sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Apontamentos breves sobre a representação simbólica do Diabo na literatura medieval

No presente artigo o autor buscou apresentar as formas como o Diabo era representado na literatura medieval, buscando as origens das apropriações simbólicas nas mitologias grega e celta e tendo como base o Elucidarium, livro sobre crenças cristãs populares escrito no final do século XI por Honorius Augustodunensis.

RESUMO
Vinicius Maciel Braga*

O objetivo desse artigo é apontar as principais formas de representação simbólica do diabo na literatura medieval, partindo da sua concepção extraída das mitologias grega e celta e analisando com veemência o uso de sua imagem como um símbolo da tentação mundana, da rebeldia e do conhecimento considerado “profano” pela Igreja.
Será apontada também a relação entre a figura de Satanás e o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, livro este considerado essencial para alcançar o entendimento da mentalidade do homem medieval. A verdadeira intenção deste trabalho é mostrar a simbologia do demônio além da imagem convencional da criatura monstruosa representada com bastante frequência.

Palavras-chave: História Medieval; diabo; representação simbólica; literatura medieval

INTRODUÇÃO
O artigo tem como principal intenção apontar as principais formas de representação do Diabo na literatura produzida durante a Idade Média. Tais modos de simbolizar Satã possuem várias interpretações, e algumas serão mostradas aqui de maneira breve e de fácil entendimento. Iniciaremos a discussão mostrando as duas maneiras como o Diabo é representado e os efeitos que tais formatos de representação tinham sob o povo do medievo.
A apropriação de símbolos pagãos para compor o processo de caracterização do Diabo unida à atribuição de características animais e humanas está inteiramente ligada aos significados propostos pelo maniqueísmo cristão, onde Deus e Satã disputam entre si o poder pelo mundo. Cada atributo que compõe o corpo do Diabo relaciona-se com antigas simbolizações de poder e malevolência, centralizadas em uma única entidade.
O fascínio pelos mistérios que cercam a própria figura de Satã motivou a existência desse artigo. O medo inerente no qual o homem da Idade Média estava inserido, unido ao sentimento de observação constante que as pessoas sentiam para com as entidades da Cristandade, fazia com que todos se concentrassem em uma rédea criada pela religião e usada como forma de expiação caso alguém pecasse ou desobedecesse a vontade divina.
As “artes proibidas”, forma como eram referidas atividades artesanais relacionadas à fabricação de armas e armaduras, são creditadas como um conjunto de ensinamento dos anjos caídos, asseclas de Satã, aos homens. A obra que será usada como referência é o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, onde é mostrada a forma como a Cristandade refere-se ao Diabo e aos demônios como entidades dispostas a tentar contra a humanidade.
Por fim, mostraremos exemplos de representações ambíguas do Diabo, tanto como tentador e astuto, como também um ser aterrorizante disposto a perseguir pessoas sob diversas formas repugnantes e usando dos mais variados artifícios para torturar, manipular e enganar as pessoas mais ingênuas, ou até mesmo persuadir aqueles que nada sentiam-se agradados com a fé cristã.

APONTAMENTOS BREVES SOBRE A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO DIABO NA LITERATURA MEDIEVAL

O Diabo representado no Codex Gigas, manuscrito medieval escrito no início do século XIII na Boêmia, na atual República Checa.

É sempre válido ressaltar o papel ambíguo que o Diabo detinha como uma entidade sedutora, que atraía os seres humanos para o caminho do pecado, assim como um ser perseguidor, motivo de uma enorme angústia entre os homens medievais. Jacques Le Goff aponta o maniqueísmo como o principal fator motivador para o medo que a população nutria por Satã, visto que “o maniqueísmo professava a crença em dois deuses, um do bem e outro do mal, criador e senhor deste mundo.” 1
A partir do momento em que se discute acerca do simbolismo por trás da figura de Satã, é impossível não falar sobre sua representação física. Observando com atenção, percebe-se uma grande influência das mitologias grega e celta, associando às figuras respectivas dos deuses Pã e Cernunno. Torna-se nítida tal associação a partir da atribuição dos chifres e das patas de bode, assim como a apropriação de valores pagãos em comum ao demoníaco. No entanto, é preciso compreender o significado de cada componente da imagem satânica.
A caracterização repugnante atribuída ao Diabo, como um ser dotado de características antropozoomórficas, é repleta de simbolismos relacionados ao poder que Satã detinha. Os chifres (primeira característica que lhe foi atribuída) simbolizavam a antiga conotação de poder, assim como as asas de morcego e os cabelos eriçados referiam-se, respectivamente, às cavernas e chamas do Inferno. Outra conotação relacionada aos fios capilares refere-se à forma como alguns guerreiros bárbaros intimidavam seus inimigos.2
Baseando-se nessas informações, pode-se constatar a verdadeira necessidade da ligação entre a caracterização física e o simbolismo existente na figura do Diabo como uma maneira de retratar um ser tão poderoso quanto o Bom Deus, uma entidade que também detinha o controle sobre as ações da humanidade, exclusivamente os atos maus. Sobre isso, Le Goff afirma que “o grande erro do maniqueísmo era pôr Deus e Satã em pé de igualdade”. Essa grande cisão será amplamente difundida através dos escritos e da arte no geral.
A hagiografia foi um fator importante para a difusão da representação do Diabo tanto como um ser tentador, como também uma figura aterrorizante e perseguidora. Santo Antônio é tido como a vítima mais conhecida das intervenções satânicas, como é mostrada na sua biografia escrita por Atanásio. Em tais escritos, pode-se observar o papel de Satã como um agente das forças malignas e dos hábitos mundanos, sendo assim um constante inimigo dos santos durante suas jornadas litúrgicas.
A síntese dos relatos de aparições do Diabo aos santos se encontra na Legenda Aurea, o conhecido conjunto de hagiografias, assim como narrativas de andarilhos que se sentiam atraídos por uma jovem e bonita mulher durante suas peregrinações, assim como Satã também poderia assumir a forma de outro peregrino que estivesse disposto a oferecer algo de maior valor aos mais ingênuos. Embasando-se em tal afirmativa, podemos constatar a relação entre o Diabo e os locais considerados inóspitos (desertos, vales, florestas, etc).
A figura do Diabo como representante do conhecimento oculto e desconhecido pelo homem torna-se evidente no Elucidarium de Honorius Augustodunensis, referido pelo autor como Sathael. Partindo da ideia de que Sathael seria o primeiro anjo caído, pode-se concluir que o mesmo seria o princípio do ímpio e do vicioso, e seus lacaios seriam os responsáveis por corromper as mulheres humanas além de ensinar a sua prole as chamadas “artes proibidas”, como a confecção de espadas e armaduras.3
Sobre Satã e seus asseclas é escrita toda uma literatura que trata desde sobre os seus poderes sobrenaturais, a hierarquia infernal e até mesmo sobre a geografia do Inferno.4 A poesia se mostrara uma força motriz quanto a representação do anjo caído, fato que exercerá uma enorme influência sobre o poeta inglês John Milton na criação de “O Paraíso Perdido”, durante o século XVII. Quanto a demonologia desenvolvida durante a Idade Média, foi uma das grandes responsáveis pela inquietação do homem medieval.
Considerando o Elucidarium como um instrumento de catequização em um período onde o Diabo residia no inconsciente coletivo, não é necessário dizer que o livro possui trechos explicando a forma como Satã e os demônios perturbam os cristãos. Um grande exemplo dessa explicação é o diálogo entre o Mestre e seu Discípulo, onde o primeiro explica a queda do Diabo e, consequentemente, a origem do mal. É evidenciada por Honorius também a companhia constante dos demônios em conjunto aos homens e aos anjos, observando os vícios humanos e as impurezas por eles cometidas.
Como última observação, vale ressaltar a importância do maniqueísmo para que o medo que as pessoas nutriam pelo Diabo dominasse o inconsciente coletivo do medievo, e a literatura, sendo um massivo instrumento de difusão, contribuiu para que a figura misteriosa do poderoso personagem se transformasse em um símbolo do mal e da rebeldia, a representação da tentação e do ímpio.

