Rômulo e Remo. Pintura de Peter Paul Rubens, 1614-1616.
As
cidades mais antigas do mundo, fundadas por civilizações que se
mostraram grandiosas em seus feitos, tem suas origens incertas e
envoltas em um mar de mitos e lendas. As incertezas, somadas ao
fantástico, instigam pesquisadores como arqueólogos, antropólogos,
historiadores e outros profissionais das áreas Humanas. Quem foram
Rômulo e Remo, personagens amamentadas por uma loba? Seriam apenas
figuras mitológicas ou de fato existiram? Autores antigos já
debruçavam sobre essas questões. Para esse texto escolhi as versões
de dois historiadores clássicos: Os romanos Flavius Eutrópio
(século IV d.C.) e Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.).
Em
Desde a Fundação da cidade,
obra densa que originalmente possuía 142 livros, dos quais restaram
apenas 35, Tito Lívio, como
diz o título do livro, registra a história de Roma desde sua
fundação, em algum momento de 753 a.C. até o século I d.C. Tito
Lívio exalta os valores do passado romano, decadentes depois de um
longo período de guerras civis, e
dá grande atenção aos mitos e lendas do Império, considerados por
ele dignos de serem preservados.
''Conta-se
que o primeiro agouro apareceu a Remo: eram seis abutres. Acabava de
ser anunciado, quando Rômulo viu doze deles, e ambos foram
proclamados reis por seus partidários. Um baseava suas pretensões
na primogenitura, o outro no número das aves. Durante o debate que
seguiu, sua cólera, aumentada pela resistência, ensanguentou a
disputa. Em meio à desordem, Remo, ferido, cai morto. Uma tradição
mais corrente relata que Remo, para insultar seu irmão, saltara as
novas muralhas e que Rômulo, no arrebatamento da fúria, matou-o,
dizendo: “Assim há de morrer aquele que transpor minhas muralhas”.
Rômulho ficou sendo, pois, o único chefe, e a nova cidade tomou o
nome de seu fundador. Primeiro, ocupou-se de fortificar o monte
Palatino onde fora criado; ofereceu sacrifícios aos deuses segundo o
rito de Alba; apenas para Hércules, seguiu o rito grego,
estabelecido por Evandro.
Conta-se
que Hércules, vencedor de Gerião, conduziu para lá bois de rara
beleza e que, depois de atravessar o Tibre a nado, tendo-os à
frente, descansou às margens do rio para que o rebanho se refizesse
nos pastos abundantes. Exausto, farto de carne e vinho, estendeu-se
na relva e adormeceu. Um pastor da província, chamado Caco, temido
por sua força extraordinária, foi seduzido pela beleza dos bois e
decidiu tomar para si tão rica presa. Mas, trazê-los à sua caverna
seria guiar para lá o dono, quando este seguisse o rasto. Ele então
escolheu os mais belos e arrastou-os pelo rabo até sua habitação.
Ao raiar do sol,
Hércules desperta, olha seu rebanho, percebe que faltam alguns, e
corre em direção à caverna vizinha para verificar se as pegadas
iam para lá. Todas se afastavam dela. Não sabendo o que resolver
diante desta incerteza, retirou seu rebanho desses pastos perigosos.
Na hora de partir, alguns bezerros, sentindo falta das companheiras
que tinha perdido, deram mugidos. Os que se encontravam no antro
responderam e sua voz chamou a atenção de Hércules. Ele se
precipitou em direção à caverna. Caco quis fechar o caminho, pediu
em vão a ajuda dos pastores e caiu vítima da terrível clava.
Evandro,
vindo do Peloponeso refugiar-se nestes lugares, tinha, sem autoridade
real, grande influência; ele a devia ao conhecimento da escrita,
cuja maravilha era nova para estas nações incultas e, mais ainda, à
fé na divindade de sua mão Carmenta, cujas predições tinham
enchido de admiração esses povos, antes da chegada da Sibila à
Itália. O ajuntamento dos pastores curiosos, em torno do estrangeiro
culpado de um assassínio manifesto, chamou a atenção de Evandro, o
qual se informa do fato e das causas que o trouxeram até aí;
depois, considerando a estatura acima do normal, os traços nobres,
ele pergunta ao herói quem é. Quando soube seu nome, o de seu pai e
de sua pátria, disse: “Filho de Júpiter, Hércules, te saúdo.
