domingo, 28 de abril de 2019

O mundo às vésperas das Revoluções Industrial e Francesa

Paisagem interiorana da Holanda. Pintura de Cornelis de Bruin (1652-1726).



Em a Era das Revoluções (1789-1848), o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) analisa a derrocada do mundo feudal, do Antigo Regime, e a transição, marcada por conflitos e profundas transformações sociais, deste para uma nova realidade, a industrial e das democracias liberais. O século XVIII foi um período marcado por duas revoluções, a Industrial e a Francesa. Da primeira têm-se a constituição da estrutura econômica que dominará o mundo Ocidental. Da segunda, o arcabouço político teórico que sustentará a economia e os governos.

O mundo em 1780, às vésperas dessas revoluções, era ao mesmo tempo menor e maior que o nosso. Menor no sentido de que, na época, se conhecia pouco sobre os territórios, principalmente as regiões interioranas. Além do mais, a densidade demográfica era consideravelmente menor que a da atualidade. Epidemias, guerras, fatores climáticos e terras improdutivas eram barreiras para o estabelecimento e crescimento de colônia em regiões afastadas das áreas mais desenvolvidas. Os seres humanos também eram menores. Fatores biológicos ligados a alimentação produziam pessoas de estatura mais baixa que as atuais.

Ele tornava-se maior dadas as dificuldades em locomoção e comunicação com outras regiões, o que abria diversas possibilidades. Existiam dois meios de transporte, o marítimo e o terrestre. O primeiro era mais eficiente que o segundo, mas ainda assim passava por alguns problemas, principalmente a variação dos ventos e dos mares. As viagens terrestres, apesar da construção de estradas e a existência de charretes e carruagens, eram perigosas, onerosas e lentas. Uma cidade portuária da América do Norte estava mais perto de Paris do que uma cidade interiorana francesa. Em uma realidade majoritariamente rural, com mobilidade por terra problemática e navegação variável, as pessoas costumavam morrer no mesmo local em que nasciam sem nunca terem conhecido outras realidades. Jornais e cartas já eram uma realidade, mas o grosso da população era analfabeta, existindo uma certa mobilidade apenas entre viajantes, mercadores e membros da burocracia estatal, que tinham a necessidade de deslocar-se para realizar suas funções, fossem elas nas colônias além-mar ou no interior das cidades provinciais.

Poucas eram as cidades densamente habitadas. Da Rússia à Itália, entre 70 e 90% da população era rural. Apenas Londres e Paris eram cidades cujas populações eram, respectivamente, de 1 milhão e 500 mil habitantes. No mais, existiam cidades com pouco mais de 20 mil habitantes, cujas vidas estavam centradas na Igreja, na Praça e na atividade agrícola. Uma cidade desse tipo era dividida do mundo rural pelos seguintes aspectos: a presença de um aparato arquitetônico e estatal mínimos (igreja, praça, cobrança de impostos) e as vestes e estatura de seus habitantes, geralmente melhores e maiores que os trabalhadores rurais.

Esse mundo estava dividido em zonas de trabalho. Nas colônias da América predominava a escravidão indígena e africana voltada para o cultivo de gêneros primários que abasteciam a Europa. A leste da Europa Ocidental ficavam as propriedades de trabalho agrário servil. Na região Oriental o sistema de trabalho beirava a escravidão. Os trabalhadores eram ‘tecnicamente’ livres, mas ainda assim estavam presos a obrigações como o pagamento de dízimos as paróquias das quais faziam parte e a utilização de mecanismos, como o moinho, por exemplo, geralmente pertencentes a grandes proprietários. Com exceção da Inglaterra, em que a agricultura já estava sendo direcionada a um mercado mais amplo, um dos fatores para o seu pioneirismo industrial, toda a produção das outras localidades sustentava a necessidade e consumo regionais.

Predominava o modelo político das Monarquias Absolutistas, característico do Antigo Regime. Essa organização política estava assentada em privilégios monárquicos que se refletiam em todos os níveis da sociedade, principalmente na terra, defendida pelos fisiocratas franceses como a única fonte de riqueza. Os nobres alugavam suas terras aos camponeses, cobrando uma parte da produção ou um aluguel em dinheiro. Quando esse sistema econômico tornou-se obsoleto, desgastado, os membros da corte passaram a utilizar seus títulos de nobreza para se apropriarem dos cargos burocráticos, para dessa forma manterem seu estilo de vida aristocrático. Esses privilégios sobre a terra terão um peso decisivo na Revolução Francesa, em 1789. O status monárquico e a posse de grandes propriedades de terra eram as bases dos estados europeus.

Em síntese, o mundo, mais especificamente a realidade europeia, as vésperas das revoluções industrial e francesa, era predominantemente rural e menor por suas características limitadas de conhecimento e mobilidade, mas esta última característica o tornava maior dadas as possibilidades ainda não plenamente exploradas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 20º ed., 2006.



CRÉDITO DA IMAGEM

Cornelis de Bruin Gallery.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sobre vacina, antivacina e medo

A Morte. Bruno Latour, Pasteur, une science, un style, un siècle. Paris: Librarie académique Perrin, 1994, p. 30. In: SANTOS, Ricardo Augusto dos. O Carnaval, a peste e a 'espanhola'. Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.13, n° 1, Rio de Janeiro, Jan./Mar. 2006.

Doenças assolam a humanidade desde tempos imemoriais. Um sem número de povos sucumbiu a vírus e bactérias. Há registros da Hanseníase desde a Antiguidade. Na Idade Média, com maior incidência na segunda metade do século XIV, em que eram poucos os conhecimentos e tratamentos médicos, o Ocidente foi sacudido pela Peste Negra. Mais de seis séculos depois, na década de 1980, em que o homem já tinha “domado” boa parte das doenças que em outras épocas faziam enormes estragos, surge o vírus HIV (Human Immunodeficiency Virus), causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que prestes a completar 40 anos, já causou a morte de mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo 1. Em meio a mortandade, surgiram vacinas ou formas de retardar o avanço dessas moléstias. Homens e mulheres, cientistas, mostraram o melhor da capacidade humana de superar as adversidades.

