quinta-feira, 25 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Túmulo do Santo Rabi Shalom Emanuel Muyal

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo do santo popular Rabi Shalom Emanuel Muyal está localizado na quadra 11 do Cemitério São João Batista.

Pouco se sabe sobre o Rabi Shalom Emanuel Muyal. Ele teria vindo de Salé, no Marrocos, para Manaus em 1908. Naquele período a comunidade judaica no Amazonas já possuía um número considerável de membros. Dois anos depois, em 12 de março de 1910, morreu vítima de uma doença tropical.

Quem nos informa sobre os milagres de Shalom Emanuel Muyal é a antropóloga Fabiane Vinente dos Santos, no artigo 'Hagiografia de Cemitério: História Social e imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus', de 2008:

"O primeiro “milagre” do Rabino teria acontecido pouco depois de sua morte, por intermédio de uma senhora da comunidade judaica de Manaus que havia cuidado dele durante a doença que o levou à morte. Ela teria conseguido curar apenas usando as mãos uma terceira pessoa de um grave problema ósseo e atribuiu o fato à influencia do rabino, de quem havia tratado antes. 

Um segundo milagre foi descrito num relato publicado na revista Morashá, por David Salgado (2006): 

[...] Outra situação muito conhecida na comunidade manauara é a de um senhor - ainda me lembro bem dele naquele estado - com um problema sério no pescoço que o impedia de andar com a cabeça na posição vertical; esta sempre pendia para o lado. Depois de ter consultado médicos em busca de uma solução para o problema, sem nenhum resultado satisfatório, a mãe do rapaz tomou importante decisão. Abraçada em sua fé no Eterno, D'us de Israel, dirigiu-se certa manhã à tumba de Ribi Muyal, onde fez um pedido especial para que seu filho tivesse pleno restabelecimento". (1)

O túmulo de Shalom Emanuel Muyal recebe, de seus devotos católicos, placas em agradecimento às graças alcançadas, fixadas dentro ou fora da grade que o circunda. As inúmeras pedras vistas sobre seu túmulo são deixadas por judeus. Elas, diferente das flores e velas, que tem uma curta duração, são duradouras, simbolizando a memória que as gerações conservarão do ente falecido.

Reproduzo abaixo algumas das inúmeras placas de agradecimento:

"Agradeço graça alcançada em 02-02-78".

"1989 uma graça alcansada (sic) de Rabi Shalon (sic) agradeço muito, muito".

"1996 recebi as graças que pedi Rabi Shalon (sic)".

"1999 outra graça alcansei (sic) de Rabi Salon (sic) agradeço muito".

"Graça alcançada. 25.02.02. Eva".

Shalom Emanuel Muyal está enterrado em solo cristão do Cemitério São João Batista. O Cemitério Judeu de Manaus, que compreende as quadras 03, 04 e 05 do Cemitério São João Batista, só foi inaugurado em 1928, após cessão daquela área do cemitério pelo município. Em 1980 houve a tentativa, por parte do sobrinho de Shalom Emanuel Muyal, Eliahu Muyal, membro do parlamento de Israel e Vice Ministro dos Transportes  entre 1980 e 1982 (2), de transferir seus restos mortais para Israel. No entanto, essa ação gerou manifestações da comunidade católica local, devota de Shalom. No final das contas, seus restos mortais ficaram em Manaus.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Seu túmulo é bastante simples. A lápide tumular foi construída com mármore. Na cabeceira tumular, uma estrela de Davi. Seu epitáfio está escrito em alto relevo, em português do lado direito e hebraico do lado esquerdo: "Aqui jaz Ribbi Salom H. Moyal Fallecido a 12 de março de 1910. Q E D". A estrutura de alvenaria e a grade que o protegem são mais recentes. No alto dessa estrutura fica uma placa de mármore com o nome do falecido.

NOTAS:

(1) SANTOS, Fabiane Vinente dos; MAIA, Jean Ricardo Ramos. Hagiografia de cemitério: História Social e Imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus. Revista Eletrônica os Urbanitas, São Paulo, v. 5, 2008, p. 13-14.

(2) SALGADO, David. A verdadeira história de Ribi Muyal, em Manaus. Portal Amazônia Judaica. Disponível em: http://www.amazoniajudaica.org/167563/A-Verdadeira-Hist%C3%B3ria-de-Ribi-Muyal-em-Manaus. Acesso em 25/07/19.





sábado, 20 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Mausoléu de José Francisco e Luiz Pinho, Heróis da Força Policial do Estado

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O mausoléu dos Heróis da Força Policial do Estado, José Francisco e Luiz Pinho, está localizado na quadra 15 do Cemitério São João Batista.

Não se têm muitas informações sobre José Francisco e Luiz Pinho. Sabe-se apenas que pereceram no cumprimento de seus deveres durante o Bombardeio feito contra cidade de Manaus em 08 de outubro de 1910.

O Bombardeio de Manaus teve motivações políticas, sendo fruto das disputas oligárquicas entre os Nerystas e os Bittencouristas. Governava o Amazonas na época do bombardeio o Coronel Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt (1908-1913). Bittencourt, anteriormente, fora secretário geral do Governador Silvério Nery (1900-1904) e vice-governador de Constantino Nery (1904-1907). Bittencourt, antigamente aliado dos Nery, se tornou um grande opositor destes, denunciando suas antigas administrações, os empréstimos duvidosos, não pagos, e os gastos pessoais exorbitantes. Bittencourt foi acusado pelos apoiadores de Nery de estar realizando uma péssima gestão e de manter negócios particulares enquanto ocupava o cargo de governador, o que era proibido. Por conta disso, Bittencourt foi declarado inapto para exercer o cargo. 

