terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O espanhol que veio para a América

Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.

A América, o novi orbis (novo mundo) de Pedro Mártir de Anglería, era um lugar de oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista, agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos que procuravam a estabilidade e a ascensão social.

No continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia” (HOLANDA, 1996, p. 40).

O conquistador que vem para a América traz consigo o mito da superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da conquista é assentada, em certas proporções, em elementos feudais, na Igreja Católica e nas guerras de reconquista. Na encomienda – sistema mais difundido – os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se transformam em unidades autônomas. Nobres ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a seu modo e sem medo de intervenções do poder central.

A presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em especial, assombraram os índio da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas: vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p. 50). Elementos do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior, padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:

Desde un punto de vista icnográfico el Miles Christi, o también llamado Matamoros, que había acompañado a los españoles en la reconquista de la Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de España se convierte de Matamoros en Mataindios (CAPPONI, 2006, p. 253)

A chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios. Tzvetan Todorv, em a Conquista da América: a questão do outro, recupera o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre franciscano Martín Jesus de la Coruão:

Essa gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo, fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu (TODOROV, 1983, p. 54).

O espanhol, a contrário do que afirma Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador, não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As cidades da América Espanhola são articuladas, pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas cidades históricas do México, da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias instituições, com destaque para as universidades.

Foi citado no início a existência de elementos que lembram o sistema feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço sobre a América. Para vários autores a encomienda não é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano. O encomendero é uma espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero Romano, os encomenderos receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras, obtidas a título de ‘merced’ (concessão de terras, estímulo para o assentamento colonial). Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.

Na ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço, acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o historiador italiano Ruggiero Romano faz a família indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de construir o núcleo de um mundo futuro.

O Estado por eles formado é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa Espanhola; e Juan Ginés Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos, os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI, Anna Sulai. El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritual. Imaginário - USP, 2006, vol. 12, no 13, 249-277.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.estherlederberg.com



sábado, 3 de fevereiro de 2018

História do bairro de São Francisco (1950-1960)

Planta do bairro de São Francisco, 29/08/1954.

Ainda paira sobre inúmeros bairros de Manaus a nuvem escura do esquecimento, das origens incertas, de uma identidade ainda não forjada ou identificada. As dificuldades são de vários tipos, indo do acesso às fontes (documentais, orais) até os meios para produzir e divulgar trabalhos. Não faltam historiadores dispostos a usar suas penas para dar vida aos resquícios do passado dos bairros da cidade.

No texto de hoje tentarei apresentar as origens remotas do bairro de São Francisco. O bairro de São Francisco está localizado na zona Centro-Sul de Manaus, fazendo limites com os bairros da Cachoeirinha, ao sul; de Petrópolis, a leste; de Adrianópolis, a oeste; e Aleixo, a norte. Focarei apenas nas duas primeiras décadas de sua existência, entre 1950 e 1960.

As primeiras ruas do bairro de São Francisco começaram a ser abertas por volta de 1950, sendo os trabalhos concluídos em 1954. Desse trabalho, que era realizado dia após dia, surgiram 109 ruas e 15 praças, algumas mais tarde incorporadas ao bairro de Petrópolis. Das primeiras vias públicas, muitas com a nomenclatura alterada há décadas ou mesmo desaparecidas, podem ser citadas as ruas Temistocles Trigueiro, General Carneiro, Hamilton Mourão, Waldemar Pedrosa, Plínio Coelho, Oséas Martins, Arnaldo Péres, Armando Menezes e Jorge Abrahim. Entre as praças que existiram, a Jovino Lemos, Oscar Rayol, Jayme Araújo, Coari e Gama e Silva.

Em 1952 o senhor Oscar Meneses foi indenizado em 50.000 cruzeiros por um terreno que foi aproveitado para a construção do bairro de Petrópolis. No local foram abertas as ruas Leandro Antony, Praça Gama e Silva, Coriolano Lindoso, Fausto Maia, Raul Antony e Marques da Silveira. Nesse mesmo ano é criada a Associação Beneficente dos Amigos do Bairro de São Francisco (ABABSF).

Nesse período a população do bairro era estimada em 4.000 habitantes, existindo cerca de 800 casas. O que surgia ali não era apenas um bairro, mas um empreendimento, um grande empreendimento, que teve como autor Alexandre Pereira Montoril (1893-1975). Alexandre Montoril nasceu na cidade de Assaré, Distrito do Crato, no Ceará, vindo para Manaus em 1912. De acordo com Archipo Góes, autor de Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas, Montoril foi prefeito de Coari por 18 anos, em três intervalos de tempo, entre 1932-36, 1936-39, 1939-47 e 1960-1963. Em 1947 foi eleito deputado estadual.

