sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Manaus na década de 1950

Praça Oswaldo Cruz. Cartão postal da década de 1950. Ed. A Favorita.

No alvorecer da década de 1950, Manaus era uma cidade que ainda sentia os efeitos da desestruturação de sua economia, que por décadas esteve quase que exclusivamente alicerçada na exportação da borracha. Alguns anos antes, na década de 1940, houve, por um breve período, uma leve recuperação influenciada pela Segunda Guerra Mundial.

Entre 1942 e 1945, o Amazonas se viu inserido nesse conflito. Em 1941, o Japão atacou bases Aliadas americanas e britânicas no Pacífico, dominando logo depois as colônias asiáticas produtoras de borracha. Sem acesso a essa matéria-prima, útil à indústria bélica e manufatureira, os Aliados voltaram suas atenções para o Amazonas. Em 1942, navios brasileiros foram torpedeados pelos alemães, o que fez o país declarar guerra ao Eixo.

O Estado, através de acordos firmados entre o Brasil e os Aliados, entrou no conflito como fornecedor de borracha. Mais uma vez ocorreria um surto de imigração nordestina para a Amazônia. Através dos “Acordos de Washington”, ficou estabelecido que os Estados Unidos investiriam no financiamento da produção de borracha na Amazônia, enquanto que o governo brasileiro se encarregaria de recrutar o maior contingente possível de trabalhadores. Estima-se que, entre 1942 e 1945, o governo conseguiu enviar do Nordeste, que passava por uma terrível seca, cerca de 60.000 retirantes para a região Norte. O sistema de trabalho dos seringueiros continuava sendo o mesmo do início do século: em situação de semiescravidão, preso ao aviamento como devedor de um sistema cíclico.

O governo norte-americano ficou de pagar 100$ por trabalhador instalado nos seringais. Manaus se tornou uma das subsedes da Rubber Development Company, órgão criado para administrar os serviços no Estado. A exportação da borracha, a circulação monetária, a construção de um aeroporto, os investimentos na capital e a especulação imobiliária criaram um momento de recuperação e alimentaram a esperança de dirigentes e empresários locais.

Esse pequeno surto de desenvolvimento teve seu fim paralelo ao término da Guerra. O antigo mercado asiático estava novamente aberto, novas técnicas aperfeiçoaram o uso de borracha sintética. Já não existia mais a necessidade da borracha amazônica. O conflito acabara e, com ele

as esperanças de tirar a região do abismo sem fim do subdesenvolvimento. Os planos de desenvolvimento concebidos nos “Acordos” foram abandonados, as verbas indenizatórias dos trabalhadores foram descaminhadas, as estruturas do atraso não foram rompidas e tudo voltou como dantes. As atenções do governo federal agora são para as regiões Sul-Sudeste, por estas apresentarem mais condições de dinamismo econômico. A Amazônia vai ser mesmo esquecida do resto da nação por muito tempo”.1

A Amazônia se viu novamente abandonada. O capital estrangeiro, depois de mais de 40 décadas conseguindo alguns resultados satisfatórios, foi direcionado para mercados mais estáveis. Em socorro à região, a nova Constituição de 1946, no artigo 199, de autoria do deputado federal Leopoldo Péres, instituiu que a União destinaria 3% de sua arrecadação para financiar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Em 1953 foi criada a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), que visava o desenvolvimento da agricultura, da extração mineral e da pecuária. Por falta de estrutura, principalmente de estradas, o plano não vingou. A construção da estrada Belém-Brasília, em 1958, atraiu o capital de grandes indústrias que passaram a funcionar no Pará.

Manaus, a antiga ‘capital do boom borracha’, chega à década de 1950 em um ritmo mais lento, provinciano pode-se dizer. As arrecadações estadual e municipal ficavam muito abaixo do esperado, sendo insuficientes para sanar dívidas, para o pagamento do funcionalismo público e para abastecer hospitais e escolas2. Dia sim, dia não, ocorriam racionamentos de energia elétrica. Em 1957 os bondes elétricos foram desativados, sendo substituídos por ônibus de madeira construídos de diferentes formas por seus proprietários. Na orla do Rio Negro, a Cidade Flutuante, uma grande favela fluvial destruída em 1967, se expandia.

Mesmo com todos esses problemas, a capital era o local para onde convergiam pessoas do interior, esperançosas em mudar de vida ou fugidas das constantes enchentes, e retirantes nordestinos. Sobre o período e o aumento populacional, Neper Antony, advogado e jornalista, escreveu o seguinte:

Manaus é uma cidade em crescimento permanente. Principalmente nestes últimos anos, coincidindo com a intensificação do êxodo das populações nordestinas fugindo ao flagélo da sêca, seus quadrantes têm aumentado à olhos visto, empurrando para bem longe as divisas com a matéria. A existência dessa população flutuante, ou em fase de agregação definitiva ao meio, força a conquista de novas áreas habitáveis e, por via de consequência, o aparecimento de novos bairros3.