NOTAS:

1 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff ; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005, p. 154
2 RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell ; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984, p. 238
3 I Enoch 8 : 1; “Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo seus olhos para os metais e as maneiras de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos o uso de cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e artes de tintas.” In: TRICCA, Maria Helena de Oliveira Tricca. Apócrifos III – Os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercuryo, 1996. P. 210
4 CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005.
RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984.
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

*Vinicius Maciel Braga, 18, é graduando do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de interesse é História Medieval, com ênfase no desenvolvimento do Oculto e nas relações entre o sagrado e o profano.








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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O corpo do Diabo: A construção física da figura do Demônio no Ocidente

No artigo de hoje será abordada a construção da figura física do Diabo, entidade sobrenatural marcante nas tradições cristãs do Ocidente e do Oriente, desde o Judaísmo até o Cristianismo medieval entre os século XI e XII, quando separa-se o bem do mal e é "dado" um corpo a esse ser.


O CORPO DO DIABO: A CONSTRUÇÃO FÍSICA DA FIGURA DO DEMÔNIO NO OCIDENTE

Wenderson Macedo de Lima*


O presente artigo tem como objetivo discutir sobre a construção da figura física do Diabo, onde ela se origina, suas transformações no decorrer da religião judaica e no cristianismo medieval entre os séculos XI e XII.


1. Diabo e diabos


Inferno. Detalhe de um mosaico do Batistério de São João. Florença, Itália, 1265-1270. Obra de Coppo di Marcovaldo (1225-1276). No centro, o Diabo, representado em sua forma animalesca e grotesca, torturando os que foram enviados para seus domínios.

O Diabo, o ser das trevas, o senhor das profundezas, personificação do mal, o destruidor, o oposto daquilo que é correto, o pai da mentira, o príncipe deste mundo, aquele que é contrário à natureza divina. Sem dúvida ouvimos falar muito sobre o diabo e de como ele é, como age e quais suas intenções nesta terra. Talvez é o ser que se faz presente na vida do ser humano mais do que a própria figura divina de Deus. Sempre quando tentamos imaginar Deus nos deparamos com um senhor de idade, cabelos brancos e barbas compridas, sentado sobre um trono com uma coroa controlando o universo, de fato uma figura resplandecente e quase inimaginável, mas e o diabo?

Quando paramos para pensar na figura do diabo, o imaginamos como um ser monstruoso, de aparência malévola e horrenda. Chifres pontudos, garras afiadas, face desfigurada semelhante aos monstros que vemos nas telas de cinema, de certo uma aparência não agradável aos nossos olhos.

Hoje o diabo está presente no dia a dia daqueles que possuem crenças que os levam a pensar na figura do diabo como um ser de outro mundo, com uma aparência monstruosa que está sempre à espreita nos observando e procurando realizar suas proezas maléficas. É constante a presença do diabo no vocabulário e no imaginário da sociedade como o causador das desgraças deste mundo, e de fato podemos dizer que ele está a cumprir o seu papel.

Um dos principais, senão o mais importante veiculador da figura do diabo, é o Cristianismo, que desde sua entrada no Ocidente, trouxe consigo a figura do mal como participante e sendo necessário para que houvesse um sentido para que também Deus existisse. Perpassando pela Idade Média, onde podemos considerar o nascimento da figura grotesca e diabólica como conhecemos, cria-se um imaginário do diabo que perdura até hoje, ou poderíamos dizer "diabos", que é fortalecida com a literatura, as artes e a construção do discurso das religiões onde eles estão sempre presentes.

As questões a serem levantadas sobre a construção da aparência dos diabos na Idade Média são: Como surge a figura física dos Diabos? Qual a sua função dentro do imaginário da sociedade medieval a partir do século XII? Dentre essas questões analisaremos a importância do diabo na sociedade medieval, sua construção física e como ela se estende por todo o Ocidente.


2. A definição e o papel do Diabo


O diabo de qual falamos está presente na sociedade desde o advento do Cristianismo no Ocidente, teve seu surgimento no Judaísmo, mas com uma participação não muito bem definida fisicamente. Não sabemos como seria a figura de satã no Antigo Testamento, o que temos é a representação do mal no aspecto espiritual, algo incorpóreo, comparado à mesma figura dos anjos. O termo satã (anunciador) representa a mesma função dos anjos no Antigo Testamento, mas que não define realmente uma aparência corpórea de um ser ou algo físico ligado às representações que temos do diabo medieval. O bem e o mal no Antigo Testamento estão relacionados apenas a figura de Deus, como aquele que abençoa e aquele que castiga e traz desgraças ao povo.

A passagem mais conhecida da figura do diabo no Antigo Testamento seria sua aparição no livro de Jó, onde Satã assume o papel de prestador de contas com Deus e que tem acesso livre a sua presença, algo meio que inconcebível se formos analisar o diabo astuto que surge na Idade Média e nos percorre.

No Novo Testamento, podemos até ver uma presença maior de Satã, mas ainda não é relevante e até mesmo os demônios os quais Jesus expulsou não possuem definições precisas. Com o crescimento e popularização do Cristianismo, há uma necessidade de uma separação entre aquilo que é o bem do mal. É quando o mal se personifica e torna-se mais próximo, que surge o diabo. Cada vez mais ganhando participação na vida da cristandade medieval, o diabo passa a ser o nome e rosto da revolta contra Deus.

