sábado, 19 de novembro de 2022

Uma ilha de histórias - A história por trás da sede do Comando do 9° Distrito Naval

Adriel França*

Ilha de São Vicente, em Manaus. Cartão postal.

A cidade de Manaus é cheia de ruas históricas que guardam as mais diversas histórias que se possam imaginar, mas nenhuma delas é tão fascinante quanto a rua Bernardo Ramos, uma das ruas mais antigas de Manaus, que possuía uma ilha ao final dela, a ilha de São Vicente.

Localizada no final da rua Bernardo Ramos, a ilha de São Vicente já era conhecida pelos primeiros moradores da então Cidade da Barra desde fins do século XVIII, quando o Governador da Capitania Lobo D ́Almada mandou erguer na ilha, um prédio para servir de quartel de milícias, e que assim se seguiu até idos de 1850, quando se fez presente na ilha outra instituição o Hospital Militar, o único da cidade que acabava não só por servir aos militares mas também aos civis. O hospital militar, foi responsável por cuidar das pessoas acometidas pelas diversas epidemias que assolavam Manaus no século XIX.

A incerteza de datas é grande, mas algumas fontes alegam que em 1857 o hospital já se encontrava em condições de funcionamento e por mais de 50 anos o funcionou no mesmo prédio, no qual já havia sofrido algumas alterações em sua estrutura e aparência.

Durante o século XIX só era possível chegar na ilha de S. Vicente por meio de pontes que ligavam a rua com a ilha e por pequenas embarcações que transportavam pessoal e mercadorias, mas, quase próximo a virada do século, o então governador Eduardo Ribeiro, mandou aterrar o igarapé que separa a ilha do continente, tornando-se uma península. Em 1909 o Hospital Militar deixa de funcionar no local, deixando para trás um prédio já histórico, mesmo que para a época, visto que sua fundação remonta aos idos do século XVIII, tornando-se ruínas.

Após algumas concessões do Governo para empresas privadas, a ilha torna-se novamente uma casa militar, passando abrigar o Grupamento de Elementos de Fronteira, nos anos 50, posteriormente servindo de primeira sede do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) em 1966, passando a servir depois de sede para a 29o Circunscrição de Serviço Militar em 1973, e em 1975 a 1o Companhia Especial de transportes do exército. Após tanto tempo servir como casa militar, volta para a iniciativa privada, mas, já como patrimônio histórico tombado do Estado, abrigando a antiga Portobras (Empresa de Portos do Brasil S.A) em 1982, resultado de uma permuta com o Exército, que ficou com a área que a Portobras detinha no bairro da Ponta.

Em substituição a Portobras, assumiu o local a AHIMOC (Administração das Hidrovias da Amazônia Ocidental) que ofereceu o prédio para o então Comando Naval da Amazônia Ocidental (CNAO), que até então localizava-se nas instalações do atual Batalhão dos Fuzileiros no bairro do Mauazinho. Oficializada a troca em agosto de 2001, e alguns meses de trabalho na recuperação do prédio, finalmente em 22 de janeiro de 2004 o prédio torna-se sede do CNAO, sendo este elevado à categoria de Distrito Naval em maio de 2005, mudando mais uma vez de nome, servindo de casa para o Comando do 9° Distrito Naval.

E sob os cuidados da Marinha encontra-se preservado mas fora do olha do público externo, por ser área militar, como sempre foi, pelo visto, São Vicente estará sempre guarnecida.


*Pesquisador, acadêmico de Jornalismo na Faculdade Martha Falcão e membro do Clube Filatélico do Amazonas, onde desempenha a função de Secretário. Colaborar da Web Rádio Censura Livre, Rádio JCAM, de revistas filatélicas e do Centro Cultural dos Povos da Amazônia.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Uma breve História do Dia de Finados

Cemitério de São João Batista, em Manaus, durante o Dia de Finados. Foto da década de 1960.

Não existe uma data que carregue tantos sentimentos como o Dia de Finados, ponto alto do calendário cristão. Todos os anos, no mês de novembro, os cemitérios públicos e particulares ao redor do mundo enchem-se da mais terna saudade, da mais pura devoção religiosa e da alegre nostalgia que aflora com as lembranças dos que já partiram. A morte, que a todos espreita e espera, faz com que realizemos, no dia 02 de novembro, uma profunda reflexão sobre nossa trajetória e as daqueles que jazem em outro plano.

Qual a origem dessa data? Desde os primeiros tempos do Cristianismo era costume rezar pelos mortos nas catacumbas, que naquela época cumpriam a função de locais de refúgio das perseguições religiosas e também de culto. O teólogo e filósofo Santo Agostinho de Hipona, no século V, no texto O cuidado devido aos mortos, registrou que a Igreja Católica já possuía em seu calendário uma comemoração geral pelos fiéis defuntos. Ele explica que a oração aos mortos deveria ser praticada pelos cristãos, e que ela só seria proveitosa àqueles que tiveram uma vida exemplar em Cristo. Homens e mulheres deveriam viver uma vida exemplar para gozar, na morte, da piedade dos vivos. Mas como saber quem teve uma vida de fato voltada para Cristo, morrendo dentro dos preceitos da Igreja? Na dúvida, Agostinho afirma que “(…) convém apresentar súplicas a todos os regenerados, para que não omitemos alguém entre aqueles que possam se servir desses benefícios”.

O historiador medievalista francês Jean-Claude Schimitt, em estudo sobre os mortos na sociedade Medieval, afirma que a data foi oficializada em 02 de novembro, um dia após o Dia de Todos os Santos, pelo Abade Odilon de Cluny, o Santo Odilon (962-1049). Ela começou a ser melhor documentada a partir do ano 1030. Alban Butler (1710-1773), hagiógrafo inglês do século XVIII, nos explica que essa celebração é marcada por “esmolas, orações e sacrifícios para o alívio das almas sofredoras no Purgatório”.

Na Doutrina Cristã Católica, o Purgatório é um lugar localizado entre o Céu e o Inferno para onde vão as almas daqueles que, para atingir o Paraíso, necessitam passar por um processo de purificação marcado por provações. As orações dos vivos, recomendadas pela Igreja, amenizaria a passagem por esse local intermédio entre a perdição e a glória eterna. De acordo com o historiador medievalista francês Jacques Le Goff, essas orações pelos mortos foram a gênese da criação do Purgatório: “Foi, parece, pela crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos mortos – como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e depois, no começo do século III, a Paixão de Perpétua, primeira das representações espacializadas do futuro Purgatório – que começou um movimento piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório”.

O Dia de Finados, dessa forma, surge através de um sentimento de união entre vivos e mortos, representando um novo estágio na relação entre ambos, pois até a Antiguidade os mortos ficavam bem distantes da população, enterrados o mais distante possível das áreas urbanas, de forma a não prejudicar espiritualmente o ambiente dos vivos. Nesses distantes cemitérios, na época do Império Romano, foram enterrados os primeiros mártires do Cristianismo. No lugar de suas sepulturas, os cristãos passaram a erguer igrejas, e passaram a querer serem enterrados no interior desses templos, informa o historiador francês Philippe Ariès, autor do clássico História da Morte no Ocidente (1989). Com o passar do tempo e o crescimento urbano, as cidades passaram a absorver os subúrbios onde ocorriam os sepultamentos. Os mortos, dessa forma, passaram a fazer parte, de forma mais direta, do cotidiano dos vivos.

