quinta-feira, 15 de agosto de 2019

De súditos a inimigos: Perseguição a alemães, italianos e japoneses no Amazonas durante a 2° Guerra (1942-1945)

Alemães, italianos e japoneses, em diferentes cidades do Brasil, foram expulsos de organizações durante a Segunda Guerra. FONTE: Diário da Noite, RJ, 30/03/1942.

O ano de 1942 foi marcante na História do Brasil. Em 28 de janeiro de 1942, treze dias após conferência dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, com o objetivo de obter o alinhamento dos países Sul-Americanos no conflito, o país rompeu suas relações diplomáticas e comerciais com as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Como represália, navios brasileiros da Marinha Mercante passaram a ser atacados e afundados por navios e submarinos alemães e italianos. Em 22 de agosto de 1942 é declarada por Getúlio Vargas guerra ao Eixo.

A reação popular foi instantânea às ofensivas militares contra o Brasil, assim como as políticas internas contra os imigrantes alemães, italianos e japoneses, que passaram a ser vistos como potenciais inimigos da nação. No presente texto será abordada a perseguição a esses súditos do Eixo no Amazonas durante a Segunda Guerra, mais especificamente entre os anos de 1942 e 1945.

Alemães e italianos viviam no Amazonas desde a segunda metade do século XIX. Os japoneses chegaram no início do século XX. Ambos exerciam diferentes atividades, fosse em colônias agrícolas no interior ou em estabelecimentos comerciais e repartições públicas na capital. A relação do Estado e da população local com estes sofreu mudanças drásticas a partir das investidas do Eixo contra o Brasil e a entrada do país no conflito.

No dia 07 de fevereiro de 1942 o Chefe de Polícia do Estado baixou uma portaria policial sobre o trânsito de alemães, italianos e japoneses no Estado. Essa portaria estabeleceu guias de trânsito para os súditos do Eixo. 

As guias seriam expedidas pela chefia de polícia em Manaus e pelos delegados gerais de polícia dos municípios do interior. Os estrangeiros que quisessem viajar para o interior ou para fora do Estado deveriam encaminhar um requerimento para a chefia de polícia, com nome, nacionalidade, idade, estado civil, profissão, embarcação em que viajariam, destino e endereço no local, número da carteira de registro de estrangeiro e o nome do órgão que a expediu. 

Os delegados gerais do interior só poderiam expedir guias de trânsito a quem desejasse viajar para outros municípios ou para a capital. Em hipótese alguma deveriam expedir guias para viagens para fora do Estado, sendo essa uma atribuição da Chefia de Polícia. Os alemães, italianos e japoneses que moravam no interior e queriam viajar para fora do Estado deveriam enviar um requerimento para a Chefia de Polícia através dos Delegados Gerais dos municípios. Todos os meses a partir da publicação da portaria os Delegados Gerais ficariam obrigados a enviar à Chefia de Polícia na capital uma lista com todos os dados dos estrangeiros aos quais foram expedidas guias de trânsito (Jornal do Comércio, AM, 08/02/1942).

Antonio Cavalcante de Oliveira Lima, Chefe de Polícia do Estado do Amazonas, por ordem do Interventor Federal Álvaro Botelho Maia, determinou que todos os cidadãos alemães, italianos e japoneses residentes em Manaus comparecessem à Seção do Serviço de Registro de Estrangeiros para realizarem a declaração de residência (Jornal do Comércio, AM, 08/02/1942).

Em 17 de março de 1942, mês em que foram atacados por submarinos alemães os navios Arabutã e Cairu, nos Estados Unidos, estudantes e operários de Manaus organizaram um comício em protesto aos países do Eixo e em solidariedade ao Governo Brasileiro (Diário da Noite, RJ, 17/03/1942). O clube de futebol Olímpico Clube realizou no dia 29 de março um festival em disputa pela taça Osvaldo Aranha, em referência a Osvaldo Euclides de Sousa Aranha, Ministro das Relações Exteriores. Na ocasião, a diretoria expulsou de seu quadro de associados todos os estrangeiros dos países que formavam o Eixo (Diário da Noite, RJ, 30/03/1942).

No dia 22 de julho do mesmo ano o Professor Carlos Mesquita, do Colégio Amazonense Dom Pedro II, organizou um comício com os estudantes contra o Eixo. Além dos discentes e professores, esse comício contou com grande número de populares, estando presentes o Interventor Federal Álvaro Botelho Maia, o Presidente do Departamento Administrativo e o Prefeito Adhemar de Andrade Thury (Diário de Notícias, RJ, 22/07/1942). Uma Liga Contra o Eixo chegou a ser criada.

Os momentos de maior tensão ocorreram em janeiro de 1943, quando foi aberto um inquérito investigativo contra o coletor José Vieira de Andrade, suspeito de simpatizar com os países do Eixo; e um de maior repercussão, ganhando as páginas dos jornais do Rio de Janeiro, sobre a possível sabotagem de japoneses em Parintins e Vila Amazônia. Este último, pelo teor das denúncias, foi mais grave, pois nada foi comprovado contra José Vieira de Andrade.

Conforme informações obtidas por jornais cariocas (Diário da Noite, 25/02/1943; O Radical, 28/02/1943), José Aniceto Costa, membro da diretoria da Companhia Industrial do Amazonas, denunciou através do jornal amazonense O Jornal a sabotagem que japoneses estariam cometendo nos núcleos agrícolas de Parintins e Vila Amazônia, comprometendo a produção local. O caso rapidamente se espalhou, gerando temor no Estado e em outras regiões. O jornal O Radical, do Rio de Janeiro, afirmava, comentando o caso de Parintins, que "Os japoneses que vivem no Brasil são nossos inimigos e como tal devem ser encarados".

O Interventor Álvaro Botelho Maia, a par da situação, determinou que o Delegado de Ordem Política e Social, Sebastião Norões, abrisse um inquérito. Álvaro Maia enviou o seguinte telegrama para o representante do Amazonas na capital Federal:

"A interventoria determinou a abertura de um novo inquérito na vila da Amazônia. Foi ouvido o denunciante José Aniceto Costa, diretor comercial da antiga Companhia Japonesa estabelecida naquele porto. As autoridades do município de Parintins são oficiais da Força Pública: prefeito, delegado especial militar, comandante do destacamento e sub-delegado. Logo que termine depoimento em Manaus, o delegado da Ordem Social irá a Parintins". (Gazeta de Notícias, RJ, 26/02/1943).