Essa capacidade humana, a ciência como um todo, no entanto, sempre foi contestada. Essa contestação produziu efeitos devastadores ao longo da história. Temos visto, nos últimos anos, o surgimento de grupos antivacinas em várias partes do mundo. São pais e políticos que, não acreditando na eficácia da imunização ou em possíveis danos que ela pode causar, além de alegarem motivos religiosos, se recusam a vacinar seus filhos. Mais que uma questão de liberdade de escolha, trata-se de bom senso. No presente texto serão apresentadas as formas como foi se desenvolvendo o medo e a resistência às vacinas.

As primeiras reações e respostas contra as doenças infectocontagiosas surgiram em fins do século XVIII, na Europa. Em 1789, o médico e naturalista britânico Edward Jenner (1749-1823), ao observar que a varíola bovina atingia de forma branda as pessoas que entravam em contato com esses animais, decidiu inocular substâncias bovinas em humanos. Essas pessoas, além de ficarem imunes a varíola bovina, também ficavam livres da varíola humana. Surgia, dessa forma, a primeira vacina e a imunização 2.

Apesar das epidemias serem uma constante, surgindo periodicamente há milhares de anos, a partir do momento em que uma vacina era desenvolvida, o número de mortos caia drasticamente. Na Província do Amazonas, por exemplo, que em 1856 acabara de passar por duas epidemias, uma de cólera morbo e outra de febre amarela, o comissário vacinador informava sobre a importância da vacina contra a varíola (bexiga), além de esclarecer as dúvidas de pessoas que não viam essa forma de prevenção com bons olhos:

E’ incontestavelmente a vaccina uma das principaes descobertas da Medicina e Jenner com ella immortalisou-se. Há porém certa repugnancia da parte do povo rude em acceitar tão benefica offerta, uns crendo que não preserva e outros que sua inoculação produz um mal igual ao da própria bexiga; aos primeiros cumpre dizer que a vaccina ou preserva ou dispoem de tal modo o sangue que rara vez é grave a bexiga no vaccinado, o que se prova até á evidencia com as estatisticas de paizes mais adiantados que o nosso em Hygiene Publica, onde as relações de obitos, depois desta miraculosa descoberta, apresentão um numero muitissimo inferior de mortes por bexigas”.

Para superar o medo da população e tornar a vacinação efetiva, o comissário pediu ajuda dos párocos da Província, para que estes guiassem seus fiéis: “Apello pois para vós, Snr. es. Parochos, para vós, aquem cumpre em primeiro logar encaminhar os espiritos de vossos freguezes; peço-vos que empregueis vossos esforços para os chamardes á vaccina3. Quase meio século mais tarde, a obrigatoriedade da vacinação, já na República, causaria, no Rio de Janeiro, uma revolta popular, denominada Revolta da Vacina 4.

Está na base da resistência à vacina, à proteção, o medo, esse sentimento coletivo e individual que acompanha a humanidade. De acordo com o historiador francês Jean Delumeau, autor do clássico História do Medo no Ocidente, em tempos de peste as populações expressam seus medos de diferentes formas, que vão da negação da doença, o distanciamento dos doentes e mortos à eliminação dos que acreditam serem os agentes propagadores das infecções (animais e grupos marginalizados)5. Esses aspectos ficaram bastante evidentes durante a epidemia de Gripe Espanhola entre 1918 e 1919, em que evitavam-se afetos e, por medo do contagio, os cadáveres dos que sucumbiam ficavam espalhados pelas ruas das cidades 6.

Mas se a doença e a ideia eminente da morte causavam medo, por qual motivo voltar-se contra medidas que visavam evitar o contagio dessas mazelas? Seria a “ignorância do povo rude”, aspecto inúmeras vezes recuperado nos documentos oficiais de época e mesmo pela historiografia? Essa ideia é bastante simplificadora, impedindo que se veja além daquelas realidades distintas. Era mais um confronto de discursos, de saberes, do que pura ignorância. De um lado, o popular, tínhamos práticas de cura seculares que incorporavam saberes indígenas, africanos e cristão católicos. Do outro, de tom mais oficializante, medidas higienizantes baseadas em valores estrangeiros. A historiadora Claudia Rodrigues recupera um episódio que exemplifica esse embate em saberes populares e saberes institucionalizados. Em 1849, durante a epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de Janeiro, a população acreditava ser ela um flagelo divino que teve origem

[…] quando o andor de São Benedito deixara de figurar na procissão das cinzas que, anualmente, percorria a cidade. Durante dois séculos o santo devoto dos negros tivera seu lugar na procissão, após o de santa Isabel de Hungria. Naquele ano, no entanto, segundo o memorialista Vivaldo Coaracy, “alguns terceiros, mais suscetíveis às distinções de pigmento cismaram que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja santo””, e São Benedito não encontrou quem lhe levasse o andor, ficando “depositado” na sacristia. “Não tardaram, naturalmente, logo as beatas a propalar nas massas crédulas a afirmativa de que tão tremendo castigo era indubitável efeito da cólera vingativa do santo ofendido” 7.

Enquanto a população defendida essa ideia, os médicos da Corte apresentavam teses que estavam em consonância com o que circulava desde o século XVIII na Europa, principalmente a defesa da teoria miasmática, segundo a qual as doenças se propagavam através dos ares que eram expelidos de matérias putrefatas.

Deve-se salientar que também ocorria a incorporação, pela população, de discursos médicos que posteriormente mostravam-se inconsistentes. Ela também via a vacinação obrigatória como uma forma do Estado aumentar o controle sobre sua vida. O historiador Eliézer Cardoso de Oliveira, que estudou a epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiás entre o século XIX e a década de 1930 do século XX, citando o historiador Sidney Chalhoub, afirma que

[…] o principal argumento dos médicos adversários da vacina era, além da sua ineficiência em alguns casos, a transmissão de doenças humanas (como a sífilis) e animais para o vacinado. Esses médicos eram minoria, mas, para desespero dos administradores públicos, faziam grandes estragos nas campanhas de vacinação. A população se apropriava desses argumentos, o que reforçava o medo da vacina8.