A prática de enterrar os mortos dentro e ao redor das Igrejas espalhou-se pelo Ocidente e outras regiões, chegando aos mais distantes rincões conquistados pelas potências coloniais da época, Portugal e Espanha. Elas introduziram a comemoração de Finados, incorporando um novo rito no cotidiano das populações locais.

Nos primórdios de Manaus, entre os séculos XVII e XVIII, quando era uma simples comunidade de indígenas e soldados portugueses localizada nos arredores da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, os nativos enterravam seus mortos no cemitério que tinha seu núcleo na atual Praça Dom Pedro II, se estendia pela antiga Rua de São Vicente e chegava até o Forte da Barra, nas imediações do Porto. Os colonizadores, por sua vez, eram enterrados dentro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e em seu largo. Documentos do século XIX indicam que a Ilha de São Vicente era outro local utilizado como cemitério. No início do século XIX surge um novo local de enterro, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e o terreno localizado atrás desta, batizado de Cemitério dos Remédios.

Esses espaços desempenharam suas funções até 1850, quando o Governo da Província decide estabelecer – em nome da saúde pública e de uma nova mentalidade – um cemitério público na cidade e extinguir os enterros tradicionais. Com dificuldades materiais para executar a obra, foi cercado em 1854 o antigo Cemitério dos Remédios, que funcionaria de maneira provisória até a abertura de um novo. Com isso, foram proibidos os enterros nos templos e seus arredores. O geógrafo e historiador Agnello Bittencourt, em texto publicado no Boletim da Associação Comercial do Amazonas (1956), lembra que o Cemitério dos Remédios ficava onde está localizado o antigo prédio da Faculdade de Farmácia e Odontologia, se prolongando pela rua Leovigildo Coelho, onde ficava o seu cruzeiro.

Uma grave epidemia de febre amarela em 1856, fez com que o Governo encerrasse os enterros no Cemitério dos Remédios. Foi aberto, nessa ocasião, na antiga Estrada da Cachoeira, atual Avenida Epaminondas, o Cemitério de São José. Por décadas as romarias de Finados se dirigiram a essa necrópole. Em 1869 um redator do jornal O Catechista registrou que viu nele, desde o dia 01, “Uma infinidade de luzes simetricamente dispostas sobre as sepulturas dos finados, parte das quais se achavam vestidas de crepe, e ornadas de flores sentimentais”, além de uma “[…] multidão de pais, amigos e parentes” que iam deixar lágrimas de saudade sobre os túmulos daqueles que lhes foram caros em vida. Somava-se a esse cenário melancólico a oração fúnebre do Padre Manoel Ferreira Barreto, capelão do cemitério, que “causava a todos que chegavam a porta daquela habitação mortuária, uma emoção difícil de descrever”.

Em 1872 as romarias tiveram início no dia 01. Para o articulista do jornal Amazonas, o cemitério era o local de nivelamento social, com o mais rico dos homens sendo igualado ao mais pobre: “É que ali naquela sombria igualdade cifram-se todas as vaidades mundanas; alli acabam-se as dissenções e ódios de que muitas vezes se nutre a fragilidade humana na breve passagem que faz por este mundo sáfaro até chegar á eternidade; ali não ha distinção nem de raça nem de classes: todos são – pó, cinza, terra e nada!”. No ano de 1879 é inaugurado, no bairro de São Raimundo, o Cemitério dos Variolosos, utilizado exclusivamente para o sepultamento de vítimas da varíola, que desde 1870 assolava a cidade. Em 1888 esse campo santo foi aberto ao público em geral, ganhando o nome de Cemitério de São Raimundo.

O Dia dos Finados de 1885 foi marcado por forte emoção, com as celebrações tendo início no dia 01. Os Alunos do Instituto de Educandos Artífices cantaram o Libera-me, enquanto o Reverendo Vigário Geral Pe. Raimundo Amâncio de Miranda realizava as orações e encomendas pelas almas dos mortos. No dia 02, distante do Cemitério de São José, foi realizada comemoração no bairro de São Raimundo pela alma “[…] dos que, vítimas da epidemia que a pouco assolou esta capital, repousam no cemitério dos variolosos”. O Libera-me foi tocado pelos Reverendos. Padre Amâncio e Coutinho, com ajuda do Capitão Fleury. De acordo com o articulista do Jornal do Amazonas, “A concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”.

Em 1891 os cemitérios de São José e de São Raimundo já não possuíam mais condições de permanecer funcionando. O primeiro por já fazer parte da área urbana, oferecendo perigo para a saúde pública e por já não dispor mais de espaço. O segundo, além de não possuir mais espaço, tinha um terreno que dificultava a decomposição dos cadáveres. O então Governador do Estado do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro, através do Decreto N° 95, de 02 de abril de 1891, determinou o fechamento desses cemitérios. Em 05 de abril foi inaugurado, em sessão solene, o Cemitério de São João Batista, no antigo bairro do Mocó, hoje bairros de Adrianópolis (Vila Municipal) e Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul da cidade. Ele já estava sendo idealizado desde o final da década de 1880. Foi uma das grandes obras modernizadoras erguidas no Governo de Eduardo Ribeiro.

Foi pelas mãos do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, à frente da administração municipal entre 1902 e 1907, que o Cemitério de São João Batista recebeu grandes melhoramentos. Em 1904 ele autoriza sua reconstrução. No ano seguinte, manda ser construído o muro com portões e gradis de ferro, importados da Escócia. Em 1906 é concluída a nova capela, em estilo neogótico. No portão de entrada foi fixada a expressão latina ‘Laborum Meta’, que significa fim ou meta dos trabalhos. Agora em grande estilo, transformara-se de fato em cemitério da elite manauara, que passaria a atestar seu poder através de túmulos e jazigos monumentais, obras esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias e artistas de renome. No Dia de Finados de 1908 o Jornal do Commercio noticiou seu embelezamento: “Tivemos ocasião de admirar ali muitas obras novas e bonitas, recém-colocadas, simples, sólidas e dignas de apreço, pela sua boa confecção, pelo seu bem-acabado, todas executadas pelo exímio marmorista Cesare Veronese, proprietário da conhecida e premiada marmoraria Ítalo-Amazonense, desta praça, que cada ano mais se desenvolve em crescente progresso, afirmando assim os foros simpáticos que tem de ótimo interprete da arte a que se dedica, com tanto interesse”. Anos mais tarde, distante do luxo do cemitério da Vila Municipal, era aberto, por volta de 1904-1908, o Cemitério de São Francisco, no bairro Colônia Oliveira Machado.