Uma carta de renúncia foi forjada pelo Senador Silvério Nery, pelo vice-governador do Estado Sá Peixoto e outros membros do Congresso, interessados na queda de Bittencourt. No entanto, Bittencourt não entregou o cargo, oferecendo resistência armada. Nery e Sá Peixoto, com apoio do Senador gaúcho Pinheiro Machado, opositor de Bittencourt e apoiador da oligarquia Nery, tomaram medidas drásticas: O bombardeio da cidade de Manaus, por navios da Flotilha da Marinha de Guerra vindas do Rio de Janeiro, no dia 08 de outubro de 1910.  O bombardeio ocorreu às 5:30 da manhã. Militares do Exército desembarcaram e foram em direção ao Palácio do Governo, onde foi travada uma luta com a força policial do Estado. O governador Bittencourt se refugiou no Pará. Seu antigo aliado, Sá Peixoto, assumiu o governo (1). José Francisco e Luiz Pinho podem ter morrido tanto vítimas dos disparos dos navios quanto do enfrentamento no Palácio do Governo.

Encerradas, por ora, essas disputas políticas, com a retorno ao estado de normalidade, Antônio Bittencourt, que estava refugiado em Belém, no Pará, voltou a Manaus no dia 31 de outubro de 1910, assumindo novamente o Governo do Estado. Para tal teve apoio do Presidente Nilo Peçanha. Tomando conhecimento das baixas ocorridas, mandou construir um monumento-túmulo em homenagem aos dois militares.

O mausoléu dos Heróis da Força Policial do Estado foi inaugurado às 9:30 do dia 08 de outubro de 1911, primeiro aniversário do bombardeio, contando com a presença do Governador do Estado, das forças policiais e de milhares de pessoas que fizeram uma grande romaria até o Cemitério São João Batista (Jornal do Comércio, 09/10/1911). O trabalho foi executado pela Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi.

FOTO: Fábio Augusto, 2018.

O mausoléu foi construído inteiramente com mármore de Carrara, com exceção da base, possivelmente de 1910 e feita de alvenaria (recebeu uma pintura recente de cor prata). Do pedestal parte uma coluna, forma clássica de um monumento erguido para a posteridade. Quando ela está partida, simboliza a morte prematura, inesperada, de seus homenageados. Ao lado da coluna, duas piras simbolizam o fogo eterno, a lembrança duradoura dos atos dos dois praças e a determinação de ambos. Em outubro de 2018 as duas estavam intactas. Em visita no mês de fevereiro do ano corrente, a do lado direito tinha sido arrancada. A tampa tumular, com uma cruz em baixo relevo, não é da época da construção. De acordo com relato de Eros Augusto Pereira da Silva, a original foi danificada e substituída em 2010. O epitáfio está inscrito no pedestal da coluna:

"A memoria dos heroes da Força Policial do Estado José Francisco e Luiz Pinho. Viandante que passas descoidado detem-te um pouco e considera que este pobre tumulo guarda em seu seio os restos mortaes de duas vitimas do crime de 8 de outubro de 1910".

Todos os anos, no mês de outubro, a Polícia Militar do Estado do Amazonas se dirige até o Cemitério São João Batista para reverenciar a memória de José Francisco e Luiz Pinho, Heróis da Força Policial do Estado e personagens de um episódio marcante de nossa História.

FONTE:

Jornal do Comércio, 09/10/1911.

NOTA:

(1) O Bombardeio de Manaus é um episódio deveras complexo para ser analisado em seus pormenores nesse texto. Para conhecer seus desdobramentos na íntegra, ver FEITOSA, Orange Matos. À Sombra dos Seringais: Militares e Civis na construção da ordem republicana no Amazonas (1910-1924). USP, São Paulo, 2015. Tese (Doutorado em História).

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos está localizado na quadra 10 do Cemitério São João Batista.

Pouco se sabe sobre a vida de Leopoldo de Moraes e Mattos (1875-1928), natural do Estado do Mato Grosso. Estudou na Escola Militar do Rio de Janeiro por volta de 1890. Pelos serviços prestados durante a Revolta da Armada, na Fortaleza de Santa Cruz, foi promovido a patente de Tenente (O Paiz, RJ, 10/10/1894). Em Manaus desempenhou os cargos de Delegado Fiscal do Estado do Mato Grosso, cônsul no Japão, no Uruguai e Provedor da Santa Casa de Misericórdia. Entre 1918 e 1919 atuou nas questões de fronteira entre os Estados do Amazonas e Mato Grosso.

O cargo em que mais se destacou foi no de Provedor da Santa Casa de Misericórdia. Na década de 1920 Leopoldo de Moraes e Mattos operou grandes melhorias nessa instituição. Em 27 de agosto de 1922 entregou novos pavilhões de 1° e 2° classe no piso superior da instituição, ambos equipados com elevadores. Em tempos de crise econômica, conseguiu garantir a regularidade dos serviços de farmácia, radiologia, odontologia, maternidade, exames bacteriológicos, enfermaria para tubérculos e o atendimento aos doentes mentais (O Paiz, RJ, 02/10/1926). Assim foi descrita a Santa Casa no período em que ele a estava provendo:

"Este pio instituto de caridade, encontra-se hoje num tal estado de adiantamento, que pode concorrer com os melhores estabelecimentos do paiz. O sr. Leopoldo de Mattos, seu provedor, tem se mostrado um administrador digno de encomios pelo muito que tem feito para esse gráo de prosperidade" (AMAZONAS. Mensagem apresentada á Assemblea Legislativa pelo Exm. Snr. Antonio Monteiro de Souza em 14 de julho de 1927, p. 129).

Aspectos do túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos e, no centro, um retrato dele. FONTE: O Malho (RJ), 05/10/1929.

O túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos foi construído pela Santa Casa de Misericórdia como uma homenagem ao seu antigo provedor. Ele é todo em granito negro. Na cabeceira tumular, no nível central, destaca-se um medalhão de Cristo feito em bronze, assim como alguns detalhes com motivos florais nos níveis inferiores laterais. Ladeiam esse medalhão os seguintes dizeres em alto relevo:

"Reconhecimento, Gratidão e Saudade da Santa Casa de Misericórdia de Manáos ao Ex-Provedor Cel. Leopoldo de Moraes e Mattos, seu Bemfeitor e Benemérito reformador".

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Semelhante à Santa Casa de Misericórdia, o túmulo de Leopoldo de Mattos está abandonado, assim como a maioria do Cemitério São João Batista, escapando algumas poucas quadras principais, quando não apenas alguns de seus túmulos. O mato cresce sobre a base tumular e a tampa. A parte direita da base tumular foi destruída e os puxadores, feitos de bronze, sumiram.


FONTES:


Jornal O Paiz, RJ, 10/10/1894.
Jornal O Paiz, RJ, 02/10/1926.
AMAZONAS. Mensagem apresentada á Assemblea Legislativa pelo Exm. Snr. Antonio Monteiro de Souza em 14 de julho de 1927.
Revista O Malho, RJ, 05/10/1929.


quinta-feira, 18 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Jazigo da família Carneiro dos Santos

Com o presente texto pretende-se dar início a uma série de postagens sobre os monumentos funerários mais significativos do Cemitério São João Batista, em Manaus. São artefatos que se destacam tanto pela arquitetura quanto pela história de seus proprietários. O primeiro é o Jazigo da família Carneiro dos Santos.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O Jazigo da família Carneiro dos Santos está localizado na quadra 07 do Cemitério São João Batista, em Manaus. A escultura que o encima o torna um dos maiores monumentos funerários dessa necrópole.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Esse monumento, construído em mármore de Carrara, é de autoria do escultor genovês Pietro Bacigalupo (1875-1924), conforme assinatura localizada na base da escultura. Nele estão sepultados Adelaide Maquiné dos Santos (12/05/1858 - 10/08/1909), José Carneiro dos Santos (15/02/1852 - 25/02/1928) e Claudio Carneiro dos Santos (21/07/1894 - 11/10/1939). 

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

José Carneiro dos Santos era esposo de Adelaide Maquiné dos Santos. Claudio Carneiro dos Santos, filho do casal. Quando Adelaide Maquiné dos Santos faleceu, em 1909, o Coronel José Carneiro dos Santos tratou de encomendar um monumento em sua homenagem.

Convite para a Missa de 7° Dia de Adelaide Maquiné dos Santos. FONTE: Jornal do Comércio, 14/08/1909.

O monumento em homenagem a Adelaide Maquiné dos Santos foi concluído em 1912. De acordo com publicações da época, ele representa a Fé. Assim o descreve o Jornal do Comércio em nota de 25 de maio de 1913:

"O bello monumento, representando a estátua da Fé, trabalhado em mármore pelo escultor genovez Pietro Bacigalupo, presentemente nesta cidade, aonde veio afim de collocar a sua obra de arte sobre o tumulo da inditosa senhora D. Adelaide Maquiné dos Santos, esposa do coronel José Carneiro dos Santos" (Jornal do Comércio, 25/05/1913).

Ela aparece, ainda em Gênova, ao lado de outra escultura, em uma fotografia reproduzida na revista Ilustração Brazileira, do Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1914, com a seguinte descrição:

"Monumento representando a Fé, que se acha no cemiterio de Manaus, no tumulo de D. Adelaide M. dos Santos, esposa do coronel José Carneiro dos Santos" (Revista Ilustração Brazileira, 16/12/1914).


Monumento representando a Fé. FONTE: Revista Ilustração Brazileira (RJ), 16/12/1914.

Esse monumento consiste em uma figura feminina, semelhante a uma Madona, vestida com um manto e apoiada sobre uma rocha. A figura feminina segura uma grande cruz fincada nessa rocha, possivelmente uma alegoria à solidez da crença e da fé da família Carneiro dos Santos. Sobre a identificação do nome da família está fixado um cristograma clássico, o XP, que são as iniciais de Cristo em grego (XPΙΣΤΟΣ).

A obra de Bacigalupo gerou algumas controvérsias na cidade. No artigo O esculptor Bacigalupo, de Cesare Veronesi, proprietário da principal marmoraria de Manaus, a Ítalo-Amazonense, insinuou-se que o escultor genovês não dominava essa arte, pois era "[...] um dos taes artistas que, tendo uma encommenda, fazem-na de outrem ou compram-na já feita, e se lhes pedirem esboçar um simples retrato em barro... dão parte de doente".

Esse texto tinha um tom de enfrentamento pela concorrência no serviço de produção de mausoléus e monumentos funerários, pois Cesare Veronesi o finaliza afirmando que resolveu fazer tal publicação no jornal A Capital "[...] tão somente para dar uma satisfação áquelles que nos honraram com suas valiosas encommendas, declarando-lhes que os mausoleus cuja execução nos foi confiada, têm sido esculpidos por artistas de renome, como o professor Franzoni de Carrara e que nunca serão reproduzidos para outros tumulos, ficando assim obras de verdadeiro valor" (A Capital, 07/08/1917).

FOTO: Fábio Augusto, 2019.



FONTES:

Jornal do Comércio, 14/08/1909.
Jornal do Comércio, 25/05/1913.
Revista Ilustração Brazileira (RJ), 16/12/1914.
A Capital, 07/08/1917.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A Batalha de Itacoatiara (AM,1932)


O texto a seguir é de autoria de Aguinaldo Nascimento Figueiredo, professor, escritor, historiador e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Nele Aguinaldo aborda um episódio pouco conhecido da História do Amazonas: A Batalha de Itacoatiara, ocorrida em 1932. Esse conflito teve como pano de fundo a influência política da Revolução Constitucionalista que ocorrera em São Paulo.


A BATALHA DE ITACOATIARA
Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo


Cais do Porto de Itacoatiara. FONTE: Biblioteca do IBGE.