O atual movimento antivacina teve início na década de 1990 e com um “embasamento científico”. Em 1998 o médico gastroenterologista inglês Andrew Wakefield publicou no periódico científico Lancet um artigo em que defendia que as vacinas contra o sarampo, a rubéola e a caxumba causavam autismo em crianças. Descobriu-se, no entanto, que esse estudo foi fraudado. O médico teve a licença cassada. Apesar de ter suas teses refutadas, Wakefield, até hoje, as divulga ao grande público 9. Existem grupos de pais na Europa e nos Estados Unidos que se recusam a vacinar seus filhos. Mais recentemente, um político italiano antivacina, que afirmava que a obrigatoriedade das vacinações era um mecanismo de controle social, foi internado com catapora 10. Esse discurso vindo de um líder político mostra a dimensão que o movimento vem tomando. O mesmo começa a ocorrer no Brasil. Em um período marcado pela rápida produção e disseminação de informações por não especialistas, as ciências são diariamente contestadas, vide as ondas de revisionismo histórico. O mesmo vem ocorrendo na área da saúde, onde doenças que haviam sido erradicadas há décadas começam a surgir novamente e cada vez mais fortes.


NOTAS:

1 Mensagem do Secretário-Geral da ONU para o Dia Mundial contra a AIDS 2018. UNAIDS. Disponível em: https://unaids.org.br/2018/12/mensagem-do-secretario-geral-da-onu-para-o-dia-mundial-contra-a-aids-2018/. Acesso em 04/04/2019.

2 UJVARI, Stefan Cunha. A História da Humanidade contada pelos Vírus. Bactérias, Parasitas e Outros Microrganismos. São Paulo: Contexto, 2012.

3 Estrella do Amazonas, 11/06/1856.

4 Para uma análise crítica dessa revolta, ver SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina – mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

5 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

6 Mensagem do Governador a Assembleia Legislativa, 1919, p. 25. e Jornal Imparcial, 18 de novembro de 1918. In: GAMA, Rosineide de Melo. Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos Jornais de Manaus (1918-1919). Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013. Dissertação de Mestrado em História.

7 COARACY, Vivaldo. Apud RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 43.

8 OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A Epidemia de Varíola e o medo da vacina em Goiás. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2003, p. 954.

9 Como os movimentos antivacina se tornaram um perigo para o planeta. Revista Galileu, 26/10/2018.

10 Político antivacinas da extrema direita italiana é internado com catapora. G1, Globo, 19/03/2019.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)

Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). FOTO: A Crítica, 2018.

Neste dia 25 de março o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), localizado entre as ruas Bernardo Ramos e Frei José dos Inocentes, no antigo bairro de São Vicente, Centro Antigo de Manaus, completou 102 anos de fundação. Por várias décadas o IGHA foi o polo irradiador da produção dos conhecimentos geográfico e histórico na região, sendo uma instituição cuja trajetória não deve ser esquecida. No presente texto não pretendo abordar toda a sua história, pois seria uma tarefa hercúlea, mas apenas fazer algumas incursões por seus primeiros anos de atividades.

O Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), popularmente conhecido como Casa de Bernardo Ramos, foi fundado por Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (Presidente), Agnello Bittencourt (1° Secretário) e Vivaldo Palma Lima (2° Secretário) no Conselho Municipal de Manaus em 25 de março de 1917, sendo, depois da Universidade Livre de Manáos (1909) e antes da Academia Amazonense de Letras (1918), a instituição científica mais antiga do Amazonas. Instalado solenemente em 18 de maio, foi um dos últimos institutos do gênero a surgir no Brasil, preenchendo uma lacuna na produção e divulgação das pesquisas sobre a geografia e a história do Amazonas, bem como na conservação de documentos sobre essas duas áreas (1).

Os estatutos do instituto foram aprovados pelo Decreto N° 1.190 de 10 de Abril de 1917, e em 18 do mesmo mês, através do Decreto N° 1.191, foram concedidos pelo Estado os prédios n° 19 e 21 localizados entre as ruas de São Vicente (Bernardo Ramos) e Frei José dos Inocentes. Em mensagem de 10 de Julho de 1918, o Governador Alcantar Bacelar informava que 

"Esta respeitavel Associação scientifica, creada sob os auspicios do Governo do Estado, está definitivamente installada á rua de São Vicente, d'esta cidade, em proprio estadoal" (2).

O belo casarão localizado no antigo bairro de São Vicente, agora sede do IGHA, estava em péssimas condições. O corpo administrativo do Instituto, não dispondo de recursos, solicitou ao Governador que fossem realizados reparos e adaptações em sua estrutura, no que foi atendido. O Governador lembrou que, estando ele devidamente instalado, poderia receber a Coleção de Numismática do Amazonas, conforme apresentado em projeto dos deputados Adriano Jorge, Jonathas Pedrosa Filho e Coronel Raymundo Neves. Para que funcionasse sem dificuldades, sugeriu que lhe fosse concedido um auxílio financeiro anual (3).

Nesse mesmo ano, em julho, foi apresentado o projeto que, através de recibo, cedia o quadro de Dom Pedro II, localizado na sala de sessões do Conselho Municipal, ao IGHA. A obra foi posta no Salão  Nobre, que leva o nome do antigo Imperador. O ano de 1917 se encerraria com a visita do renomado historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), membro do IHGB. Rocha Pombo chegou em Manaus em 6 de novembro. Estava em viagem pelos estados brasileiros com o objetivo de fazer pesquisas em seus arquivos, preparando-se para a produção de um livro sobre a História do Brasil que seria publicado em 1922, ano do centenário da Independência. Os membros do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas realizaram, em 12 de novembro, na Assembleia Legislativa do Estado, uma sessão solene em sua homenagem. O historiador ficou na cidade até o dia 15 de novembro, quando partiu para o Sul do país.

