terça-feira, 9 de agosto de 2016

O processo de conversão da Europa ao Cristianismo

Para falarmos do início da caminhada do Cristianismo na Idade Média, precisamos voltar um pouco ao passado, mais precisamente entre o início e o final do século IV. Nesse período, duas datas são importantes para que essa religião originária do judaísmo ganhe o status de que desfrutará séculos depois: O ano de 312, quando o imperador Constantino se converte, por razões políticas, ao cristianismo, e cessa as perseguições contra os praticantes desse culto; e 392, quando o imperador Teodósio torna o paganismo ilegal e transforma o cristianismo em única religião praticável no Império.

Paz e legalidade. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império e outras áreas fronteiriças. Aproveitando-se das antigas estruturas imperiais, a Igreja vai se consolidando como um elemento de força local, por meio das dioceses, antiga unidade administrativa de uma cidade ou uma província governada pelo legatus. As dioceses, que possuem o aval do imperador para funcionar, são governadas pelo bispo, que tem em sua mão uma grande extensão urbana e rural. Em regiões que foram romanizadas no passado, como a Itália e a Gália do Sul, surgem redes densas de pequenas dioceses. Ao Norte, onde a malha urbana era mais antiga, as dioceses são menos numerosas e mais extensas.

Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares. Mosaico em Ravena.

Politicamente e ideologicamente, os imperadores romanos passam a se favorecer com o novo culto, associando suas imagens com a de Jesus Cristo, igual como ocorria no culto pagão, com uma divindade principal do panteão. Dessa época, existe uma rica iconografia que atesta essa associação.

O Império já não é mais uma ameaça para os cristãos. Porém, surge um novo inimigo: os povos germânicos que começam a atravessar as fronteiras são, em sua maioria, pagãos. Mesmo os que já estavam convertidos representavam uma ameaça, como os Visigodos, ostrogodos e vândalos, seguidores do Cristianismo Ariano, considerado uma heresia pela população e pelo clero dos locais onde se instalavam. Clóvis, que unificou o povo franco sob um reino, converteu-se ao catolicismo em 508, recebendo, com isso, apoio dos bispos em suas campanhas militares contra os visigodos arianos. Recaredo, rei da Espanha visigótica, se converte ao catolicismo em 587.

São Patrício, missionário e padroeiro da Irlanda.

O paganismo perdura por um bom tempo no Noroeste da Europa. No século V foi realizada uma missão para evangelizar a ilha Irlanda. Mesmo penetrando a região nesse século, o Cristianismo só se tornará a religião oficial da ilha no final do século VI. No continente, o passado pré-cristão dá lugar a uma mistura original entre uma cultura romano-cristã (externa) e a uma cultura celta (local).

Pagão ganha o sentido que conhecemos nos dias de hoje. Mas, ainda sim, de acordo com os escritos Orósio, ele é o homem do campo. O paganismo é considerado um culto rural atrasado, visto com desprezo pelos homens da cidade. Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas não são divindades, e sim demônios que precisam ser caçados. Essa associação marcará a propagação da nova religião contra o paganismo. O batismo funciona como uma das formas para renegar satã e expulsar essa forças diabólicas. O exorcismo é praticado em larga escala pelos clérigos. Soma-se a essas práticas a destruição de antigos templos politeístas.

É necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas.

O processo de conversão ocorre de forma lenta nos reinos anglo-saxões. A primeira missão evangelizadora foi enviada à região em 597, por ordens de Gregório, o Grande. O rei de Kent, Etelberto, assim como milhares de anglos, é batizado. O rei assemelha o momento à figura de Constantino, que se converte após receber um sinal de Deus na Batalha da Ponte Mílvia. O desafio da missão é encontrando em Edwin, rei de Northumbria, que se converte apenas em 628. Em 632, ano de sua morte, o Cristianismo entra em ruína em seu reino. Na História eclesiástica do povo inglês, de 731, o Venerável Beda relata que o processo de conversão da Bretanha insular foi concluído, ou seja, dois séculos após o início do processo.

O Batismo da Polônia, de Jan Matejko.

O avanço do Cristianismo no Norte é ainda mais lento. Vilibrodo, no fim do século VII, inicia a conversão dos frisões situados no Norte da Gália, consolidando uma zona fronteiriça para os soberanos francos. Bonifácio, com apoio dos reis francos e do pontífice romano, é enviado como bispo missionário das igrejas da Germânia, favorecendo-se das campanhas militares dos francos contra os saxões do Leste, pagãos. Consegue estabelecer a religião na Bavária e na renana, onde funda o monastério de Fulda. As conquistas de Carlos Magno vão assegurar de fato a conversão dos saxões.

