rio Negro. Na mesma região encontra-se a Alfândega,
pré-fabricado na Inglaterra e projetado pelos arquitetos Edmund
Fisher, H. M. Fletcher e G. Pinkerton. Nas palavras do historiador
paraense Leandro Tocantins, em O
Rio Comanda a Vida (2000,
p. 234), é um edifício “vistoso,
arquitetura eclética, sendo uma reprodução de prédio inglês
comum nas ruas londrinas de 1900”.
Próximo dali, entre a Travessa Vivaldo Lima e a Rua Taqueirinha,
estão o prédio do antigo Museu do Porto, construído em 1903 para
abrigar a usina de força do cais do porto; e a antiga Administração
do Porto. Assim como a Alfândega, foram construídos em estilo
inglês, com tijolos aparentes.
O
tempo dos ingleses se esvaiu juntamente
à
bancarrota que atingiu a região amazônica entre 1913-1920. A
borracha produzida nos seringais planejados das colônias inglesas e
holandesas no sudeste asiático, fruto do contrabando por eles feito por volta de 1870, superou a produção nativa. Empresas
fecharam, serviços foram paralisados, obras deixaram de ser
construídas. Parte daqueles que se aventuraram no passado deixando a
Terra da Rainha em direção ao “Inferno Verde”, rumaram de volta
para Londres, Liverpool, Manchester e outras cidades de médio e
pequeno porte, levando, com certeza, lembranças da vida nos
trópicos. O capital inglês, que por mais de duas décadas foi aqui
aplicado, agora seria direcionado para a Ásia. Terminava assim a
saga inglesa em Manaus.
FONTES:
Annuario
de Manáos, 1913-1914. Acervo particular do pesquisador Ed Lincon
Barros Silva.
Correio
Sportivo, 12/03/1911.
Jornal
do Commercio, 07/08/1904.
Jornal
do Commercio, 17/04/1904.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
BENCHIMOL,
Samuel. Amazônia
–
Formação Social e Cultural.
Manaus: Editora Valer, 1999.
CAMPOS,
Hermenegildo Lopes de. Climatologia
médica do Estado do Amazonas.
Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1988 (fac-similado,
1909).
BITTENCOURT,
Agnello. Fundação
de Manaus
– Pródromos
e Sequências.
Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.
HOBSBAWM,
Eric J. A
Era do Capital:
1848-1875. 5° ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
LOUREIRO,
Antonio José Souto. O
Amazonas na Época Imperial.
Manaus: T. Loureiro, 1989.
___________________________.
A
Grande Crise.
2° ed. Manaus: Editora Valer, 2008.
TOCANTINS,
Leandro. O
rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia.
9° ed. rev. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000.