Em 25 de fevereiro de 1919, por ocasião da realização do Congresso Brasileiro de Geografia, em Belo Horizonte, que teve como principal discussão as questões dos limites entre alguns estados da Federação (4), foi nomeada uma comissão de membros do instituto formada por Antonio Monteiro de Sousa, José Furtado Belém e Agnello Bittencourt para representar o Amazonas. Neste momento começavam-se os preparativos para a comemoração do Centenário da Independência do Brasil, que ocorreria em 1922. No ano do centenário, durante o Congresso Internacional de História da América, seria apresentado "um Diccionario Historico, Geographico e Ethnographico do Brasil" (5). Para escrever a parte do dicionário referente ao Amazonas e representar o Estado no Congresso Internacional de História da América, foi nomeada uma comissão formada por João Batista de Faria e Sousa, Vivaldo Palma Lima e Agnello Bittencourt. Os membros do instituto pediram que o Governo do Estado do Amazonas fizesse um recenseamento dos habitantes dos municípios amazonenses, de forma a apresentar dados demográficos mais consistentes.

De 3 a 4 de maio de 1919 o sócio fundador Bernardo de Azevedo da Silva Ramos apresentou duas conferências sobre 'Tradições e Inscripções do Brasil Pre-Historico'. Esperava-se que o Estado financiasse, logo que possível, a publicação da obra. No entanto ela só ocorreria em 1932, de forma póstuma, no Rio de Janeiro.

Diferente da maioria de seus congêneres, o Instituto do Amazonas é geográfico e histórico, e não histórico e geográfico. De acordo com o historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Luís Balkar Sá Peixoto, isso ocorreu pelo prestígio de um de seus membros fundadores, o geógrafo Agnello Bittencourt (6). Pode-se pensar, além do papel de destaque de Bittencourt, no fato de que, quando foi criado, estava em jogo, na região, a questão das fronteiras com os outros estados, sendo necessário o predomínio dos estudos sobre a geografia do Estado para assegurar sua soberania.

Informações sobre o seu corpo administrativo nos primeiros anos podem ser encontradas no Almanaque Laemmert, publicado no Rio de Janeiro. Para o triênio de 1920 a 1923 ele estava organizado da seguinte forma: "Diretoria: Presidente - Coronel Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt, ex-governador do Estado, 1° Vice-Presidente - Dr. Antonio Ayres de Almeida Freitas, ex-superintendente de Manaus, 2° Vice-Presidente - Dr. Franklin Washington da Silva e Almeida, professor da Faculdade de Direito, 1° Secretário (perpétuo) - Professor Agnello Bittencourt, catedrático do Gymnasio Amazonense, 2° Secretário - Dr. Paulo Eleutherio Alves da Silva, professor da Escola Média de Agricultura, Orador (perpétuo) - Dr. Vivaldo Palma Lima, diretor do Gymnasio Amazonense, Tesoureiro - Dr. João Batista de Faria e Souza, da Associação de Imprensa Amazonense. Comissões:  De sindicância, redação de estatutos, regimentos e regulamentos: Dr. Manoel Miranda Simões, Dr. Vicente Telles de Souza Junior e Dr. Raymundo de Carvalho Palhano. De finanças: Dr. Antonio Crespo de Castro, Coronel Antonio Lopes Barroso e Dr. M. M. Simões. De redação da Revista do Instituto:  Coronel Antonio Bittencourt, professor Agnello Bittencourt e Dr. Vivaldo Lima. De geografia: Dr. Agnello Bittencourt, Dr. Theogeur da Silva Beltrão e Dr. José Chevalier Carneiro de Almeida. De observações astronômicas, limites e levantamentos de cartas do Estado: Dr. Lourival Alves Muniz, Dr. Henrique José Mouers e Capitão Tenente Armando Octávio Roxo. De historia: Cônego Dr. Israel Freire de Souza, Dr. Vivaldo Lima e Dr. J. B. de Faria e Souza. De arqueologia: Dr. Henrique José Mouers, Coronel José da Costa Monteiro Tapajós e Coronel Bernardo de Azevedo da Silva Ramos. De etnografia: Dr. José de Moraes, Dr. Astrolabio Passos e Dr. João Manoel Dias. De antropologia: Dr. Basílio Torreão Franco de Sá, Dr. Hamilton Mourão e Dr. Ricardo Matheus Barbosa de Amorim. De botânica e zoologia: Dr. Francisco Lopes Braga, Dr. Alfredo Augusto da Matta e Dr. Angelino Bevilacqua. De Geologia e mineralogia: Dr. Antonio Telles de Souza, Dr. F. Lopes Braga e Dr. Gilberto Frignani. De filologia: Dr. Adriano Augusto de Araujo Jorge, Dr. Placido Serrano Pinto de Andrade e Dr. João Coelho de Miranda Leão. De agricultura e zootécnica: Dr. Paulo Eleutherio Alvares da Silva,  Dr. Manoel Peretti da Silva Guimarães e Comendador José Claudio de Mesquita. De comércio, industria e navegação: Dr. Luiz Maximiano de Miranda Corrêa, Dr. Adelino Cabral da Costa e Coronel José da Costa Teixeira. De numismática, tombamento, pesquisa de documentos, obras e manuscritos antigos e raros: Coronel Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, Coronel Raymundo Monteiro e Dr. J. B. de Faria e Souza" (7).

Observando o corpo administrativo de 1920-1923, percebe-se que o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas era formado por intelectuais com uma larga tradição e produção locais, posteriormente incorporados na Academia Amazonense de Letras e outras instituições. Agnello Bittencourt (1876-1975) era professor de Geografia Geral e Corografia do Brasil no Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, membro da Academia Amazonense de Letras, da Maçonaria e sócio do IHGB. Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858-1931), além da carreira militar, foi arqueólogo, linguista e numismata. Vivaldo Palma Lima (1877-1949) foi professor química e física do Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, médico, farmacêutico, jornalista, político e bacharel em Direito. Muitos também começaram atuando na arena jornalística, como João Batista de Faria e Souza, funcionário público e membro da Associação de Imprensa do Amazonas que atuava no Diário Oficial, jornal Amazonas e Jornal do Comércio publicando artigos sobre a história da cidade de Manaus.