Sebastião Norões foi a Parintins, tendo regressado no dia 13 de abril. Em Manaus, Norões ficou no aguardo do Capitão do Exército designado pelo Comando da 8° Região Militar para apurar a denúncia. José Aniceto Costa foi levado preso de Parintins a Manaus, pois as autoridades nada encontraram sobre a possível sabotagem nipônica naquela região. As denúncias, aparentemente, eram mesmo infundadas, fruto do estado psicológico de beligerância e do medo constante do inimigo, pois na Exposição Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro Maia, Interventor Federal, de Maio de 1942 a maio de 1943, o Interventor relatou o seguinte:

"O próprio caso de Parintins, que chegou a impressionar a opinião pública nas primeiras versões sempre exageradas, não teve consequências que perturbassem o ritmo da ordem naquele município, apurando afinal as investigações in-loco que os japoneses, ali organizados numa sociedade agro-pastoril, não exerciam atividades nocivas ao regime atual". (Exposição, maio de 1942/maio de 1943, p. 61).

Mesmo que o caso de Parintins tenha sido infundado, o Governo do Estado do Amazonas criou duas Delegacias Especiais de Polícia Militar, "[...] uma com atuação no Baixo-Amazonas, extendendo-se a sete dos seus municípios onde se domiciliam naturais dos países do Eixo, e outra em Bôa-Vista do Rio Branco, região fronteiriça que, por essa circunstância, impunha a providência governativa, dada a concorrência de estrangeiros atraídos para ali pela mineração de ouro e diamantes" (Exposição, maio de 1942/maio de 1943, p. 62).

Foram nomeados para Parintins, onde viviam os colonos japoneses, e Boa Vista do Rio Branco, região com campos de criação e áreas de garimpagem, Prefeitos militares.  Para melhor vigiar e isolar os estrangeiros eixistas, foi criado um campo de concentração em Manacapuru, na antiga Fazenda Nova Hamburgo, propriedade do alemão Kurt Kremer ocupada pelo Estado e rebatizada com o nome Fazenda Baependi, em homenagem ao navio Baependi, afundado em 15 de agosto de 1942 por um submarino alemão. Álvaro Maia informou que ele

"Tornou-se desnecessário, até agora, porque na Penitenciária ha apenas três alemães. Quanto aos agricultores japoneses, espalhados por Parintins e outros Municípios do Baixo Amazonas, estão sob vigilância policial. Os italianos, antigos residentes no Amazonas, não oferecem o menor perigo" (Exposição, maio de 1942/maio de 1943, p. 98-99).

A afirmação de que os italianos não ofereciam perigo é interessante. Comparados aos alemães e japoneses, eles pouco sofreram com as perseguições. Aliás, desde a década de 1920 funcionou em Manaus uma célula do Partido Nacional Fascista, sem maiores problemas com as autoridades locais. Eles publicavam seus convites para reuniões e eventos nos jornais, como o que foi traduzido e reproduzido abaixo:

"Para comemorar o oitavo aniversário da Batalha de Vittorio Veneto e o aniversário de S. M Vittorio Emanuele III, este Fascio irá realizar uma sessão cívica, seguida de um modesto baile. Todos os membros e suas famílias, assim como os italianos em geral, são convidados para o evento; é necessário que os membros providenciem o recebimento do último outubro na entrada, enquanto que, para os não-membros, é necessário mostrar o respectivo convite, que será enviado por solicitação, pela comissão organizadora, todas as noites, para a sede da a empresa acima mencionada, das 9h às 11h. 

Manáos, 10 de novembro de 1926
O diretório" (Jornal do Comércio, 11/11/1926).

Em 15 de julho de 1943, Sebastião Norões, Delegado de Ordem Política e Social, baixou uma portaria determinando que alemães, italianos e japoneses residentes em Manaus, no prazo de 15 dias, registrassem na chefia de polícia todos os seus aparelhos fotográficos (A Manhã, RJ, 16/07/1943). Temia-se a espionagem através de máquinas fotográficas, pois na Argentina já havia sido presos japoneses com registros de plantas de cidades daquele país.

Jefferson Péres, em seu livro de memórias Evocação de Manaus, recupera alguns momentos violentos da perseguição aos alemães em Manaus durante a Segunda Guerra. A tradicional Photographia Alemã, localizada na Avenida Eduardo Ribeiro, fundada pelo alemão George Huebner, dadas as animosidades e perseguições, mudou de nome em 1944, passando a chamar-se Foto Artística. O Consulado Alemão, na Avenida Joaquim Nabuco, foi depredado pela população em 1943.

Crianças e jovens malhando um boneco de Judas simbolizando Adolf Hitler. Manaus, 1943. Foto de Thomas D. Mcavoy. FONTE: Time-Life Photos.

Em 1943 o fotógrafo norte-americano Thomas D. Mcavoy, da Revista Time-Life, em viagem a Manaus, registrou na rua Costa Azevedo, no Centro, um grupo de crianças malhando um boneco de Judas com o nome 'Xitler', uma possível paródia com o nome do ditador Adolf Hitler.

Foram levados para o campo de concentração da Vila de Tomé-Açu, na ilha do Aracá, no Pará, imigrantes de Belém, Parintins e Manaus. Funcionando entre 1943 e 1945, recebeu cerca de "480 famílias japonesas, 32 alemãs e algumas poucas italianas" (GRANDELLE, 2014).

Em trabalho sobre a perseguição a estrangeiros em Juiz de Fora, MG, durante a Segunda Guerra, o historiador Luiz Antonio Belletti Rodrigues afirma que o clima de guerra e a perseguição a inimigos internos serviu de mecanismo de fortalecimento da política getulista, através da propaganda política de exaltação dos valores patrióticos. Conforme Luiz Antonio, 

"O inimigo externo serviu de pretexto para que a nação se unificasse em torno de seu líder, Getúlio Vargas, e qualquer manifestação em contrário seria considerada uma sabotagem. O inimigo interno era qualquer um que não concordasse com o governo" (RODRIGUES, 2016, p. 01).