A Prefeitura cuidava da organização dos cemitérios. As quadras eram limpas, a vegetação era aparada, o número de bondes para fazer o transporte dos visitantes era ampliado e o de soldados da força policial do Estado para fazer a segurança. Os jornais publicavam inúmeros anúncios de venda de flores, cruzes, velas, imagens sacras, instalações elétricas especiais e outros elementos decorativos para túmulos e jazigos. Para as comemorações de 1909, a Casa Loyo e Paredes anunciava no Jornal do Commercio ter recebido “o maior e mais completo sortimento de coroas mortuárias”. Em 1920 A The Manáos Tramways and Light Company encarregava-se “de preparar instalações elétricas nas sepulturas, e tinha um grande estoque de cruzes”. Em frente aos cemitérios eram instaladas barracas para a venda de alimentos e bebidas. Não se ia ao cemitério de qualquer forma. Existia uma indumentária tradicional para o Dia de Finados. O antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de Azevedo, na obra Ciclos da vida: ritos e ritmos (1987), informa que as mulheres usavam roupas pretas e roxas combinadas com um véu branco que cobria o rosto. Os homens utilizavam roupas escuras, cinzas e brancas, com fumo no braço direito ou na lapela. Essas cores eram associadas à pureza da alma, à morte e ao luto.

As visitas tinham início pela manhã. Milhares de pessoas se dirigiam aos cemitérios da cidade, São João Batista, São Raimundo, São José e São Francisco. Engana-se quem imagina um ambiente de ordem e calmaria, como atualmente a ocasião pede. Entre lágrimas e orações, abundavam as beberagens, as comilanças, as conversas, os namoros, as gargalhadas, a correria de crianças brincando entre as quadras e, sempre que houvesse oportunidade, o furto de alguma cruz, vaso ou metal com valor de mercado. A sociabilidade era tão intensa que, no Regulamento dos Cemitérios Públicos do Estado do Amazonas (1892), estabeleceu-se que “É proibido fazer-se do cemitério lugar de recreio”. Apesar da medida, a morte, parafraseando o historiador João José Reis, seguia sendo uma festa. A primeira vez que os manauaras não puderam visitar os cemitérios foi durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918. O Jornal do Commercio publicou, para a tristeza da população, que “Em virtude da terrível epidemia que lavra entre nós, não haverá, hoje, como nos anos anteriores, romarias às necrópoles desta capital”. Em 2021, com a pandemia de Covid-19, ocorreu o mesmo. Não poder velar, enterrar em vala comum, não visitar e não prestar homenagens causa uma ruptura dolorosa, pois esses ritos fúnebres estão há séculos arraigados em nosso cotidiano. Ao final de 2021, a normalidade retornou.

No final da década de 1930 o antigo Cemitério de São José deu lugar à sede do Atlético Rio Negro Clube. O Cemitério de São Raimundo foi arrasado no mesmo período, sendo construído em seu lugar, décadas mais tarde, a Escola Estadual Marquês de Santa Cruz. Em 1934 é inaugurado nesse bairro o Cemitério de Santa Helena. A partir da década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa Helena e São Francisco já estavam sem espaço, passando a receber enterros apenas em jazigos perpétuos. Foram construídos, na década seguinte, o Cemitério de Nossa Senhora Aparecida e o Cemitério Parque de Manaus, também conhecido como Cemitério Parque Tarumã. Este último foi uma novidade na época, seguindo novos padrões de enterramento, sem jazigos convencionais, apenas com placas de identificação e um parque florido seguindo o estilo norte-americano. Era uma nova mentalidade em relação à morte, com busca pela praticidade e a economia de tempo e dinheiro.

Hoje as romarias irão em direção às necrópoles de São João Batista, São Francisco, Nossa Senhora Aparecida, Parque de Manaus (Parque Tarumã) e Santo Alberto. Os antigos simbolismos, como o uso de determinadas roupas, foram abandonados. Mas os sentimentos mais puros, a saudade, a tristeza e a alegria, e as virtudes mais caras, a fé, a esperança e a caridade, continuam a tomar conta das quadras e alamedas desses lugares de memória, arte e cultura incríveis que são os cemitérios.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Os nomes de Manaus

Manaus em 1865. Aquarela de Jacques Burkhardt. FONTE: Harvard Library.

Manaus surge ao redor da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, construída na segunda metade do século XVII, como um modesto povoado formado pelas tribos indígenas dos barés, aruaquis, manaus, tacu, passé, baníua, tarumã, muras, merequenas, juris e alguns soldados portugueses. O local foi denominado Lugar da Barra. Permaneceu em relativo abandono por mais de um século, com uma população rarefeita e sem infraestrutura. A fortaleza desempenhava suas funções defensivas contra espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que, assim como os portugueses, tinham grande interesse no comércio das drogas do sertão.

Em 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro – embrião político geográfico do atual Estado do Amazonas – subordinada à do Grão-Pará. Instalada em 1758, teve como primeira capital a antiga Aldeia de Mariuá, transformada em Vila de Barcelos. No final do século XVIII, Manuel da Gama Lobo d’Almada, Governador da Capitania de São José do Rio Negro, considerou a posição geográfica do Lugar da Barra, entre os rios Negro e Solimões, como bastante favorável à defesa contra invasões estrangeiras e às rotas de comércio naquela região. Decide, então, transformá-lo em capital, transferindo-a de Barcelos em 1791. A Barra, agora capital, recebeu uma série de melhorias, como a construção de fábricas, engenhos, cordoarias, padaria, olarias, poço e outros estabelecimentos.

O lugar desfrutou de certo prestígio até 1799, quando, por ordem do Governador do Grão-Pará, a capital retornou para Barcelos. Em 1804 o novo Governador do Grão-Pará, D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, reavaliou a administração de Lobo d’Almada e sugeriu ao Governador da Capitania de São José do Rio Negro, José Simões de Carvalho, a mudar novamente a capital para o Lugar da Barra. A transferência, porém, explica o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, só se concretizou quatro anos mais tarde: “Só, porem, em 1808, já sob o governador capitão de mar e guerra José Joaquim Victorio da Costa, a suggestão era acceita, deixando-se em definitivo Barcellos e reinstalando-se a capital na Barra, aos 29 de março” (REIS, 1934, p. 56).

Mais de vinte anos depois, em 1833, o Lugar da Barra foi elevado à categoria de Vila com o nome de Manáos (Manaus). Isso só foi possível graças ao Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, que reorganizou os termos e comarcas das Províncias. A Província do Grão-Pará o executou em 25 de junho de 1833, ocasião em que a Província foi dividida nas comarcas do Grão-Pará, Baixo Amazonas e Alto Amazonas: “O Logar da Barra do Rio Negro fica erecto em villa com a denominação de Manáos, servindo de cabeça de termo, em o qual se comprehende a mesma villa e a de Silves, que perde o predicamento de villa e a denominação de Silves, sendo substituída pela de Saracá; e bem assim as Freguezias de Aturiá e Amatary (supprimindo o título que cada uma tinha de Missão) e de Jaú, que era denominada Ayrão, com os seus limites actuaes” (REIS, 1934, p. 69-70).

A cidade de Manaus conservaria esse nome por 15 anos. A Assembleia Provincial do Grão-Pará, após estudos, decidiu que a então Vila de Manaus, capital da Comarca do Alto Amazonas, já possuía as devidas condições de ser elevada à categoria de cidade. A população era estimada entre 3000 e 6000 habitantes, existia uma pequena lavoura, comércio de matérias-primas e manufatura de produtos como a tartaruga, o pirarucu e a mandioca. A elevação foi levada a efeito através da Lei N° 145 de 24 de outubro de 1848. A Vila de Manaus passou a se chamar Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, homenageando a geografia da região e a padroeira do Amazonas.