Apesar de ter sido tardiamente criado, o IGHA seguia os moldes do IHGB, criado no Rio de Janeiro em 1838. Era uma academia ilustrada formada por membros oriundos da elite política e econômica. O grande número de comissões mostra que a geografia e a história não eram os únicos campos de atuação do instituto, que abarcava um amplo número de áreas do conhecimento. Os cursos universitários de Geografia e História surgiram no Amazonas apenas em 1981. Até aquele momento o IGHA monopolizava esses dois campos. E, parecendo ser uma tradição em todo o Brasil, nem sempre pelas mãos de pessoas da área, mas por advogados, jornalistas e autodidatas (o que ocorre até os dias de hoje). A relação entre o meio universitário e o IGHA, por esse motivo, sempre foi conflituoso. De um lado, a universidade (parte dela) não vê com bons olhos a produção do conhecimento sem teorias e métodos e, em certa medida, de forma idílica (sem a crítica das relações dialéticas que movem as sociedades). Do outro, o instituto prefere manter-se distante de novas discussões e aportes teóricos.


Nos últimos anos, no entanto, vêm ocorrendo mudanças nessa relação. Professores universitários passaram a fazer parte o instituto, e antigos membros deste passaram a buscar a especialização em suas áreas de interesse. Apenas dessa forma colaborativa o conhecimento pode ser produzido, divulgado e consumido de forma mais ampla e democrática.

Posso dizer que felizmente faço parte dessa história, dessa troca de conhecimentos entre a universidade e o centenário Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Com incentivo do amigo e membro Antonio José Souto Loureiro, publiquei em 2016 na revista do instituto o artigo A evolução da via pública em Manaus (séc. XVII-XXI), sobre o surgimento das primeiras ruas de Manaus e a evolução destas até os dias atuais. Que venham mais séculos de existência, mais pesquisas e mais conquistas para a Casa de Bernardo Ramos

NOTAS:

(1) Amazonas. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na abertura da Segunda Sessão Ordinaria da Nona Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Pedro de Alcantara Bacellar, Governador do Estado, a 10 de Julho de 1917, p. 92.

(2) Amazonas. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na Abertura da Terceira sessão Ordinaria da nona legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Pedro de Alcantara Bacellar, Governador do Estado, a 10 de Julho de 1918, p. 88.

(3) ________., p. 89.

(4) CARDOSO, Luciene Pereira Carris. Os congressos brasileiros de geografia entre 1909 e 1944. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p. 90.

(5) Amazonas. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na abertura da primeira sessão ordinaria da decima legislatura, pelo Exm. Sr. Dr. Pedro de Alcantara Bacellar, Governador do Estado, a 10 de Julho de 1919, p. 124.

(6) MENDONÇA, Roberto. Relíquias do Amazonas são vistas no exterior. Manaus, Jornal do Comércio, 07/08/2001.

(7) Almanak Laemmert. 3°Vol. Estados do Norte. Rio de Janeiro, 1921, p. 3164-3165.


CRÉDITO DA IMAGEM:

A Crítica.

Apogeu e Declínio do Hotel Cassina, em Manaus

Hotel Cassina. FOTO: Implurb, 2015.

O Hotel Cassina foi um dos principais hotéis de Manaus em fins do século XIX e início do XX, rivalizando com o Grande Hotel, na Avenida Sete de Setembro (o prédio abriga, nos dias de hoje, diferentes tipos de loja) e o Hotel Restaurant Français, na Avenida Eduardo Ribeiro (descaracterizado). Há mais de meio século que o prédio, localizado entre as ruas Bernardo Ramos e Governador Vitório, na Praça Dom Pedro II (antiga Praça da República), está reduzido a condição de ruínas, existindo apenas as quatro paredes e parte das armações de ferro.

Conforme anunciado na edição de 25 de outubro de 1894 do Diário Oficial do Estado do Amazonas, o italiano Andrea Cassina era proprietário do Café Restaurant Amazonense, localizado onde estava sendo construído o futuro Hotel Cassina, em frente a Praça da República (atual Praça Dom Pedro II)¹. O restaurante foi oficialmente inaugurado em 28 de outubro daquele ano. No Almanach do Amazonas de 1896, o negócio, além de restaurante, já estava funcionando como pensão, sendo informado ao público que um prédio apropriado para esse fim estava sendo construído no lugar. Em 1899 o Hotel Cassina já estava em pleno funcionamento, sendo anunciado local, nacional e internacionalmente. Seu primeiro proprietário foi o italiano Andrea Cassina, cujo nome batizou o empreendimento. Pouco se sabe sobre ele. Estabeleceu-se em Manaus no final do século XIX. Em 1891 ou 1892 adquire o Hotel do Commercio, localizado na Praça da República 2, e em 1894 a mercearia de Antonio Ribeiro, localizada na rua de São Vicente 3. Em 1899, quando teve que viajar para a Itália para cuidar da saúde, admitiu como sócio do hotel o empresário Hernani Donati, que cuidaria dos negócios até seu retorno 4. Cassina, talvez por esses problemas de saúde, faleceu em 1905.

O Hotel Cassina surge no período em que as atividades comerciais ligadas à extração do látex e comercialização da borracha começam a impulsionar o crescimento da cidade. Seus dirigentes passam a realizar grandes obras para torná-la atrativa para o estabelecimento de empresas. Afluíram a capital imigrantes de diferentes nacionalidades. Os serviços de hospedaria começavam a se tornar uma necessidade. Além do Cassina e dos já citados Grande Hotel e Hotel Restaurant Français, existiram o Hotel de França, Hotel da Madama, Grande Hotel Internacional e um sem número de pensões e cortiços, estes dois últimos geralmente frequentados e habitados por pessoas de baixo poder aquisitivo.

Mais que um hotel, também era uma casa de prostituição, mas uma ‘prostituição’ oficial, que não sofria com as sanções da municipalidade e seus Códigos de Posturas. Uma fatia considerável de seus frequentadores eram homens que geriam os negócios da cidade e que dominavam a máquina pública. Buscavam no Cassina prostitutas de luxo, as conhecidas polacas e coccotes eternizadas por uma historiografia saudosista que não se preocupou com as agonias do baixo meretrício 5. De acordo com o historiador Aguinaldo Nascimento Figueiredo, “nos confortáveis aposentos os magnatas da borracha ou ilustres visitantes promoviam verdadeiras orgias baconianas que incluíam inclusive leilões de virgens6.

As ruínas do Hotel Cassina vistas da rua Governador Vitório. FOTO: Girlene Medeiros, G1, 2013.