Esse é um capítulo pouco conhecido da História do Amazonas. Não se teve a pretensão de esgotar o tema nesse texto. São necessárias pesquisas mais profundas: Levantar  o número de estrangeiros presos no período, conhecer suas trajetórias, o funcionamento do campo de concentração da Fazenda Baependi e outros aspectos. Em suma, é um capítulo da história a ser escrito.


FONTES:

Jornal do Comércio, AM, 11/11/1926.

Jornal do Comércio, AM, 08/02/1942.

Jornal do Comércio, AM, 08/02/1942.

Diário da Noite, RJ, 17/03/1942.

Diário da Noite, RJ, 30/03/1942.

Diário de Notícias, RJ, 22/07/1942.

Diário da Noite, RJ, 25/02/1943.

O Radical, RJ, 28/02/1943.

Gazeta de Notícias, RJ, 26/02/1943.

A Manhã, RJ, 16/07/1943.

AMAZONAS. Exposição Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro Maia, Interventor Federal, de Maio de 1942 a maio de 1943.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GRANDELLE, Renato. Pará teve campo de concentração durante Segunda Guerra Mundial. O Globo, 08/02/2014.

PÉRES J. Jefferson Carpinteiro. Evocação de Manaus: Como eu a vi ou Sonhei. Manaus: Valer, 2002.

RODRIGUES, Luiz Atonio Belletti. Perseguições a estrangeiros durante II Guerra Mundial:  O assalto ao Banco Hypotecário de Juiz de Fora, MGXX Encontro Regional de História - História em Tempos de Crise - Anpuh MG, 2016, Uberaba. Anais do XX Encontro Regional de História, 2016.

sábado, 10 de agosto de 2019

A tartaruga na economia amazonense (séculos XVIII e XIX)

Pesca das tartarugas. FONTE: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá/Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

A tartaruga, no passado remoto do Amazonas, foi um dos principais produtos da economia local. Antes que a borracha suplantasse, ainda nos tempos da Província, outras atividades, a tartaruga e seus derivados figuravam entre os principais produtos de exportação. O sabor inigualável de sua carne, dos ovos e os usos de sua gordura a tornavam um produto bastante visado. 

Em viagem de correição das povoações da Capitania de São José do Rio Negro entre 1774 e 1775, o Ouvidor e Intendente Geral Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, em seu diário, registrou os usos da tartaruga pelas populações, da captura aos preparos:

"No tempo, em que as tartarugas estão nas praias, he que se faz o maior provimento, porque se lança mão dellas, e se virão com as costas para a terra, ficando assim impossibilitadas a moverem-se, e se carregão para as embarcações.

Os ovos não só servem para se comerem, mas tambem delles se fabrica o azeite, ou manteiga, que constitue hum importante ramo do commercio entre as capitanias do Pará, e Rio Negro. Este azeite se purifica ao fogo. Das banhas da tartaruga se extrahe tambem outra manteiga, que he na verdade excellente. Em fim a tartaruga he sadia, nutritiva, e de facil digestão. Os indios a preferem a todo o outro genero de comida, e os nossos europeos, costumados a ella, lhe dão a mesma preferencia". (SAMPAIO, 1825, p. 86).


No final do século XVIII, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) notou que, na Capitania de São José do Rio Negro, assim como em toda a região amazônica, a tartaruga era vital para os indígenas e os habitantes brancos. Sua carne substituía a rarefeita presença de gado (FERREIRA, 2005, p. 237). O governo da Capitania mantinha canoas utilizadas na condução de tartarugas dos pesqueiros, que além da população civil, também abasteciam as tropas de guarnição.

Apesar de fazer parte da economia da Capitania, a captura de tartarugas era feita de forma bastante irregular, pois muitas delas morriam ou se perdiam no processo, conforme registrado por Ferreira:

"[...] 2.896 que entraram no ano passado para o curral da capitania, morreram 1.600, que se não aproveitaram. No de 1784 entraram 2.710 e morreram 1.217. No de 1783 entraram 2.892 e morrerem 833. E por este modo vem cada tartaruga a importar em um preço que por nenhum título se acomoda com a razão e com a economia". (FERREIRA, 2005, p. 245).

Alexandre Rodrigues Ferreira produziu um interessante registro iconográfico sobre o recolhimento dos ovos de tartaruga e o preparo e engarrafamento da manteiga.

Recolhimento dos ovos de tartaruga e preparo da manteiga. FONTE: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Acervo de Antonio José Souto Loureiro.

A economia gerada em torno da tartaruga era altamente predatória, como registrou Alexandre Rodrigues Ferreira. Estima-se que para produzir um galão com o óleo eram necessários 2000 ovos. Em uma época de bom recolhimento os indígenas chegavam a produzir 2000 potes do produto (totalizando 4 milhões de ovos), comercializados nas capitanias de São José do Rio Negro e Grão Pará.

Mais de um século depois, por volta de 1849 o viajante e naturalista britânico Alfred Russel Wallace, em viagem pelos rios Amazonas e Rio Negro, experimentou diferentes pratos feitos com tartaruga, de omeletes a carne guisada. Wallace notou que a tartaruga era o principal réptil da região:

"Dos seus ovos prepara-se excelente óleo. A maior e mais abundante é a grande tartaruga do Amazonas, ou a jurará dos índios. Atinge ao comprimento de 3 pés e tem o casco oval, um tanto achatado, de cor escura e inteiramente liso. É encontrada abundantemente em todas as águas do Amazonas, e na maior parte dos lugares é o alimento comum dos habitantes". (WALLACE, 2004. p. 563).