Apesar do diabo ser muitas vezes quase o oposto do divino, seu poder é de forma dado e controlado por Deus, o demônio se torna importante para que o mal possa ser desvinculado do Deus bondoso, assumindo um co-protagonismo na cristandade a partir do século XI, facilitando o desenvolvimento de uma mentalidade favorável ao que já se chamou a primeira grande explosão diabólica¹

Mas devido a essa separação, o diabo passa a assumir características peculiares, cria-se um corpo e uma forma, uma região onde habita, o mal torna-se mais palpável, não algo mais espiritualizado, mas agora causado por um ser capaz de assumir várias formas humanas e animalescas. Tudo o que aqui é oposto a Deus, é jogado para a figura do diabo a partir do século XI.


3. Características físicas do diabo


Se tratando das características físicas que surgem no século XI, começamos a olhar o diabo com um aspecto mais grotesco e animalesco. Primeiramente, os diabos ou demônios podem assumir várias formas, como de um humano, por exemplo, com o intuito de seduzir homens e mulheres e estando sempre ligados ao ato sexual. Mas como um ser espiritual passa a ter um corpo?

O fato é que, uma vez que os anjos possuem um corpo etéreo, composto de ar e luz, os anjos caídos possuem a mesma substância. Segundo Santo Agostinho (De divinatione daemonum, III, 7), os demônios pelo fato de possuírem corpos etéreos, tem faculdades extraordinárias de percepção e são capazes de se transportar através do ar com uma velocidade incomparável².

Essa luta entre o bem e o mal ganha força, e o diabo e seus demônios são os que mais recebem soldados para seu exército. Todos os deuses das religiões pagãs foram considerados demônios pela Igreja, e muitas dessas religiões pagãs se refugiavam nos campos, longe das cidades, onde praticavam suas superstições. Surgem então as figuras animalescas e grotescas. Demônios com corpos metade humano, metade besta, dentes e garras como de feras selvagens, rabos como de animais ferozes e predadores, cascos fundidos e chifres, causando aversão ao que era obra do criador.

Com o poder absoluto do Cristianismo, o mundo passou a se dividir em duas partes: aqueles que cultivavam os bens e as virtudes e aqueles que cultivavam o mal e seus vícios. Servidores de Deus e servidores do Demônio; O diabo assume a forma de todas as entidades de ordem secundária do imaginário na Antiguidade: harpias e sereias, sátiros e centauros, gigantes monstruosos e serpentes aterrorizantes, aproveitando toda essa carga de horror que nelas havia imprimido a tradição pagã³.

É aí que surge essa representação do diabo a qual conhecemos. Pensaremos agora como ocorreram essas atribuições a Satã e seus demônios. Acredito que temos algo extremamente importante que faz a ligação entre o pensamento popular das tradições pagãs, ainda enraizadas na mentalidade das cristandade medieval, que é o teatro.


4. Desconstruindo a aparência monstruosa


O teatro medieval do século XII foi uma das veiculações mais importantes da aparência física do diabo e seus demônios. Nos espetáculos o diabo ainda exercia uma aparência cômica, subalterna, não reinava absoluto. Assim, vários aspectos são considerados e apresentados por Russel:

A ligação mais íntima entre o diabo da arte e o diabo da literatura é o demônio do teatro. A elaborada literatura de visão do inferno influenciou as artes de representação tanto quanto Dante, e algumas pinturas são virtualmente ilustrações de tais visões. Arte e teatro influenciam-se pelo menos no fim do século XII quando o teatro vernáculo começou a ser popular. A representação do Diabo no teatro foi derivada de impressões visuais e literárias, e em troca artistas que tinham visto produções de teatro modificaram a própria visão deles. O pequeno e preto diabinho que não pôde ser representado facilmente no teatro declinou no final da Idade Média. O desejo de impressionar as audiências com fantasias grotescas pode ter encorajado o desenvolvimento do grotesco na arte, fantasias de animais com chifres, rabos, presa, casco rachado e asas; fantasias de monstro, meio-animal e meio-humano; e fantasias com faces de nádegas, barriga ou joelhos. Máscaras, luvas com garras e dispositivos para projetar fumaça pela face do demônio também eram usados (RUSSEL: 2003, p. 245-6).

É nesse momento que surge a preocupação e sistematização da visão e ação do diabo pela Igreja, onde a arte, a cultura popular e religião colaboram para que a personificação do diabo torne-se concreta. A representação dos demônios na arte e na cultura veicula-se por todo o Ocidente, construindo um imaginário que permanece até os nossos dias.

Era realmente necessário que o diabo se tornasse palpável para dar sentido ao Cristianismo sobre a relação entre o bem e o mal? Podemos responder essa pergunta pensando no paganismo como um dos principais veiculadores da figura diabólica. A figura do diabo sofre uma organização para que se compreenda e se tenha um pensamento único sobre toda a cristandade, e a Igreja se preocupa com isso, cabendo a ela estipular e unir tudo aquilo que estava no imaginário, sendo reproduzido nas artes, e personificar o diabo, desligado completamente o mal da figura divina de Deus.

Hoje o diabo ainda é veiculado no imaginário Ocidental e se mostra ativo pelo discurso do Cristianismo, pois o diabo faz parte dele e é personificado por ele, a diferença é que agora parece mais perceptível que o diabo e o homem resolveram suas pendências, e agora o mal está presente nos dois seres, de forma literal com a figura do diabo e de forma real no próprio ser humano.


NOTAS:

¹ NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 9.
² NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 29.
³ NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. 2° ed. Bauru, SP, Edusc, 2002, p. 39.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2005.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Vol 1, Edusc, 2006.
NOGUEIRA, Carlos Roberto. O Diabo no imaginário cristão. Bauru, SP: Edusc, 2002.
RUSSEL, Jeffrey Burton. O Lúcifer e o Diabo na Idade Média. SP: Editora Madras, 2003.
Magalhães, ACM; BRANDÃO, E. O Diabo na arte e no imaginário Ocidental. s.d.


* Wenderson Lima é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atua nas áreas do Ensino de História, História Oral e História Medieval. Participa ativamente do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência.

E-mail: wendersonwml@gmail.com





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domingo, 3 de dezembro de 2017

O Corpo na Idade Média

Continuando as postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, hoje temos um artigo em que são abordadas questões referentes ao corpo humano, sobre sua construção durante o período medieval e as diferentes concepções de mundo que nortearam os sentidos da matéria humana: a sacralidade, a degradação, a sexualidade, a doença, o trabalho e a estética.


O CORPO NA IDADE MÉDIA

Roberval Nascimento da Silva Júnior*

RESUMO
O artigo aqui apresentado é uma reflexão que procura discutir sobre a história do corpo, especialmente na Idade Média, com a intenção de refletir sobre a história do corpo, suas dimensões variadas que concorriam na existência humana e os variados sentidos provenientes das tensões causadas na concorrência. Por meio da bibliografia produzida dentro da temática medieval, este trabalho procurou trazer dados e discussões sobre como foi construída a imagem do corpo humano na Idade Média.
Palavras-chave: Corpo na Idade Média, história do corpo, Sociedade medieval, representações do corpo.