Assim se chamou a cidade até 1856. O historiador Robério dos Santos Pereira Braga registra que em 21 de agosto de 1856 o Deputado Provincial João Inácio Rodrigues do Carmo apresentou à Assembleia um projeto mudando o nome da Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro para Manáos (Manaus). Após longos debates e sendo aprovado, o projeto deu origem à Lei N° 68 de 04 de setembro de 1856, oficializando a mudança do nome (BRAGA, 1993, p. 40). Uma publicação de 06 de setembro de 1856 do jornal Estrella do Amazonas informa que “Manáos foi o nome de uma antiga e poderosa tribu, que habitava o lugar onde está hoje assentada a cidade. Manáos é também o nome do igarapé que a embelleza pelo lado oriental, e o de um regato que abastece de água potavel”. A lei, conforme esse periódico, foi instituída no dia 05 de Setembro, data em que foi criada a Província do Amazonas em 1850. A população comemorou com júbilo o novo nome, soltando nas ruas e praças, durante o dia e a noite, fogos de artifício. Ao fim da matéria, o autor informa que “A mudança do nome da capital foi geralmente applaudida. Todos achão o nome de Manáos mais nosso e mais significativo” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 06/09/1856).

Como se escreveu o nome da cidade? Em documentos, jornais, livros, revistas, placas, cartas e cartões-postais de 1856 a 1940 encontramos o nome sendo escrito como Manáos, Manáus e Manaus. A grafia Manáos, com acentuação tônica no ‘a’, foi a forma mais difundida. Pelo Decreto N° 117, publicado no Diário Oficial do Estado do Amazonas, de 17 de março de 1937, a grafia Manaus foi oficialmente estabelecida. O Diário Oficial do Estado corrigiu seu cabeçalho em 1939 (BRAGA, 2007). A Reforma Ortográfica de 1943, que excluiu os étimos latinos e gregos ch, th, ph, xh, mm, nn e os por us, a grafia Manaus se consolidou (PEDROSA, 2018).


FONTES:

Estrella do Amazonas, 06/09/1856.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. Da cidade da Barra do Rio Negro e de Manaus. Jornal do Commercio, 24/10/1993, p. 40-40.

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. O nome "Manaus". Blog do Rocha, 21/02/2007.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. Manaós, Manáos e Manaus: Como se escreveu o nome da cidade ao longo do tempo. Blog História Inteligente, 19/10/2018. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2018/10/manaos-manaos-e-manaus-como-se-escreveu.html.Acesso em 24/10/2022.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. Manáos e outras Villas. Manáos: Typografia Phênix, 1934. Biblioteca Arthur Reis – CCPA.

sábado, 17 de setembro de 2022

Receitas tradicionais de tartaruga por Dona Chloé Loureiro

FOTO: Marcelo Ferrari.

Concluí há alguns dias a leitura de Doces Lembranças, de Chloé Loureiro (1988). É um livro de memórias do tempo de infância da autora, vivida entre o Acre e o Amazonas entre as décadas de 1920 e 1930. Apesar da crise que se abateu sobre a região naquele período, a vida não deixou de pulsar na Amazônia. O texto é simples e encantador, principalmente quando se fala de Manaus, a Cidade Sorriso, que "tinha o cheiro característico da pescada e do tucunaré frescos, misturado ao forte perfume do cupuaçu" (p. 113). Os relatos são intercalados com receitas de família de encher os olhos e estimular o paladar. Nele se aprende a fazer a tradicional tartarugada, a galinha e o pato a cabidela, o pirarucu de casaca, os doces de cupuaçu e caju e os chás, caldos e mingaus fortificantes. Cada memória faz emergir um ou mais pratos que se degustava em determinado momento, fosse de alegria ou de tristeza. Em certas passagens me vi diante de minhas memórias de infância, de uma comida especial, da família reunida na mesa, dos risos e abraços fraternos. Dentre as várias receitas, é impossível não se deter nas de tartaruga, pois só quem provou sabe do sabor único que ela possui. Reproduzo abaixo as receitas de tartarugada, guisado das mãos, guisado de carne, picadinho, sarapatel e a farofa do casco.

Tartarugada

A tartarugada não é um prato, é um banquete, no qual a tartaruga é apresentada de diversas maneiras, com sabores diferentes e aproveitando carnes, vísceras e sangue do animal, nada sobrando.

Não é difícil de ser preparada. O guisado é feito como o de carne de vaca ou ragu de carneiro. O picadinho, também, embora o sabor seja totalmente diferente. Vivendo na água, não tem gosto de peixe sendo, por isso mesmo, sui generis.

O sacrifício do animal é triste, deprimente. Custa muito a morrer e mesmo depois de horas, escaldado, cortado, a sua carne ainda pulsa na panela. Dá pena.

Depois de morta a tartaruga é sangrada e retirada de sua carapaça, o que exige uma pessoa especializada para fazê-lo. O sangue é colhido e misturado com vinagre, limão e sal, batendo-se bem, para não talhar. O cuidado maior é o da retirada das vísceras, para não espocar a bolsa do fel, ao lado do fígado, pois a bile deixa um sabor amargo aonde pega. Tudo deve ser escaldado e limpo, pois da tartaruga nada se perde.

Coloca-se então os quartos em água fervente, para se retirar a pele das patas. Cortam-se as mãos pelas juntas, arrancando-se as unhas. A carne mais branca é para fazer o picadinho; a escura, para o guisado, o sarapatel e o paxicá. Se estiver muito gorda, tire o máximo de gordura antes de escaldar as carnes.

Guisado das mãos

Corte as mãos em pedaços, tempere com sal, pimenta do reino, alho, colorau e cominho. Tire pedaços de gordura e derreta numa panela. Junte cebolas e cheiro verde, e refogue. Coloque pedaços de tartaruga e deixe refogar. Deite, em seguida, água quente à panela, e deixe cozinhar até amolecer o couro das mãos. Adicione, se gostar, um pedaço de pimenta murupi e uma boa quantidade de folhas de alfavaca cortada. Abafe a panela e logo em seguida feche o fogo.

Guisado de carne

Corte pedaços de carne mais escura e dos ossos que a acompanham, logo acima das mãos. Tempere com sal, pimenta do reino, colorau, cominho, alho socado e uma folha de louro. Refogue tudo com um pouco de gordura, se precisar, pois geralmente há gordura nestes pedaços. Leve ao fogo, junte água quente, e deixe amaciar bem. Junte em seguida boa porção de cebolas, cheiro e alfavaca, tudo bem cortadinho. Quando a carne já estiver quase macia, coloque batatas descascadas, cruas no caldo ou molho, para cozinhar, em fogo brando. Sirva quente.

Picadinho

Moa uma boa quantidade de carne branca. Passe junto um pouco de gordura.

Tempere com todos os temperos, sem excesso, para não tirar o sabor especial. Os melhores temperos são o cheiro verde, a cebola, a cebolinha e o colorau. Não use tomate. Moa também os temperos, pois fica mais gostoso. Refogue tudo junto, deixe cozinhar em fogo lento, desprendendo a água da própria carne. Pode ficar molhadinho mas não aguado.

Para acompanhar faça uma farofa com farinha d'água, na gordura da tartaruga, com cebola, cheiro verde e cebolinha, deixando ficar bem torrada.

No peito da tartaruga, limpo e assado na brasa, coloque o picadinho, e cubra com a farofa, enfeitando com ovos cozidos e azeitonas.