Uma pessoa nascida em 1900 ficaria impressionada com a quantidade de bairros surgidos, com a expansão dos limites da cidade, até então dividida em Centro, Aparecida, Cachoeirinha, Educandos, Colônia Oliveira Machado, São Raimundo e Adrianópolis. Na década de 1950 surgiram os seguintes:

Em 1950, um contingente chegado dos interiores amazônicos e do Nordeste brasileiro, ultrapassou o bairro dos Educandos criando São Lázaro e Crespo. No ano seguinte, nas imediações do Igarapé do Pancada, um lugar conhecido por Emboca é desmembrado do bairro dos Educandos e oficializado como bairro de Santa Luzia. Ao Norte do bairro de São Francisco, também em 1951, inaugura-se Petrópolis, e na outra frente de Manaus, limites do bairro de São Raimundo, a constante movimentação dos recém-chegados empurrou as fronteiras da cidade, resultando na criação de mais dois bairros: Santo Antonio e São Jorge4.

Em maio de 1953, a cheia do Rio Negro, que atingiu a marca de 29,69 metros, devastou as cidades do interior, sendo um dos fatores que concorreu para a vinda de pessoas para Manaus, que também viu os bairros da orla serem alagados. Apesar de todas as dificuldades, a teia de relações sociais era mais forte. Manaus conservava-se como uma cidade tradicional. As relações sociais eram mais diretas, mais vívidas, com diferentes classes sociais compartilhando as mesmas práticas e mantendo contato em um ritmo mais lento.

Os balneários, públicos e particulares, eram o ponto de encontro, nos finais de semana, das famílias de classe média baixa e alta, amenizando o calor enfrentado nas semanas de trabalho. Clubes, célebres clubes, Atlético Rio Negro, Ideal, Acapulco, Sheik, Olímpico, Libermorro e tantos outros espalhados no Centro e nos subúrbios, recebiam jovens, boêmios e casais para noites dançantes, festas de 15 anos e carnavais. Os cinemas, Odeon, Polytheama, Guarany, Eden, Ideal, Rex, Vitória, pequenos projetores instalados em igrejas, ofereciam um espetáculo diferenciado diariamente por um preço popular.

Com uma população estimada em 139.620 habitantes5, não era difícil uma família do Centro conhecer uma do São Raimundo, uma do São Raimundo conhecer uma do Educandos e vice-versa. Nas tabernas e mercearias, em sua maioria de madeira, algumas já de alvenaria, os produtos eram comercializados a granel e 'fiados', numa relação de sobrevivência entre comércio e clientela.

As grandes Igrejas como a Matriz, Aparecida e São Sebastião, as paróquias de bairro e as Igrejas Protestantes que iam surgindo serviam de núcleos aglutinadores de famílias, que mantinham contato entre si. Era comum receber a visita de padres, freiras e pastores para almoços no final de semana. As ruas, os becos e as travessas se tornavam uma extensão da casa, servindo de palco, com as cadeiras postas na calçada ou mesmo do contato pelas janelas, para conversas informais, transmissão dos fuxicos, burburinhos, conto de causos e estórias. As praças, de São Sebastião, da Polícia, do Congresso, D. Pedro II, dos Remédios, da Matriz, eram locais de passagem e de encontros.

A cidade era “pacata”. Uso aspas pois não se deve cair na ilusão de que no passado não existiam crimes, apesar destes serem mais leves, como as invasões de casas perpetradas pelos ventanistas, os arrombadores de outros tempos. Dificilmente a tranquilidade era quebrada, mas jamais se esqueceu do bárbaro Caso Delmo6, ocorrido em 1952.

A elite tentava manter algum prestígio do passado, reunindo-se entorno da Associação Comercial, dos clubes, agremiações e repartições existentes. Eram comerciantes, altos funcionários do governo e da prefeitura, políticos, médicos, advogados e juízes. Ainda era uma cidade de pequenos burgueses, como aquela da década anterior descrita por Jefferson Péres7. As classes mais baixas viviam do trabalho nas fábricas de beneficiamento (de castanha, borracha e outros produtos), nas olarias, no curro, nas serrarias e marcenarias; de trabalhos informais como a lavagem de roupas, a venda de doces, de garapa e de cascalho e, em alguns casos, em pequenos estabelecimentos comerciais como quitandas e botecos.

Em 1954 era fundado, na Praça Heliodoro Balbi (Praça da Polícia), o Clube da Madrugada, movimento regionalista de renovação cultural e artística. A geração de intelectuais manauaras daquele período foi uma das mais profícuas. Nas Ciências Humanas e Sociais destacavam-se Mário Ypiranga Monteiro, Pe. Nonato, Geraldo Pinheiro, Agnello Bittencourt, André Vidal de Araújo, Djalma Batista, Nunes Pereira e Samuel Benchimol. Pe. L. Ruas, Farias de Carvalho, Luís Bacellar e Arthur Engrácio eram nomes fortes da Literatura. No campo do Direito se sobressaiam Octaviano Mello e Aderson de Menezes. Nas artes plásticas, Branco Silva, Anísio Mello e Moacir Andrade.