No dia 24 de agosto de 1932, a cidade de Itacoatiara foi sacudida por uma grande agitação, com a população em polvorosa correndo para se esconder onde podia para escapar das balas que caiam próximas às suas casas. Sem saber o que estava acontecendo, dona Rosa relata que o povo e os poucos soldados da Força Pública, orientados pelo padre Pereira e pelo prefeito, Major Gonzaga Pinheiro, acorriam freneticamente para a beira do rio carregando paneiros de farinha cheios de areia e de farinha mesmo, cujo objetivo era o de erguer uma enorme trincheira para proteger a cidade do iminente bombardeio que seria realizado por navios da Marinha de guerra brasileira, sob o comando de revoltosos vindos do Pará, simpatizantes da Revolução Constitucionalista que havia eclodido em São Paulo nesse ano de 1932, caso não lhes entregassem a rendição da cidade.

Desde o dia 20 de agosto, o comandante do Estado Maior do Exército da guarnição do forte de Óbidos, capitão Otelo Franco aderira aos revoltosos despachando as canhoneiras fluviais Andirá e Jaguaribe com destino a Manaus para tomar a cidade, considerada ponto estratégico para o sucesso do movimento paulista na região Norte. No dia 21, notícias verazes davam conta de que os sediciosos já havia se apoderado de Parintins e estavam se dirigindo rapidamente para a capital amazonense com o mesmo intuito.

A pequena frota, porém, tinha que subir o rio Amazonas e passar pela cidade de Itacoatiara, que dista 360 km de Manaus. A notícia da aproximação do comboio apavorou a Velha Serpa, causando pânico entre os moradores, que saíram em desabalada carreira em busca de refúgio nas matas e locais inóspitos.

Já com seus navios ancorados em frente à cidade, os rebeldes enviam um emissário para terra para negociar a rendição da mesma com seus lideres políticos e recebem destes como resposta uma recusa intransigente. Depois de dois dias de impasses, com o prefeito e o padre protelando a rendição, assim ganhado tempo para que o socorro de Manaus chegasse à área, pois os mesmos enviaram à capital uma mensagem telegráfica comunicando as autoridades as perigosas ocorrências. Os rebeldes dão então um ultimato para que a população abandone a cidade em duas horas, quando então iniciarão o canhoneio.

Ciente dos acontecimentos, o comandante da Flotilha do Amazonas, capitão de fragata Galdeno Pimentel Duarte, enviou as canhoneiras Ingá e Baependi para interceptar os refratários antes que alcancem à capital.

Navegando a todo vapor as belonaves legalistas chegaram por volta de duas horas da tarde do dia 24 de agosto na zona de combate, momentos antes de encerrar o prazo dado pelos revolucionários para bombardear a cidade. Imediatamente os navios tomam posição de ataque, com as cornetas e apitos convocando as tripulações a guarnecer postos de batalha.

Há pouco mais de 200 metros de distância um dos outros os canhões e metralhadoras dos barcos abriram fogo simultaneamente, provocando pavor nos moradores que, segundo dona Rosa, “corriam para se abrigar em qualquer lugar, até mesmo em embaixo das camas para se protegerem dos tiros vindos dos barcos, que passavam próximos as casas”.

Sendo observado com cautela e terror pelos poucos corajosos que ousaram ficar na cidade, o combate já ocorria há pelo menos trinta minutos sem definição de quem estava levando vantagem, com os navios de ambos os lados seriamente avariados. Havia muitos mortos e feridos nos conveses, mas nada detinha a metralha.
No auge da ação, o “Ingá”, aproou como se fosse um aríete, lançando-se sobre o “Jaguaribe”, abrindo um rombo em seu costado e fazendo-o adernar para bombordo e, em poucos minutos, ele foi ao fundo.

O combate prossegue com o Andirá resistindo bravamente, inclusive ameaçando os navios legais com tiros de fuzis e de metralhadoras pesadas, provocando muitas baixas no inimigo. Entretanto, seu destino foi selado quando uma saraivada de tiros de morteiros e de metralhadoras devastou a ponte de comando, deixando-o a deriva na vastidão do rio Amazonas.

Nesse ínterim, o Baependi, o maior e mais bem armado dos vasos, também se arremessa sobre o pequeno Andirá, partindo-o ao meio, levando-o a pique em pouco mais de três minutos, pondo fim a breve “Batalha de Itacoatiara”, que teve quarenta minutos de duração.

Lamentavelmente, num gesto de desatino e insensatez, os tripulantes dos navios vencedores metralharam impiedosamente os sobreviventes, matando-os ainda sob a água, tirando o brilho moral da vitória que acabavam de conquistar.

Foi um momento ímpar na história do Amazonas e da cidade de Itacoatiara, cuja população, depois do susto, regressou as suas casas agradecendo a Deus e a ação imediata das forças navais fiéis ao governo de Getúlio Vargas, por ter evitado mal maior, bem como pelo restabelecimento da ordem, da paz e da normalidade.

Nos anos seguintes à famosa batalha, o que restou dos intrépidos navios jaz em escombros, carcomidos pelas águas e pelo tempo no leito movediço do rio Amazonas, mostrando ainda seus mastros quando das vazantes muito baixas desse rio, como se fosse um monumento pujante a reivindicar seu espaço e sua importância que insiste em ser negado na nossa história. No início do ano de 2014, uma equipe de mergulhadores da marinha, por ordem do almirante Luís Frade Carneiro, comandante do 9º Distrito Naval, atendendo pedidos de autoridades e intelectuais itacoatiarenses, fez uma extensa varredura no provável perito do entrevero e constatou não haver nenhum vestígio das belezas afundadas.