O Cristianismo triunfa na Europa no século X, quando são convertidas as últimas regiões com focos de cultos pagãos. A Polônia é convertida em 966; o rei Estevão I, da Hungria, é batizado em 985; Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, é batizado em 960; Olavo Tryggveson da Noruega em 995, e Olavo da Suécia em 1008. Por um referendo popular, a Islândia se converte no ano 1000.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
thehistoryofthebyzantineempire.com
http://polishpoland.com/




sábado, 6 de agosto de 2016

Resenha: Narradores de Javé (2004)



Lançamento: 2004
Direção: Eliane Caffé
País: Brasil


O Filme Narradores de Javé (2004), guardadas as devidas proporções, nos lembra do método histórico, do longo caminho que o historiador trilha até dar corpo à sua pesquisa. Num primeiro momento, o escrivão Antônio Biá, nosso “historiador”, já possui um tema definido para sua pesquisa: a história do povoado de Javé. Definido o tema, a próxima etapa de Antônio é verificar se existem fontes disponíveis para a realização de seu trabalho. Em um povoado onde estão ausentes qualquer forma de documentos ou outros registros escritos, serão as histórias dos moradores, seus relatos, as principais fontes de informação.

Outro elemento importante é o fato de que o historiador não é um ser neutro, e que os documentos, sejam eles materiais ou imateriais (as histórias dos moradores) também não são. Ao receber as primeiras histórias, Biá fica insatisfeito com a “importância” de algumas, e sugere algumas alterações para engrandecê-las. Os moradores que dão suas versões da fundação da cidade se mostram orgulhosos com elas. Nos são apresentadas três versões vindas de três lugares sociais diferentes: O primeiro vem de um descendente do fundador, homem destemido, de Javé; O segundo, também de um descendente, a moradora Mariardina, conta que a fundação se deu pelas mãos da heroína Maria Dina; O último vem de um narrador negro, descendente de escravos, e cujo fundador é Indaleô.

Esses registros nos lembram que, até em um diminuto povoado fictício como Javé, existem verdadeiras “guerras da história”, um conflito simbólico entre as diferentes versões que serão legitimadas para a contar a fundação da cidade. As versões de um homem; de uma mulher e de um descendente de escravos. Conflitantes em gênero e classe social.

Depois de reunidas as fontes, o historiador deve assegurar a confiabilidade destas. Esse é um ponto interessante do filme: Biá, assim como os demais moradores, ficam cientes que os funcionários da represa pediram uma história “científica”, e fica em dúvida se as histórias destes, para ele fantasiosas, estão enquadradas nesse quesito. Vemos que o conceito de fonte histórica se alargou com o tempo, estando incluídos, desde o início do século XX, a oralidade, as manifestações culturais e religiosas e outros elementos não necessariamente escritos. Mas ainda são muitos aqueles que produzem história exclusivamente com registros escritos em arquivos públicos ou particulares.

A última etapa do processo histórico é a redação. Antônio Biá, funcionário de uma filial dos correios, é o único habitante de Javé que possui um certo domínio da escrita. Esse diferencial de Biá nos remete ao conceito básico de Historiografia, a escrita da história. Ele, por dominar a escrita, é o único elemento apto a registrar a história do povoado. Assim, nos parece que os únicos registram a história, que a possuem, são aqueles que escrevem. Mas, emprestando alguns dizeres de Carbonnel (1992, p. 7), devemos estar cientes que nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer”. Isso fica claro quando alguns moradores dão depoimentos para um funcionário que os está filmando: “Aqui estão enterrados meus antepassados, meus filhos que já morreram”. A História não é uma exclusividade das sociedades letradas, ela apenas assume outras formas dependendo dos mecanismos encontrados por outras culturas (iletradas) para sua preservação.

Biá, com inúmeras dificuldades para realizar sua pesquisa, escolher qual história deve ser registrada, termina entregando um livro em branco, sem a tão esperado história de Javé. Essa desistência nos faz lembrar da dificuldade do trabalho do historiador, pois todos os elementos do processo histórico, num primeiro momento, são desafios para o profissional da história. O “progresso” chega, inundando o povoado.

Zaqueu, antigo morador do povoado e narrador do filme, vem nos apresentando o drama de Javé desde a notícia da construção da represa até o momento fatídico de sua destruição. Percebemos, então, que a história de Javé, mesmo com o seu desaparecimento, continua existindo, não em forma escrita, mas como sempre foi desde seus primórdios, de forma oral, circulando entre seus habitantes e, agora, ex-habitantes.

Por último, vamos nos lembrar do título do filme: Narradores de Javé. O filme é isso, uma gama de narrativas, de opressores e oprimidos. Uma luta para reunir essas histórias em um livro, de dar importância a um lugar praticamente esquecido no tempo, mas que luta para continuar existindo à sua própria maneira. Os relatos desses moradores podem não ser considerados a “versão oficial”, mas são as versões particulares de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org