1. INTRODUÇÃO
Liber divinorum operum, iluminura 2, folio 9: O espírito e o mundo (detalhe), século XIII.

A Idade Média tem em sua forma complexa de cosmovisão um caráter altamente simbólico de composição dos sentidos. Isso se deve principalmente ao deslocar radical da esfera de experiência do mundo físico para um mundo metafísico, pois a noção de tempo linear determina isso ao pôr como finalidade da existência e da própria história da humanidade a volta de Cristo, a reencarnação, o subir aos céus, por fim, a salvação eterna (salvar-se de que, senão da finitude da vida mortal e cotidiana enfrentada na terra?). Nessa cosmovisão então se encontra presente e com força motora de sentidos a religião do Cristianismo, sendo importantes combustível dessas movimentações os debates teológicos empreendidos no período. À proposição anterior salvaguardo, cautelosamente, que as análises das fontes empreendidas até o momento sobre o caráter cosmovisionário demonstram que a percepção medieval do sobrenatural e do natural não oferece fronteiras tão delimitadas e chegam a compor, concomitantemente, uma realidade observável e cotidiana formada das duas.

Esse matiz simbólico composto pela Idade Média cujo os estudos históricos-antropológicos buscam propor é, em nível de experiência, significadora de uma realidade sensível, física, de experiência imediata com as coisas materiais, que, como no caso do corpo, teria uma imanência configurada no pensamento religioso e comporia uma polissemia da percepção e da experiência com essas coisas materiais.
O corpo, então, é visto como depositário de diversos sentidos sobre uma matéria dócil, cujo a representação se movimenta com as vicissitudes do vivido e que tem, também, uma dimensão simbólica que movimenta seu sentido num frenesi de proposições como a sacralidade do corpo, sua degradação, sexualidade, as doenças, o trabalho, uma estética reprimida, onde o corpo é lugar de pecado e salvação, ao mesmo tempo. É dos componentes dessa polissemia em torno do corpo, na sua relação contextual-histórica medieval, que destino a reflexão neste presente artigo.

2. A CARNE

O corpo humano é substância dotada, além de sua materialidade, de alma e espírito, segundo a tradição cristã. O historiador que se debruça sobre a reflexão desse objeto de estudo na temporalidade medieval deve estar alerta quanto a própria linguagem: apesar de ser possível entrever uma matriz da sociedade Ocidental contemporânea na história da Idade Média, os conceitos utilizados, apesar de guardarem semelhança ou exatidão quanto a sua forma, a palavra, seu significado encontra-se na dimensão da experiência histórica e da significação humana dada no transcorrer desse tempo que é histórico, se transformando nesse processo. Schmitt (2014) expõe bem esse paradigma do pesquisador: “Se o antropólogo é imediatamente confrontado a sistemas de classificação e a um vocabulário radicalmente diferentes daqueles com os quais está familiarizado, o historiador dos períodos antigos da cultura ocidental deve prestar atenção para não considerar como evidente uma terminologia que ele parece reconhecer, mas cujos valores semânticos puderam, ao longos dos séculos, mudar mais rápido do que a forma.”. (p. 305)
A cristandade medieval representa a pessoa dotada de um corpo perecível e sua existência está em dívida com a força de criação divina. Em coabitação ao corpo está a alma, que é também devedora da criação divina, mas não encontra o valor da perecidade em si – é imortal.
A idade Média é marcada pela criação de dualidades, como a do corpo e da alma, componentes do ser humano, mas também de categorias como carne e espírito, que se configuram como moralizantes e determinam condutas boas ou ruins.
A Igreja cristã em seus primórdios (cristianismo primitivo) preconiza a metáfora de um corpo glorioso da pessoa de Cristo que carrega o símbolo da permanência do Verbo da criação entre nós. A carreira do corpo de Cristo é então projetada para o corpo de cada cristão – nascer, morrer e ressuscitar em grande glória. O pecado não deprime esse corpo-templo redimido por Cristo.
Porém, cedo se faz a relação entre potência carnal1 e pecado. Schmitt (2014) fala sobre o elo estabelecido: “Ele coloca, de um lado, que a mácula do pecado original, a falta dos primeiros pais, transmite-se pela geração humana e, por outro, que o corpo, em suas emoções (a “concupiscência”, a “tentação da carne”), é o lugar e o instrumento por excelência do pecado.” (p.306)
Esse elo estabelecido entre carne e pecado tem profundas marcas na cultura medieval do corpo e cria sobre ele um paradigma de desqualificação e repressão. A seguinte afirmação, em resumo, pode ser feita: o corpo dá lugar às trevas do pecado, do pesar e do castigo. O corpo passa a ser um peso. São Gregório Magno qualificará o corpo de abominável vestimenta da alma. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.11).

3. O TRABALHO NA IDADE MÉDIA

A noção de trabalho da Idade Média não escapa desses valores dualistas que se manifestam, estabelecendo um “lugar reservado ao trabalho manual, sucessivamente, alternativamente e por vezes simultaneamente desprezado e valorizado.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.64)
Os ofícios na idade Média, então, estão submersos nesses movimentos de valorização e desvalorização, entre um trabalho dignificante, a obra criadora do trabalho divino, e o labor, como forma de castigo dado para a humanidade a partir de Adão: “No suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:19).
A mulher carrega um peso ainda maior, pois está destinada a ela o trabalho do parto, como diz as Escrituras: Para a mulher sentenciou o SENHOR: “Multiplicarei grandemente o teu sofrimento na gravidez; em meio à agonia darás à luz filhos” (Gênesis 3:16)
Uma influência do mundo greco-romano é a divisão entre o trabalho manual e o ócio, o primeiro é escarnecido e o segundo é louvável. Tal modelo parece se repetir de um lado no modo de vida monástico e na crença medieval de que o trabalho que suja as mãos é de natureza não-nobre e era mal visto perante as camadas de elite da sociedade medieval.
Entre as profissões, algumas foram condenáveis em sua prática e por detrás dessas condenações estão tabus que remontam às sociedades primitivas. Temos o tabu do sangue, da impureza, do dinheiro. (LE GOFF,1979)
A prática da prostituição, que consiste no uso do corpo como mercadoria sexual, é uma profissão que reúne vários desses aspectos condenáveis na sociedade medieval. Em contrapartida, como nos conta Jeffrey Richards (1993) no seu livro sobre minorias, a prostituição era uma prática comum na Europa medieval e existiam poucas cidades que não contavam com um prostíbulo, ou “boa casa”. (p.121)
Enquadro a prostituição neste subtítulo cuja a temática é trabalho baseado nos vestígios que demonstram a essencialidade da prática para o controle social e das tentativas de organizar esse trabalho e pela existência de hierarquias administrativas-organizacionais dentro do ofício.
Tal necessidade de controle social e a relação aparentemente contraditória de uma sociedade profundamente pudica, moralista quanto ao corpo e ao comportamento, e uma prática onde se utiliza do corpo para o sexo em troca de algum benefício, permite entrever atritos entre os intentos de controle moral religioso e os costumes sociais correntes na europa medieval. Era tolerável socialmente que os jovens e solteiros pudessem frequentar das “boas casas”, pois era um meio de afirmar a masculinidade numa sociedade que reprime a homossexualidade, bem como aliviar as necessidades sexuais masculinas, num ganho de controle dos casos de estupros de não-prostitutas e filhas de famílias respeitáveis. Haviam muitos casos de estupro por parte da clientela na prostituição.