Sobre o episódio, o escritor Anísio Jobim, em seu livro “A Batalha de Itacoatiara”, retrata uma folclórica nota transcrita no jornal “O Jornal”, de Manaus, no dia 26 de setembro de 1932, publicada num periódico da França, em que deixa visível a eterna ignorância que os estrangeiros têm sobre o conhecimento da nossa geografia e história, com as seguintes palavras:

A esquadra brasileira sob o comando do presidente Vargas, bateu, no Oceano Atlântico, a frota revolucionária do almirante Itacoatiara”!

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Memórias do bairro do Aleixo, em Manaus

O texto a seguir, originalmente publicado no Jornal do Comércio em 2008, é de autoria do pesquisador Ed Lincon Barros da Silva. Nele, através de memórias das décadas de 1970 e 1980, Ed Lincon nos apresenta as transformações ocorridas no bairro Aleixo, localizado na zona Centro-Sul de Manaus.

MEMÓRIAS DO BAIRRO DO ALEIXO

Por Ed Lincon Barros da Silva 

Rua São Domingos, 1975. FONTE: Jornal A Crítica, 1975.

Minhas recordações sobre o bairro do Aleixo vem da minha infância na década de 1970. As ruas eram de terra batida, com exceção da principal, conhecida apenas por estrada do Aleixo (atual avenida André Araújo). Esta, em 1974/75, era uma via estreita e de mão dupla, onde muitas vezes mal dava para passar um terceiro veículo. A pavimentação dessa estrada, feita em concreto armado sobre pedra jacaré, tinha início na rua Paraíba (atual Humberto Calderaro), indo próximo ao bar Nacionalino. A parte asfaltada começava daí e terminava onde hoje está o SOS Manaus. O restante, no trecho que vai até a Bola do Coroado, ainda estava sendo terraplanado. O outro lado da avenida, no sentido centro-bairro, não existia. Somente em 1976 é que esta via foi alargada e asfaltada.

Na época, apenas uma empresa de transportes coletivos atendia ao bairro, a Ajuricaba (encampada pela prefeitura em dezembro de 1988), que fazia as seguintes linhas: Coroado, Aleixo, Cachoeirinha; Jardim Paulista, Aleixo, Cachoeirinha; e Belo Horizonte, Aleixo, Cachoeirinha.

No lugar onde hoje está a Secretaria de Fazenda e a praça adjacente, havia várias casas de madeira, demolidas em 75/76 por ordem do prefeito Jorge Teixeira de Oliveira (1975/1979). Vi também o início da construção, em 1976, de vários edifícios públicos existentes atualmente, entre os quais: o Fórum Henoch Reis, abandonado durante muitos anos e concluído em 2002; O TRE e Correio, etc. A rua Belo Horizonte nessa época, era desprovida de asfalto possuindo somente calçadas e meio fio, estando preparada para ser pavimentada.

Vista aérea do Horto Municipal, 1968. FONTE: Arquivo Público Municipal.

A rua Bonsucesso, no trecho que vai da Belo Horizonte até a São Domingos, era praticamente intrafegável. Na parte baixa, havia uma ponte improvisada feita de tronco de buritizeiro sobre um charco que havia ali. Essa mesma rua Bonsucesso, na parte que vai da São Domingos até onde foi construído o conjunto Huascar Angelim, que sequer existia, também podia ser percorrida de carro, apesar das valas existentes. As ruas Santa Claudia, Castro Alves, São Vicente, São Sebastião e Santa Clara também apresentavam os mesmos problemas.

Na rua São Domingos, o mato e o lixo predominavam na sua quase totalidade. Quando as máquinas da prefeitura passavam no local, a poeira tomava conta de tudo. E, após as chuvas era um espetáculo para nós, meninos do bairro, contemplar os carros derrapando em zig-zag para chegar até o topo da ladeira que desemboca na André Araújo e que ainda não havia sido aterrada. O aterro da rua São Domingos só foi realizado em março de 82.

A rua Severiano Nunes não tinha esse nome e era denominada de rua do Curre, também totalmente intrafegável. Na parte baixa dessa rua, corria um igarapé de águas límpidas onde se podia pescar pequenos peixes, como o cará e o cardinal. Canalizado em 85, esse igarapé foi transformado em esgoto de águas pluviais. Na rua José do Patrocínio, hoje denominada de Atagamita (nomenclatura não aceita pelos moradores) ainda passava algum carro.

Asfalto? Somente em outubro de 85. A primeira rua do bairro a ser asfaltada foi a Castro Alves, seguida da José do Patrocínio, São Domingos, Santa Claudia, Bonsucesso, Beco São Domingos, entre outras.

FONTE:
Ed Lincon, especial para o Jornal do Comércio. 24/10/2008

IMAGENS:
Rua São Domingos, 1975. Jornal A Notícia.

Vista aérea do Horto Municipal, 1968. Arquivo Público Municipal. Ambas do acervo particular de Ed Lincon.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Uma reforma espiritual no Egito Faraônico: Akhenaton na sua consagração divina e humanizada (I PARTE)


O artigo a seguir, sobre a reforma religiosa no período Armaniano (Egito, 1352 a.C. - 1336 a.C.), é de autoria da acadêmica de História na Universidade Federal do Amazonas Inara Kézia Gama, que desenvolve pesquisa sobre a reforma espiritual no Egito Faraônico durante o reinado de Akhenaton.



Estela Amarniana. Na cena, Akhenaton e Nefertiti com suas três filhas estão sob os raios do deus sol Aton, uma família reunida sob a benção e proteção dos raios de Aton. FONTE: National Geographic (PT).