Tanto os mais ricos quanto os menos abastados estudavam em escolas públicas. As principais referências eram o Colégio Estadual e o Instituto de Educação do Amazonas. Também existiam o Princesa Isabel, Arthur Bernardes (atual Ribeiro da Cunha), Saldanha Marinho, Carvalho Leal, Marechal Hermes, Barão do Rio Branco, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Nilo Peçanha e tantos outros grupos escolares. Dom Bosco, Santa Dorotéia e Patronato Santa Terezinha eram (ainda são) escolas particulares. Os manauaras podiam se informar lendo o Jornal do Comércio, A Gazeta, o Diário da Tarde, o Correio de Notícias e A Crítica. Os que tivessem rádio em casa poderiam sintonizá-los na Rádio Baré, na Rádio Difusora e na Rádio Rio Mar.

Apesar de ter sido uma década de instabilidade econômica, foram realizadas grandes obras públicas e particulares, das quais elenco o Hotel Amazonas (1951), a Ponte Presidente Dutra (1951), ligando os bairros de São Raimundo e Glória à Avenida Álvaro Maia, o Pavilhão São Jorge (1951), na Praça da Polícia, o Cine Odeon (reformulado em 1953), o IAPETEC (1954), na Praça D. Pedro II, a Refinaria de Petróleo Isaac Sabbá (1956-57), a Ponte Juscelino Kubitschek (1952-59), ligando o bairro de Santa Luzia ao bairro Cachoeirinha, o Conjunto Kubitschek (1958), no bairro da Cachoeirinha, o Lord Hotel (1959-63), e as igrejas de Santa Rita de Cássia (1950), São Raimundo (1953), Santa Luzia (1953) e Aparecida (1957).

Entre 1950 e 1959 a cidade teve os seguintes prefeitos: Raymundo Chaves Ribeiro (1947-1951); Walter Scott da Silva Rayol (1951); Edson Epaminondas de Mello (1951-1952); Álvaro Symphoronio Bandeira de Mello (1952); Jessé de Moura Pinto (1952); Oscar da Costa Rayol (1952-1953); Aluizio Marques Brasil (1953-1955); Raymundo Coqueiro Mendes (1955); Walter Scott da Silva Rayol (1955); Stenio Neves (1955-1956); Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo (1956-1958); Eurythis Pinto de Souza (1958); Ismael Benigno (1958-1959); Eurythis Pinto de Souza (1959); Lóris Valdetaro Cordovil (1959); Walter Scott da Silva Rayol (1959); e Olavo das Neves de Oliveira Melo (1959-1960)8.


NOTAS:

1 FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. 25/07/2018. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.

2 MENSAGENS, Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1950-1959. Estado e Prefeitura, todos os anos, tinham arrecadações baixas e despesas bastante vultosas, deixando grandes déficits orçamentários. A receita prevista para o Estado no ano de 1953, por exemplo, ficava em 93.274.100,00 cruzeiros, enquanto as despesas atingiam a cifra de 163.076.655,20 cruzeiros, deixando, para aquele ano, um déficit orçamentário de 69.802.555,20 cruzeiros. Quanto à Prefeitura, esta arrecadou no ano de 1950 12.241.773,90 cruzeiros, tendo por despesas 24.873.708,10 cruzeiros, ficando com um déficit orçamentário de 12.631.934,20 cruzeiros.

3 ANTONY, Neper. Em torno da mensagem. Jornal do Comércio, 19/04/1959.

4 Cidade de Manaus. Revista Codeama. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, n. 13, jun. 1966, p. 04. In: SOUZA, Leno Barata. Cidade Flutuante: Uma Manaus sobre as águas. Urbana - Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade, v. 8, p. 115-146, 2016.

5 IBGE. População nos Censos Demográficos, segundo os municípios das capitais – 1872/2010.

6 O assassinato com requintes de crueldade do estudante Delmo Campelo Pereira parou a cidade, sendo noticiado nas rádios e revistas da época, como O Cruzeiro (RJ), que dedicou duas matérias sobre o crime. Todo esse caos foi consequência de uma série de crimes cometidos por Delmo em 31 de janeiro de 1952. Para maiores informações ver DUARTE, Durango Martins. Caso Delmo: o crime mais famoso de Manaus. 1ª. ed. Manaus: Mídia Ponto Comm, 2011.
7 PÉRES, Jefferson. Evocação de Manaus: Como Vi ou Sonhei. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1984, p. 21-22.

8 DINIZ, Antonio; PESSOA, Simão. História da Câmara Municipal de Manaus. Manaus: Edições Gens da Selva, 2013, p. 227.


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Página Manaus em Cores

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Os antigos do meu bairro

Old People, pintura de George Siaba. 2011.

