quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A Igreja Católica e a regulamentação das atividades sexuais na Idade Média

As atividades sexuais fazem parte do campo da vida privada. Pelo menos, é assim que se pensa. No período medieval, onde não existia uma delimitação clara entre o público e o privado, a principal instituição da época, a Igreja, conseguia regular as atividades sexuais de seus seguidores, estabelecendo valores como a castidade, o matrimônio e o sexo para procriação. No presente artigo, a partir de uma discussão historiográfica entre autores como Jacques Le Goff e Jeffrey Richards, buscou-se apresentar as formas como a Igreja Católica regulamentava e orientava as atividades sexuais de seus fiéis.

RESUMO
Thaieny Gama*
Este artigo tem como objetivo apresentar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média. Além disso, aponta as penitências para os pecados sexuais desse período. No primeiro momento se destacam a relação dos historiadores com a temática da sexualidade. Em seguida, os valores de virgindade, castidade e matrimônio são apontados como elementos argumentativos para as regulamentações das práticas sexuais dos fiéis. Por fim, são abordadas as punições para os crimes sexuais. Na conclusão ressalta-se a relação da sexualidade da Idade Média com a contemporaneidade destacando as mentalidades ainda constituídas na sociedade.
Palavras-chave: Sexualidade – Igreja Católica – Idade Média

INTRODUÇÃO

A sexualidade na Idade Média nunca foi bem expressada como hoje conhecemos e falamos. A Igreja Católica fortemente presente na vida dos fiéis e na dissipação da moral no comportamento social, coibiu as discussões quanto às atividades sexuais e regulamentou orientações para as relações.
Atualmente falar de sexualidade é comum e não é reprimido, porém, se conhecermos as orientações da Igreja Católica na Idade Média, haverá grandes discordâncias e questionamentos quanto às normas estabelecidas em lei.
Diante disso, não podemos descartar quem escreveu essas regulamentações: o clero era os poucos letrados daquele período. E seria muito conivente repudiar os desejos sexuais com essas normas e indicá-las aos fiéis. Le Goff e Truong (2006) reforçam essa afirmativa destacando que “os documentos em que se baseiam os historiadores refletem somente o pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos que, devido a seus votos de castidade, eram largamente versados no ascetismo.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41)
Com isso, os ensinamentos cristãos em relação à sexualidade estavam voltados para a manutenção da ordem divina através dos valores da virgindade, da castidade e do matrimônio, onde as atividades sexuais seriam apenas para os objetivos de reprodução e não por meramente saciar o desejo carnal.
“O sexo não deveria ser usado por mero prazer. Segundo esta definição, todo sexo fora do casamento, tanto heterossexual quanto homossexual, era pecado, e, dentro do casamento, só deveria ser usado para fins de procriação.” (RICHARDS, 1993, p. 34)
Contudo, o controle da Igreja Católica aos fiéis para manutenção da ordem divina, seria garantido com as confissões e consequentemente as atribuições às penitências para os crimes sexuais. Dessa forma, o individuo se livraria da culpa do pecado e a Igreja Católica seguraria o fluxo natural da vida por meio de suas orientações.
Por isso, esse artigo tem como objetivo destacar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média e apresentar as penitências que cada crime se submeteria.

REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA

'Le-livre-de-Lancelot-du-Lac', França, circa 1401-1425.