Resumo
O período Amarniano é a periodização criada pela egiptologia para se referir aos anos entre 1352 e 1336 a.C., 18ª dinastia do Egito Faraônico, no contexto do novo império. O termo foi criado também para contemplar a reforma proposta pelo faraó Amenhotep IV, posteriormente chamado Akhenaton. Em seu reinado, o faraó estabeleceu uma reforma religiosa e modificou o panteão egípcio, nomeando o deus Aton- o disco solar- como o único deus. A implantação de uma espécie de “monoteísmo” em uma civilização politeísta é um assunto de enorme controvérsia na egiptologia. Jan Assmann um dos mais conceituados egiptólogos que aborda a religião egípcia na contemporaneidade, salienta a importância da reforma de Amarna: “a redescoberta do rei herético, Akhenaton, que após sua morte foi submetido a uma completa dammatio memorie no Egito, é a mais significativa descoberta da egiptologia” (ASSMANN, 2013, p.79). As fontes trabalhadas pelo presente projeto foram traduzidas por Ciro Flamarion Cardoso, que dedicou-se a pesquisar o período Amarniano. Esta tradução encontra-se na tese da Gisela Chapot (2015), o próprio Ciro Cardoso cedeu o material para o desenvolvimento do trabalho da Chapot. Emanuel Araújo no seu livro Escrito para a eternidade, a literatura no Egito faraônico (2000) organizou em seis partes os estilos da literatura no Egito Antigo e situa o Grande Hino a Aton na Literatura lírica, pois sua escrita está estreitamente ligado a poemas amorosos, hinos de vitória militar e religião (ARAÚJO, 2000). O desenvolvimento do hino de louvor ao deus Aton, expressou uma nova feição do comando faraônico durante o reinado de Akhenaton, que pretendemos analisar nessa pesquisa.
Introdução
O período da reforma de Amarna é um assunto de grande turbulência entre egiptólogos. A tese monoteísta foi defendida fervorosamente nos séculos XIX e XX. James Henry Breasted é o acadêmico imprescindível para o estudo da religião de Amarna, pois foi o egiptólogo desbravador dos hinos de Aton. Arthur Weigall elaborou a primeira biografia do monarca: The Life and Times of Akhnaton, Paraoh of Egypt (1910) que foi um best-seller de enorme influência na área ao longo do século XX. Weigall foi o responsável por redescobrir e estabelecer Akhenaton na era moderna. “O glorioso” Akhenaton segundo Weigall era um anterior de Jesus Cristo, sua religião constituía uma “religião tão pura, comparável apenas ao cristianismo” (1910, p.53)1. Com sua pesquisa voltada para a vida de Akhenaton, Weigall afirma:

As lindas doutrinas da religião com as quais o nome desse faraó é identificado foram produções de seus últimos dias e até ele ter pelo menos dezessete ou dezoito anos de idade, nem seu monoteísmo exaltado nem nenhum dos seus futuros princípios eram realmente aparentes. Algum tempo depois do oitavo ano de seu reinado, descobriu que ele desenvolveu uma religião tão pura que deve compará-la com o cristianismo para descobrir suas falhas, e o leitor verá que a teologia soberana não foi derivada da sua educação2. (WEIGALL, 1910, p. 53)

Breasted e Weigall estabelecem um Akhenaton protocristão, ao relacionarem e aproximarem a tradição religiosa do Egito antigo com o monoteísmo judaico-cristão, uma visão que influenciou uma geração considerável de estudiosos, embora seja problemática e atualmente combatida na egiptologia. Ciro Flamarion Cardoso fala que essas comparações entre textos sagrados dos egípcios e cristãos, tinham como objetivo buscar “um pensamento teológico análogo” (2008, p. 1). O rico panteão egípcio e a complexidade de suas manifestações religiosas, difíceis de serem apreendidas fora de uma chave de entendimento judaico-cristã intensificaram controvérsias ao longo do século XIX e XX e ainda estão longe de serem encerradas.

Jan Assmann salienta as diferenças entre o “monoteísmo” de Akhenaton do bíblico, o chamado ‘cosmoteista’, mas também estabelece aproximações, sugerindo até mesmo possíveis influências do primeiro sobre o segundo. Para o autor, a bíblia teria se baseado na adoração do poder cósmico que se prolifera no sol e estabelecia a ordem universal através da luz, fonte da vida e do seu movimento diário e ocasionador do tempo. Assmann caracteriza o monoteísmo de Moisés e explica como seus seguidores negaram as crenças egípcias e suas possíveis influências na origem do monoteísmo judaico-cristão, sendo os egípcios condenados a meros idólatras politeístas. O Egito passou a simbolizar o rejeitado, a interpretação religiosa errônea, o modo de vida “pagão”. (ASSMANN, 1997, p.4).

Rosalie David demonstra certas semelhanças que não podem passar despercebidas entre o Grande Hino a Aton e o Salmo 104 do Antigo Testamento, como a seguinte passagem: “Seus raios sustentam todos os campos; quando seu brilho forte, eles vivem e crescem para você. Você marca as estações para nutrir tudo àquilo que fez” (Hino a Aton) e “Tu produzes feno para os animais e plantas para uso dos homens; tu fazes sair o pão do seio da terra” (Salmo 104:14).

Ciro Cardoso afirma que historiadores da religião sugerem outras possíveis definições para o caso do “monoteísmo” no Egito: como o henoteísmo, que seria a centralização da crença em um único deus em meio a um cenário politeísta incontestável, permanecendo a crença em diversos deuses e o kathenoteísmo, que significaria a centralização da importância do culto a cada deus independentemente, novamente, sem contestar o politeísmo. Para o autor, esses são aspectos da monolatria, mas não de monoteísmo (CARDOSO, 1999, p. 63). No entanto, Erik Hornung afirma: “agora, pela primeira vez na história, o divino tornou-se uno, sem multiplicidade complementar; o henoteísmo transformou-se em monoteísmo” (1983, p. 246). Ou seja, a situação em Amarna escapa de qualquer tentativa de definição simplista.