Ele já não estava mais lá, sentado e lendo o jornal, nem ela descansando em sua rede. Ninguém mais sentiu o aroma que exalava de seus frangos assados aos sábados e domingos, ou dos pastéis fritos na hora nos dias de semana. A caminhada diária com vidros nas costas já tinha cessado. Histórias facetas não foram mais inventadas, contadas ou aumentadas. Primeiro foi a Dona Maria Raimunda, minha bisavó, com sua bengala improvisada, depois o ‘Seu Amazonas’, senhor de poucas palavras. O tempo, o tempo implacável, anos depois passou para o seu Aristolino, o ‘Bilico’, vidraceiro; e para a dona Néia, companheira do seu Amazonas. Meses depois era a vez do ‘Seu João’, meu pai e avô. Cinco personagens, cinco diferentes trajetórias, algo em comum: Eram os antigos do bairro, do bairro São Lázaro, na zona Sul de Manaus, aqueles que o viram surgir em meio ao improviso gestado pela necessidade de moradia entre as décadas de 1950 e 1960.

As construções também apresentam as marcas do tempo. A casa da D. Maria Raimunda, já com cinco décadas de existência, está com alguns azulejos rachados e, dessas fendas imperfeitas, crescem plantas diversas; com as grades desgastadas, perdendo a cor azul, mas continua com os jardins sempre floridos, com diferentes animais, borboletas, joaninhas, pássaros de diferentes espécies e, vez ou outra, uma iguana. Do lado esquerdo, desde a década de 1970, continua de pé o antigo muro de concreto que demarcava o limite da rua Nova, no bairro de São Lázaro. No pátio ainda brincam crianças, suas bisnetas, as quais a maioria não conheceu. Na sala, renovada, uma máquina de costura singer de 1960, hoje um objeto de decoração. Lembro de suas palavras “mágicas” para afastar os temporais: “levanta, levanta, levanta. Espalha, espalha”; ou da vez que colocou, na testa da única bisneta que conheceu, um pedaço de pano vermelho umedecido para que esta parasse de soluçar.

A alguns passos da casa de D. Maria Raimunda moravam D. Néia e o Seu Amazonas. Tenho gravado em minhas memórias o bom humor de Dona Néia, marcado por sua risada contagiante. Era muito amiga de minha bisavó, visitando-a inúmeras vezes para colocar os assuntos em dia. Quando conheci o Seu Amazonas ele já estava debilitado pelo Mal de Parkinson. Quase não falava, mas esboçava reações como risos quando ouvia ou via algo engraçado. Foi colega de trabalho do marido de dona Raimunda, Zacarias Rodrigues Vieira, na COMARA (Comissão de Aeroportos da Região Amazônica).

Ainda é estranho passar na Travessa Maria Andrade (antiga São Vicente) e não dar bom dia ou boa tarde para o seu Aristolino Pereira, Bilico para os mais conhecidos, amigo de longa data do meu avô, sempre sentado ao lado de sua esposa em uma cadeira de embalo. Foi um dos primeiros moradores do bairro, um dos guardiões da Paróquia de São Lázaro, a qual sempre esteve de prontidão para ajudar quando necessário, seja para fazer seus vitrais, para atuar como catequista, coordenador do movimento do terço dos homens e ser agente da Pastoral do Batismo. Ele se interessou por meu projeto de escrever a História do bairro, marcamos um dia para eu entrevistá-lo, mas esse dia nunca chegava por causa de imprevistos acadêmicos. Quando tive a chance, já tinha chegado a hora desse entusiasta da História do Barro Vermelho partir, sem deixar que eu o visse uma última vez.

João Augusto de Carvalho, meu pai e avô. Foi comerciante, capitão e funcionário da Alfândega de Manaus. Terminou seus dias sem aceitar a aposentadoria, sempre fazendo algo para se manter na ativa. Vendeu por alguns anos pastéis e frangos assados na frente de casa, da antiga casa da sogra Maria Raimunda, na rua Nova. Partiu em um 14 de dezembro de 2016, deixando aquele final de ano marcado na família. Conversas não foram muitas, mas as que existiram estão bem guardadas, sobre as raízes familiares em Óbidos, no Pará, sobre os bisavós Alberto de Carvalho e Zeneide Buenano que não conheci, sobre os primeiros empregos e o dia em que chegou em Manaus. Materialmente restam algumas fotos, uma rara de 1943 quando tinha apenas um ano, com seus pais; ferramentas como um esquadro alemão do final da década de 1960, uma balança manual inglesa da marca Hughes, da mesma época, uma plaina de madeira; e uma pintura do dia do casamento, em 1970. Ficaram marcados os momentos em que chegava em casa trazendo pirarucus, tambaquis, tracajás, pacas, porcos do mato e outros animais de sabor inigualável.

Ambos viram o bairro nascer e crescer. Andaram por caminhos tortuosos, de barro, mas puderam ver o asfalto e a energia chegar; viram e utilizaram as carroças utilizadas no transporte de madeira e palha, assim como os ônibus que mais tarde surgiram. Eles partiram sem avisar. Atravessaram o Rio Negro deixando fragmentos de épocas diversas em quem os pode escutar. Fui um dos atingidos por esses estilhaços temporais, brevemente registrados nesse texto.