Minha mãe, infalível intérprete dos deuses, me predisse que tu
devias assentar-se entre os habitantes do céu. A ti, a mais poderosa
nação do mundo deve consagrar, neste mesmo lugar, um altar, que se
chamará de maior, do qual fixarás o culto”. Hércules
estendeu-lhe a mão, dizendo que aceitava o agouro e que, para seguir
o decreto do destino, ia erguer e consagrar o altar. Escolhe o
bezerro mais belo do rebanho e o primeiro sacrifício é oferecido à
Hércules.
Os
Potícios e os Pinários, as duas famílias mais ilustres da
província, assistiram à cerimônia e ao festim. Aconteceu que os
Potícios chegaram a tempo, e a carne da vítima lhes foi servida. Os
Pinários só chegaram quando esta foi consumida e tomaram parte no
final do festim. Vem daí o costume, conservado até a extinção da
família Pinário, que lhe proibia a carne das vítimas imoladas. Os
Potícios, instruídos por Hércules, foram durante vários séculos
os ministros desse culto; mas, quando encarregaram os escravos
públicos destas funções confiadas exclusivamente à sua família,
todos pereceram. Tal culto foi o único que Rômulo imitou dos
estrangeiros: já naquele tempo, ele aplaudia a virtude da
imortalidade, para a qual seu destino conduzia.
Terminadas
as cerimônias religiosas, ele reuniu numa assembleia geral a
multidão que só os liames das leis podiam unir e ditou-lhe as suas;
mas, persuadido de que convinha, para merecer o respeito desses
homens grosseiros, engrandecer-se a si mesmo com as insígnias do
poder, entre outras marcas exteriores de sua potência, elegeu doze
litores. Acredita-se que ele escolheu este número por causa das aves
que lhe tinham anunciado o império; mas sou da opinião dos que
pensam que imitou os etruscos, seus vizinhos, a quem devemos as
ordenanças e os outros oficiais, as cadeiras curules e a toga
pretexta: nos etruscos, o número era de doze, porque doze povos
elegiam em comum um rei, ao qual cada um dava um litor.
No
entanto, a cidade crescia: estendia-se cada dia, devido mas às
esperanças do fundador do que à população atual. Mas, para
concretizar essa grandeza, para atrair as multidões, fiel à
política dos fundadores de cidade que, aliciando homens ignorantes e
desconhecidos, pretendem que a terra conceba cidadãos, Rômulo abriu
um asilo no lugar hoje cercado, que se encontra na descida do
Capitólio, nos bosques sagrados. A novidade logo atraiu uma multidão
de homens livres e de escravos. Assim
se deu o primeiro passo para a potência da qual se lançavam os
alicerces. Satisfeito com suas forças, Rômulo escolheu os meios
para usá-las. Elege cem senadores; este número pareceu-lhe
suficiente, ou talvez encontrasse apenas cem personagens dignos desse
título. Receberam o nome honorífico de pais e seus descendentes o
de patrícios''.
TITO
LÍVIO, I, VII-VIII.
Na
versão de Tito Lívio, devemos perceber o seguinte: Os agouros, bons
ou maus, previsões e superstições são uma das principais marcas
da escrita de Lívio. Ele exalta a figura de Rômulo e a
predestinação da cidade, que nasceu para se tornar grande e
poderosa. Os mitos, importantes para ele, são usados de forma mais
densa que em Eutrópio. A menção aos etruscos é um dos aspectos
históricos mais importantes, pois se sabe, através de pesquisas
arqueológicas e históricas, que estes tinham 12 cidades, que se
uniam em uma confederação; e que alguns dos primeiros reis romanos
eram de origem etrusca. Os patrícios constituíam a aristocracia
romana, e os litores eram funcionários públicos que escoltavam os
magistrados curules.