Devido à expansão do cristianismo no período medieval, a instituição Igreja Católica disseminou e refletiu os valores da doutrina cristã. Dentre as diversas orientações e regulamentações, os atos sexuais também foram prescritos com base no poder do impulso sexual de cada indivíduo.
De acordo com Richards (1993), os pensadores cristãos desse período no geral encaravam o sexo com uma ação desnecessária que confundiria a vocação de uma pessoa: “a busca da perfeição espiritual, que é, por definição, não sexual e transcende a carne”. (RICHARDS, 1993, p. 34)
Com isso, os ensinamentos cristãos eram voltados para a prática do celibato e a virgindade como ações de elevação da vida da pessoa. Na questão da sexualidade, os preceitos tinham como primícias apenas a reprodução, porém, essa indicação era voltada apenas para os casados. “A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar”. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41). O sexo fora do casamento era considerado pecado.
Por isso, Leal (2010) apresenta três valores que a Igreja Católica ressaltava aos fiéis: a virgindade, a castidade e o matrimônio. A virgindade era uma condução a imitação à vida de Maria e de Jesus. Maria como exemplo de serviço a Deus e Jesus como verbo que virou carne, perfeição de Deus. A castidade estava voltada ao seguimento das vidas dos santos na perspectiva de afastar-se do pecado e de aproximar-se de Deus. E o matrimônio era visto como sacramento que permitia a relação sexual do homem com a mulher da forma correta e para a perpetuação da vida na terra, considerada graça divina.
Diante disso, a Igreja Católica apresenta regulamentações para as práticas sexuais. Le Goff e Truong (2006) afirmam que nas relações sexuais a mulher deve ser a passiva e o homem o ativo. Assim, o corpo da mulher casada pertenceria ao seu marido. Essa afirmação é reforçada mesmo quando os teólogos apresentam a ideia sobre a relação de igualdade entre o homem e a mulher a partir da criação de Adão e Eva.
Richards (1993) ressalta que a posição apropriada para a relação sexual era a “posição do missionário, frente a frente com o homem por cima e a mulher embaixo” (RICHARDS, 1993, p. 40)
Além disso, a Igreja Católica proibia as relações sexuais em dias de festas religiosas e jejuns. Conforme Klapisch-Zuber (1989) a Igreja estabeleceu um calendário para os momentos que o casal poderia ter relações sexuais. As proibições eram para o momento da quaresma, do advento, páscoa, pentecostes e outros dias santos. Durante a gravidez da mulher, do aleitamento, dos quarenta dias após o parto e das regras menstruais, o casal também era proibido às práticas sexuais.
Le Goff e Truong (2006) afirmam que qualquer tentativa contraceptiva era pecado. Richards (1993) menciona que embora não haja especificação, o sexo anal e oral era considerado contraceptivo. Outras práticas eram conhecidas na Idade Média e denunciadas pela Igreja Católica:
Várias formas de contracepção, fossem elas efetivas ou não, eram conhecidas e presumivelmente praticadas: poções destiladas a partir de diversas plantas, exercícios de ginástica realizados após a relação, unguentos aplicados sobre os órgãos genitais masculinos, líquidos introduzidos no útero antes ou depois da relação, pessários. (RICHARDS, 1993, p. 42)
Klapisch-Zuber (1989) aponta que apesar do corpo da mulher ser de propriedade do marido, ela não deve ceder ao homem um pedido que seja pecado ou que vá contra a natureza. Dessa forma, a única maneira de infringir o dever de mulher é quando o homem impõe uma posição ou ação que vai contra a ordem de Deus.
Le Goff e Truong (2006) destacam como pecados outras práticas sexuais: “Felação, sodomia, masturbação, adultério, seguramente, mas também a fornicação com os monges, são, um a um, sucessivamente condenados.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 44)
Respectivamente, Richards (1993) aponta que o amor cortês, amor do homem solteiro e jovem pela mulher casada, era necessário ser evitado, pois, poderia provocar o adultério e consequentemente o nascimento de filhos bastardos.
Leal (2010) menciona que a prática sexual do homem com animais era uma ação natural na Idade Média, mas a Igreja Católica não aceitava essa relação, denominando esse ato como bestialidade irracional. Uma prática contra a ordem divina.
Para garantir o controle eclesiástico e a disciplina do laicato, além de propiciar “uma válvula de escape para o sofrimento individual derivado de uma consciência de culpa” (RICHADS, 1993, p. 38), a Igreja Católica estabeleceu a confissão e a penitência como ações centrais da Igreja. Por isso, para facilitar a penitência atribuída a cada pecado, o clero criou um documento que listavam os pecados e os métodos para lidar com eles. As questões sexuais eram a maior categoria que se atribuíam penitências. A mais comum era o jejum com pão e água, ou, abstinência sexual, havendo uma escala de punição. (RICHARDS, 1993, p. 39)
As penas mais pesadas eram reservadas para incesto, sodomia e bestialidade; quinze anos para infratores habituais. Mas existiam penalidade menores para outros delitos homossexuais, tais como masturbação mútua e sexo interfemural. Em outros penitenciais, o sexo anal incorria uma pena de sete anos; delitos homossexuais menores, dois ou três anos. Meninos eram punidos com penas muito menos pesadas do que os adultos. (RICHARDS, 1993, p. 40)
Nesse sentido, Leal (2010) ressalta que o sexo oral, incesto, adultério e sodomia eram práticas consideradas abomináveis, e, a punição poderia se definida em excomunhão e interdição perpétua do matrimônio e da relação sexual.
Para expressar o amadurecimento da Igreja Católica quanto aos pecados sexuais, Richards (1993) apresenta uma mudança referente ao estupro: “O estupro não era condenado pelos penitenciais, mas o raptus1 era.” (RICHARDS, 1993, p. 41). O raptus era um crime contra a propriedade privada, pois, era o roubo de uma mulher de sua família. Não está relacionado com o estupro que conhecemos atualmente. Posteriormente, o raptus tornou-se um crime sexual contra mulheres não casadas e recomendava-se pena de morte para tal delito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As influências da Igreja Católica na questão da sexualidade ainda é presente no dia a dia. Suas regulamentações sofreram alterações, mas ainda estabelecem um comportamento doutrinário a homens e mulheres. Porém, com a estabilização do estado laico, a Igreja já não persegue os indivíduos e não impõe suas doutrinas a sociedade.
Após as leituras e o desenvolvimento deste artigo, percebemos o quanto as mentalidades a essas orientações são presentes na atualidade. Destaco as relações de machismo frequentemente encontrado na sociedade no que tange a submissão e violência contra a mulher. Essa visão da mulher como o sexo frágil, com inteligência inferior e com tarefas voltadas para a família, visivelmente são reflexos dos comportamentos da Idade Média. Um grande desafio para os professores de história na perspectiva de salientar esse debate na sala de aula.
Por fim, reforço que essa temática ainda precisa ser mais trabalhada na ânsia de refletir sobre essa influência da Igreja Católica e visualizar os paradigmas que a sociedade está encaixada para estabelecer novos caminhos. Na expectativa de fomentar o compromisso social que cada um tem a contribuir para uma sociedade mais justa e fraterna.


1 Raptus significa sequestro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A mulher e a família in: LE GOFF, Jacques. O homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

LEAL, Raphael. Religião e sexo: do controle da Idade Média e sua herança na contemporaneidade. IV Colóquio de História: Abordagens Indisciplinares sobre a História da Sexualidade. 19 de novembro de 2010. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

LE GOFF, Jaques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Tradução: Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.41.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Tradução: Marco Antonio da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 34.


*Thaieny Gama é acadêmica do 4° período do curso de História na UFAM, com interesse na área de pesquisa sobre História do Brasil (Golpe Civil Militar).

E-mail: thaieny.gama@hotmail.com








CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.cvltnation.com

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Casarão abandonado da família Grosso, na Avenida Joaquim Nabuco (n°472)

Imóvel abandonado na Av. Joaquim Nabuco, no Centro de Manaus.

Não é novidade o péssimo estado de conservação de boa parte das construções do Centro Histórico de Manaus, região em constante processo de esvaziamento e abandono. Dentro e fora da região tombada, é fácil encontrar um prédio descaracterizado, prestes a desabar ou já em ruínas. O sobrado português n° 472, na Avenida Joaquim Nabuco, apesar de estar em uma via inserida na área de tombamento e proteção do patrimônio, é mais um exemplo de que essa delimitação de nada serve se não for posta em prática.

Sobre sua origem e antigos proprietários, temos fragmentos dispersos mas que ajudam na construção, mesmo que breve, de sua trajetória. Em 2015, o jornalista Osvaldo Neto, na matéria História abandonada: Casarões que marcaram tempos antigos vivem carregados de descaso, publicada no jornal A Crítica, recolheu com um responsável por um estacionamento ao lado do imóvel, Marcos Brito, na época com 59 anos, informações importantes sobre a construção.