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Fine Art America

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Resenha: Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro (1984)

Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro. Manaus, 1984.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1984.

Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas é um trabalho do historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) publicado em 1984, sendo uma de suas produções voltadas para a história social do Amazonas, assim como O Aguadeiro (1947) e O Regatão (1958). Diferente de seus trabalhos anteriores, Mário Ypiranga enfrentou a dificuldade da escassez de fontes, de fontes que levassem pelo menos a uma origem remota da introdução desses veículos no Amazonas e em outros territórios, a qual atribuiu à "[...] característica singular da própria geografia regional, de vez que as estradas batidas são irrisórias" (MONTEIRO, 1984, p. 17). No entanto, ele afirma que essa característica singular "[...] condicionou o veículo ao estreito âmbito das sedes municipais e a um regime rural pobre de referências" (MONTEIRO, 1984, p. 17).

É nos interiores, nos interiores mais ou menos povoados na época em que o autor escrevia (apesar de ter sido publicado em 1984, as pesquisas de Mário Ypiranga ocorreram em diferentes momentos entre as décadas de 1940 e 1950), que foram encontrados registros materiais vívidos, ainda que de forma modesta, e alguns na capital. O autor estuda esses transportes em Manaus, Janauari, Coari, Manicoré, Tefé, Itacoatiara, Rondônia e Rio Branco. São 11 pequenos capítulos no total. Seus informantes e colaboradores foram os

"[...] senhores prefeitos capitão Alexandre Montoril, de Quari; Lourival Santana, de Manicoré; Francisco Antônio de Lima, antigo morador em Tefé; dr. Otaviano Soriano de Melo, Juiz de Direito em Tefé; Lúcio de Araújo Lima, os três últimos já falecidos; sr. Sebastião Lima, padre dom Atanásio de Aguiar e outros que porventura haja esquecido e que serão lembrados no texto" (MONTEIRO, 1984, p. 15).

Aos poucos documentos escritos soma, ainda que não seja um completo apreciador, a história oral. Sobre os dados oferecidos por um informante, diz o seguinte: "Todavia não aceito a lição histórica e por motivos também de natureza histórica, embora não me seja possível, no momento, apresentar documentos" (MONTEIRO, 1984, p. 83). Em alguns momentos recorre às memórias de sua infância, sobre os carros e carroças que viu em Manaus, no Centro ou na Aparecida, seu bairro de nascimento, e aos relatos de seu pai. 

A metodologia empregada na produção de Carros e Carroças de Bois pode ser caracterizada como uma história antropológica. Mário Ypiranga foi a campo, em todas as cidades e territórios em que soube da utilização desses veículos. Não fez simples descrições. Analisou os tipos de madeiras utilizados na confecção das carroças e carros, os bois empregados (de raça, importados ou naturais), seus nomes pitorescos, os preços do transporte, das carroças e dos bois, e os comandos utilizados pelos carroceiros para comandar as ações dos animais. Ainda mais detalhadas são as descrições das peças, os canzis, as cangas, os tampais, as brochas e as rodas. Da população das cidades e territórios por onde passou apreendeu um rico folclore sobre os carros e carroças de bois, com cantos e ditos populares. Em Rio Branco (Território Federal de Roraima, 1962) recolheu a seguinte letra de uma toada:

"Meu carro de madrugada
vai chegando perto de casa...
Esquenta o eixo para o patrão acordar
com o canto do boi estimado...
Desperta meu patrão,
que eu vou chegando em casa..." (MONTEIRO, 1984, p. 82)

Por que escrever sobre carros e carroças de bois? Mário Ypiranga enfrentou esse questionamento enquanto fazia suas pesquisas em Rondônia. Um funcionário da prefeitura, de forma irônica, surpreendeu-se ao saber da existência de um "doutor em carrologia bovina" (MONTEIRO, 1984, p. 53). Apesar de toda a fragmentação, das origens incertas, o autor conseguiu mostrar como os carros e carroças de bois formavam um universo cultural amplo e diversificado. Um carro de Itacoatiara não era igual ao de Coari, nem o de Manaus ao de Rio Branco. Em suas palavras, "o carro de bois conserva, portanto, um traço de união, que diríamos mágica, entre o homem e a terra" (MONTEIRO, 1984, p. 14).

Mário Ypiranga, à maneira do ensaísta, historiador e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), deu importância à cultura, à cultura material, aos elementos dispersos no espaço mas com significados importantes para a compreensão do homem amazônico, do meio em que vive, do espaço que criou, que se sujeitou, ao longo dos séculos. É na cultura e pela cultura que se compreende o sentido de sua obra.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Anúncios de escravos em jornais da Província do Amazonas (1857-1880)

Hoje, 10 de julho, comemora-se a abolição da escravidão no Amazonas, decretada em 10 de julho de 1884 pelo então presidente da Província do Amazonas Theodureto Carlos de Faria Souto. O movimento pela libertação dos escravos da Província e o fim dessa prática já vinha sendo desenvolvido por sociedades abolicionistas de senhoras, pela Maçonaria, por estudantes e intelectuais da região. Em 1884 surgiu o jornal O Abolicionista do Amazonas, gerido por senhoras que propagavam os ideais de libertação uma ou mais vezes na semana através desse periódico. No presente texto apresento alguns anúncios de venda e de recompensas para a captura de escravos publicados em jornais da Província do Amazonas entre 1857 e 1880.