Sarapatel

Corte miúdo o bucho, o fígado, as tripas e alguns pedacinhos de carne (isto depois de tudo limpo e lavado com limão). Tempere com os mesmos temperos dos pratos anteriores. Leve ao fogo e deixe cozinhar bem. Quando tudo estiver bem macio, bata bem o sangue com um pouco de água, e despeje na panela. Mexa bem, para não pegar no fundo. Deixe engrossar e apague o fogo. Sirva quente.

Farofa do casco

Lave e tempere o casco da tartaruga e asse-o na brasa, com cuidado para não queimar. Vá raspando com uma colher, a carne e a gordura presa no mesmo. Fogo baixo para não queimar muito rápido.

Quando tudo estiver bem fritinho, coloque cebola, cebolinha, cheiro verde cortadinho, e vá juntando a farinha da sua preferência, para fazer uma farofa molhadinha.

Estes pratos são todos acompanhados com molho de pimenta murupi, feita com o caldo do guisado, suco de limão e temperos verdes bem batidinhos. Estes pratos são os principais.

O paxicá é feito com os miúdos e mais a cabeça cortada em pedaços, do mesmo modo que o sarapatel, mas sem usar o sangue.

Se a tartaruga estiver magra, não use óleo de qualquer espécie, nem margarina. Apenas manteiga ou banha de porco. Caso contrário o gosto fica horrível.

O filé pode ser assado ou frito na gordura.

Todos esses pratos são demorados, pois a carne é muito dura. Use panela de pressão para o guisado das mãos para maior rapidez.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Amores proibidos: a homossexualidade em Manaus no início do século XX

Rapaz com cesto de frutas. Caravaggio, 1593. FONTE: commons.wikimedia.org.

Nos últimos 100 anos o entendimento sobre a homossexualidade sofreu grandes mudanças. Considerada uma condição/prática pecaminosa e antinatural, dentro a esfera religiosa, passou a ser compreendida e aceita por parte da população, ainda que boa parcela da sociedade continue utilizando justificativas de cunho religioso para condená-la. Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, tornou-se objeto de estudo das ciências médicas, por elas entendida como um “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263), no contexto da medicalização e saneamento “moral” que se difundiu no Ocidente.

No recorte temporal do presente texto, a homossexualidade é entendida como um vício, uma imperfeição que degenerava homens e mulheres, estando lado a lado, nos famosos Códigos de Posturas, da prostituição e do alcoolismo. De acordo com o professor Adailson Moreira, “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). A passagem da esfera sagrada para a científica não representou o fim das perseguições. Pode-se pensar que, agora, a “ciência” justificava, seguindo os mais modernos critérios de pesquisa, a repressão e a marginalização de homens e mulheres que não se enquadravam em padrões normativos.

Para compreendermos a vida dos homossexuais de Manaus no início do século XX, devemos, primeiramente, ter ciência de que a cidade estava em plena modificação. A partir de 1890-1900, ela passa por um profundo processo de transformação em seus aspectos socioculturais, políticos e econômicos, possibilitado pelo crescimento do mercado de produtos primários – com destaque para a borracha - destinados ao abastecimento dos grandes centro industriais da Europa e da América do Norte. Ela precisa ser modernizada, práticas consideradas impróprias devem ser expurgadas e a vida urbana deve ser controlada por rigorosos Códigos de Posturas criados pelos administradores para garantir o bom funcionamento do novo polo econômico para as elites. Hábitos, costumes e práticas são sepultados, nos dizeres da historiadora amazonense Edinea Mascarenhas Dias (DIAS, 2007, p. 43).

Os periódicos locais são fontes preciosas para o estudo da vida dos homossexuais da cidade. O contato e leitura deles permitiu compreender o tratamento dispensado a eles, referidos nas folhas como pederastas, sodomitas e invertidos. As principais formas encontradas pelo poder público para combatê-los em nome do “saneamento moral” eram as perseguições e prisões, estimuladas pelos veículos de imprensa. Em 1912 o jornal A Marreta informava, estarrecido, que “Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos”. Eles estavam se espalhando pelas imediações do botequim ‘O Malho’, próximo ao Mercado Municipal, e por outros pontos da cidade. O redator da denúncia considerava a homossexualidade um vício terrível, afirmando que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”. Para cortar o mal pela raiz, sugeriu que “Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912). A prisão com trabalho forçado era aplicada em diferentes partes do mundo contra os homossexuais, como foi o caso da condenação, em 06 de abril de 1895, do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Nesse mesmo ano o Jornal do Commercio informava ter recebido da Casa Freitas um exemplar do primeiro volume da obra Os desequilibrados do amor, de A. Dubany (JORNAL DO COMMERCIO, 08/07/1912).

Em 1913 uma matéria do jornal O Chicote registrou que Manaus era “um dos mais sinceros espelhos de Sodoma e Gomorrha”, onde todos os vícios eram praticados, da vadiagem às relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. A “pederastia” era um vício que “alastra-se, desce do alto, arrasta na onda a infancia inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas” (O CHICOTE, 02/08/1913). O autor finaliza sua denúncia pedindo mais esforços da polícia para moralizar a capital. No ano seguinte, Evaristo da Silva e Norberto da Silva Azevedo foram presos por um guarda-civil na Rua Governador Vitório, no bairro de São Vicente, por estarem praticando, de madrugada, atos capazes de “lembrar os tempos de Sodoma” (JORNAL DO COMMERCIO, 26/12/1914). A homossexualidade era enquadrada nos crimes sexuais. Seja por questões biológicas, hereditárias ou adquiridas do meio em que se vive, o historiador Carlos Martins Júnior afirma que

Sob a justificativa de evitar o contato de indivíduos “sãos” com a “doença” física e moral, no final do século XIX desenvolveu-se a noção de que o controle racional das “perversões sexuais”, e mais especificamente da “homossexualidade viciosa”, garantiria a defesa do corpo social ameaçado (MARTINS JÚNIOR, 2015, p. 1249).

Esses são alguns registros de como os homossexuais eram tratados em Manaus. Não trata-se de um fenômeno exclusivo, pois ao redor do mundo, nas mais variadas sociedades, essas pessoas eram perseguidas, ridicularizadas e punidas. Observando bem, percebemos que esses informes tratam de um tipo específico de homossexual, o de baixa renda, que muitas vezes tinha que se prostituir para sobreviver. O que acontecia quando ele pertencia à elite? Qual era o peso da classe social sobre essa questão? O jornal A Marreta, em matéria já citada, informava que a campanha contra os “invertidos” deveria “[…] começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade” (A MARRETA, 03/11/1912). Aqueles que tinham prestígio na sociedade procuravam viver de maneira discreta, sem levantar suspeitas. Alguns mantinham uma vida dupla, pois eram casados ou tinham a fama de mulherengos, que não passava de uma fachada. Qualquer rumor era um prato cheio para os jornais de mexericos como O Chicote, A Marreta e A Farpa, sempre dispostos a acabar com uma reputação considerada irretocável.