Wallace nos informa que as tartarugas, no mês de setembro, logo após a descida dos níveis dos rios, depositavam seus ovos nos bancos de areia que se formavam, fazendo buracos profundos. Os indígenas, conhecedores há séculos dessa periodicidade, ia às praias, recolhendo milhares de ovos. Wallace nos descreve o processo de preparo do óleo, seus usos e consequências:

"Enchem as suas canoas com os ovos que, em seguida, dentro da própria canoa, são quebrados e misturados a um só tempo. O óleo sobrenada, e, em seguida, é escumado e cozido, sendo guardado, depois dessa operação, a fim de ser usado para a iluminação ou culinariamente. Destroem-se assim, anualmente, milhões de ovos. Em conseqüência dessa devastação, estão-se tornando cada vez mais raras as tartarugas grandes do Amazonas". (WALLACE, 2004, p. 563).

Os indígenas capturavam as tartarugas com anzol, rede ou flechadas, sendo o último método o mais utilizado. As estimativas de Wallace da quantidade de ovos empregados na produção de óleo são maiores que as de Alexandre Rodrigues, levando-se em conta, claro, o espaço de tempo que separa os escritos de cada um:

"Nas praias mais extensas, chega-se a produzir dois mil potes de óleo por ano. Cada pote contém 5 galões, e são necessários cerca de 2.500 ovos para cada pote, o que dá a cifra de 5.000.000 de ovos destruídos em uma só localidade". (WALLACE, 2004, p. 563).

A captura desenfreada de tartarugas e o uso desmedido de seus ovos, denunciadas por Alexandre Rodrigues Ferreira no século XVIII, já mostravam seus efeitos na segunda metade do século XIX. Wallace notou que as tartarugas começavam a se tornar cada vez mais raras. Isso refletia no preço que o animal e seus derivados atingiam nas cidades. Em Manaus, por volta de 1859, D. Lourença de Barros França vendia o pote de manteiga de ovos de tartaruga a 9 mil réis (ESTRELLA DO AMAZONAS, 01/01/1859). 

A Província do Amazonas tinha uma arrecadação significativa com a exportação de tartarugas. No ano de 1858 foram cobrados mil réis por cada uma que foi exportada (ESTRELLA DO AMAZONAS, 10/03/1858). Em 27 de dezembro de 1870, o paquete a vapor Belém saiu de Manaus com uma carga de 295 latas e 57 potes de manteiga de tartaruga com destino ao Pará (COMÉRCIO DO AMAZONAS, 31/12/1870).

O óleo de tartaruga era empregado na iluminação das vilas e cidades. O historiador Otoni Moreira Mesquita afirma que o viajante e naturalista alemão Johann Baptist von Spix, em 1819, "notou que o óleo de tartaruga de "pior qualidade" era empregado em lâmpadas, como azeite de iluminação" (SPIX apud MESQUITA, 2006, p. 106). A iluminação não era das melhores, pois eram frequentes as queixas de administradores e da população, que a partir das 18 horas encontravam-se em uma quase completa escuridão, não fossem alguns poucos focos de iluminação com óleo de tartaruga ou de peixe-boi. Objetos também eram confeccionados com seus ossos e casco. Em 1864 o Centro Comercial Amazonense, do 'Teixeira Barateiro', anunciava que tinha para vender "[...] pentes de tartaruga para senhoras, um rico sortimento de obras de tartaruga malhetadas a ouro: como seja grampos para cabellos, pentes, alfinetes para peito, fivellas para cinto, botões para punhos & tudo obras de gostos admiraveis" (O CATEQUISTA, 23/01/1864).

Nesse período as autoridades locais começaram a condenar a forma como a tartaruga era explorada, de forma altamente predatória e danosa ao meio ambiente. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, 1° Vice-Presidente da Província do Amazonas, sancionou a Lei N° 102, de 08 de Julho de 1859, sobre a viração, captura e pesca de tartarugas e pirarucus. Sobre as tartarugas, ficou estabelecido nos incisos 1° e 2° do Artigo 1:

"Art. 1°. Fica prohibido em toda a Provincia:

§ 1°. A condução de tartarugas em canôas ou jangadas de modo que fiquem apinhoadas ou cavalgadas uma sobre as outras, e por isso em numero maior de uma por cada 4 arrobas, que lotar a conoa, ou de treze por cada tonellada. Os infractores soffrerão a multa de 1.000 reis, ou meio dia de prisão, por cada tartaruga excedente do numero fixado por arrobas ou tonelladas.

Fica sujeito ao dobro d'estas penas, por cada tartaruga todo aquelle que as conservarem em curraes ou depositos, em espaço menor de quatro palmos.

§ 2°. A' viração ou frechação das tartarugas, durante a epocha da desovação, que deve contar-se dez dias antes de principiarem ellas a reunirem-se em cada praia ou localidade, com a pena de tres mil reis, ou dia e meio de prisão á cada pessoa emprega n'este serviço, e de 1.000 reis, ou meio dia de prisão por cada tartaruga virada, ou frechada". (ESTRELLA DO AMAZONAS, 10/09/1859).

Apesar da proibição, a captura desmedida de tartarugas e o recolhimento de seus ovos continuou. Três anos depois, em 1862, o Presidente da Província do Amazonas Manoel Clementino Carneiro da Cunha chamou de "desenfreada orgia" a forma como os ovos continuavam a ser recolhidos e esmagados:

"E' revoltante o que se pratica nas praias depois que as tartarugas ali sobem para depositarem os ovos! Para as mulheres começa o trabalho, para os homens a mais desenfreada orgia, segundo o que se me informa. Milhares de milhares de ovos, desses germens de uma futura e abundante riquesa, permitta-se-me a expressão, são safrificados á voracidade dessas aves de rapina, para o fabrico da manteiga" (AMAZONAS, 1862, p. 50).

Falando sobre a produção de azeites na Província, Manoel Clementino Carneiro da Cunha informa que, se ela fosse aperfeiçoada, traria grandes benefícios. No entanto, ela permanecia

"[...] no seu estado de irregularidade, e imperfeição primitivas, tornando-se antes um elemento de damno do que de utilidade para a Provincia, que vê todos os annos a grande perda que por ahi vai em suas praias, de immensos ovos de tartarugas estragados brutalmente no emprego que delles fazem sem methodo, e sem proporção no fabrico do azeite resultando desse estrago soffrer a população falta, de abastança de tartarugas, de que faz a sua alimentação ordinaria; e isso sem que ao menos uma vantagem, ou uma utilidade real, e conveniente, resulte dessa manipulação, que indemnise, ou que compense esse prejuiso". (AMAZONAS, 1862, p. 55).