4. FOLIA E PENITÊNCIA: BALANÇA MORAL DO MEDIEVO

A vida cotidiana na Idade Média vê sua dinâmica articulada entre “Quaresma e Carnaval”, remetendo ao famoso quadro de Bruegel de título “O Combate do Carnaval e da Quaresma”. São os representantes de dois extremos, resumidos pela falta e pelo excesso.
Foi a Igreja que iniciou a normatização dos atos sexuais alheios, buscando enquadrar nas regras os momentos, os tipos de parceiro e em que lugares as pessoas poderiam praticar seu sexo.
O corpo em sua dimensão sexual na Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos. O casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. Só tolerável e compreensível a relação sexual com a única finalidade de procriar. A profilaxia frente a um corpo que tem em sua carne as fraquezas das paixões é justamente dominá-las e reprimi-las. Qualquer método contraceptivo era mal visto pelos clérigos pois se caracterizaria como um ataque à natureza criada pelo divino por desejo de prazer.
Para cada forma de pensamento e intenções, principalmente de cunho moralizante, é preciso que uma elaboração de terminologias seja empreendida de forma que sejam determinantes no seu universo de significação, quase como se santificadas na linguagem, como explícito na citação: “caro (a carne), luxuria (a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cristão da ideologia anticorporal.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.42)
Santo Anselmo, arcebispo da Cantuária (1033-1109) escreve em uma de suas orações:
Existe um mal, um mal acima de todos os males, que tenho consciência de que está sempre comigo, que dolorosa e penosamente dilacera e aflige minha alma. Esteve comigo desde o berço, cresceu comigo na infância, na adolescência, na minha juventude e sempre permaneceu comigo, e não me abandona mesmo agora que meus membros estão fraquejando por causa da minha velhice. Este mal é o desejo sexual, o deleite carnal, a tempestade de luxúria que esmagou e demoliu minha alma infeliz, sugando dela toda a sua força e deixando-a fraca e vazia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.,1993.
LE GOFF, Jacques. TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na idade média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LE GOFF, J. O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. v. 2. [original: 1964].
NOTAS:
1 Aqui entende-se como a força de desejo, ligada à carne, que leva ao ato.


*Roberval Nascimento da Silva Júnior, 20, é acadêmico do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Suas áreas de interesse acadêmico são a Antropologia e a Teoria da História, com ênfase na relação entre História e Memória nas obras de Paul Ricoeur e Alessandro Portelli.




















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sábado, 2 de dezembro de 2017

Cristianismo e heresias: O nascimento de uma nova fé à luz do Império Romano no século II. O contexto pagão e suas influências para as apologias cristãs

Hoje estarei dando início a uma série de postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, a partir de artigos produzidos pelos alunos do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da disciplina História Medieval II, ministrada pelo professor Me. Tiago José Cavalcanti Atroch e da qual fui Monitor esse ano.

CRISTIANISMO E HERESIAS: O NASCIMENTO DE UMA NOVA FÉ À LUZ DO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO II. O CONTEXTO PAGÃO E SUAS INFLUÊNCIAS PARA AS APOLOGIAS CRISTÃS

Inara Kezia Gama Araújo¹

RESUMO
A ênfase do artigo é apresentar o impacto do cristianismo no império romano no século II d.C. Sua proliferação interferiu na política, cultura e religião. Os cristãos não adoravam os deuses pagãos, e com isso os seguidores acreditavam que se alguma desgraça ao povo acontecesse, era imediato culpar os cristãos por não cultuar os deuses. Do século II a III d.C, o crescimento do cristianismo não podia ser mais controlado, e isso chamou atenção dos romanos. As escrituras apologéticas cristãs mostravam sua racionalização da fé cristã, sua moral e argumentos filosóficos. Afinal, a multicultural de Alexandria é o princípio de vários povos vivendo em uma cidade de tamanha exuberância de filosofia, arte, cultura, linguagem, religião e costumes. Os apologistas cristãos tinham admiração pela erudição grega, e em suas escritas, harmonizam o cristianismo para com os gregos. O imperador romano Constantino oficializou o cristianismo como a verdadeira religião, assim, abolindo o paganismo. Apesar disso, é difícil acreditar nessa abolição. Suas influências são visíveis, tanto pelo contexto, como na construção de sua identidade cultural.
Palavras-chave: cristianismo primitivo, apologias, heresias, paganismo, doutrina, identidade cultural.

1 INTRODUÇÃO

Fílon de Alexandria (circa 20 a.C. - 50 d.C.), filósofo judeu-helenista. Gravura presente na obra "Les vrais pourtraits et vies des hommes illustres grecz, latins et payens" (1584), de André Thevet.

O resgate do contexto da antiguidade tem o objetivo de enfatizar a forma como o cristianismo foi se expandindo e ganhando seguidores. Apesar muitos terem abandonado suas antigas crenças, o cenário de templos, exaltação ao ser Divino e sua imagem, é fruto da identidade pagã. Como é possível se converte e deixar de seguir tudo que fez parte da construção da identidade social, político, econômico e social?
Segundo Werner Jaeger, a civilização grega exerceu uma profunda influência sobre a mentalidade cristã. A filosofia grega tem suas influências nas doutrinas cristãs. O novo testamento é o início do cristianismo primitivo, tem suas raízes na Paideia Grega e é onde se encontra uma postura ética e moral. Clemente de Alexandria e Orígenes de Alexandria são os primeiros escritores cristãos, e eles fizeram parte da educação grega.
A influência pagã no cristianismo, tem uma relação mítica. É notável, como os cristãos eram obedientes ao seu Deus e acreditavam na ressurreição de cristo. Não é diferente a dos pagãos. Se tratando de mito, o paganismo é recheado de mitologias na qual, todos os deuses, tinham seus aspectos, seja ela na guerra, na colheita, na prosperidade, na fertilidade, na sabedoria e etc. O mito serve para exaltar seu Deus, seus deuses. Afinal, Mitologia e religião têm suas diferenças.
E claro, como a proposta do artigo é mostrar a fundação do cristianismo, é impossível esquecer-se dos judeus. Logo no início, o cristianismo se difundiu nas cidades helênicas entre os judeus da Diáspora, sendo assim, vista como uma seita no judaísmo. O Judaísmo se tornou subitamente conhecido, e tem uma relação com a educação grega, onde Fílon de Alexandria adaptou-se com a filosofia grega.
A diversificação de religiões (egípcia, grega, romana e judia) é um dos assuntos que busco explicar por meio da nova religião nascida no império romano. É um assunto complexo, contudo, procurei especificar suas características que o contexto apresenta.
Os conflitos religiosos após a oficialização do cristianismo, é importante para melhor compreensão de como eles fazem parte do nosso cotidiano e a construção do imaginário. Sendo assim, cabe a nós reconhecer de como a antiguidade nos proporciona tamanha atração com seus legados e construção histórica. Minha intenção de buscar o cristianismo primitivo, foi para melhor enriquecimento e entendimento de como os pagãos são tratados com mais fervor como hereges na idade média, já em um período na qual é o ápice do cristianismo, formada como uma doutrina e a igreja católica sendo a elite.