A sociedade manauara do início do século XX tinha rígidos valores morais, que não davam espaço para qualquer tipo de “desvio”. Em Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, trabalho memorialístico de José Jefferson Carpinteiro Péres sobre sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950, nos é apresentada uma Manaus de padrões vitorianos, patriarcais, praticamente inalterados desde 1900. As meninas eram educadas para serem esposas obedientes, e os meninos para serem varões exemplares, chefes de família. Existia uma única preocupação que atormentava pais e mães: a homossexualidade. “Não tanto o feminino”, escreve Jefferson, “pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo”. “O problema dizia respeito”, continua, “aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a uma família. Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e irmãos morriam de vergonha e desgosto”. O pai castigava o filho e este era expulso de casa e, assim que os amigos ficavam sabendo, também era excluído de seus círculos sociais:

Lembro-me de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho. Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó. Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte. Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias e, não raro, com agressões físicas. Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis. Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não mais frequentaria a roda (PÉRES, 2002, p. 49-50).

Celino não esperou pela expulsão do grupo de amigos. Fez, de acordo com Jefferson Péres, o que muitos homossexuais que tinham condições faziam: deixou de procurá-los e, “[…] pouco tempo depois tomava o rumo do Rio de Janeiro” (PÉRES, 2002, p. 50). Amaro Vieira de Alencar, autor de São Raimundo dos Meus Amores, obra sobre sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo entre as décadas de 1940 e 1950, relata, com certa carga pejorativa, aspectos da homossexualidade dos meninos de seu tempo. Um jovem de nome Leopoldino, cita Amaro, era inclinado à “pederastia”. Certa vez, foi flagrado por vários garotos em posição de quatro com um rapaz, que logo saiu de cena: “Indignado, Leopoldino continuou de quatro pés e, arreganhando as nádegas com as duas mãos, exclamou – Deixa porr!… O c… é meu! Mete Chico! Amaro finaliza esse breve relato afirmando que isso não era estranho, pois outros meninos também eram homossexuais, ativos ou passivos, abandonando a prática na fase adulta: “Quando meninos, davam até por uma bolacha, hoje não dão nem por uma padaria” (ALENCAR, 1985, p. 26).

Essa Manaus de Jefferson Péres e Amaro Alencar guardava resquícios dos tempos dos periódicos analisados. Os relatos desses memorialistas descortinam uma cidade que convivia, de um lado, com rígidos padrões morais, oriundos de um tradicional Catolicismo enraizado na sociedade, que castigava, humilhava e excluía os homossexuais do convívio social; e, do outro, com esse e outros grupos marginalizados que, apesar das tentativas de “saneamento moral” e exclusão e após anos de luta renhida, conquistaram o direito de existir.


FONTES:


Jornal do Commercio, 08/07/1912.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 26/12/1914.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ALENCAR, Amaro Vieira de. São Raimundo dos Meus Amores. Manaus, Sociedade de Televisão Ajuricaba, 1985.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2007.

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

MARTINS JÚNIOR, Carlos. Saber jurídico e homossexualidade no Brasil da Belle Époque. Diálogos (Maringá), v. 19, p. 1217-1251, 2015.

PÉRES, Jefferson. Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. 2° edição revista e ampliada. Manaus: Editora Valer, 2002.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O Amazonas na época da Elevação à categoria de Província

Bandeira do Amazonas.

Naquele 05 de Setembro de 1850, encerrava-se, pela força da lei, uma luta. Luta por emancipação política que teve início décadas antes. A antiga Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará, foi elevada, através da Lei n° 582 de 05 de Setembro daquele ano, à categoria de Província do Amazonas. Emancipada essa porção territorial, criada uma nova unidade política, era preciso organizar a administração, ver o que existia, o que faltava, cuidar da arrecadação. Enfim, planejar o futuro da nova Província.

Os limites da Província do Amazonas seriam os mesmos da antiga Capitania de São José do Rio Negro, “com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da Cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro de Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro” (REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas, 2° ed, 1989, p. 121).

Quando a Província foi entregue a seu primeiro Presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851, esta contava com um Comando Geral, criado em 05 de julho de 1737, que compreendia todo o território; a Guarda Policial, criada em 04 de abril de 1837, formada por dois Batalhões com uma força de 1339 praças; nos portos existiam 12 oficiais militares destacados; e as Companhias de Trabalhadores, instituídas pela Lei n° 02 de 25 de abril de 1838, que eram instituições que recrutavam trabalhadores, índios e mestiços, para a prestação de serviços compulsórios para o Estado e particulares. Foi criada uma Companhia Provisória de Caçadores de 1° Linha, que contava com 84 praças. Existiam também 39 praças destacadas que pertenciam ao 3° Batalhão de Artilharia a pé. Com 2 Termos com foro independente, o Amazonas possuía 4 municípios, 20 freguesias, 18 Distritos de Paz, 2 Delegacias e 11 Subdelegacias.

O estado da segurança pública era considerado lisonjeiro, ainda que as maiores ameaças consideradas pelos administradores locais fossem os ataques de indígenas das tribos arara, macûs, muras e karipuna, que vez ou outra assaltavam embarcações e matavam seus passageiros. Tenreiro Aranha tomou medidas para coibir esses ataques e punir seus autores.

No que diz respeito ao culto público, representado pela religião Católica, existiam 3 Missões na região para a catequese dos indígenas: a de Porto Alegre, em São Joaquim do Rio Branco, no Alto Rio Branco, onde eram catequizados uapixanas, macuxis, jaricunas, anhuaques, arutanis, procutus e saparás; a de Japurá, Içá e Tonantins, na margem esquerda do Solimões, cujos trabalhos eram feitos com ticunas, mariatés, xomanas, juris e passés; e a do Andirá, em Vila Nova da Rainha (Parintins), voltada para a catequese de maués e muras. As missões não estavam dando os resultados esperados, o que era atribuído “a carencia de Missionarios esclarecidos, e animados de fervor religioso, e de patriotismo; a insufficiencia dos meios pecuniarios, de que se tem disposto; e a falta de um systema de educação mais apropriada” (EXPOSIÇÃO, 1851).

Em aspectos educacionais, em seus anos iniciais a Província possuía 8 escolas de ensino primário, das quais 7 estavam plenamente providas de todos os materiais necessários para o funcionamento. A única instituição de ensino secundário, o Seminário de São José, criado em 1848, ficava na capital, Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro (Manaus). Nela eram ensinada gramática latina, língua francesa, música e canto. À época era frequentado por 17 alunos, sendo 13 internos. Em trabalho de recenseamento realizado em 1851, a população foi estimada em 29.798 habitantes, sendo 7.815 homens livres e 225 escravos, 8.772 mulheres livres e 272 escravas, 6.776 menores do sexo masculino livres e 117 escravos, e 5.685 menores do sexo feminino livres e 136 escravas.

Assim se encontrava a Província do Amazonas, de acordo com a Exposição apresentada em 09 de dezembro de 1851 por Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província do Pará, a João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Fausto concluiu sua exposição desejando sucesso a Tenreiro Aranha e ao Amazonas: "Concluindo, felicito a V. Exa. pela gloria, que lhe caberá, de dar á Provincia do Amazonas o impulso, que deve acceleral-a na carreira do progresso, desenvolvendo largamente os grandes meios que ella possue, e que lhe afiançam, no porvir, um logar a par das que mais hajam florescido" (EXPOSIÇÃO, 1851).