De acordo com Marcos Brito, residiu nesse sobrado a família Grosso, de Portugal. O patriarca era dono de uma padaria e gostava muito de festas, ficando a casa cheia de convidados todas as semanas. Essas poucas informações desse texto jornalístico serviram de norte para outras pesquisas sobre a família Grosso.

José Ferreira Barbosa Grosso e Lourdes Grosso. FONTE: Jornal do Comércio, 13/06/1976

José Ferreira Barbosa Grosso, o patriarca dessa família portuguesa, veio para o Brasil em 1927, se estabelecendo como comerciante no Estado do Pará. Anos depois se radiciou em Manaus, no Amazonas. Era casado com Lourdes Grosso (1). Nesta capital criou, na década de 1940, a Fábrica Modelo (2), padaria e mercearia, sendo admitido como membro efetivo do Conselho Fiscal da Indústria Moageira de Trigo 'Amazonas' S.A. (3) Atuante na comunidade luso-brasileira, ajudava instituições como o Hospital Beneficente Portuguesa do Amazonas (4) e a APAE (5).

Após décadas de abandono, restaram apenas alguns elementos que possibilitam uma descrição arquitetônica. Trepadeiras tomaram parte do topo e os fundos da construção. O antigo assoalho de madeira já está bastante deteriorado. O telhado está bastante comprometido, bem como a estrutura, com os tijolos expostos. Na parte de trás do imóvel resta um gradil importado que ladeava dois quartos. No frontão, elementos de inspiração nobre como jarros e outras figuras com motivos florais que lembram o Art Nouveau.

Resta, na parte de trás da construção, entre telhas quebradas e vegetação densa, um gradil de época.

O atual proprietário do imóvel o administra de longe, auferindo um renda do estacionamento que aluga ao lado. Talvez não interesse o restauro do imóvel, ou o dono esteja enfrentado os dois principais problemas de quem possui uma construção antiga: O alto valor do restauro e os entraves burocráticos do IPHAN e da Prefeitura, que chegam a inibir qualquer iniciativa. Se nenhuma medida for tomada, o casarão da família Grosso é mais um que pode deixar de existir em breve, entrando na lista do patrimônio literalmente 'tombado' do Centro.


NOTAS:

(1) Jornal do Comércio, 10/04/1977
(2) Jornal do Comércio, 09/01/1949
(3) Jornal do Comércio, 06/06/1974
(4) BAZE, Abrahim. Real e Benemérita Sociedade Portuguesa Beneficente do Amazonas, 125 anos de História (1873-1998). Manaus, Editora Valer, 1998.
(5) Jornal do Comércio, 19/08/1977

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal do Comércio, 13/06/1976
Jornal A Crítica, 2015/defender.org.br


domingo, 10 de dezembro de 2017

Os Dois Lados da Moeda: O Ingresso e a Ascensão da Prostituição entre os séculos XII e XIII

A prostituição é uma das práticas mais antigas da humanidade, estando presente em diversas sociedades. O ato sexual com fins religiosos, com fins medicinais e de alívio, foi visto de diferentes formas pela sociedade ao longo dos séculos, indo da aceitação à proibição. No presente artigo é analisada a ascensão da prostituição no medievo entre os séculos XII e XIII, destacando a visão que a Igreja tinha dessa prática e suas reações contra a mesma.

RESUMO

Taynara Alves Lobato*
Com base em algumas obras específicas dos autores Jeffrey Richards (1993), Jacques Le Goff (1989) e artigos publicados por acadêmicos e professores especializados na área, esse artigo tem como finalidade entender as variadas leituras e diferentes olhares sobre a prostituição em sua ascensão no medievo, mais precisamente entre os séculos XII e XIII, mostrando a visão e reação da igreja sobre a mesma.
Palavras-chave: Prostituição. Ascensão. Igreja. Gênero


INTRODUÇÃO

A mulher medieval, segundo o historiador Jacques Le Goff, foi categorizada pela sua natureza, representada por “Eva”, personagem bíblica que influenciou “Adão” a pecar e como consequência de seu pecado, foram expulsos do Paraíso. “Antes de ser camponesa, castelã ou santa a mulher passou a ser categorizada pelo seu corpo, pelo seu sexo e pelas suas relações com os grupos familiares” (Le Goff,1989). Sendo considerada um ser místico, a mulher foi usada como paz, capaz de manipular os seus maridos e os levar para o pecado.

Desde o século IV, a igreja alicerçou seu poder para estabelecer supremacia sobre o pilar político-religioso, sendo o agente responsável pela diversidade sobre o corpo, vivente durante todo período medieval. A sequela de seus preceitos foi o surgimento de uma nova conduta moral, nos moldes culturais da Idade Média. Sendo considerada a mais marcantes das profissões, a prostituição sempre teve uma relação íntima em todos os períodos históricos entre si própria e a sociedade, nos levando para uma investigação sobre a sua existência histórica.


A PROSTITUIÇÃO NA IDADE MÉDIA

Um prostíbulo em uma casa de banho por volta de 1470. Aquarela de Anthony da Borgonha.