2 OS APOLOGISTAS: A ERUDIÇÃO GREGA NA CONSTRUÇÃO DO CRISTIANISMO

Alexandria, por seu notório esplendor cultural e filosófico, tem como os primeiros apologistas cristão, Clemente e Orígenes. Grandes admiradores da erudição grega aproveitaram da Paideia grega pra desenvolver a nova crença. Tornaram-se os principais fundadores da filosofia cristã. Ambos nasceram na metade do século II. A inclusão do cristianismo no ambiente helênico era para fortalecer seu crescimento e assim sendo, adaptar-se a cultura grega para desenvolver suas apologias e o discurso teológico-cristão.
Os apologistas do século II tem um nível de intelectualidade, por isso, precisavam fazer do cristianismo, uma filosofia apropriada para com a cultura de Alexandria.
A intenção de Clemente era a “conversão” dos helenos, porém, sabia que para tal iniciativa, teria que traduzir a linguagem cristã. Assim, as apologias cristãs são herdadas da filosofia helênica, como diz Joana Clímaco:
Clemente, ele próprio um grego converso, vivenciou a atmosfera da Segunda sofistica; era um grande admirador da cultura e tradição filosófica dos helenos, apesar de repudiar o politeísmo e suas práticas. Fazia uso da Paideia grega para justificar racionalmente a sua fé e exortar os gregos à conversão. Nesse sentido, empregava sua erudição e sua capacidade retórica com o intuito apologético, pois acreditava que só por intermédio da razão se conheceria a verdadeira essência de deus. Dessa forma, conciliava sua fé cristã com uma curiosidade pelo universal, comparando textos de tradições diversas. Seu ponto de partida foram as escrituras judaicas, que transformaram em objeto de teologia, associando a fé e razão. (Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto a fundação ao cristianismo, p. 81-82).
O neoplatonismo, uma escola filosófica, na qual Orígenes de Alexandria fez parte, é uma escola pagã. Uma escola que se organiza a partir de Plotiano. O filósofo estimulava praticas ascéticas como importante aspecto de vida do filósofo, com o intuito de fazer as pessoas caminhem em uma vida contemplativa separada de preocupações corpóreas e terrenas. Seguindo isso, a semelhança entre o cristianismo e o neoplatonismo, onde o individuo acreditava na alma personifica e liberta para alcançar a salvação. Porém, apesar das tendências espiritualistas e místicas do neoplatonismo, o comprometimento com a argumentação filosófica, o distingue da percepção cristã. Mas, ambas são formadas no cenário intelectual de Alexandria.
Fílon de Alexandria é do século I d.C conseguiu conciliar a fé judaica com a educação helenizada. Conquistou a cidadania alexandrina e incluído em suas esferas administrativas, um caso raro entre os outros judeus da cidade. Podemos considerar Fílon o primeiro filósofo judeu, sua utilização da filosofia grega, apesar de suas crenças judaicas, pode se dizer que foi um meio de participar do processo de interação da linguagem grega. Influenciou apologistas cristãos e pensadores judeus posteriores, filósofos islâmicos, dando origem ao neoplatonismo medieval. Joana Clímaco diz o seguinte:
A familiaridade de Fílon com a filosofia grega fora talvez uma consequência de proximidade entre a intelectualidade judaica de Alexandria e as escolas filosóficas gregas difundidas até então (orfismo, estoicismo, ceticismo, pitagorismo e platonismo), muitas das quais foram revitalizadas no ambiente eclético da cidade. Sua filosofia judaico-helenística também se somou ao sincretismo resultante do contato da filosofia grega com as religiões orientais. Ao conciliar escrituras bíblicas com a filosofia grega, as obras de Fílon foram fundamentais para a expansão da cultura clássica do mundo romano, para a interpretação bíblica desenvolvida pelos Padres da Igreja e formação da teologia cristã e para a difusão do neoplatonismo nos séculos seguintes, que teve Alexandria como um de seus centros mais expressivos. Nesse sentido, a metrópole ainda facilitava o encontro de mundos através de seus núcleos intelectuais. (Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto de fundação ao cristianismo, p. 79)