A par dessas informações, do lugar que primeiro administraria, Tenreiro Aranha pôde enfim instalá-la em 01 de Janeiro de 1852, no prédio da Câmara Municipal de Manaus. Instalada, nomeados seus vice-presidentes e demais funcionários, seguiram-se os festejos e dois tradicionais atos religiosos, o de Ação de Graças, na capela do Seminário de São José, e o Te Deum Laudamus (A Ti Louvamos, Deus), na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, que estava servindo de Igreja Matriz.

Em 1852 foi levantada a planta de Manaus. Nela, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, do Espírito Santo e do Aterro, que cortavam seus poucos bairros, Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente. As ruas continuavam estreitas e curtas, como nos tempos coloniais, definidas de forma natural pelo terreno. Registra-se, ainda, como acontecimento marcante para a região, a introdução da navegação a vapor mediante a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Manaus no tempo dos ingleses

Bosque Municipal, ponto de encontro da colônia inglesa em Manaus. Foto de 1927. FONTE: Fanpage Manaus Sorriso.

Não tem como falar da História de Manaus sem fazer referência à presença e influência inglesa entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Nesse período a cidade era o principal polo econômico da Amazônia e um dos mais importantes centros comerciais do mundo, enriquecida graças à exploração da goma elástica. Os ingleses, assim como outros estrangeiros, aqui se estabeleceram em busca de auferir lucros com a corrida da borracha. Deixaram suas marcas na economia, na arquitetura, na moda e nos costumes.

O mundo vivia sob influência política e econômica do poderoso Império Inglês, que estava no auge de seu crescimento industrial, possibilitado pelo investimento do capital acumulado durante a expansão marítima entre os séculos XVI e XVIII na indústria. As grandes potências realizavam investimentos onde era possível adquirir matérias-primas para suas indústrias e onde estavam localizados mercados consumidores para seus produtos manufaturados. O capital inglês, registra o historiador Eric Hobsbawn em A Era do Capital (1996), foi responsável por desenvolver a infraestrutura da América do Sul e de outros continentes. Surgiram ferrovias, portos e serviços, explorados por longos anos por empresas sediadas em Londres. O pacto colonial já havia deixado de ser uma realidade, mas a dependência em relação às metrópoles continuaria nessa nova fase de expansão do capitalismo, que dominaria os mais distantes rincões do mundo.

A primeira ação inglesa no Amazonas se deu por volta de 1860. O governo inglês pressionou o Império Brasileiro para que ele abrisse os portos do Rio Amazonas às nações estrangeiras, fechados desde o período Colonial. Após longos debates, foi lavrada em 07 de setembro de 1867 a lei que abria os portos do Rio Amazonas às grandes potências, favorecendo principalmente a Inglaterra, que em pouco tempo passou a dominar a navegação na região. Conforme estudos do historiador amazonense Antonio José Souto Loureiro, autor de O Amazonas na Época Imperial (1989, p. 154-155), em 1871 empresários ingleses compram a Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá em 1852, a transformando na The Amazon Steamship Navigation Company Limited. A Companhia Fluvial do Alto Amazonas também teve seus direitos transferidos para aquela companhia em 1874.

Com a abertura dos portos, os produtos ingleses invadiram os mercados locais. Nos jornais amazonenses encontramos aos montes anúncios de chapéus de sol, camisas, botas, sapatos, máquinas de costura, instrumentos musicais, armas, relógios, estopa, conservas, geleias, bebidas, manteigas e outras mercadorias sendo vendidos por casas comerciais de Manaus. Enfatizava-se, em cada informe, a excepcional qualidade que possuíam. Em contrapartida, a exportação de produtos animais e vegetais, com destaque para a borracha, utilizada nas indústrias de revestimento de cabos elétricos e automobilística, teve largo crescimento, possibilitando, a partir de 1880, um surto de desenvolvimento jamais antes visto na região. Isso só foi possível, deve-se lembrar, graças à criação, em 1839, pelo inventor norte-americano Charles Goodyear (1800-1860), do processo de vulcanização, no qual o uso do calor e do enxofre aumentou a durabilidade da borracha, impedindo que ela se degradasse pela ação climática. Os impostos arrecadados através da exportação foram aplicados, em diferentes administrações estaduais e municipais, na modernização de Manaus.

Membros da colônia inglesa em Manaus. Foto do início do século XX. FONTE: SCHWEICKARDT, Júlio César. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930). Tese de Doutorado, Fiocruz, 2009.

Manaus, agora transformada no principal centro financeiro da Amazônia, necessitava de uma série de melhorias. Faltava um bom sistema de comunicação, um porto flutuante, energia elétrica e abastecimento regular de água e esgoto. Como vinha ocorrendo em várias partes do mundo, o Estado, em troca da implantação desses serviços, concedeu o direito de exploração a empresas estrangeiras, leia-se inglesas. Antônio Loureiro, em A Grande Crise (2008, p. 95-97), nos dá um panorama dessas concessões: Em 1895 é fundada a The Amazon Telegraph Company Ltd., concessionária da comunicação por cabo fluvial entre Manaus e Belém e, por submarino, entre Belém e a Europa. É formada em 1909 a Booth Steamship Company, de navegação internacional entre a Europa e os Estados Unidos. A The Amazon Steamship Navigation Company Ltd. é transformada em 1911 na The Amazon River Steamship Company Ltd. Em 1902 é fundada a The Manáos Harbour Limited, responsável pela construção e exploração do Porto de Manaus, com uma concessão de exploração por 60 anos. Também foi responsável pela construção do novo prédio da Alfândega, erguido entre 1906 e 1909. A concessionária do serviço de abastecimento de água e esgotos, Manáos Improvements Ltd., foi fundada em 1906. O mercado e o matadouro público passaram a ser administrados pela The Manáos Markets and Slaughterhouse Ltd. O serviço de bondes elétricos foi concedido à The Manáos Railway Company em 1895, mesmo ano em que o serviço de energia elétrica é concedido à The Manáos Eletric Lighting Company. Em 1909 bonde e energia elétrica passaram a ser explorados pela The Manáos Tramways and Light Company Ltd.

O Governo esperava que as concessões garantissem, além da arrecadação e do melhoramento técnico da cidade, o bom funcionamento desses serviços para os moradores. No entanto, a realidade nem sempre foi essa. Várias vezes o Estado e a população tiveram que entrar em confronto com as concessionárias inglesas por conta do péssimo serviço oferecido, pelos abusos no aumento das taxas e, principalmente, pela pouca atenção aos interesses locais. A Manáos Harbour, por exemplo, desde o início oferecia um serviço muito abaixo do esperado. Em 07 de agosto de 1904 assim se manifestava o Jornal do Commercio a seu respeito: “Os atropellos que ao commercio desta praça tem imposto a archi-poderosa empreza que houve carta testamentaria para espraiar seus dominios no littoral desta cidade, são notorios já e patentes e formam um longo rosario de indestrutiveis e irritantes desmandos”. Em 1913 o escritório da Manáos Improvements foi destruído pela população, enfurecida pelos constantes e exorbitantes aumentos. A Manáos Markets foi encampada durante a Revolução de 1924. A Manáos Tramways and Light Company foi encampada pelo Estado em 1950. O porto foi a concessão inglesa que mais durou, encampado pelo Estado apenas em 1967.