Akhenaton desenvolveu no Egito uma nova visão de mundo, “solarizando” o panteão, pois a fonte de toda vida passaria a ser originária do disco solar Aton (CHAPOT, 2015, p. 380)3. E mais: estabeleceu um grupo que personificaria seu poder- a família real de Amarna. Seu repertório imagético, leva em conta seu lado humano, ilustrando a intimidade com sua rainha Nefertiti (que significa ‘A bela chegou’) e seu lado paterno. O faraó determinou o louvor ao sol com hinos para o deus e tais poemas marcaram seu reinado e sua revolução religiosa.

A cosmovisão de Akhenaton articula um novo contexto sociopolítico ao elevar seu poder divino ao mesmo tempo em que os aproximou de seus atributos humanos. Nesse sentido, a figura monárquica passa por um processo de humanização. A representação da vida privada da família real era algo incomum na arte egípcia. A famosa “Estela de Berlim” era utilizada para a veneração doméstica pela elite de Tell El Armana. Nessa estela, a família esbanja afagos e carícias incomuns, sentados casualmente sob os raios de Aton, que os ilumina no alto da cena, algo incomum e excepcional na iconografia do Antigo Egito.

Emanuel Araújo explica que as cenas da família podem ser pensadas como “recurso de propaganda para aproximar o rei e sua família dos súditos num momento de afirmação da nova teologia, ou também como apresentação de uma família unida em torno do culto do deus que se impunha sobre o velho panteão” (1996, p. 24). Portanto, essa humanização da figura faraônica é um aspecto importante e que merece uma análise mais aprofundada, pois desmistifica e relativiza a famosa caracterização do faraó exclusivamente como “rei-deus”, além de problematizar a tão marcada ideia de “despotismo oriental”4.

A bibliografia utilizada no desenvolvimento do projeto demonstra a complexidade religiosa e literária do Egito faraônico. Weigall e Assmann enfatizam a semelhança da religião de Akhenaton com o monoteísmo bíblico, destacando uma possível raiz egípcia na fonte bíblica. Como já observado nas páginas acima, embora acreditemos que seja errôneo dizer que existiu um “monoteísmo" no período Amarniano, não descartamos a possibilidade de uma influência da experiência egípcia no monoteísmo judaico-cristão posterior. No entanto, o objetivo da pesquisa é enfocar na especificidade do período Amarniano, de forma a situar as fontes no seu período e entendê-las no seu próprio contexto, sem maiores pretensões de analisar suas possíveis influências no monoteísmo judaico-cristão, tampouco pretendemos usar nosso instrumental monoteísta para traduzir a complexidade do momento. Ou seja, a intenção é investigar o nascimento de uma nova fé e o seu impacto em uma sociedade político-religiosa, onde a prática pagã prevalecia. O ‘faraó herege’ tivera um papel fundamental para a reforma espiritual, trazendo uma renovação na prática religiosa e grandes impactos na exposição da família real e na arte.

O presente projeto tem como ênfase demonstrar a relevância de temáticas ambientadas na Antiguidade na formação da nossa identidade cultural e na composição do pensamento contemporâneo. Se por um lado, seu universo mitológico nos causa estranhamento através de um jogo de alteridade, algumas de suas preocupações e dos seus valores nos aproximam, como no caso Amarniano, pois ao enfocar aspectos míticos e religiosos, percebemos as inúmeras ressonâncias dessas temáticas em nossa própria cultura. Dessa forma, acreditamos que colaboraremos para despertar o interesse dos alunos da Universidade Federal do Amazonas pela área de História Antiga.

Tomaz Tadeu da Silva (2000) problematiza os conceitos da identidade e diferença. Explica que a identidade é um processo de produção simbólica e discursiva, ao afirmar uma identidade, está se negando outras. A diferença é ‘um produto derivado da identidade’ (SILVA, 2000, p. 73), sendo assim, identidade e diferença completam-se. O autor afirma que identidade e diferença são frutos de criação linguística, fazem parte do mundo cultural e social. A linguagem faz parte desse processo, pois é através da fala que produzimos a identidade e a diferença. (SILVA, 2000).

A identidade e diferença são resultados de processos culturais e sociais, assim, as pluralidades delas são inevitáveis. Não podemos definir a identidade, já que ela trabalha em conjunto com a diferença. Seguindo essa lógica, o Grande Hino a Aton, que exprime a nova religião Amarniana, tem como base os hinos solares de Amon-Rá. Explicamos ao longo do desenvolvimento do presente projeto, que o período Amarniano se define e se caracteriza por uma reforma político-religiosa, onde Akhenaton em sua “nova” religião solar cultua somente o deus Aton. No entanto, questionamos: apesar da reforma religiosa, pode-se negar a influência dos processos religiosos anteriores ao período Amarniano? Com base das leituras realizadas, é certo que não.

Jan Assmann (2001) afirma que os hinos solares de Amon-Rá, serviram de exemplo para os hinos de Aton. Nicolas Grimal (2012) explica que não há nada de renovação e nem tão pouco uma novidade. Regina Coeli (2009) na sua dissertação apresenta as aproximações do culto a Aton aos cultos solares anteriores ao período de Amarna. Gisela Chapot (2015) na sua tese apresenta o cenário Amarniano como ‘uma nova visão de mundo’ construída por Akhenaton, que ao lado da família real Amarniana, apresenta a sociedade egípcia, uma família reunida que oficializavam os cultos a Aton. Além de seu ofício como faraó, Akhenaton é representado como esposo e pai, o que destaca seu lado humano. Chapot apresenta essa família através da iconografia, em que se percebe o diferencial do período Amarniano em relação aos períodos anteriores. Até então, um rei se expor ao lado da sua esposa e suas filhas não era algo comum.

Observa-se então, que a identidade religiosa Amarniana tem ligações com identidades religiosas solares anteriores, assim fica claro que a identidade e diferença trabalham em conjunto na construção e produção social e cultural.