3 MITOLOGIA E RELIGIÃO: A NARRATIVA GLORIOSA DE SEUS DEUSES, ASSOCIADA À FIGURA DO HOMEM PARA SUA EXALTAÇÃO DIVINA

Como de costume de antigas civilizações politeístas, seus deuses são sempre associados com os acontecimentos da humanidade. Seus feitos são eternizados em templos, esculturas, rituais e o mais digno dentro dessas características, é sua relação com a imagem do rei. Quando se trata de prosperidade do reino, o estabelecimento da ordem cósmica é o primordial para a segurança do povo e é claro, do rei. Grandes faraós egípcios, helênicos, ptolomeus e romanos, têm suas características semelhantes à do Egito faraônico.
O faraó (casa grande) era o principal da escala social. Rei, sacerdote, chefe militar, senhor dos exércitos, filho e protegido de tais deuses, era uma figura exaltada, repeitada e temível. Gregos, macedônios e romanos, são incluídos nesses aspectos. Ora, quem que quisesse se tornar o faraó, não queria ser glorificado? Foi assim que Alexandre, o Grande, em 332 a.C. quando ele derrotou os persas no segundo domínio no Egito, foi recebido como o salvador, e se tornou o faraó, sendo conhecido como o filho de Zeus-Amon. Otaviano (futuramente Imperador Augusto), após sua batalha de Àcio em 31 a.C, derrotando Marco Antônio e se tornando o Senhor do Egito, se tornou faraó e governou o Egito como seu domínio pessoal. No Egito Romano, o período faraônico “perde seu esplendor”, mas a sua identidade é mantida, principalmente na imagem do imperador.
Augusto transformou o Egito como província imperial, governada por um prefeito de ordem equestre, designado diretamente pelo imperador. O prefeito era a autoridade máxima local: comandante do exército, chefe da administração civil e das finanças e magistrado.
Os cultos aos deuses, é uma das tradições pagãs, na qual, determinado deus(a) tem sua personificação e narrado a sua história, cuja sua ênfase é retratar o seu significado e sua grandiosidade para que seu nome seja um feito místico escrito, narrativo e eternizado.
Qual a relação dos cultos pagãos para os cultos cristãos? Um dos mais famosos mitos egípcios é de Isis e Osíris. O episódio conta o assassinato de Osíris e a busca de Isis pelos pedaços de Osíris espalhados pelas margens do rio Nilo. No ritual, a pessoa que queria iniciar-se, deveria se apresentar em publico como um deus e chamava a ele mesmo de renascido. Assim, para com os cristãos. Quando Jesus foi crucificado, morto e sepultado, e no terceiro dia ressuscitou. Quando eles eram batizados, acreditavam que estavam renascendo. Suas semelhanças, é clara nas suas crenças e que seus Deuses e Deus voltaram a viver após a morte.
Essas crenças é anterior a época cristã, sendo assim, é visível que a religião pagã tem participações nas crenças cristãs. Faço observações de traços semelhantes nas partes da oração do Credo: “Creio no espírito Santo” “Na ressurreição da carne, na vida eterna “, é explícito como suas crenças é comparável aos dos pagãos, eram obedientes aos seus Deuses e mostravam isso através de cultos e rituais, na qual suas praticas são para agradecer e retribuir o que suas proteções, prosperidade e também em aspectos mais pessoais, são atendidos através de sua divindade.
Seja no politeísmo ou monoteísmo, suas semelhanças são em questão da função do divino eterno, como seu feito histórico faz parte de suas vidas e de que a gratidão, respeito e benevolência são executados através de seus cultos e rituais.
Minha intenção não é misturar as crenças religiosas, e sim, deixar notório como cada uma tem sua semelhança e de como podemos compreender a essência do poder divino em nossas vidas, como esses seres fizeram e ainda fazem parte da nossa identidade cultural. Atribuir as comparações, é enfatizar de como mitologia e religião, por mais que muitas vezes possamos juntá-las em um único corpo, é possível e correto separá-las para melhor conhecimento de que mito é uma história recheada de feitos históricos, cujo determinado Deus ou Deus tem seu legado construído e sua função para a vida de seus seguidores e religião é uma instituição formada que parte do poder da crença e tem seu princípio sobrenatural e tem sistemas de doutrina.

4 HERESIAS: O SEU IMPACTO NA DOUTRINA CRISTÃ E SEU CRESCIMENTO PARTINDO DA ANTIGUIDADE AO CONTEXTO DA IDADE MÉDIA

De origem grega, hairesis, significa “escolha, preferência pessoal”, porém certas vezes a versão portuguesa traduz como “seita”. Por isso, procurei contextualizá-la com o seu impacto perante os cristãos e de que como os hereges têm sua resistência até na Idade Média, onde a igreja católica apostólica romana exerce seu poder e sua poderosa elite.
No século IV d.C, o imperador romano Constantino(306-337), até então pagão, se batizou e oficializou a verdadeira religião: cristianismo. A partir de então, o paganismo entra em decadência (prefiro usar essa palavra do que dizer que foi abolida ou teve seu fim), dando um ponta pé inicial para um fervoroso cenário de conflitos religiosos onde cristãos e pagãos são os protagonistas.
O fortalecimento da fé cristã, causou um profundo impacto de identidade cultural, nas estruturas política, militar, sacerdotal, administrativo, e econômico, como fala Márcia Vasques:
Esta nova estrutura política alterou completamente a estrutura antiga do poder egípcio e, embora o país, no geral, tenha se mantido próspero durante o período romano, o enfraquecimento da economia dos templos e o rígido controle sobre a classe sacerdotal, preparou o caminho para o colapso dos templos egípcios e abriu espaço, no século IV d.C, para uma nova religião que crescia rapidamente: o cristianismo. (Crenças funerárias e identidade cultural no Egito Romano: máscaras de múmia, p. 10-11)
Assim como o cristianismo no início foi considerado uma seita perante os judeus e que os próprios consideravam os cristãos como hereges, por não seguirem sua doutrina religiosa, agora consideram os pagãos como hereges, aqueles de uma falsa mediação cultural.
A igreja católica na idade média era uma organização totalitária. Doutrinal, hierarquizada, autoritários e rituais estabelecidos. Qualquer divergência em relação a essa organizada e abrangente estrutura, infligia à ordem temporal divinamente ordenada, portanto, não seria tolerado.
A heresia era, como definiu o bispo Roberto Grosseteste no século XIII “uma opinião escolhida pela percepção humana, contrária à Sagrada Escritura, publicamente admitida e obstinadamente defendida”. A heresia popular não parecia preocupar a igreja, a sociedade estática, defensiva contra-ataques vindos de forças exteriores e havia pouco tempo para a experiência religiosa ou para debate intelectual. Contudo, isso mudou com uma explosão de exercício que os eruditos nomearam de “o Renascimento do século XII”. Esse fervor religioso foi acompanhada de uma denominação que Brenda Bolton chama de “a reforma medieval”.
Ambos foram fundamentais para o favorecimento de concentração no indivíduo, e na religião, uma procura individual pela redenção e o desejo do cristão leigo comum por uma relação mais direta e pessoal com Deus.
A igreja também começou a reforma-se. O papado que foi salvo de uma decadência no final do século XI por uma sucessão de papas reformadores, tiveram a responsabilidade de ordenar a casa. Lançou uma campanha contra a simonia (a venda de indulgências), o controle leigo sobre bispados e benefícios, o casamento de clérigos e impudência do clero.
Essa reforma, fez com que o papado fosse uma instituição monárquica organizada, burocrática e legalista, com o clero transformando-se numa casa fechada e exclusiva. Uma escola de pensamento que encara toda heresia ocidental como essencialmente maniqueísta. As ações e opiniões dos hereges ocidentais era um evangelismo provocado pela reação ao mundismo percebido e á corrupção da Igreja. Defino segundo Jeffrey Richards:
[...] a busca por uma vida religiosa mais completa e satisfatória através da austeridade pessoal, da adesão ao evangelho e da pregação foi um tema central. Foi a recusa da Igreja de reconhecer plenamente essas aspirações e essas práticas que transformou seus adeptos em hereges. [...] A heresia medieval nasceu das condições e da psicologia da sociedade medieval. tratava-se de dissensão religiosa e, em sua parte, de dissensão religiosa popular.(Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média, p. 55)

5 CONCLUSÃO

É nítida a influência do paganismo no cristianismo. Seja ela em apologias, cultos e rituais. A inclusão tem como concepção, observar a forma de que como as identidades são plurais e como é uma construção social e mostram-se moveis. Pagãos, judeus e cristãos fazem parte do mesmo contexto. O paganismo não teve seu fim, pelo contrário, apesar dos cristãos abolirem os cultos Deuses, sua identidade esta viva em cultos, templos, escrituras e a imagem do ser divino exaltado, mais eficaz dentro de uma doutrina

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JAEGER, Wener. Cristianismo primitivo e a Paideia grega. Tradução: Daniel da Costa. Santo Andre, SP: Academia cristã, 2014.
KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento. São Paulo: Paulus, 2005. v.2
CLÍMACO, Joana Campos. Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto de fundação ao cristianismo./ Atravessando mundos: ensaios sobre a imaginação medieval./ Sínval Carlos Mello Gonçalves. Manaus: EDUA, 2015
VASQUES, Márcia Severina. Crenças funerárias e identidade cultural no Egito Romano: máscaras de múmia. São Paulo, 2005. v.1

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Tradução: Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de janeiro: Jorge Zahard Ed, 1993.