A palavra ‘prostituir’ vem do verbo latino prostiuere que significa expor publicamente, pôr a venda, referindo-se as cortesãs, da Roma Antiga, que se colocavam na entrada das ‘casas da devassidão’ (Durigan & Mina, 2007).
Na Idade Média, as mulheres ingressavam na prostituição por motivos óbvios: A pobreza. Vendiam seu próprio corpo para sobreviver, boa parte delas eram filhas de assalariados, domésticas e operários. As viúvas, as que tinham sofrido estupro ou as que possuíam posses e status adentravam nesse meio por necessidade.
A família era uma das grandes incentivadoras para que as mulheres se infiltrassem nos prostíbulos, com intuito de aumentar a renda familiar. Havia uma idade mediana (15 a 17 anos) queera considerada a idade ideal para que as mulheres iniciassem sua vida de forma considerada profana.
O trabalho de Jacques Rossiaud sobre a prostituição na Borgonha nos dá algumas estatísticas precisas. Na Dijon do fim do período medieval, quatro em cada cinco prostitutas pertenciam aos setores mais pobres da população, sendo dezessete anos a idade mais comum de entrada para a prostituição. Um quarto delas havia sido colocado na prostituição pela família ou havia entrado nela para fugir a uma situação familiar intolerável. Apenas 15% das prostitutas haviam abraçado a profissão por livre e espontânea vontade. (Rossiaud, Jacques Apud Richards, Jeffrey, 1993).
A prostituição chega à sua ascensão entre os séculos XII e XIII, justamente com a homossexualidade perseguida pela sociedade principalmente pela igreja. Assim como foi a igreja com a sua supremacia que predominava na vida moral e espiritual dos seus seguidores na idade média que tomou a iniciativa de especificar quais eram os atos sexuais que as pessoas podiam se permitir, tendo como especificações as posições, o dia, sendo que nos dias Santos as práticas sexuais não eram permitidas com penas de penitência ou sacrifícios carnais.
O sexo foi taxado pela igreja como ‘símbolo do pecado’, dessa forma a igreja “guia” seus fiéis numa espécie de rito religioso e corporal, tendo como a finalidade do sexo somente para a procriação, e assim sendo realizado somente entre os cônjuges.
Com tantas proibições da igreja perante o casamento e o sexo, foram crescendo os casos de prostituição nas cidades, onde alguns homens desviavam-se dos seus compromissos perante a esposa, buscando fora o que não podia ter em casa como prazeroso. Foi a Igreja, a força dominante na vida moral espiritual das pessoas na Idade Média, que tomou a iniciativa de especificar que atos sexuais as pessoas poderiam se permitir e de regulamentar, quando e com quem o sexo poderia ter lugar. O grau em que os objetivos dos eclesiásticos foram atingidos provavelmente jamais será conhecido com precisão. Mas, de qualquer modo, estimativas precisas do grau de conformidade das pessoas às normas sociais e sexuais são em qualquer tempo difíceis. Com tudo, a parti das ações e reações da Igreja, seus pronunciamentos e preocupações, podemos deduzir alguma coisa quanto às atitudes e práticas que os eclesiásticos estavam procurando combater. (RICHARDS, JEFFREY, 1993, p.33)
Contudo no período posterior a Idade Média, surgiu uma hierarquia dentro do campo da prostituição. No topo estava o bordel Municipal em plena atividade, cujas residentes prestavam juramento as autoridades, pagavam aluguel semanal à sua cafetina e muitas vezes contribuam para os custos de aquecimento e proteção por parte da vigilância.
“Quase não existia uma cidade que não tivesse sua “boa casa”, como era às vezes conhecido o bordel. Ivan Bloch (1912-25) identificou setenta e cinco cidades e vilas alemãs que possuíam bordéis. Um observador do século XV estimou que havia de cinco a seis mil prostitutas em Paris, dentro de uma população de 200 mil pessoas. Foram identificadas cem prostitutas na Dijon do século XV, dentro de uma população de menos de dez mil pessoas”. (Richards, 1993)
Em seguida vinham as casas particulares menores (bordelages), geralmente dirigidas por mulheres com uma equipe residente de “jovens servas”. Existia uma prostituição generalizada nas casas de banhos. A correlação dessas atividades era tal, que o mesmo termo (stews) acabou por ser aplicado em inglês tanto às casas de banhos quanto aos bordéis. Isso acontecia a despeito do fato de que o regulamento das casas de banho proibia sistematicamente as prostitutas. Finalmente, havia as prostitutas autônomas que operavam ao ar livre. Em Paris, as muralhas, os descampados, os jardins públicos, as vielas, as margens do rio, as pontes e os terrenos baldios serviam todos como lugares de prostituição — qualquer lugar, em suma, onde a prostituta pudesse conseguir um momento de privacidade com o cliente. Privacidade não era coisa fácil de se obter no mundo medieval urbano, e as atividades das prostitutas eram frequentemente expostas à observação pública. Por exemplo, num caso judicial em Florença, em 1400, quando uma certa Salvaza estava sendo processada por prostituição ilegal, diversas testemunhas oculares forneceram evidências sobre o seu estilo de vida, uma delas declarando que “havia frequentemente olhado por uma janela da casa de Salvaza e a tinha visto nua na cama com homens, realizando esses atos indecentes que são praticados por prostitutas”.
“As prostitutas estavam em toda parte nas ruas e bairros da cidade, tentando arrastar clérigos passantes à força para dentro de seus bordéis. Se os clérigos se recusassem a entrar, elas imediatamente lhes gritavam pelas costas: “Sodomita!” Num mesmo único edifício, poderia haver uma escola no andar de cima e um bordel no de baixo. Enquanto os mestres ensinavam a seus pupilos na parte de cima, as prostitutas dedicavam-se a seu comércio nefando na parte de baixo. Numa parte, as prostitutas batiam boca umas com as outras e com seus cafetões; na outra parte, os eruditos discutiam sobre assuntos eruditos”. (Jeffrey, 1993).

E mesmo depois de todas as medidas que a igreja tomou para abolir a prostituição, ou para perdoar o pecado com passando a propor o que podemos classificar como um acordo de paz, para que as mulheres que estavam se prostituindo se arrependessem de seus pecados arranjassem um marido e formassem uma família para que se tornassem mulheres respeitadas, donas de casa e não uma pecadora, mesmo depois de tudo, a prostituição cresceu, se organizou, se transformou, se renovou com a sociedade, e o que era considerada uma prática infame e pecaminosa, hoje é considerado uma profissão, ainda um tabu mas estão conquistando o seu espaço, os seus diretos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ROSSIAUD, Jacques: A Prostituição na Idade Média; tradução Cláudia Schilling. Rio de janeiro: Paz e terra, 1991.
RICHAED, Jeffrey: Sexo, desvio e danação: as minorias da Idade Média/Jeffrey Richaed; tradução: Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1993.
BASSERMANN, Lujo: História da Prostituição: Uma Interpretação Cultural; tradução: Rubens Steckenbruck – Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A 1965.
TEDESCHI, L. A. História das Mulheres e as Representações do feminino. Campinas, SP:Editora Curt Nimendajú, 2008.
LE GOFF, Jacques: O Homem medieval, tradução: Editorial Presença, Lisboa 1989.