A partir de 1905 o hotel, agora Grande Hotel Cassina, passa a ser administrado por Luiz Pinto & Cia, que o reinaugurou no dia 27 de dezembro daquele ano 7. Em 1910 o negócio é comprado por Fernandes & Cia, proprietários até 1913, quando ele é adquirido pelos sócios J. C. Leitão Melita, Aurelio Vallado Gomes e Jesus Muguey Fernandes. Nos anúncios que se seguem a 1918, surge o nome de Gomes, Telles & Cia como novos proprietários. Gomes Telles & Cia, em 1° de janeiro de 1922, abriram uma filial do Grande Hotel Cassina na rua Municipal (Avenida Sete de Setembro), na esquina com a rua Marechal Deodoro 8. Gomes, Telles & Cia, aparentemente, foram seus últimos donos 9.

Seus anúncios e álbuns nos dão uma dimensão de sua estrutura e serviços, bem como alguns aspectos de seu interior. Em 1899, ano em que o prédio e os serviços foram remodelados e melhorados, Andrea Cassina anunciava que o hotel possuía “[...] bons quartos arejados, bem mobiliados e com todas as commodidades. Salas e salões”, além de “bebidas finas e das melhores procedências. Vinhos finos e de mesa, portuguezes, francezes, italianos, hespanhóes e do reino10. No livro Impressões do Brazil no século Vinte, editado em 1913, ele é descrito da seguinte forma:

Este hotel ocupa um edifício novo, de dois andares, de alvenaria de tijolo e pedra, situado em um lado da Praça da República e com frente para duas outras ruas. A entrada principal do hotel fica fronteira ao jardim da Praça da República e a vista das janelas na fachada principal se estende pelos canteiros floridos, gramados, ornamentados por fontes e estátuas, plantas e árvores tropicais daquele belo jardim, do qual o hotel fica separado apenas pela largura da rua.

O Hotel Cassina é todo iluminado por elétrica; os banheiros com chuveiro ficam situados no primeiro andar; dispõe de 45 quartos e, em ocasiões excepcionais, tem já acomodado 100 pessoas. O salão de jantar tem capacidade para 150 pessoas, e o menu é sempre de primeira ordem, sendo o serviço do pessoal do hotel um dos melhores do Brasil. Os aposentos são amplos e bem mobiliados. O hotel tem pessoal encarregado de esperar os vapores que chegam; automóveis e carros podem ser facilmente obtidos no hotel, para qualquer hora do dia ou da noite; os tramways elétricos passam a umas 50 jardas do edifício.

Perto do hotel ficam a sede do comando militar da região e o palácio do governador do estado. Nele se têm hospedado os viajantes mais notáveis que chegam a Manaus, e o hotel tem tido referências elogiosas em vários livros publicados por viajantes europeus.

São proprietários do Hotel Cassina os srs. J. C. Leitão Melita, Aurelio Vallado Gomes e Jesus Muguey Fernandes, sendo gerentes os dois primeiros11.

Nas fotografias desse e de outros livros e álbuns é possível ver um prédio eclético de dois andares, com pisos de madeira (material largamente utilizado em construções residencias e comerciais) e paredes revestidas com papéis com motivos florais, sustentado por colunas de ferro. O único registro de Andrea Cassina que se tem conhecimento foi produzido pelo fotógrafo italiano Vittorio Turatti em 1898, fazendo parte do álbum O Estado do Amazonas, publicado em 1899, de autoria do fotógrafo Arthuro Lucciani e do escritor Bertino de Miranda Lima.

Hotel Cassina. Álbum O Estado do Amazonas, 1899. FONTE: Biblioteca Virtual do Amazonas.

O Hotel Cassina, como pôde ser visto em sua evolução administrativa, funcionou regularmente, e também com uma filial, até a década de 1920. Ele começa, então, a desaparecer dos anunciadores e almanaques comerciais, bem como dos álbuns fotográficos. No primeiro Guia Turístico e Comercial de Manaus, publicado em 1932 por Edezio de Freitas, menciona-se que na cidade, por conta da crise financeira que atingia o Estado, não existiam hotéis que fizessem jus ao nome, mas são citados, como sendo de primeira e segunda ordem, respectivamente, o Grande Hotel, o Hotel Brasil e a Pensão Avenida. O Cassina sequer é mencionado 12. Na década de 1940 ele surge apenas na pena dos memorialistas, que lembram-se dele de forma saudosista, quando estava no auge, período em que recebia pessoas dos quatro cantos do mundo 13.

Hotel Cassina. Álbum O Estado do Amazonas, 1899. FONTE: Instituto Durango Duarte.

No Cassina, aliás, se hospedaram pessoas ilustres, de políticos a intelectuais, como o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934), em 1899, o líder revolucionário Plácido de Castro (1873-1908), em 1904, e o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), em 1906 e em 1910, e o vencedor do Nobel de Fisiologia ou Medicina Charles Robert Richet (1850-1935), em 1914.

O antigo Hotel Cassina passou a ser conhecido pejorativamente como Cabaré Chinelo, ponto de referência da prostituição no Centro. Entre fins da década de 1940 e início da década de 1950 são frequentes as queixas das famílias das redondezas da Praça Dom Pedro II, incomodadas com “o barulho e as pornografias” que funcionavam “até alta madrugada, com grande barulho provocado pelos que os frequentam, em algazarras e bebedeiras14. Seu nome aparece ao lado de boates e cabarés de quinta, como eram referenciados, tais como Carapanã e Fortaleza 15.

Hotel Cassina. Impressões do Brazil no Século Vinte, 1913.

O restauro do Hotel Cassina começou a ser estudado entre as décadas de 1980 e 1990. A então Fumtur, Fundação Municipal de Turismo, idealizou, em 1993, sua recuperação e criação de um centro de lazer, mas nada saiu do papel, apenas alguns trabalhos de contenção para evitar o desabamento completo. O Projeto Monumenta, da Prefeitura, em 2005, intentou transformá-lo em um teatro, o que também não ocorreu. Mais recentemente, em 2018, o Implurb (Instituto Municipal de Planejamento Urbano) apresentou um projeto de intervenção, aprovado pelo IPHAN, que reativa o Hotel Cassina na condição de hotel 3 estrelas 16. Até agora, no entanto, nenhuma movimentação ou preparo para restauro foi vista no local, um pedaço considerável da história da cidade que incrivelmente resiste ao desaparecimento, como se esperasse, novamente, viver dias de apogeu.