O
segundo autor, Eutrópio, viveu na segunda metade do século IV de
nossa era, e desempenhou o cargo de secretário em Constantinopla.
Sua principal obra, Breviário de História Romana,
dedicada ao imperador Flávio Júlio Valente (imperador de 364 d.C. a
378 d.C.) é um compêndio
sobre a história da cidade desde sua fundação até o início da
administração de Valente. Escrito de
forma simples e concisa, sem espaço para técnicas de embelezamento
estilístico, o Breviário
é dividido em 10 livros,
que informam os principais
fatos da história romana e as campanhas militares no exterior.
"O
Império Romano, de início talvez o mais fraco e que se tornou, por
suas conquistas, o Estado mais poderoso que jamais existiu na face da
terra, tem sua origem em Rômulo, filho de uma sacerdotisa de Vesta
e, ao que se acredita, de Marte.
Rômulo
nasceu com Remo, seu irmão gêmeo. Depois de viver entre os
pastores, as armas sempre na mão, aos dezoito anos ele ergue uma
pequena cidade no monte Palatino, no dia onze das calendas de maio,
durante o terceiro ano da sexta olimpíada, cerca de trezentos e
noventa e quatro anos após a ruína de Tróia, segundo as tradições
mais ou menos exatas dos historiadores.
Após
fundar a cidade, que chamou Roma, no que tirou do seu, faz o que se
segue: recebeu, na nova cidade, todos seus vizinhos; escolheu cem dos
mais velhos para que o aconselhassem em todas suas ações; deu-lhes
o nome de senadores, por causa de sua idade avançada. Mas, como ele
e seu povo não tinham mulheres, convidou para os jogos as nações
vizinhas de Roma e mandou raptar as moças. Este ultraje logo provou
guerras; os ceninenses, os antenates, os crustuminenses, os sabinos,
os fidenates e os veientanos, cujas cidades estavam ao redor de Roma,
foram vencidos. E,
tendo Rômulo desaparecido durante uma súbita tempestade – após
um reinado de trinta e seis anos - , acreditou-se que tinha sido
recebido no céu: foram-lhe rendidas as honras da apoteose".
EUTRÓPIO,
I, 1-2.
Da
versão de Eutrópio retiramos os seguintes pontos: Primeiro, o autor
cita os pais de Rômulo e Remo, Reia Silva, uma vestal, e Marte, Deus
da Guerra; segundo, o monte Palatino, onde foi erguida,
por Rômulo, uma pequena cidade. De fato, existem ruínas romanas
nesse lugar, algumas datando dos séculos VI e IV a.C., o que atesta
essa parte do relato. Terceiro, é citada uma instituição criada
nos anos iniciais da expansão romana (o Senado); quarto,
são mencionados os povos que viviam ao redor da cidade, povos esses
mais tarde conquistados pelos romanos; e, por último, temos uma
segunda versão do fim da vida de Rômulo: Após uma tempestade
criada por seu pai, Marte, ele ascende aos céus na posição de
divindade. Outra versão conta que este foi assassinado em uma
conspiração do Senado. Diferente de Tito Lívio, que exalta a
superioridade de Roma, Eutrópio mantém uma posição neutra em
relação ao Império.
Depois
dessa breve análise de duas versões (as duas com elementos míticos
e também históricos) sobre a fundação da cidade de Roma,
percebemos que as histórias antigas são uma importante fonte para a
reconstrução do passado. Devemos, claro, entender a influência que
o fantástico tinha na vida desses autores, como em Tito Lívio, que
dele tirava exemplos morais. Com uma análise crítica, cuidadosa e
com total expurgo de anacronismos, temos materiais que, auxiliados
por outras fontes, constituem mais um passo ao preenchimento de
lacunas tão antigas quanto essas civilizações.
FONTES:
Textos de Eutrópio e Tito Lívio: PINSKY, Jaime. 100 Textos e Documentos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988.
EUTROPIO, AURELIO VÍCTOR. Breviario Libros Cesares. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, vol. 261, 1999.
SHOTWELL, James T. Historia de la Historia en el mundo antiguo. Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, traducción de Ramón Iglesa, 1982.
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org
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