COSTA, Ricardo: A imagem da mulher medieval em O Sonho (1399) e Curial e Guelfa (c. 1460).

*Taynara Alves Lobato, 20, é graduanda em Licenciatura Plena História (4° período) na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Área de pesquisa: História da mulher medieval.










CRÉDITO DA IMAGEM:

The Prostitute Throughout The Ages - A brief introduction on the history of prostitution - http://www.amsterdamredlightdistricttour.com/history-of-amsterdam/history-of-prostitution/

sábado, 9 de dezembro de 2017

A Igreja Medieval: De salvadora dos homens à senhora das almas

A Igreja Católica foi a instituição mais poderosa da Idade Média. Com seus desígnios emanando de Roma (por um relativo período de tempo também de Avignon, na França), atingia paróquias, dioceses e arquidioceses pelo mundo, influenciando o cotidiano, a literatura, as artes e, principalmente, os temores humanos referentes à salvação da alma. É sobre essa última instância que recai a análise do presente artigo, de como a Igreja, a salvadora dos homens, manipulou os medos destes e tomou posse de suas almas.

RESUMO
Arlison Jorge de Souza Leite*

Este texto pretende analisar as motivações e estratégias utilizadas pela Igreja para exercer um controle espiritual sobre a Cristandade. Partindo do princípio de que, na sociedade medieval, a dimensão espiritual se sobrepunha à material e que a Igreja era a única habilitada a abrir as portas da salvação, ela acabou se colocando em um lugar privilegiado, de onde podia, se não controlar, ao menos direcionar os temores dos fiéis. Nesse sentido, este texto aponta que a instituição eclesiástica estimulou e deu forma a um medo supremo: o Diabo, que, para os fiéis, correspondia ao medo de si. A partir destas premissas, discute-se como a Igreja, ao se posicionar como salvadora dos homens, manipulou seus medos e tornou-se a senhora das almas, buscando, constantemente, colocar o destino espiritual da Cristandade sob seu comando.
Palavras-chave: Igreja. Medo. Diabo. Controle. Salvação.

1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história humana, aqueles que controlam o que há de mais precioso para uma sociedade também detêm, em certa medida, o poder de mantê-la refém. Tal, também foi o caso do ocidente, ao longo dos séculos medievais. Nessa sociedade, o espiritual prevalecia sobre o material, logo, um dos grandes motivos para a Igreja ter se tornado a senhora das almas foi o fato dela ter comandado uma coletividade sobre a qual pesava a crença de que a salvação era o grande objetivo da vida e, nesse caso, só havia um meio para tal: enquadrar-se nos padrões de comportamentos exigidos pela instituição eclesiástica.
Entretanto, esse projeto pedagógico não foi de fácil implantação. Diante disso, visando consolidar sua autoridade, a Igreja Católica tornou heresia e perseguiu qualquer um que vivesse fora de sua doutrina, cada vez mais rígida após a Reforma Gregoriana. Com o seu projeto de sociedade, a Igreja tomou para si o monopólio da interpretação dos textos sagrados e, consequentemente, o controle sobre a vida espiritual da Cristandade. Assim, buscando controlar as almas alheias, ela recorreu ao que havia de mais sensível dentro de cada uma delas: o medo. Com esse propósito, a Igreja o intensificou, primeiro por meio da pregação e das imagens, depois com o teatro religioso, todos falando ou mostrando os suplícios do além para uma sociedade que vivia sob ameaça constante.
Além disso, deve-se ressaltar que dentre todos os temores medievais, o medo do Diabo era, provavelmente, o mais aterrorizante. Isso refletia a perda do controle da Cristandade por parte da Igreja que, percebendo esse fenômeno, fez do “inimigo do gênero humano” um monstro terrível que espreitava a qualquer um que ousasse atravessar as fronteiras espirituais estabelecidas por ela. Dessa maneira, a contraditória Teologia medieval pôs o homem demasiado à mercê das ações do Diabo em sua vida cotidiana, além de pôr o inferno como quase fazendo parte deste mundo, onde Lúcifer é o príncipe. Por conseguinte, a proximidade entre o Diabo e os homens é assim tão estreita que os labirintos Teológicos nos permitem dizer que o “inimigo do gênero humano” conhece o homem melhor do que Deus, isto é, suas virtudes e vícios, estes o Diabo intensifica, aquelas ele corrompe. Dessa forma, um desafio irônico se impõe à vida do homem medieval: este deveria, não necessariamente, evitar o inferno, mas sair dele.

2. AS TENTATIVAS DE CONTROLE: PERSEGUIÇÕES, SACRAMENTOS E O JUÍZO FINAL
Dança macabra do Convento dos Dominicanos de Bâle, na Suíça. Gravura de 1621 de Matthaeus Merian.