NOTAS: 

1 Diário Oficial do Estado, 25/10/1894.

2 Diário de Manáos, 27/12/1892.

3 Diário Oficial, 17/07/1894.

4 Commercio do Amazonas, 19/09/1899.

5 JÚNIOR, Paulo Marreiro dos Santos. Glamour e agonia na prostituição da Manaus da borracha. Cordis. Mulheres na história, v.2, n.13, p. 17-31, jul/dez, 2014.

6 FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. O Hotel Cassina. Revista Amazônia Cabocla, novembro de 2017.

7 Jornal do Comércio, 27/12/1905.

8 Jornal do Comércio, 01/01/1922.

9 A evolução administrativa de vários empreendimentos brasileiros, como o Hotel Cassina, entre 1891 e 1940, pode ser vista no Almanak Laemmert, publicado no Rio de Janeiro.

10 Jornal do Comércio, 27/12/1905.

11 Impressões do Brazil do Século Vinte: sua historia, seo povo, commercio, industrias e recursos. Londres (RU), Lloyd’s Greater Britain, 1913, p. 984.

12 FREITAS, Edezio. Guia Turistico e Comercial da Cidade de Manaus e Seus Arredores. Manaus, Velho Lino, 1932, p. 43.

13 BRAGA, Genesino. O ilustre hóspede do Hotel Cassina. Jornal do Comércio, 17/11/1948.

14 Jornal do Comércio, 07/02/1956.

15 Jornal do Comércio, 16/07/1957.

16 Projeto de intervenção vista transformar Hotel Cassina em estabelecimento 3 estrelas. Jornal A Crítica, 14/08/2018.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Implurb, 2015.
Biblioteca Virtual do Amazonas.
Instituto Durango Duarte.
Girlene Medeiros, G1, 2013.
Impressões do Brazil no Século Vinte, 1913. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300g47g17.htm

terça-feira, 19 de março de 2019

História Pública e o Samba Enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2019)



No Carnaval carioca de 2019, sagrou-se campeã a tradicional Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que teve como samba enredo História pra ninar gente grande. Em trinta versos e seis estrofes, a História do Brasil é apresentada ao grande público de uma forma totalmente diferente do que ocorre tradicionalmente, isso em dois sentidos. O primeiro, da institucionalização do conhecimento histórico, por universidades ou institutos históricos e o surgimento e expansão da História Pública; O segundo, das abordagens, isto é, de uma corrente historiográfica que valoriza o cotidiano, as lutas populares, as classes menos abastadas. São esses dois pontos, dois sentidos, que devem permear a presente análise.

Nunca houve uma época em que se lesse tanto sobre História, nacional ou internacionalmente, como a atual. Os livros que figuram nas listas dos mais vendidos são de História. Historiadores são solicitados para promover palestras, encontros e debates. Programas de televisão, seriados e filmes sobre história tornaram-se sensação. Nos dizeres de Cícero, a História tornou-se mestra da vida na atualidade. Tal afirmativa pode ser constatada quando se percebe que o conhecimento histórico já não é mais produzido exclusivamente por historiadores profissionais, com ampla formação, ultrapassando os muros das universidades. Está no cerne dessas mudanças a História Pública, um campo de indefinições (método, abordagem, objeto de estudo) que começa a suscitar debates acalorados no Brasil.

A História Pública tem raízes nos Estados Unidos na década de 1970. O historiador norte-americano Robert Kelley, pioneiro no assunto, apresenta a História Pública, em 1978, da seguinte forma:

Em seu sentido mais simples, História Pública se refere à atuação dos historiadores e do método histórico fora da academia: no governo, em corporações privadas, nos meios de comunicação, em sociedades históricas e museus, até mesmo em espaços privados. Os historiadores públicos estão atuando em todos os lugares, empregando suas habilidades profissionais, eles são parte do processo público. Uma questão precisa ser resolvida; uma política pública precisa ser elaborada; o uso de um recurso ou uma atividade precisa ser melhor planejada – eis que os historiadores serão convocados para trazer à baila a questão do tempo: isso é História Pública1.

Dessa forma, compreende-se que a História Pública, em suas origens, é vista como um conhecimento produzido fora das universidades por historiadores que buscam outros direcionamentos que não a carreira docente, mas a atuação em centros culturais, em empresas privadas e órgãos burocráticos. No entanto, como já pôde ser visto nos meios de comunicação, a história pública não é feita apenas por historiadores com formação acadêmica, como se refere Kelley. É comum ver jornalistas, advogados, pesquisadores independentes e autodidatas produzindo e divulgando textos sobre História geral e do Brasil.

Tal produção é vista, em parte, com ressalvas pelos historiadores profissionais, que temem pela simplificação do processo de pesquisa, pela ausência de métodos e discussões mais aprofundadas. Seria, de acordo com o historiador Bruno Flávio Lontra Fagundes, “aquela história que chega a públicos não-formados mas que tem pouco cuidado metodológico, feita de modo rápido e sem rigor”2. Outros preferem vê-la como uma chance de popularizar o conhecimento. Fugindo dessa polarização e buscando um diálogo entre academia, grande público (especializado ou não) e demandas, as historiadoras Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai, autoras de Introdução à História Pública, acreditam em

uma possibilidade não apenas de conservação e divulgação da história, mas de construção de um conhecimento pluridisciplinar atento aos processos sociais, às suas mudanças e tensões. Num esforço colaborativo, ela pode valorizar o passado para além da academia; pode democratizar a história sem perder a seriedade ou o poder de análise. Nesse sentido, a história pública pode ser definida como um ato de “abrir portas e não de construir muros3.

O 1° Simpósio Internacional de História Pública: A História e seus públicos, ocorrido em 2012 na USP, foi bastante profícuo, com discussões sobre os problemas, apropriações, as possibilidades e a interdisciplinaridade que envolve a História Pública. Essa abordagem/método/objeto de estudo já se tornou o mais novo foco de problematizações e campo de pesquisas fértil para os historiadores brasileiros 4.