José Piranga, escravo negro e oficial de calafate, humilde e com 32 anos, fugiu do domínio de José Joaquim de França, no dia 09 de abril de 1857, levando consigo seu filho de nome Cipriano, com 13 anos de idade. Percebam como funcionava a circulação de escravos: José Piranga foi escravo do Capitão Thomaz, de Villa Bella, sendo posteriormente comprado por José Coelho do Itaituba, que o vendeu para José Joaquim de França, o anunciante. O proprietário oferecia uma gratificação a quem os capturasse, assim como se manifestaria contra os que lhes dessem abrigo. Serpa (Itacoatiara), 10/04/1857.

Mesquita & Irmãos, grandes comerciantes da época, estabelecidos na antiga rua do Imperador (Marechal Deodoro), anunciam para aluguel um escravo que entendia de cozinha. O aluguel de escravos garantia uma boa renda aos proprietários. Manaus, 1866.

Com um grande título escrito 'Gratifica-se', Amorim & Irmãos, propriedade do Comendador Alexandre de Paula de Brito Amorim (1831-1881), oferecia uma gratificação a quem capturasse o escravo Bernardino, 'molato folo', que pertenceu ao capitão Antonio Lebo de Macedo, que o vendeu a João José Ferreira, que depois o vendeu a Custódio Pires Garcia, de quem foi comprado pelos anunciantes. Assim como Mesquita & Irmãos, manifestaria-se contra quem desse abrigo ao fugitivo. Manaus, 18/12/1867.

Alguns anúncios eram extensos, nos oferecendo mais detalhes sobre os proprietários e o escravo fugido. Antonio José Lopes Braga, procurador de seu irmão Luiz Antonio Lopes Braga, este herdeiro de Hermenegildo Lopes Braga, procurava um antigo escravo de Hermenegildo, em fuga desde 1868, cujo nome era Tristão, de mais ou menos 25 anos de idade, de cor "mulata atapuiado", de cabelos meio crespos, altura normal. Detalhes, muitos detalhes. Com essas descrições facilitava-se o reconhecimento e a captura. Sabia-se que estava em Silves, no interior. Caso fosse capturado, poderia ser entregue em três endereços: Em Manaus; no Pará, na firma Francisco Joaquim Pereira & Cia; e na Ilha das Araras, no rio Madeira, ao Capitão Antonio Lopes Braga. As despesas feitas durante a captura e a viagem seriam pagas pelo anunciante. O mesmo afirmava que não seria aplicado no escravo qualquer forma de castigo. Sobre a recompensa, esta ficaria em cem mil réis. Da mesma forma que outros anunciantes, manifestaria-se contra os que lhe dessem abrigo. Manaus, 31/08/1870.

Tratados como mercadorias, os escravos, importados ou já nascidos nessa condição, iam e viam, utilizados em casas comerciais, em afazeres domésticos e serviços públicos. Nesse anúncio a firma Debusine & Levy, estabelecida na rua Brasileira (Avenida Sete de Setembro), informava necessitar de um escravo. Quem tivesse algum disponível para a venda deveria levá-lo até a sede da mesma. Manaus, 29/05/1880. 


FONTES (PERIÓDICOS):

Estrella do Amazonas, 10/04/1857.
Amazonas, 1866.
Jornal do Rio Negro, 18/12/1867.
Amazonas, 31/08/1870.
Amazonas, 29/05/1880.








quarta-feira, 13 de junho de 2018

Ao Pobre Diabo


Hoje, 13 de junho, para os católicos, é dia de Santo Antônio, Santo Antônio de Pádua ou Santo Antônio de Lisboa. O orago de origem portuguesa, a lembrar as raízes lusitanas das crenças brasileiras, muito mais que santo casamenteiro, atribuição pela qual é mais conhecido, é também protetor das mulheres, dos pobres e padroeiro dos objetos perdidos.

Não pretendo falar sobre o santo, escrever uma hagiografia. Me interessa, na realidade, uma construção relacionada ao culto desse santo popular: A Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, localizada na rua Borba, bairro Cachoeirinha, zona Sul de Manaus. O nome 'Pobre Diabo' ao lado de 'Santo Antônio' é estranho a alguns, geralmente aos que anseiam um catolicismo brasileiro oficial, romanizado. Analisarei as origens do termo 'Pobre Diabo', que confunde-se com a construção da capela.

O historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro, no livro Roteiro Histórico de Manaus, afirma que essa nomenclatura tem origem popular. Um comerciante português de nome Antônio José da Costa, dono de um estabelecimento na rua da Instalação, mandou fazer uma tabuleta com a figura de um pobre vestindo trapos, com a legenda 'Ao Pobre Diabo', uma referência irreverente ao comerciante, que não vendia fiado pois era um pobre Diabo.