As ações da Igreja em relação aos fiéis mostram que, a partir do século XII, os terrores demoníacos, assim como as perseguições, se intensificaram, acompanhando o crescimento dos próprios temores da Igreja, seja em relação às heresias ou às seduções das cidades. Essa mudança de postura por parte da instituição eclesiástica foi observada por Delumeau: “A Igreja da Alta Idade Média pleiteara no conjunto pela clemência e pela prudência em relação aos culpados [...]” (1989, p. 350). Em seguida Delumeau complementa:
[...] sua atitude modificou-se a partir do final do século XII sob o efeito de duas causas interligadas: de um lado, a afirmação da heresia com os valdenses e os albigenses; de outro, uma vontade crescente de cristianização que os pregadores oriundos das ordens mendicantes exprimiram e atualizaram (1989, p. 351).
Quando a Igreja não conseguia controlar o medo dos outros, os seus próprios vinham à tona. Nesse sentido, seu maior medo era o de ser questionada, portanto, a desobediência devia ser combatida, mesmo entre aqueles que teoricamente poderiam ser seus aliados como “os franciscanos ‘espirituais’ que se valiam de Joaquim de Flora opuseram-se à riqueza e ao poder da Igreja e foram perseguidos pela hierarquia” (DELUMEAU, 1989, p. 208), isto é, desobedecer à Igreja era o pior que se podia fazer.
Além disso, vendo-se diante da impossibilidade de dominar completamente os pensamentos dos fiéis, a Igreja passou a controlar as ações deles por meio da prática dos sacramentos, a partir de então,
constata-se claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais (nascimento, casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança de salvação no outro mundo, sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão (BASCHET, 2006, p. 175).
A partir de iniciativas dessa natureza, a Igreja se afirmou como o único canal de salvação dos homens.
Uma das mensagens que chamam a atenção na “pedagogia” utilizada pela Igreja é que antes do fiel alcançar a salvação, ele teria que passar pelas provações do Diabo, ou seja, tem-se nesse caso, duas narrativas interligadas nas quais, antes das recompensas dos justos, todos tinham que conhecer os castigos que existiam no além. Isso fez com que, ao longo dos séculos medievais, a representação do Juízo Final ficasse cada vez mais terrível para os olhos de quem a via, não apenas na iconografia, mas também na literatura religiosa. Ao analisar essa situação, Delumeau (1989) frisou que essas representações estavam em toda parte: nas grandes igrejas urbanas ou nas pequenas igrejas rurais, todos podiam e deviam vê-las. Ainda no que diz respeito a essas representações, Delumeau destaca sua finalidade: “A última prestação de contas revelava-se um meio pedagógico eficaz nas mãos da igreja para reconduzir os cristãos para o bom caminho” (1989, p. 211).
Como afirmado anteriormente, se esses medos atingiram parte da população, isso se deve, em grande medida, à difusão da “propaganda” que a Igreja fazia de suas ameaças. A partir do século XII, a aglomeração de pessoas nas cidades ajudou nesse objetivo (embora a sociedade medieval continuasse, em sua maioria, rural) que antes do “Renascimento Urbano” constituía trabalho mais difícil, pois “era demasiadamente rural, demasiadamente fragmentado, demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas correntes de propaganda” (DELUMEAU, 1989, p. 216).
Para um controle mais efetivo sobre a Cristandade, era necessário instigar o medo nos fiéis, pois só se poderia oferecer salvação a uma alma que estivesse em perigo, por isso, todos tinham que acreditar no Diabo, inclusive, Delumeau (1989) observa que para não ser acusado de heresia, além de não praticar “atos demoníacos”, o cristão deveria, antes de tudo, acreditar que eles eram reais.

3. O MEDO SUPREMO: O DIABO
A Igreja Medieval trouxe o Diabo para a vida do homem do Ocidente e, depois de alimentá-lo, jogou-o sobre toda a Cristandade. Essa evolução do “inimigo do gênero humano” foi muito bem demonstrada por Delumeau:
Satã pouco aparecia na arte cristã primitiva e os afrescos das catacumbas tinham-no ignorado. Uma de suas mais antigas figurações, nas paredes da igreja de Baouit no Egito (século VI), o representa sob os traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas, mas sem feiúra e com um sorriso um pouco irônico [...] Lúcifer, outrora criatura preferida de Deus, ainda não é um monstro repulsivo (1989, p. 239).
Le Goff (2005, p. 153) também dedicou suas análises ao estudo do Diabo:
Na Alta Idade Média, Satã não tem papel de primeiro plano, nem muito menos uma personalidade de destaque. Ele aparece com nossa Idade Média, e se afirma no século XI, sendo uma criação da sociedade feudal. Com seus sequazes, os anjos rebeldes, ele é a própria imagem do vassalo pérfido, do traidor,
assim, Satã fazia sua grande entrada em nossa Civilização.
Entretanto, a concepção que o povo tinha da figura do Diabo não correspondia, necessariamente, àquela representada pela Igreja, porém, isso não a impediu de criar sua imagem do “inimigo do gênero humano” e difundi-la amplamente:
Durante longos séculos da história ocidental, as pessoas instruídas consideraram de seu dever fazer os ignorantes conhecerem a verdadeira identidade do maligno por meio de sermões, de catecismos, de obras de demonologia e de acusações. Já santo Agostinho esforçara-se em demonstrar aos pagãos de seu tempo que não existem demônios bons (DELUMEAU, 1989, p. 249).
Ainda a esse respeito, Delumeau expõe uma contradição Teológica:
Jesus chamara Satã de ‘príncipe deste mundo’ [...] São Paulo fora ainda mais longe, chamando Satã de ‘o deus deste mundo’ [...] Jesus e são Paulo não queriam designar a terra onde vivem os homens nem a humanidade inteira, mas o reino do mal [...] Só deste mundo é que Satã é rei [...] mas os homens de Igreja [...] estenderam à totalidade da criação o império do maligno (1989, p. 259).
A partir de tal iniciativa, ao colocar a cristandade em uma posição suscetível à influência demoníaca, a Igreja conseguiu colocar esse medo dentro dos fiéis, isto é, conseguiu fazê-los terem medo de si mesmos. Delumeau explica a razão de tal medo: “Ele [o Diabo] pode não só investir contra os bens terrestres e o próprio corpo, como também pode possuir um ser humano sem o seu consentimento, que desde então se encontra desdobrado” (1989, p. 242). Sendo assim, o medo do Diabo se tornou o mais eficiente de todos, pois se considerarmos os piores temores medievais, da mulher ao infiel, todos poderiam ser evitados caso fosse necessário, porém jamais se poderia fugir de si mesmo.
Evidentemente que esse medo, ao mesmo tempo particular e coletivo, encontrava sustentação na vida cotidiana. Em seu dia a dia, o homem medieval, sobretudo aquele pertencente às classes mais pobres, vivia muito distante de qualquer traço do Paraíso, lugar de riquezas diversas, paz e vida eterna, embora esse Paraíso lhe fosse mostrado nas pinturas. Por outro lado, esse mesmo homem não vivia muito distante dos horrores do Inferno, tais como: as doenças, a fome e a morte. Nesse sentido, o Inferno apenas seria o lugar onde essas desgraças seriam perpétuas. Nessa ironia medieval, o homem teme o que já conhece.
4. CONCLUSÃO
Deve-se reconhecer à Igreja sua característica de hábil manipuladora dos medos humanos, alguns ela engendrou nas mentes e corações, aqueles que já existiam ela remodelou e redirecionou ao seu favor, mas, antes de manipular os temores alheios, ela precisava eliminar os seus. Com esse propósito, ela reuniu e simplificou tudo o que desconhecia ou temia, assim como toda diversidade existente em seus domínios e deu-lhes o nome de Diabo. Nesse cenário, a instituição eclesiástica tornou-se mais obcecada com a figura de Satã do que qualquer “bruxa” jamais seria. Incapaz de sentir medo sozinha, a Igreja projetou seus temores sobre toda a Cristandade, tornando a salvação um projeto difícil de se realizar, pois para o homem medieval, o demônio estava sempre mais próximo que os anjos. Desse momento em diante, surge a necessidade imperativa de vigilância constante.
Além disso, deve-se notar que ao longo da Idade Média, a Igreja não conseguiu sequer aproximar-se do Paraíso com suas tentativas de pacificação da Cristandade, mas é dela, em grande parte, a paradoxal responsabilidade de trazer o Inferno sobre a terra, através da Inquisição, que em suas perseguições e torturas foi, certamente, tão criativa quanto os demônios seriam no Inferno.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a Igreja se mostrou perspicaz e implacável contra seus inimigos, ela também se mostrou cega, pois enquanto combatia hereges, bruxas e infiéis, não percebeu o descontentamento dos futuros reformadores crescendo em suas entranhas. Talvez por acreditar que estivesse no fim da história, não considerou importante atentar para àqueles que seriam ou prometiam ser o futuro. Com efeito, nota-se que a Igreja foi para muito além do que podia controlar. Sua ambição de comandar os reinos terrenos a fez perder o monopólio sobre o além, pois com a Reforma, os Protestantes o trouxeram para este mundo, quebrando a hierarquia Católica entre a Terra e o Paraíso, e entre os Homens e Deus; a escuridão do fim do mundo havia chegado, ao menos para a supremacia espiritual da Igreja Romana. Porém, isso não contribuiu significativamente para acalmar as almas dos homens, pois doravante eles tinham dois Paraísos a pleitear e dois Infernos a temer.