Exemplo ímpar dessa História Pública produzida a partir de conhecimento pluridisciplinar conectado às mudanças e colaborativo, anteriormente citado por Gouveia e Rovai, foi o samba enredo da escola de samba carioca Mangueira, História pra ninar gente grande, reproduzido abaixo:

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato.

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês5

Ao ler esse samba enredo fica mais do que evidente que trata-se de um texto sobre a História do Brasil com uma abordagem bastante diversa do que ocorre no ensino básico (fundamental e médio), valorizando, ao invés da trajetória política e os grandes personagens, o cotidiano, as minorias e classes populares, elementos esquecidos. Isso fica evidente na primeira estrofe, em que pede-se para que se tire “a poeira dos porões” e que seja aberto caminho para os “heróis de barracões”.

A seguir, a segunda estrofe sintetiza o sentido do enredo ao falar da “história que a história não conta”, marcada por lutas e resistência. A Mangueira trouxe “versos que o livro apagou”, rompendo com a ideia já superada de descobrimento, apresentando a violência da invasão portuguesa no século XVI, marcada pelo genocídio de índios e, posteriormente, negros. Ao citar as mulheres, os mulatos e os tamoios, clama por novos protagonismos. A força do povo e desses novos protagonistas é lembrada pelos exemplos de Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares e guerreira do século XVII; e pela Confederação do Cariri (Kariri), movimento de resistência indígena ocorrido entre 1683 e 1713 na região Nordeste.

O fim da escravidão, com a abolição, também é revisitado. Tira-se do pedestal a figura redentora, quase divina, da Princesa Isabel e sua assinatura, sendo reforçado o papel do movimento abolicionista, das províncias de Norte a Sul. “A liberdade é um dragão no mar de Aracati”, referência a Francisco José do Nascimento (1839-1914), líder jangadeiro, prático mor e abolicionista conhecido como Dragão do Mar.

Por último, são lembrados grupos e pessoas que lutaram, resistiram e foram perseguidos, tais como os Caboclos de Julho, que participaram das lutas de Independência na Bahia; os militantes que lutaram contra a Ditadura Militar e, no tempo presente, a vereadora do PSOL Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018. No verso final, o protagonismo feminino e a revolução, lembrados pelas Marias (Maria Quitéria?); Luísa Mahin, ex-escrava e revolucionária do início do século XIX; Marielle Franco; e pela Revolta dos Malês, levante de escravos africanos muçulmanos ocorrido em Salvador, na Bahia, entre 24 e 25 de janeiro de 1835.

O samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apresenta a História do Brasil a contrapelo, vista de baixo. Trata-se uma corrente historiográfica de origem inglesa que valoriza o papel das massas, das massas geralmente postas ou deixadas no anonimato. De acordo com o historiador inglês Jim Sharpe,

essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores ansiosos por ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história6.

Não apenas vencidos, mas de personagens que, a seu modo, encontraram formas de resistência aos poucos recuperadas. A historiadora Heloisa Starling, em entrevista, afirmou que o samba enredo da Mangueira reflete nossa atual conjuntura política e dúvidas acerca dos novos contextos em que vivemos, pois “A História é uma coisa muito viva. Você sempre viaja para o passado com as perguntas do presente. E as perguntas que ele está fazendo são questões de hoje, como a busca por mulheres que tiveram protagonismo no Brasil7.

Falar em História Pública e produção do conhecimento histórico extra muro é falar em apropriações, ressignificação de temporalidades e disputas. O samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira gerou fortes discussões e embates. O Círculo Monárquico do Rio de Janeiro publicou, antes da apresentação da escola, uma nota de repúdio ao samba enredo por este pretender levar a avenida “a imagem de Dona Isabel, a Redentora, manchada de sangue, em tom de culpabilidade pela escravidão8

A produção, circulação e consumo do conhecimento histórico é marcada por embates, verdadeiras Guerras da História, nos dizeres do historiador Josep Fontana, pela transmissão ou não de versões que agradem dirigentes políticos e membros das elites. De acordo com Fontana, “[…] os debates a que se referem tem pouco a ver com a ciência e muito com o contexto político e social em que se movem os historiadores9.

O historiador, independente de suas visões de mundo, não dissocia sua produção da política. A própria “neutralidade” já é um direcionamento político. De um lado temos um grupo monárquico cuja concepção de história do Brasil é tradicional, feita por grandes personagens como a Princesa Isabel e formado, em sua maioria, por pessoas com conhecimento histórico autodidata. Do outro, um samba enredo que desconstrói essa história e apresenta algo mais popular e combativo ao grande público (especializado e não especializado). Ambos tem em comum o fato de serem frutos da História Pública, o que evidencia os debates e disputas no interior desse próprio método/abordagem/objeto de estudo que sem dúvidas veio para ficar.

NOTAS:

1 KELLEY, Robert Apud CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História Pública: uma breve bibliografia comentada. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio/. Publicado em 6 nov. 2017. Acesso em 14/03/2019.

2 FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas considerações sobre indefinições. VIII Congresso Internacional de História, XXII Semana de História, 9-11 outubro de 2017, p. 3021.

3 ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. Florianópolis: Letra e Voz, 2011, p. 07.

4 Anais do 1° Simpósio Internacional de História Pública: A História e seus públicos. Textos Completos. USP, 16-20 de Julho de 2012.

5 Mangueira – Samba Enredo 2019. Disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/. Acesso em: 15/03/2019.

6 SHARPE, Jim. A História vista de baixo. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. Trad. Madga Lopes. São Paulo: Edunesp, 1992, p. 41.

7 Carnaval 2019: As histórias do ‘país que não está no retrato’ cantadas pelo samba da Mangueira. Disponível em: http://envolverde.cartacapital.com.br/carnaval-2019-as-historias-do-pais-que-nao-esta-no-retrato-cantadas-pelo-samba-da-mangueira/. Acesso em 16/03/2019.

8 Nota de Desagravo. Círculo Monárquico do Rio de Janeiro. Disponível em www.circulomarquicorio.org. Acesso em: 16/03/2019.

9 FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru SP: EDUSC, 2004, p. 379.

CRÉDITO DA IMAGEM:

mangueira.com.br