Em outra versão, que consta em uma matéria do Diário Oficial do Estado publicada em 11 de junho de 1927, recuperada pelo pesquisador Durango Duarte no livro Manaus: entre o passado e o presente, Antônio José da Costa era sócio de José Joaquim de Souza Júnior. O português, todos os dias ao fechar o comércio, dizia: "Meu Santo Antônio, protegei este pobre diabo". Desfeita a sociedade em 1878, Antônio abriu, na mesma rua, um estabelecimento com o nome O Pobre Diabo. Encontrei, em edição do jornal A Província do Amazonas, de 26 de fevereiro de 1888, um estabelecimento com o nome 'Pobre Diabo', localizado na rua da Instalação (1).

Ainda de acordo com essa matéria, Antônio José da Costa mudou-se da rua da Instalação para o bairro da Cachoeirinha, onde adquiriu um terreno na extinta Praça Floriano Peixoto, local onde foi erguida a capela. De acordo com Mário Ypiranga, coube a mulher de Antônio, Cordolina Rosa de Viterbo, financiar a construção da capela, dedicada a Santo Antônio, santo de origem portuguesa, a mesma de seu falecido marido. Ao santo uniu-se o termo Pobre Diabo, talvez por lembrança dos dizeres diários do comerciante ou pelo nome de seu antigo estabelecimento. Ao que tudo indica, a construção data de 1897, conforme matéria do Jornal do Amazonas recuperada por Mário Ypiranga: 

"A muito conhecida e laboriosa Sra. D. Cordolina Rosa de Viterbo tendo feito erigir à sua custa no bairro da Cachoeirinha, Praça Floriano Peixoto, desta capital, uma pequena e elegante capela, sob a invocação do glorioso Santo Antônio, estava disposta a mandar benzê-la no dia 15 de agosto deste ano, a fim de mais realçar as festas desta data memorável para o Estado do Pará, de onde é natural a referida senhora, atendendo, porém, a que os nossos irmãos brasileiros estão presentemente expondo a sua vida pela pátria, onde o fanatismo faz milhares de vidas (2), resolveu adiar a benção da capela para outro dia que será previamente anunciado" (3).

O nome Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo é contemporâneo à construção. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 29 de maio de 1910, informava-se que o serviço de bondes seria reforçado aos domingos, desde as 15:00 horas da tarde, com mais de um bonde e dois reboques, por ocasião da realização da "Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo" (4). 

Além do nome pitoresco, a capela também foi palco de alguns acontecimentos um tanto curiosos. Em 1907, Bibiano de Oliveira Costa, praticamente da Marinha Mercante, namorava a jovem Maria da Costa Carneiro, de 16 anos, na Capela do Pobre Diabo. A mãe da jovem, Felizarda da Costa Carneiro, sabendo do relacionamento e sentindo-se ofendida (possivelmente pela idade da filha e também pelo local onde ocorrera o encontro amoroso) denunciou Bibiano ao delegado do 2° Distrito, Elviro Dantas, que prendeu o jovem. Preso, Bibiano disse que pediria Maria da Costa Carneiro em casamento. O delegado determinou que a união fosse realizada em 12 de abril de 1907 (5). Santo Antônio, indiretamente, concretizou um enlace matrimonial, ainda que em circunstâncias pouco formais.

O nome Santo Antônio do Pobre Diabo é uma característica do catolicismo popular brasileiro, que foi se desenvolvendo à margem do poder institucionalizado, maleável e influenciando por elementos do meio em que se estabelece. Ao nome do santo lusitano uniu-se o termo 'Pobre Diabo', surgindo algo novo, único em nossa cidade, estranho aos mais conservadores mas acessível aos grupos populares e por eles já incorporado. Salve Grande Antônio, Salve Santo Antônio do Pobre Diabo.


NOTAS:


(1) A Província do Amazonas, 26/02/1888.

(2) O jornal se refere a Guerra de Canudos.

(3) Jornal do Amazonas, 12/08/1897. In: MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

(4) Jornal do Comércio, 29/05/1910.

(5) Jornal do Comércio, 12/04/1907.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


DUARTE, Durango. Manaus: entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.


CRÉDITO DAS IMAGENS:


Santo Antônio com o Menino Jesus. Pintura de Stephan Kessler. Commons.wikimedia.org

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, no bairro da Cachoeirinha. Manausagil.com

sexta-feira, 8 de junho de 2018

O novo fôlego das pesquisas em História Antiga do Departamento de História da UFAM


Ontem, 07/06, na Sessão 04: Literatura, Arte e História, da XII Semana de História da Universidade Federal do Amazonas, um trabalho chamou bastante a atenção dos ouvintes: Uma Reforma Espiritual no Egito Faraônico: Akhenaton na sua Consagração Divina e Humanizada, da graduanda Inara Kezia Gama Araújo, do 5° período.