Alexandre Pereira Montoril (1893-1975), o idealizador do bairro de São Francisco. Ano não identificado.

Enquanto deputado estadual, Montoril decidiu, para dar assistência às famílias que já moravam no local, formadas por nordestinos e pessoas vindas do interior do Estado, criar um bairro naquelas terras afastadas da área urbana. O nome pensado para aquele núcleo seria Coari, em homenagem à cidade que geriu por décadas, mas um fato ocorrido em 1951 mudou os planos. O deputado, naquele ano, junto dos homens da equipe de obras, andava pela mata quando encontrou, deitado sobre uma cama de varas, um senhor de nome Luís de Sousa, rezador. O deputado perguntou se ele estava dormindo, no que Sousa respondeu que estava conversando com São Francisco. Montoril perguntou o que o santo tinha falado. O rezador disse que, em uma capoeira, seria erguida uma capela em honra ao orago. Dessa forma, Alexandre Montoril decidiu batizar o bairro com o nome de São Francisco. Restou da primeira homenagem o nome da praça onde foi erguida a igreja primitiva, Praça Coari.

A História da aparição de São Francisco é um exemplo da forma como os bairros de Manaus eram fundados no passado, quando a maior parte da população era Católica, sob a égide da proteção de um santo ou santa e com uma capela ou paróquia no centro da vida da comunidade.

Como estrutura básica, foram construídos um posto policial, um posto médico e algumas escolas. O posto médico foi inaugurado em 1954, sendo denominado José Francisco da Gama e Silva, por este ter, enquanto governador em exercício, doado 10.000 cruzeiros para a sua construção. Ele foi instalado em uma modesta casa de madeira, custando o total de 17.000 cruzeiros. As escolas construídas foram a Raul Antony e Clearco Antony, esta última dirigida pela professora Francisca Simões do Nascimento. Alexandre Montoril conseguiu 60.000 cruzeiros, verba federal, para a realização dessas obras, também utilizados na compra de medicamentos, para o pagamento dos funcionários das escolas e para a compra de madeira utilizada na construção de casas.

Posto Médico José Francisco da Gama e Silva. Foto de 1954.

A Igreja de São Francisco, erguida na Praça Coari, recebeu o auxílio dos padres do bairro de Adrianópolis. Para tal, Montoril recebeu 1.730 cruzeiros de doações dos deputados da Assembleia Legislativa, valor entregue aos religiosos. Para a região vizinha, Petrópolis, foi reservada uma área de 1.600m² para a construção da Igreja de São Pedro Apóstolo, trabalho entregue nas mãos dos padres Redentoristas, que a concluíram na década de 1960.

O cemitério do bairro, que seria denominado São Pedro, que não chegou a ser construído, ficaria entre as ruas Mário Ypiranga, a norte; Danilo Corrêa, a leste; Oyama Ituassú, a sul; e José Florêncio, a oeste. A área compreendida media aproximadamente 12.000 m².Em 1955 um grupo de moradores do bairro foi até o Palácio Rio Negro pedir o estabelecimento de uma linha de ônibus na comunidade, no que passaram a ser atendidos pelo ‘Radiant’. Por volta de 1965, na administração de Paulo Pinto Nery, a Prefeitura deu início à construção do Mercado de São Francisco, que foi inaugurado em 6 de setembro de 1966, substituindo a antiga feira improvisada.

Mercado Municipal de São Francisco. Foto de 1967.

Aquele novo bairro ao norte da Cachoeirinha chamava a atenção de várias pessoas de outros bairros e que chegavam na cidade. Os amplos terrenos e a vizinhança eram um atrativo. Nos jornais antigos é possível encontrar vários anúncios de compra e venda de casas, de madeira e palha, algumas já com telhas, e de terrenos, todos podendo ser pagos em leves prestações.

Assim como outros bairros nascentes entre as décadas de 1950 e 1960, São Francisco era alvo dos políticos que buscavam votos para eleições ou reeleições. Membros do PTB, como Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho, realizavam comícios em suas ruas, bem como do PSD, do PST (1946-1965) e do PSB. Também movimentavam o bairro os campeonatos de futebol e vôlei organizados pela Associação Esportiva São Paulo e pelo Grêmio Esportivo São Francisco; as procissões, festas do Divino Espírito Santo e as festas dadas no ‘Club de São Francisco’. Em 1961, na administração estadual de Gilberto Mestrinho, foram inauguradas a Quadra de Esportes Thomé Medeiros; a Organização Social da Família do Amazonas; e a escola Dom João de Souza Lima.