REFERÊNCIAS E OBRAS CONSULTADAS

BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP. EDUSC, 2003.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico. 13.ed. Porto Alegre: [s.ed.], 2005.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2010.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

*Arlison Jorge de Souza Leite é acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu trabalho se refere ao período Medieval, com ênfase no papel da Igreja Católica na construção ou reconstrução dos medos humanos, seja moldando as figuras de Deus e do Diabo ou propagando suas imagens do Inferno e do Paraíso, assim como suas representações do imaginário Medieval.








CRÉDITO DA IMAGEM:
lamortdanslart.com

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Apontamentos breves sobre a representação simbólica do Diabo na literatura medieval

No presente artigo o autor buscou apresentar as formas como o Diabo era representado na literatura medieval, buscando as origens das apropriações simbólicas nas mitologias grega e celta e tendo como base o Elucidarium, livro sobre crenças cristãs populares escrito no final do século XI por Honorius Augustodunensis.

RESUMO
Vinicius Maciel Braga*

O objetivo desse artigo é apontar as principais formas de representação simbólica do diabo na literatura medieval, partindo da sua concepção extraída das mitologias grega e celta e analisando com veemência o uso de sua imagem como um símbolo da tentação mundana, da rebeldia e do conhecimento considerado “profano” pela Igreja.
Será apontada também a relação entre a figura de Satanás e o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, livro este considerado essencial para alcançar o entendimento da mentalidade do homem medieval. A verdadeira intenção deste trabalho é mostrar a simbologia do demônio além da imagem convencional da criatura monstruosa representada com bastante frequência.

Palavras-chave: História Medieval; diabo; representação simbólica; literatura medieval

INTRODUÇÃO
O artigo tem como principal intenção apontar as principais formas de representação do Diabo na literatura produzida durante a Idade Média. Tais modos de simbolizar Satã possuem várias interpretações, e algumas serão mostradas aqui de maneira breve e de fácil entendimento. Iniciaremos a discussão mostrando as duas maneiras como o Diabo é representado e os efeitos que tais formatos de representação tinham sob o povo do medievo.
A apropriação de símbolos pagãos para compor o processo de caracterização do Diabo unida à atribuição de características animais e humanas está inteiramente ligada aos significados propostos pelo maniqueísmo cristão, onde Deus e Satã disputam entre si o poder pelo mundo. Cada atributo que compõe o corpo do Diabo relaciona-se com antigas simbolizações de poder e malevolência, centralizadas em uma única entidade.
O fascínio pelos mistérios que cercam a própria figura de Satã motivou a existência desse artigo. O medo inerente no qual o homem da Idade Média estava inserido, unido ao sentimento de observação constante que as pessoas sentiam para com as entidades da Cristandade, fazia com que todos se concentrassem em uma rédea criada pela religião e usada como forma de expiação caso alguém pecasse ou desobedecesse a vontade divina.
As “artes proibidas”, forma como eram referidas atividades artesanais relacionadas à fabricação de armas e armaduras, são creditadas como um conjunto de ensinamento dos anjos caídos, asseclas de Satã, aos homens. A obra que será usada como referência é o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, onde é mostrada a forma como a Cristandade refere-se ao Diabo e aos demônios como entidades dispostas a tentar contra a humanidade.
Por fim, mostraremos exemplos de representações ambíguas do Diabo, tanto como tentador e astuto, como também um ser aterrorizante disposto a perseguir pessoas sob diversas formas repugnantes e usando dos mais variados artifícios para torturar, manipular e enganar as pessoas mais ingênuas, ou até mesmo persuadir aqueles que nada sentiam-se agradados com a fé cristã.

APONTAMENTOS BREVES SOBRE A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO DIABO NA LITERATURA MEDIEVAL

O Diabo representado no Codex Gigas, manuscrito medieval escrito no início do século XIII na Boêmia, na atual República Checa.