Apesar das críticas e alertas feitos pelos viajantes nos séculos XVIII e XIX e, mais tarde, pelos administradores públicos locais, e das proibições, a tartaruga continuaria sendo explorada comercialmente de forma predatória por pelo menos mais de um século. 


FONTES:

Estrella do Amazonas, 10/03/1858.

Estrella do Amazonas, 01/01/1859.

Estrella do Amazonas, 10/09/1859.

AMAZONAS. Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa da provincia do Amazonas pelo exm.o senr. dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha, presidente da mesma provincia, na sessão ordinaria de 3 de maio de 1862.

Commercio do Amazonas, 31/12/1870.

REFERÊNCIAS:

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Diários, p. 209-350, 22/10/2005.

MESQUITA, Otoni Moreira. Manaus: História e Arquitetura - 1852-1910. 3° ed. Manaus: Editora Valer, Prefeitura de Manaus e Uninorte, 2006.

SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da viagem que em visita, e correição, das povações da Capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma, no anno de 1774 e 1775. Lisboa: Typographia da Academia, 1825. (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,  2004.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

Acervo de Antonio José Souto Loureiro.


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Como se fosse hoje, o Guarany

O texto a seguir foi publicado no jornal Amazonas Em Tempo em 06 de agosto de 2002. Nele o pesquisador Ed Lincon nos apresenta de maneira concisa a História do Cine Guarany, cinema histórico localizado no Centro de Manaus, entre as avenidas Floriano Peixoto e Sete de Setembro, que caso ainda existisse, teria completado ontem 81 anos.

COMO SE FOSSE HOJE, O GUARANY

O antigo Cine Guarany, entre as avenidas Floriano Peixoto e Sete de Setembro, no Centro de Manaus. FONTE: Acervo de Ed Lincon.

Quem tem mais de 40 anos sabe que o Cine-Theatro Guarany fez parte da vida de muita gente. Da infância, adolescência, juventude, dos idílios que se concretizavam após o início das sessões, enfim, de uma Manaus mais tranquila, mais culta, mais familiar. Hoje, se estivesse "vivo", o Guarany estaria completando 64 anos de existência. Talvez nem tenha "morrido", já que está na memória de muitos manauenses.

O pesquisador Ed Lincon, profundo conhecedor da história do Cine-Theatro Guarany, conta ao Em Tempo, em um texto limpo e sucinto, como tudo começou. "No dia 6 de agosto de 1938 era inaugurado em Manaus aquele que seria o cinema mais querido e amado por todos, o Cine-Theatro Guarany, antigo Cassino Julieta (1907) e depois Cinema-Theatro Alcazar (1912). O Guarany, conforme o sentimento nacionalista da época, foi pintado de verde e amarelo como a bandeira brasileira, substituindo o vermelho e o verde dos tempos do Alcazar".

Lincon diz que o filme de inauguração foi A Carga da Brigada Ligeira, com Errol Flynn e Olivia de Havilland. O cinema era de propriedade da empresa Cinema Avenida Ltda, de Antônio Lamarão e Adriano Bernardino, que mais tarde se tornaria o verdadeiro proprietário, alterando o nome de empresa para A. Bernardino Ltda. Desde sua inauguração, o Cine Guarany manteve a tradição de comemorar todos os anos no dia 6 de agosto o seu aniversário, tendo como comandante da festa Vasco José de Faria, conhecido pela criançada como "Vovô Vasco".

Conforme Ed Lincon, Vasco Faria era português, da cidade do Porto, e foi morar em Manaus aos 13 anos. Era figura obrigatório na porta do Guarany até sua morte em 15 de agosto de 1969. As festas do Guarany começavam às 9 horas do dia 1° e iam até o dia 6, quando havia sorteio de prêmios, distribuição de bombons, balões, gibis e exibição de filmes ao ar livre numa tela montada em dois postes de ferro, localizados no pavilhão São Jorge, conhecido popularmente como "Café do Pina", quando este se situava em frente ao cinema, no meio da rua.

"Para se fazer a projeção ao ar livre, era realizada uma verdadeira mágica para a época, já que o projetor era fixo; o projecionista do Guarany jogava o foco contra um espelho, que conduzia as imagens em movimento para a tela do lado de fora. Antes das sessões, para a realização dos sorteios dos prêmios, o 'Vovô Vasco' contratava radialistas como Ivens Lima, da Rádio Rio Mar, e Belmiro Vianez, da Rádio Baré", escreve o pesquisador.

A frente do cinema era toda enfeitada com bandeirolas multi-coloridas e havia dois potentes alto-falantes tocando músicas de sucesso da época. Tinha também salva de tiros de foguetes de um "mini-canhão" e fogos de artifícios para abrilhantar a festa. Além de Vasco Faria e Adriano Bernardino, outras pessoas ajudavam a organizar a festa, como o velhinho espanhol Domingos Romero, que era o porteiro e que abria as cortinas da tela; Manoel Farias (bilheteiro), e João Miranda, que confeccionava os cartazes dos filmes na entrada.

"No dia 6 de agosto de 1955, ao comemorar 17 anos de fundação, o Guarany inaugurava a "tela panorâmica", com distribuição de revistas, kibons, petecas, balões e sorteio de uma bola de futebol, três garrafas de Martini e outros artigos. Antes da primeira sessão, a criançada trocava gibis na entrada, comendo doces, esperando ansiosas pelo início da festa. Outras figuras características na porta do Guarany eram o xerife Tom Mix, cujo nome (Orlando Braga) verdadeiro ninguém sabia, e que curtia os filmes de faroeste e se vestia a caráter (chapéu, cartucheiras sem revólveres e estrela no peito), e o cego Jaú, que pedia esmolas. Os dois, mesmo não sendo funcionários, tinham o respeito e a admiração dos frequentadores", comenta.