Em 06 de novembro de 1901 é instalada na antiga Rua Doutor Constantino Nery, atual Monteiro de Souza, uma agência do London and Brazilian Bank Ltd. Posteriormente é aberta uma agência do The London & River Plate Bank Ltd. Os dois são fundidos em 1923, dando origem ao London Bank, com agência na rua Guilherme Moreira. A economia do Estado do Amazonas, que àquela altura já representava uma das principais arrecadações do país, circulava por essas instituições. Só para termos uma ideia em valores, em 1910 a cotação da borracha atingiu, de acordo com Samuel Benchimol em Amazônia – Formação Social e Cultural (1999, p. 209), a cifra de 665 libras por tonelada, sendo exportadas 38.206 toneladas. Consultando o Annuario de Manáos (1913-1914), encontramos os nomes de algumas das mais afamadas e poderosas casas exportadoras inglesas estabelecidas em Manaus: Adelbert H. Alden, Ahlers & Cia, De Lagotellerie & Cia, General Rubber Co. Of Brasil, W. Peters & Cia e Zarges, Ohliger & Cia.

Vieram para a cidade engenheiros, médicos, funcionários públicos, banqueiros, empresários e investidores que construíram carreiras sólidas e pequenas fortunas. O médico Hermenegildo Lopes de Campos, em sua Climatologia médica do Estado do Amazonas (1988, p. 101), calculou que em 1903 residiam em Manaus de 70 a 75 ingleses. Destacamos o Sr. Stanley Sutton, gerente da Manáos Harbour; Arthur James Billet, adjunto do Contador da Manáos Harbour, George Clawson Browne, funcionário da mesma empresa; Mr. Forbes e Mr. Turner, gerente e diretor da Manáos Tramways and Light Company respectivamente; Edmund Compton, sócio da casa comercial Compton, Meech & Cia; F. Higson, sócio da firma Higson & Fall; Fanny Hughes de Oliveira, esposa do Coronel Manoel Dias de Oliveira, corretor da Junta Comercial do Amazonas. O médico canadense Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas (1875-1931), do laboratório da Liverpool School of Tropical Medicine, fundado em Manaus em 1910, atendia cidadãos ingleses e alemães. Caminhando pelo do Cemitério de São João Batista encontramos alguns túmulos de membros da colônia. Vejamos a trajetória de Alfred John Toone (1882-1906), impressa em uma bela lápide de granito negro: Filho mais velho de Charles e Sarah Toone, nasceu no município de Liscard, na Inglaterra, tendo trabalhado por oito anos no escritório de Liverpool da Booth Steamship Company, posteriormente vindo trabalhar no Brasil. Faleceu 5 meses depois de deixar a Inglaterra, em 16 de fevereiro de 1906, possivelmente vítima de alguma doença tropical. Seu túmulo foi uma homenagem da empresa pelos serviços prestados. Muitos deles se relacionavam com a comunidade local através da presença em outros clubes, como o Luso Sporting Clube, dos portugueses, que admitia como sócios cidadãos ingleses e de outras nacionalidades.

Manáos Athletic Club. Foto de 1913. FONTE: Acervo do pesquisador Gaspar Vieira Neto.

Diferentes esportes praticados pelos ingleses foram introduzidos na cidade. Partidas de futebol já eram realizadas em Manaus desde o início do século XX. Eles fundaram em 1908 um clube de futebol, o Manáos Athletic Club, constituído unicamente por súditos da velha Albion. O corpo administrativo desse clube eleito em 1911 nos dá uma ideia dessa composição: “Presidente, W. Robilliard; secretario, T. C. Shaw; thesoureiro, A. H. Samuels; capitain, E, Compton; director-fiscal, W. Baumann; vogaes, Aimers, Gordon. Higson, Douglas, Dening”. Por volta de 1900-1904 foram fundados o Cricket Club e o Manáos Tennis Club. Todos esses esportes eram praticados em um local de uso exclusivo, o aristocrático Bosque Municipal, também conhecido como Bosque dos Ingleses, localizado na antiga Estrada de Flores, atual Avenida Constantino Nery. O Jornal do Commercio informava em edição de 17 de abril de 1904 que “No bosque municipal haverá hoje jogo de cricket pelas turmas que no domingo passado estiveram ali disputando um match”. Eles comemoravam com grandes festividades as principais datas do calendário britânico, com especial destaque para os aniversários de membros da Família Real. Os eventos aumentaram consideravelmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que eram angariados fundos para a Cruz Vermelha.

Os memorialistas lembram com saudosismo da Manaus dos ingleses. Agnello Bittencourt (1876-1975), renomado professor e historiador amazonense, pontua, em Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências (1969, p. 70), que nesse período, apesar do clima tropical, os membros da elite vestiam-se seguindo o rigor da moda europeia, em especial a francesa e a inglesa, com “as mulheres espartilhadas e vestidas até aos pés em pesadas sêdas; os homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso estilo “fin-de-siècle”. Os homens procuravam estar sempre apresentáveis, vestindo belíssimos ternos de linho branco H.J. inglês, comercializados nas melhores lojas da cidade. Desde o século XIX a língua inglesa era ensinada nos estabelecimentos de educação e cobrada nos concursos públicos.

Restam hoje alguns exemplares de arquitetura genuinamente inglesa. O primeiro é o Porto Flutuante, popularmente conhecido como Roadway. É o maior porto flutuante do mundo, acompanhando as cheias e as vazantes do Rio Negro. Na mesma região encontra-se a Alfândega, pré-fabricado na Inglaterra e projetado pelos arquitetos Edmund Fisher, H. M. Fletcher e G. Pinkerton. Nas palavras do historiador paraense Leandro Tocantins, em O Rio Comanda a Vida (2000, p. 234), é um edifício “vistoso, arquitetura eclética, sendo uma reprodução de prédio inglês comum nas ruas londrinas de 1900”. Próximo dali, entre a Travessa Vivaldo Lima e a Rua Taqueirinha, estão o prédio do antigo Museu do Porto, construído em 1903 para abrigar a usina de força do cais do porto; e a antiga Administração do Porto. Assim como a Alfândega, foram construídos em estilo inglês, com tijolos aparentes.

O tempo dos ingleses se esvaiu juntamente à bancarrota que atingiu a região amazônica entre 1913-1920. A borracha produzida nos seringais planejados das colônias inglesas e holandesas no sudeste asiático, fruto do contrabando por eles feito por volta de 1870, superou a produção nativa. Empresas fecharam, serviços foram paralisados, obras deixaram de ser construídas. Parte daqueles que se aventuraram no passado deixando a Terra da Rainha em direção ao “Inferno Verde”, rumaram de volta para Londres, Liverpool, Manchester e outras cidades de médio e pequeno porte, levando, com certeza, lembranças da vida nos trópicos. O capital inglês, que por mais de duas décadas foi aqui aplicado, agora seria direcionado para a Ásia. Terminava assim a saga inglesa em Manaus.


FONTES:


Annuario de Manáos, 1913-1914. Acervo particular do pesquisador Ed Lincon Barros Silva.

Correio Sportivo, 12/03/1911.

Jornal do Commercio, 07/08/1904.

Jornal do Commercio, 17/04/1904.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer, 1999.

CAMPOS, Hermenegildo Lopes de. Climatologia médica do Estado do Amazonas. Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1988 (fac-similado, 1909).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de ManausPródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. 5° ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

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