É sempre válido ressaltar o papel ambíguo que o Diabo detinha como uma entidade sedutora, que atraía os seres humanos para o caminho do pecado, assim como um ser perseguidor, motivo de uma enorme angústia entre os homens medievais. Jacques Le Goff aponta o maniqueísmo como o principal fator motivador para o medo que a população nutria por Satã, visto que “o maniqueísmo professava a crença em dois deuses, um do bem e outro do mal, criador e senhor deste mundo.” 1
A partir do momento em que se discute acerca do simbolismo por trás da figura de Satã, é impossível não falar sobre sua representação física. Observando com atenção, percebe-se uma grande influência das mitologias grega e celta, associando às figuras respectivas dos deuses Pã e Cernunno. Torna-se nítida tal associação a partir da atribuição dos chifres e das patas de bode, assim como a apropriação de valores pagãos em comum ao demoníaco. No entanto, é preciso compreender o significado de cada componente da imagem satânica.
A caracterização repugnante atribuída ao Diabo, como um ser dotado de características antropozoomórficas, é repleta de simbolismos relacionados ao poder que Satã detinha. Os chifres (primeira característica que lhe foi atribuída) simbolizavam a antiga conotação de poder, assim como as asas de morcego e os cabelos eriçados referiam-se, respectivamente, às cavernas e chamas do Inferno. Outra conotação relacionada aos fios capilares refere-se à forma como alguns guerreiros bárbaros intimidavam seus inimigos.2
Baseando-se nessas informações, pode-se constatar a verdadeira necessidade da ligação entre a caracterização física e o simbolismo existente na figura do Diabo como uma maneira de retratar um ser tão poderoso quanto o Bom Deus, uma entidade que também detinha o controle sobre as ações da humanidade, exclusivamente os atos maus. Sobre isso, Le Goff afirma que “o grande erro do maniqueísmo era pôr Deus e Satã em pé de igualdade”. Essa grande cisão será amplamente difundida através dos escritos e da arte no geral.
A hagiografia foi um fator importante para a difusão da representação do Diabo tanto como um ser tentador, como também uma figura aterrorizante e perseguidora. Santo Antônio é tido como a vítima mais conhecida das intervenções satânicas, como é mostrada na sua biografia escrita por Atanásio. Em tais escritos, pode-se observar o papel de Satã como um agente das forças malignas e dos hábitos mundanos, sendo assim um constante inimigo dos santos durante suas jornadas litúrgicas.
A síntese dos relatos de aparições do Diabo aos santos se encontra na Legenda Aurea, o conhecido conjunto de hagiografias, assim como narrativas de andarilhos que se sentiam atraídos por uma jovem e bonita mulher durante suas peregrinações, assim como Satã também poderia assumir a forma de outro peregrino que estivesse disposto a oferecer algo de maior valor aos mais ingênuos. Embasando-se em tal afirmativa, podemos constatar a relação entre o Diabo e os locais considerados inóspitos (desertos, vales, florestas, etc).
A figura do Diabo como representante do conhecimento oculto e desconhecido pelo homem torna-se evidente no Elucidarium de Honorius Augustodunensis, referido pelo autor como Sathael. Partindo da ideia de que Sathael seria o primeiro anjo caído, pode-se concluir que o mesmo seria o princípio do ímpio e do vicioso, e seus lacaios seriam os responsáveis por corromper as mulheres humanas além de ensinar a sua prole as chamadas “artes proibidas”, como a confecção de espadas e armaduras.3
Sobre Satã e seus asseclas é escrita toda uma literatura que trata desde sobre os seus poderes sobrenaturais, a hierarquia infernal e até mesmo sobre a geografia do Inferno.4 A poesia se mostrara uma força motriz quanto a representação do anjo caído, fato que exercerá uma enorme influência sobre o poeta inglês John Milton na criação de “O Paraíso Perdido”, durante o século XVII. Quanto a demonologia desenvolvida durante a Idade Média, foi uma das grandes responsáveis pela inquietação do homem medieval.
Considerando o Elucidarium como um instrumento de catequização em um período onde o Diabo residia no inconsciente coletivo, não é necessário dizer que o livro possui trechos explicando a forma como Satã e os demônios perturbam os cristãos. Um grande exemplo dessa explicação é o diálogo entre o Mestre e seu Discípulo, onde o primeiro explica a queda do Diabo e, consequentemente, a origem do mal. É evidenciada por Honorius também a companhia constante dos demônios em conjunto aos homens e aos anjos, observando os vícios humanos e as impurezas por eles cometidas.
Como última observação, vale ressaltar a importância do maniqueísmo para que o medo que as pessoas nutriam pelo Diabo dominasse o inconsciente coletivo do medievo, e a literatura, sendo um massivo instrumento de difusão, contribuiu para que a figura misteriosa do poderoso personagem se transformasse em um símbolo do mal e da rebeldia, a representação da tentação e do ímpio.

NOTAS:

1 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff ; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005, p. 154
2 RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell ; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984, p. 238
3 I Enoch 8 : 1; “Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo seus olhos para os metais e as maneiras de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos o uso de cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e artes de tintas.” In: TRICCA, Maria Helena de Oliveira Tricca. Apócrifos III – Os proscritos da Bíblia. São Paulo: Mercuryo, 1996. P. 210
4 CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval / Jacques Le Goff; tradução José Rivair de Macedo. – Bauru, SP : Edusc, 2005.
RUSSELL, Jeffrey Burton. Lucifer: el diablo em la Edad Media / Jeffrey Burton Russell; traducción Rufo G. Salcedo. – Barcelona, Espanha : Editorial Laertes, 1984.
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Honorius Augustodunensis e o Elucidarium. Um estudo sobre a reforma, o diabo e o fim dos tempos entre o fim do século XI e o começo do XII./ João Rafael Chió Serra Carvalho ; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira- Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

*Vinicius Maciel Braga, 18, é graduando do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de interesse é História Medieval, com ênfase no desenvolvimento do Oculto e nas relações entre o sagrado e o profano.








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