A programação da festa do Guarany consistia em festival de desenhos pela manhã, filmes de aventura ou bang-bang na sessão da 1 h da tarde, filmes românticos na sessão das 4 h, e à noite, chanchadas ou filmes clássicos de aventura. As festas tinham o patrocínio de empresas como J. G. Araújo, Antônio M. Henriques & Cia,, Braga & Cia Ltda., Casa Canavarro, Drogaria Universal e Central de Ferragens.

O Cine Guarany realizou sua última festa de aniversário em agosto de 1964, após a revolução de março, não sendo mais possível a realização dos sorteios, nem a exibição de filmes ao ar livre, cujos postes ficaram abandonados por longos anos até serem retirados em 1972. Após a morte de Vasco Faria, o Guarany entrou em decadência.

Em 1973, enquanto os outros cinemas de Manaus - Odeon, Popular, Ideal, Palace, Éden, Avenida, Victória e Polytheama - fechavam suas portas, apenas o Guarany e o Ipiranga sobreviveram heroicos ao fantasma da demolição e venda até os anos 80, quando o primeiro foi demolido e o outro foi vendido para uma loja de eletrodomésticos.

"Hoje, no lugar do velho e saudoso Guarany, existe uma 'caixa de concreto' denominada Banco, e apenas na lembrança dos mais velhos ficou retida a imagem de momentos inesquecíveis, como o 'Vovô Vasco' Faria e as festas do Guarany", lamenta Lincon.


Como se fosse hoje, o Guarany. Amazonas Em Tempo, 06/08/2002.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Túmulo do Santo Rabi Shalom Emanuel Muyal

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo do santo popular Rabi Shalom Emanuel Muyal está localizado na quadra 11 do Cemitério São João Batista.

Pouco se sabe sobre o Rabi Shalom Emanuel Muyal. Ele teria vindo de Salé, no Marrocos, para Manaus em 1908. Naquele período a comunidade judaica no Amazonas já possuía um número considerável de membros. Dois anos depois, em 12 de março de 1910, morreu vítima de uma doença tropical.

Quem nos informa sobre os milagres de Shalom Emanuel Muyal é a antropóloga Fabiane Vinente dos Santos, no artigo 'Hagiografia de Cemitério: História Social e imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus', de 2008:

"O primeiro “milagre” do Rabino teria acontecido pouco depois de sua morte, por intermédio de uma senhora da comunidade judaica de Manaus que havia cuidado dele durante a doença que o levou à morte. Ela teria conseguido curar apenas usando as mãos uma terceira pessoa de um grave problema ósseo e atribuiu o fato à influencia do rabino, de quem havia tratado antes. 

Um segundo milagre foi descrito num relato publicado na revista Morashá, por David Salgado (2006): 

[...] Outra situação muito conhecida na comunidade manauara é a de um senhor - ainda me lembro bem dele naquele estado - com um problema sério no pescoço que o impedia de andar com a cabeça na posição vertical; esta sempre pendia para o lado. Depois de ter consultado médicos em busca de uma solução para o problema, sem nenhum resultado satisfatório, a mãe do rapaz tomou importante decisão. Abraçada em sua fé no Eterno, D'us de Israel, dirigiu-se certa manhã à tumba de Ribi Muyal, onde fez um pedido especial para que seu filho tivesse pleno restabelecimento". (1)

O túmulo de Shalom Emanuel Muyal recebe, de seus devotos católicos, placas em agradecimento às graças alcançadas, fixadas dentro ou fora da grade que o circunda. As inúmeras pedras vistas sobre seu túmulo são deixadas por judeus. Elas, diferente das flores e velas, que tem uma curta duração, são duradouras, simbolizando a memória que as gerações conservarão do ente falecido.

Reproduzo abaixo algumas das inúmeras placas de agradecimento:

"Agradeço graça alcançada em 02-02-78".

"1989 uma graça alcansada (sic) de Rabi Shalon (sic) agradeço muito, muito".

"1996 recebi as graças que pedi Rabi Shalon (sic)".

"1999 outra graça alcansei (sic) de Rabi Salon (sic) agradeço muito".

"Graça alcançada. 25.02.02. Eva".

Shalom Emanuel Muyal está enterrado em solo cristão do Cemitério São João Batista. O Cemitério Judeu de Manaus, que compreende as quadras 03, 04 e 05 do Cemitério São João Batista, só foi inaugurado em 1928, após cessão daquela área do cemitério pelo município. Em 1980 houve a tentativa, por parte do sobrinho de Shalom Emanuel Muyal, Eliahu Muyal, membro do parlamento de Israel e Vice Ministro dos Transportes  entre 1980 e 1982 (2), de transferir seus restos mortais para Israel. No entanto, essa ação gerou manifestações da comunidade católica local, devota de Shalom. No final das contas, seus restos mortais ficaram em Manaus.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Seu túmulo é bastante simples. A lápide tumular foi construída com mármore. Na cabeceira tumular, uma estrela de Davi. Seu epitáfio está escrito em alto relevo, em português do lado direito e hebraico do lado esquerdo: "Aqui jaz Ribbi Salom H. Moyal Fallecido a 12 de março de 1910. Q E D". A estrutura de alvenaria e a grade que o protegem são mais recentes. No alto dessa estrutura fica uma placa de mármore com o nome do falecido.

NOTAS:

(1) SANTOS, Fabiane Vinente dos; MAIA, Jean Ricardo Ramos. Hagiografia de cemitério: História Social e Imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus. Revista Eletrônica os Urbanitas, São Paulo, v. 5, 2008, p. 13-14.

(2) SALGADO, David. A verdadeira história de Ribi Muyal, em Manaus. Portal Amazônia Judaica. Disponível em: http://www.amazoniajudaica.org/167563/A-Verdadeira-Hist%C3%B3ria-de-Ribi-Muyal-em-Manaus. Acesso em 25/07/19.





sábado, 20 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Mausoléu de José Francisco e Luiz Pinho, Heróis da Força Policial do Estado

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O mausoléu dos Heróis da Força Policial do Estado, José Francisco e Luiz Pinho, está localizado na quadra 15 do Cemitério São João Batista.

Não se têm muitas informações sobre José Francisco e Luiz Pinho. Sabe-se apenas que pereceram no cumprimento de seus deveres durante o Bombardeio feito contra cidade de Manaus em 08 de outubro de 1910.