Cecília Azevedo (2003) apresenta múltiplas faces da abordagem das identidades, afirma que devemos identificar as duplas características em dois princípios: principio da alteridade e principio da representação ou encenação. As identidades são construídas com base em acontecimentos, valores, interesses e ideias que projetam as identidades coletivas (AZEVEDO, 2003, p. 45), ressalta ainda que “identidade é uma construção social e simbólica dinâmica em função de sua permeabilidade em face do contexto. Portanto, as identidades mostram-se móveis porque contingentes.” (AZEVEDO, 2003, p. 43)

Norberto Luiz Guarinello (2013) aborda a História antiga como tipo de memória social, que é primordial para o desenvolvimento da identidade coletiva. Através da memória, as identidades são formadas, por meios de processos que ao longo dos séculos, percebemos que a construção da identidade tem espaço nas Ciências Humanas contemporâneas. “A memória social é, com frequência, um campo de conflito, no qual diferentes sentidos são conferidos ao passado: personagens e fatos distintos são valorizados ou rejeitados, interpretações são contrapostas, silêncios ou rememorações festivais se confrontam.” (GUARINELLO, Norberto Luiz, 2013, p.9)

A teologia heliopolitana é praticada desde o Antigo Império (2686-2181 a.C), os cultos heliopolitanos foram bastantes praticados no Médio Império (2055-1650 a.C). O Novo Império (1550-1069 a.C.)5 que tem início a partir da 18º dinastia teve como ênfase os cultos solares, o principal os de Amon-Rá. A solarização na religião egípcia é o marco na civilização egípcia, que tem suas formas e significados associados ao mito de criação.

Então, apesar da reformulação religiosa, acreditamos que o período Amarniano não fora algo “novo” na religião solar egípcia como tantas vezes se defende na egiptologia. A solarização já era algo predominante da religião egípcia, que ao longo dos períodos dinásticos, ganhou novas características. Akhenaton e Nefertiti formaram um casal político, onde apresentaram por meio da arte Amarniana, cenas íntimas do casal. Nos cultos, realizavam oferendas a Aton que com seus raios terminados em mãos, abençoava o casal solar. Nas representações, suas filhas também participam dos cultos- principalmente Meritaton- em alguns casos, Nefertiti com sua filha aparecem realizando as oferendas, em outras, Akhenaton e sua filha. Formam uma família e esse foi o diferencial na imagem da religião Amarniana associada a uma família ensolarada, isso foi primordial para o ofício religioso de Amarna.

NOTAS:

1O autor usa a palavra “doutrina” para se referir à religião estabelecida por Akhenaton, o que é consideravelmente anacrônico, já que essa ideia é proveniente do monoteísmo judaico-cristão. Talvez a intenção do autor fosse enfatizar a base do ensinamento transmitido pelo faraó, porém acreditamos que “doutrina” não seja a palavra mais apropriada para tratar desse período Amarniano.

2 Tradução livre do original do autor: “The beautiful doctrines of the religion with which this Pharaoh’s name is identified were productions of his later days; and until he was at least seventeen or eighteen years of age neither his exalted monotheism nor any of his future principles were really apparent. Some time after the eighth year of his reign one finds that he had evolved a religion so pure that one must compare it with Christianity in order to discover its faults; and the reader will presently see that the superb theology was not derived from his education”.

3 A tese de doutorado de Gisela Chapot da UFF trabalha a cosmovisão do reinado de Akhenaton, em que se estabelece a ideia de um deus “solarizado”, propagado pela nova teologia solar do deus Aton em volta da família real Amarniana.

4Erik Hornung debate as formas de definição do faraó que predominaram ao longo do século passado. Durante muito tempo se considerou apenas a natureza despótica do rei, mas em 1902 Alexandre Moret começou a especular sobre a divindade do rei, que era fundamental para o entusiasmo de construções tão monumentais como as feitas no Egito. A partir dos anos 60 Georges Posener enfatizou o seu aspecto humano, atrelado ao divino, tendência que tem se fortalecido desde então. Hornung descarta o ainda tão usado termo cunhado por Moret de “rei-deus”, conceito que ilustra apenas a sua faceta divina em detrimento de sua humanidade, e de seu papel como representante do culto. Cf: HORNUNG, 1994, p. 252.

5 Os anos datados são utilizados por Emanuel Araújo (2000), que segue a linha cronológica de Shaw & Nicholson (1996, 310-312). Araújo explica que está listado apenas o que constavam no texto. Observa-se na cronologia algumas fases de reinados de faraós que não foram datados. A cronologia egípcia foi estipulada pelo sacerdote egípcio Maneto (323-245 a.C) que dividiu em trinta dinastias o reinado dos reis. Essa cronologia não é totalmente precisa, porém egiptólogos seguem essa divisão. Há também a trigésima primeira dinastia, que foi estipulada por um cronógrafo subsequente. De qualquer forma, o contexto histórico egípcio é baseado nos registros de Maneto. Em 332 a.C, o rei da Macedônia, Alexandre, o Grande começa seu reinado no Egito. Consequentemente, o Egito passou a seguir uma linhagem Greco-macedônica, de origem ptolomaica e tendo como o general Ptolomeu de Alexandre (posteriormente rei Ptolomeu I) o descendente dessa linhagem. Cleópatra VII foi a ultima rainha da linhagem egípcia Greco-macedônica, depois disso o Egito tornou-se uma província romana em 30 a.C. Assim, deu-se o inicio do Império Romano, com a linhagem chamada de período Greco-romano. Antes do Egito se torna um reino unificado em 3100 a.C e do estabelecimento das dinastias, a população vivia em varias comunidades no Delta e no decorrer do Nilo. Essas comunidades desenvolveram-se gradativamente e dividiram-se em dois reinos, um localizado no norte e outro no sul. Contemporaneamente, esse contexto é conhecido como período Pré-Dinástico (c. 5000- c. 3100 a.C). (DAVID, 2011).


Inara Kézia Gama, 20, é acadêmica do 7° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.