¹ Inara Kezia Gama Araújo, 18, é acadêmica do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.







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sábado, 25 de novembro de 2017

Manaus e seus historiadores (1949)

Geraldo de Macedo Pinheiro (1920-1996).

O texto a seguir foi escrito pelo Procurador de Justiça, Secretário de Estado do Interior e Justiça e antropólogo Dr. Geraldo de Macedo Pinheiro (1920-1996), por ocasião da passagem do centenário da elevação de Manaus à categoria de cidade, e publicado originalmente no Jornal do Comércio em 26/02/1949 com o título "Manáus e seus historiadores". Nesse texto, Geraldo Pinheiro traça um breve panorama dos historiadores da cidade, indo do final do século XIX e início do século XX com Bento Aranha e Bertino Miranda, até a década de 1940 com a história social e cultural de Mário Ypiranga Monteiro, além das crônicas de Anísio Jobim e Júlio Uchôa.


Manáus e seus historiadores

Por Geraldo Pinheiro, especial para o Jornal do Comércio

A passagem do centenário de Manaus constituiu motivo para o aparecimento de novos trabalhos que vieram a completar a parca bibliografia histórica da cidade. A antiga tapera, a que alude Euclides da Cunha, transformada numa moderníssima cidade, com todo o conforto da civilização, teve rápido desenvolvimento. Apagaram-se da "urbs" as velhas moradias e desapareceram as antigas sobrevivências dos costumes indígenas. Transmudou-se, em poucos anos, num centro de civilização com agitada vida política e literária. Cedo atraiu vultos eminentes das mais diversas localidades do país. Seus recantos foram visitados por sábios da maior representação mental da velha Europa e dos Estados Unidos, os quais aqui se desenfastiaram da monotonia de longas viagens. Nos seus salões floresceram, durante décadas, os sagrados cultos da oratória e da poesia. Os seus jornais estamparam as mais belas páginas de uma geração irrequieta e barulhenta. Grandes nomes da literatura nacional aqui conviveram e foram alvo das mais retumbantes manifestações. A crônica social da cidade é, assim, das mais curiosas e está exigindo ainda novas revelações. Mercê de tanta vida febricitante, de tanta produção literária, conta-se a dedos os seus genuínos historiadores, os seus dedicados filhos, que tiveram de lançar suas beneditinas vistas para o passado da cidade.

Tudo estava por fazer. As referências à sua história dormiam na poeira dos arquivos, nas velhas obras de cronistas, nos livros de viagem dos naturalistas.

O seu primeiro historiador foi inegavelmente Bento Aranha, o velho Bento, a quem o Amazonas e suas instituições políticas e culturais tanto devem. Político e historiador, organizando bibliotecas, relatórios, mensagens, colecionando as produções poéticas do seu pai, não se esqueceu ele de voltar as suas vistas para a terra baré e dedicar-lhe um dos mais curiosos trabalhos.

"Um olhar pelo passado", folheto de poucas páginas, é sem favor algum a primeira contribuição à história topográfica da cidade, das suas ruas e nomenclaturas, tão bem explicada com amor e dedicação aí por volta de 1897.

Uma década após ao seu aparecimento, outro cultor da nossa história, o simples B. M., Bertino de Miranda, publicou um volume mais sólido e mais bem documentado: "A Cidade de Manaus - história de seus motins políticos".

B. M. anexou ao seu livro as mais interessantes atas de sessão da Câmara Municipal. Todo o seu esforço foi baseado quase nessa documentação e se tal não fizesse até hoje talvez não disporíamos de melhores fontes.

Todas as contribuições de uma plêiade brilhante de amazonenses e intelectuais aqui radicados, como Bento Aranha, Aprígio de Menezes, J. B. Faria e Sousa, Gaspar Guimarães e Alfredo da Mata e outros mais, não bastaram para infundir, no ânimo dos nossos conterrâneos, o amor pelo nosso passado. Anos e anos decorrem com pouca produção no domínio da história. As belas iniciativas de Bento Aranha e Bernardo Ramos, através do "Arquivo do Amazonas" e da "Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas" como que se eclipsaram.

Um sopro renovador consegue, felizmente, levantar o interesse de uma nova geração de estudiosos, fazendo reacender o entusiasmo dos próprios velhos. Eis que reaparece novamente a "Revista do Instituto", quase morta com o seu primeiro número e a "Revista Amazonense". Desse grupo, destaca-se Arthur Reis, o mais completo historiador do Amazonas, a quem todos nós devemos uma nova orientação e o descobrimento e a revelação de importantes documentos. E ainda sob essa influência salutar que ele lança "Manaus e outras vilas". Trabalho bem documentado, vários aspectos da vida da cidade foram focalizados sob prismas novos e detalhes mais ricos.

O chamado glebarismo literário degenerou-se, porém, no mais frio desamor pela terra. Guindados às posições chaves, alguns representantes desse movimento preferiram a boa comodidade e nada fizeram pela cultura do povo. Abriu-se assim novo período de inércia.

Chegamos agora à nova meta. Sopram melhores ventos. O esforço pessoal indica novos rumos. Anísio Jobim e Júlio Uchôa são os animadores desse movimento e deles provêm a iniciativa da publicação de crônicas históricas as mais diversas, focalizando ângulos da nossa formação e da evolução social do Amazonas, estampando ambos e outros estudiosos excelentes produções históricas. A Júlio Uchôa prende-se a primeira tentativa séria de divulgação sistemática à frente, como se achava, do seu modelar Departamento Estadual de Estatística. É esta repartição que divulga, em nossos tempos, as preciosas crônicas de Mário Ypiranga, versando costumes de Manaus antiga, a nomenclatura de suas ruas e os seus tipos populares.

Este jovem historiador amazonense conseguiu transformar-se na mais douta autoridade da história da cidade com o seu livro "Fundação de Manaus", valiosa publicação que é bem obra de seu esforço pessoal, salvando documentos que apodrecem nos velhos e desaparelhados arquivos da cidade.

As bases da história de Manaus estão, definitivamente, assentadas com o lançamento desse livro. Todo manauense deveria lê-lo para melhor conhecer e divulgar a história da cidade, sabido que são raros aqueles que ousam levantar a cortina que nos separa do passado.


FONTE:

Jornal do Comércio, 26/02/1949


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www.taquiprati.com.br