O Bombardeio de Manaus teve motivações políticas, sendo fruto das disputas oligárquicas entre os Nerystas e os Bittencouristas. Governava o Amazonas na época do bombardeio o Coronel Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt (1908-1913). Bittencourt, anteriormente, fora secretário geral do Governador Silvério Nery (1900-1904) e vice-governador de Constantino Nery (1904-1907). Bittencourt, antigamente aliado dos Nery, se tornou um grande opositor destes, denunciando suas antigas administrações, os empréstimos duvidosos, não pagos, e os gastos pessoais exorbitantes. Bittencourt foi acusado pelos apoiadores de Nery de estar realizando uma péssima gestão e de manter negócios particulares enquanto ocupava o cargo de governador, o que era proibido. Por conta disso, Bittencourt foi declarado inapto para exercer o cargo. 

Uma carta de renúncia foi forjada pelo Senador Silvério Nery, pelo vice-governador do Estado Sá Peixoto e outros membros do Congresso, interessados na queda de Bittencourt. No entanto, Bittencourt não entregou o cargo, oferecendo resistência armada. Nery e Sá Peixoto, com apoio do Senador gaúcho Pinheiro Machado, opositor de Bittencourt e apoiador da oligarquia Nery, tomaram medidas drásticas: O bombardeio da cidade de Manaus, por navios da Flotilha da Marinha de Guerra vindas do Rio de Janeiro, no dia 08 de outubro de 1910.  O bombardeio ocorreu às 5:30 da manhã. Militares do Exército desembarcaram e foram em direção ao Palácio do Governo, onde foi travada uma luta com a força policial do Estado. O governador Bittencourt se refugiou no Pará. Seu antigo aliado, Sá Peixoto, assumiu o governo (1). José Francisco e Luiz Pinho podem ter morrido tanto vítimas dos disparos dos navios quanto do enfrentamento no Palácio do Governo.

Encerradas, por ora, essas disputas políticas, com a retorno ao estado de normalidade, Antônio Bittencourt, que estava refugiado em Belém, no Pará, voltou a Manaus no dia 31 de outubro de 1910, assumindo novamente o Governo do Estado. Para tal teve apoio do Presidente Nilo Peçanha. Tomando conhecimento das baixas ocorridas, mandou construir um monumento-túmulo em homenagem aos dois militares.

O mausoléu dos Heróis da Força Policial do Estado foi inaugurado às 9:30 do dia 08 de outubro de 1911, primeiro aniversário do bombardeio, contando com a presença do Governador do Estado, das forças policiais e de milhares de pessoas que fizeram uma grande romaria até o Cemitério São João Batista (Jornal do Comércio, 09/10/1911). O trabalho foi executado pela Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi.

FOTO: Fábio Augusto, 2018.

O mausoléu foi construído inteiramente com mármore de Carrara, com exceção da base, possivelmente de 1910 e feita de alvenaria (recebeu uma pintura recente de cor prata). Do pedestal parte uma coluna, forma clássica de um monumento erguido para a posteridade. Quando ela está partida, simboliza a morte prematura, inesperada, de seus homenageados. Ao lado da coluna, duas piras simbolizam o fogo eterno, a lembrança duradoura dos atos dos dois praças e a determinação de ambos. Em outubro de 2018 as duas estavam intactas. Em visita no mês de fevereiro do ano corrente, a do lado direito tinha sido arrancada. A tampa tumular, com uma cruz em baixo relevo, não é da época da construção. De acordo com relato de Eros Augusto Pereira da Silva, a original foi danificada e substituída em 2010. O epitáfio está inscrito no pedestal da coluna:

"A memoria dos heroes da Força Policial do Estado José Francisco e Luiz Pinho. Viandante que passas descoidado detem-te um pouco e considera que este pobre tumulo guarda em seu seio os restos mortaes de duas vitimas do crime de 8 de outubro de 1910".

Todos os anos, no mês de outubro, a Polícia Militar do Estado do Amazonas se dirige até o Cemitério São João Batista para reverenciar a memória de José Francisco e Luiz Pinho, Heróis da Força Policial do Estado e personagens de um episódio marcante de nossa História.

FONTE:

Jornal do Comércio, 09/10/1911.

NOTA:

(1) O Bombardeio de Manaus é um episódio deveras complexo para ser analisado em seus pormenores nesse texto. Para conhecer seus desdobramentos na íntegra, ver FEITOSA, Orange Matos. À Sombra dos Seringais: Militares e Civis na construção da ordem republicana no Amazonas (1910-1924). USP, São Paulo, 2015. Tese (Doutorado em História).

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos está localizado na quadra 10 do Cemitério São João Batista.

Pouco se sabe sobre a vida de Leopoldo de Moraes e Mattos (1875-1928), natural do Estado do Mato Grosso. Estudou na Escola Militar do Rio de Janeiro por volta de 1890. Pelos serviços prestados durante a Revolta da Armada, na Fortaleza de Santa Cruz, foi promovido a patente de Tenente (O Paiz, RJ, 10/10/1894). Em Manaus desempenhou os cargos de Delegado Fiscal do Estado do Mato Grosso, cônsul no Japão, no Uruguai e Provedor da Santa Casa de Misericórdia. Entre 1918 e 1919 atuou nas questões de fronteira entre os Estados do Amazonas e Mato Grosso.

O cargo em que mais se destacou foi no de Provedor da Santa Casa de Misericórdia. Na década de 1920 Leopoldo de Moraes e Mattos operou grandes melhorias nessa instituição. Em 27 de agosto de 1922 entregou novos pavilhões de 1° e 2° classe no piso superior da instituição, ambos equipados com elevadores. Em tempos de crise econômica, conseguiu garantir a regularidade dos serviços de farmácia, radiologia, odontologia, maternidade, exames bacteriológicos, enfermaria para tubérculos e o atendimento aos doentes mentais (O Paiz, RJ, 02/10/1926). Assim foi descrita a Santa Casa no período em que ele a estava provendo:

"Este pio instituto de caridade, encontra-se hoje num tal estado de adiantamento, que pode concorrer com os melhores estabelecimentos do paiz. O sr. Leopoldo de Mattos, seu provedor, tem se mostrado um administrador digno de encomios pelo muito que tem feito para esse gráo de prosperidade" (AMAZONAS. Mensagem apresentada á Assemblea Legislativa pelo Exm. Snr. Antonio Monteiro de Souza em 14 de julho de 1927, p. 129).