Sou amigo de Inara desde quando ela entrou na graduação, em 2016. Acompanhei de perto toda sua evolução, seu entusiasmo pela História Antiga, com ênfase no Antigo Egito, seus primeiros escritos e, agora, a participação em uma sessão coordenada. A apresentação de seu trabalho, fruto de pesquisas para o PIBIC, deu novo fôlego às pesquisas em História Antiga do Departamento de História da UFAM, tão acostumado a outras áreas. O Departamento, aliás, teve 3 projetos aprovados nessa área, todos orientados pela Prof. Dra. Joana Campos Clímaco: As cartas de Arísteas e seu impacto no Judaísmo Helenístico; Uma reforma espiritual no Egito Faraônico: Akhenaton na sua consagração divina e humanizada; e A Antiguidade, o cinema e suas representações nos livros didáticos de História do 6° ano.

Confiram, abaixo, um resumo e a introdução do trabalho apresentado por Inara. Que ele sirva de inspiração para os outros graduandos, para que surjam novas pesquisas em História Antiga, sejam elas sobre o Oriente, Grécia, Roma e o Egito, bem como em outras áreas.


UMA REFORMA ESPIRITUAL NO EGITO FARAÔNICO: AKHENATON NA SUA CONSAGRAÇÃO DIVINA E HUMANIZADA

RESUMO

O período Amarniano - conhecido também como reforma espiritual - ocorreu em torno de 1352-1336 a. C. na 18° dinastia, contexto do novo império, reforma fundada pelo faraó Amen-hotep IV, posteriormente chamado Akhenaton. Em seu reinado, o faraó estabeleceu uma revolução espiritual e modificou o panteão egípcio, nomeando o deus Aton - o disco solar - como o único deus. Com o seu decreto, ocorreu uma revolta entre nobres e sacerdotes.

As características do período Amarniano é algo que chama atenção na descrição da realeza, pois além de Akhenaton consagrar-se como um ser divino em torno do deus Aton, o papel de um faraó humanizado é detectado na sua teologia solar. Akhenaton efetivou um repertório novo na prática religiosa, por meio da sua imagem, arte e religião, onde o marco dessa nova religião é regido pelo mais belo poema: O Grande Hino a Aton.

INTRODUÇÃO

Amen-hotep IV (Akh-em-Aton), foi o faraó da 18º dinastia no período entre 1352 e 1336. Causou uma profunda reforma religiosa no Egito, atribuindo culto somente a um deus, elegendo o disco solar (Aton) como único deus, o criador do mundo. Sua inovação desestrutura e reconstrói a religião egípcia, renovando o panteão e atribuindo um novo olhar para o Egito faraônico. O novo cenário foi motivo de revolta entre nobres e sacerdotes. A implantação de uma espécie de monoteísmo em uma civilização politeísta é um assunto de enorme controvérsia na egiptologia. Jan Assmann um dos mais conceituados egiptólogos que aborda a religião egípcia na contemporaneidade, salienta de forma evidente o prestígio da reforma de amarna (conhecido também como reforma espiritual): “a redescoberta do rei herético, Akhenaton, que após sua morte foi submetido a uma completa damnatio memorie no Egito, é a mais significativa descoberta da egiptologia”¹. É comum dizer que os egípcios eram politeísta e o próprio faraó era tradicionalmente relacionado e poderes divinos e Amen-hotep IV edifica isso perfeitamente, fazendo-se único e exclusivamente rei, homem, deus e sacerdote. O grande hino a Aton é um dos poemas que exprime a nova doutrina no novo império e o mais belo já registrado nesse período. A ênfase do projeto é apresentar uma nova ótica faraônica, descortinar a face do faraó detectando principalmente se lado humano, além de sua posição política-religiosa. Dessa forma pretendemos contemplar e apreciar as riquezas que o antigo Egito nos proporciona, na arte, cultura, linguagem, literatura e religião. O objetivo é justificar a importância que a história antiga em suas diversas construções sociais, assim buscando meios de despertar o interesse na área da Antiguidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSMANN, Jan. Of god and gods. Egypt, Israel and the rise of monotheism. Madison, EUA: The University of Wisconsin press, 2008.
_____________. The prince of monotheism. California: Stanford University Press, 2010.
ARAÚJO, Emanuel. Pobres faraós divinos. Textos de História, v. 4, n° 2, p. 5-29, 1996.
________________. Escritos para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. Brasília: Editora Universidade de Brasília/São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CHAPOT, Gisela. A família real amarniana e a construção de uma nova visão de mundo durante o reinado de Akhenaton (1353-1335 a.C.). Niterói, 2015.
HORNUNG, E. O Rei. In: DONADONI, S. (org). O homem egípcio. Lisboa (PT): Presença, p. 239-262, 1994.

NOTAS:
¹ ASSMANN, Jan. “ A new State theology- the religion of light”. In: SEYFRIEND, Friderike. In the light of Amarna: 100 years of the Nefertiti discovery. Berlin: Imhof Verlag, 2013 p.79.

Inara Kezia Gama Araújo, 18, é acadêmica do 5° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.