Em 1966 as ruas do bairro tiveram os nomes alterados. Através do Decreto Municipal N° 5, de 26 de janeiro de 1966, ficou estabelecido o seguinte: Arthur Cézar Ferreira Reis para Coronel Conrado Niemeyer, Paulo Nery para Cônego Manoel Monteiro, Aderson de Menezes para Thomaz do Amaral, Francisco Pinheiro para João Dias Vieira, Jackson Cabral para Manuel Corrêa de Miranda, Anísio Jobim para Crisanto Jobim, Luiz Marinho para Silval de Moura, Waldemar Cardoso para Adolfo Lacerda, Paulo Rezende para Dr. Aristides Rocha, Ney Rayol para Coronel Ferreira de Araújo, Arthur Virgílio para Rodrigues do Carmo, Dona Raquel para Cel. Basílio Pirro, Zulmar Bonates para Bernardo Michiles, Francisco Plínio Coelho para José da Gama e Abreu, Arlindo Porto para Pereira do Rego, Sergio Neto para Areal Souto, Licurgo Cavalcante para Carneiro da Cunha, Ramayana Chevalier para Ferreira Sobrinho, Pogy Figueiredo para Cel. Miranda da Silva Reis, Coriclano Lindoso para Monteiro Peixoto, Leandro Antony para Antonio dos Passos Miranda, João Crisóstomo para Ribeiro Guimarães, Walter Rayol para Domingos Monteiro, José Amâncio para Agesilau Pereira da Silva, Áurelo Melo para Barão de Maracajú, Plínio Coelho para Clarindo de Queiroz, Cel. Luís Carlos para Oliveira Dias, Álvaro Sifrônio para Alarico José Furtado, Cosme Ferreira para Vasconcelos Chaves, Manuel Barbuda para Monteiro Neto, Cel. Temístocles Trigueiro para Nuno de Melo Cardoso, Waldemar Pedrosa para Senador Leitão da Cunha. Oseas Martins para Jonas da Silva, André Araújo para Ayres de Almeida, Ruy Araújo para Joaquim Tanajura, Álvaro Maia para Valério Botelho de Andrade, Vivaldo Lima para Negreiros Ferreira, Moacir Rosas para Nilo Guerra, Amaro Lima para Francisco José Furtado, Antonio Maia para Franco de Sá, Ferreira da Silva para Maranhão Sobrinho, João Veiga para Paes de Andrade, Edson Melo para Tito Bittencourt, Xenofonte Antony para Sátiro Dias, Márcio de Menezes para Guerreiro Antony, Pereira Júnior para Ernesto Chaves, Fausto Maia para Adelaide Gonçalves, Gama e Silva para Dr. Almir Pedreira, Wilson Calmon para Dr. Agenor Magalhães, Samuel Zuani para Barbosa Rodrigues, Walter Zuani para Pimenta Bueno, Salvador Macedo para Lopes Braga, Geraldo Costa para Cardoso de Andrade, Arnoldo de Menezes para Francisco Machado, Jovino Lemos para Gabriel Filgueiras, Nuno Cardoso para Atayde Verona, Luís Cavalcante para Tinoco Valente e Olenka de Menezes para Custódia Lima. Permaneceram inalteradas a Virgílio Barros, Arnoldo Peres, Tomás Meirelles, Gualter Marques Batista, Alfredo Barreto, Araújo Filho, Cel. Manuel Corrêa, Hamilton Mourão e Nicolau da Silva.

Alexandre Montoril, além de político, também se arriscava na arte poética. Aliás, uma das fontes mais interessantes sobre os primeiros anos do bairro é um longo poema seu intitulado História do bairro de São Francisco, publicado no Jornal do Comércio em 23 de fevereiro de 1958.


História do bairro de São Francisco

Eu quisera ser poeta
De sublime inspiração,
Ou trovador repentista
De grande imaginação,

Que eu gravaria em disco
A história de SÃO FRANCISCO,
Sem temer correr o risco
De passar decepção.