Aspectos do túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos e, no centro, um retrato dele. FONTE: O Malho (RJ), 05/10/1929.

O túmulo do Coronel Leopoldo de Moraes e Mattos foi construído pela Santa Casa de Misericórdia como uma homenagem ao seu antigo provedor. Ele é todo em granito negro. Na cabeceira tumular, no nível central, destaca-se um medalhão de Cristo feito em bronze, assim como alguns detalhes com motivos florais nos níveis inferiores laterais. Ladeiam esse medalhão os seguintes dizeres em alto relevo:

"Reconhecimento, Gratidão e Saudade da Santa Casa de Misericórdia de Manáos ao Ex-Provedor Cel. Leopoldo de Moraes e Mattos, seu Bemfeitor e Benemérito reformador".

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Semelhante à Santa Casa de Misericórdia, o túmulo de Leopoldo de Mattos está abandonado, assim como a maioria do Cemitério São João Batista, escapando algumas poucas quadras principais, quando não apenas alguns de seus túmulos. O mato cresce sobre a base tumular e a tampa. A parte direita da base tumular foi destruída e os puxadores, feitos de bronze, sumiram.


FONTES:


Jornal O Paiz, RJ, 10/10/1894.
Jornal O Paiz, RJ, 02/10/1926.
AMAZONAS. Mensagem apresentada á Assemblea Legislativa pelo Exm. Snr. Antonio Monteiro de Souza em 14 de julho de 1927.
Revista O Malho, RJ, 05/10/1929.


quinta-feira, 18 de julho de 2019

Cemitério São João Batista: Jazigo da família Carneiro dos Santos

Com o presente texto pretende-se dar início a uma série de postagens sobre os monumentos funerários mais significativos do Cemitério São João Batista, em Manaus. São artefatos que se destacam tanto pela arquitetura quanto pela história de seus proprietários. O primeiro é o Jazigo da família Carneiro dos Santos.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O Jazigo da família Carneiro dos Santos está localizado na quadra 07 do Cemitério São João Batista, em Manaus. A escultura que o encima o torna um dos maiores monumentos funerários dessa necrópole.

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Esse monumento, construído em mármore de Carrara, é de autoria do escultor genovês Pietro Bacigalupo (1875-1924), conforme assinatura localizada na base da escultura. Nele estão sepultados Adelaide Maquiné dos Santos (12/05/1858 - 10/08/1909), José Carneiro dos Santos (15/02/1852 - 25/02/1928) e Claudio Carneiro dos Santos (21/07/1894 - 11/10/1939). 

FOTO: Fábio Augusto, 2019.

José Carneiro dos Santos era esposo de Adelaide Maquiné dos Santos. Claudio Carneiro dos Santos, filho do casal. Quando Adelaide Maquiné dos Santos faleceu, em 1909, o Coronel José Carneiro dos Santos tratou de encomendar um monumento em sua homenagem.

Convite para a Missa de 7° Dia de Adelaide Maquiné dos Santos. FONTE: Jornal do Comércio, 14/08/1909.

O monumento em homenagem a Adelaide Maquiné dos Santos foi concluído em 1912. De acordo com publicações da época, ele representa a Fé. Assim o descreve o Jornal do Comércio em nota de 25 de maio de 1913:

"O bello monumento, representando a estátua da Fé, trabalhado em mármore pelo escultor genovez Pietro Bacigalupo, presentemente nesta cidade, aonde veio afim de collocar a sua obra de arte sobre o tumulo da inditosa senhora D. Adelaide Maquiné dos Santos, esposa do coronel José Carneiro dos Santos" (Jornal do Comércio, 25/05/1913).

Ela aparece, ainda em Gênova, ao lado de outra escultura, em uma fotografia reproduzida na revista Ilustração Brazileira, do Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1914, com a seguinte descrição:

"Monumento representando a Fé, que se acha no cemiterio de Manaus, no tumulo de D. Adelaide M. dos Santos, esposa do coronel José Carneiro dos Santos" (Revista Ilustração Brazileira, 16/12/1914).


Monumento representando a Fé. FONTE: Revista Ilustração Brazileira (RJ), 16/12/1914.

Esse monumento consiste em uma figura feminina, semelhante a uma Madona, vestida com um manto e apoiada sobre uma rocha. A figura feminina segura uma grande cruz fincada nessa rocha, possivelmente uma alegoria à solidez da crença e da fé da família Carneiro dos Santos. Sobre a identificação do nome da família está fixado um cristograma clássico, o XP, que são as iniciais de Cristo em grego (XPΙΣΤΟΣ).

A obra de Bacigalupo gerou algumas controvérsias na cidade. No artigo O esculptor Bacigalupo, de Cesare Veronesi, proprietário da principal marmoraria de Manaus, a Ítalo-Amazonense, insinuou-se que o escultor genovês não dominava essa arte, pois era "[...] um dos taes artistas que, tendo uma encommenda, fazem-na de outrem ou compram-na já feita, e se lhes pedirem esboçar um simples retrato em barro... dão parte de doente".

Esse texto tinha um tom de enfrentamento pela concorrência no serviço de produção de mausoléus e monumentos funerários, pois Cesare Veronesi o finaliza afirmando que resolveu fazer tal publicação no jornal A Capital "[...] tão somente para dar uma satisfação áquelles que nos honraram com suas valiosas encommendas, declarando-lhes que os mausoleus cuja execução nos foi confiada, têm sido esculpidos por artistas de renome, como o professor Franzoni de Carrara e que nunca serão reproduzidos para outros tumulos, ficando assim obras de verdadeiro valor" (A Capital, 07/08/1917).

FOTO: Fábio Augusto, 2019.



FONTES:

Jornal do Comércio, 14/08/1909.
Jornal do Comércio, 25/05/1913.
Revista Ilustração Brazileira (RJ), 16/12/1914.
A Capital, 07/08/1917.