Foi no ano de cinquenta
Da era que vai passando
Que iniciei esse bairro
Cuja história estou contando
Sob o influxo divino,
Em função do meu destino

Agindo com muito tino,
No povo sempre pensando…
O bairro de SÃO FRANCISCO
É uma revelação

Do quanto pode a loucura
Da minha dedicação
Em favor de tanta gente,
Para mim indiferente,
De política independente
Que precisava de chão.

Foi ao norte de Manaus,
Nas terras da Prefeitura
Que se travou esta luta
De ideal e de bravura,
Fortalecendo-me a crença
De que naquela área extensa
Coberta de mata densa,
Fundar um bairro a altura,
- O maior dos de Manaus,
O mais simpático também,
Com a ZONA DE PETRÓPOLIS
Outro igual Manaus não tem;
- Porque a coisa quando é boa
Que Deus do céu abençoa,
- A má vontade é a toa
Não tem valor o desdem…

E o bairro de SÃO FRANCISCO
É essa coisa invulgar
Que o gênio da poesia
Não me permite cantar;
E para que não pareça
Que por isso eu o esqueça
- Antes que tal aconteça
- Sua história eu vou contar:

Eu era então deputado,
Sentindo as ânsias do povo
Devolvi-lhe os meus proventos:
- Construindo um bairro novo.
Mas, talvez por fatalismo
Eu cai no ostracismo;
Mas não renego o civismo,
- E confio ainda no povo!…

Esse bairro é um milagre,
Só a ideia é que foi minha,
E quem sabe se até isso
De SÃO FRANCISCO não vinha?!…
- Pois a minha resistência,
Nessa obra de paciência,
Demonstra com evidência,
Que outra origem não tinha…

São Francisco apareceu
No local da sua ermida,
Dizendo que nesse ponto
Seria a mesma erigida:
Seu Luiz um rezador,
Homem sério sim senhor,
De moral reconhecida.

Eu chegava nesse instante,
(Era um dia de verão)
Quando ele me contou
Inda cheio de emoção
A aparição que viu.
- Eu senti um arrepio
Não calor nem frio
- Mas estranha sensação.

Acreditei na história
E disse na mesma hora:
- Seria Coari o bairro,
Mas é SÃO FRANCISCO agora;
Deste então no meu caminho
Não vi pedra nem espinho,
Não estava mais sozinho
- Tinha o Santo por escora…

E assim o nosso bairro
- Foi avançando p’ ara Oeste
Té à rua Paraíba;
E do lado oposto, a Leste,
Em Petrópolis, já no fim,
Atingiu o JAPIIM,
Limitando o bairro assim,
Com um areial agreste.

À Sul a rua Belém,
Onde o bairro começou,
- É a divisa mais bonita
Que SÃO FRANCISCO encontrou;
É justo que se assinale
Que a rua COUTO VALE
(Para que nele se fale)
Com SÃO JORGE limitou…

Os seus limites ao Norte,
- Das nascentes do SEGUNDO
Seguem de Leste a Oeste,
Como uma linha de fundo;
As terras do lado além,
Que a mesma posição tem
Limitam o bairro também…
Mas quase se acaba o mundo…

Também na parte Sul
Com a Granja BOM FUTURO,
O bairro fecha o polígono
- Num limite mais seguro;
Nesse ponto o SANATÓRIO
Teve um gesto meritório
- Junto e conciliatório,
Colaborando no “duro”.

O bairro que foi traçado
Dentro dum alto critério,
Tem cem ruas quinze praças,
Foi trabalho muito sério;
Com terrenos reservados,
Que deixei lá demarcados
Para postos e Mercados,
Cinemas e cemitério.

Essa reserva de terras
De pública utilidade,
Não tem sido respeitada
Na sua totalidade:
Porque então senhor Prefeito,
Que é um homem de conceito,
Permite a qualquer sujeito,
Ser ali autoridade?!…

O bairro de SÃO FRANCISCO
Tem uma Sociedade
Que pode bem dirigi-lo
Com mais capacidade
E modo eficiente,
Maneiroso e paciente
E de personalidade.

É preciso que esse bairro
Que em parte luz já tem,
Seja visto com carinho
Para ter água também;
Andei por lá outro dia
Enaltecendo o que via,
Mas seu povo me dizia:
Água aqui… ainda não tem…

Demos água a SÃO FRANCISCO
E transporte eficiente,
E à ZONA DE PETRÓPOLIS
- Uma luz resplandecente;
- Se eu fosso deputado,
Seria desassombrado
Agindo por todo lado,
- Em favor daquela gente…

Outro dia em SÃO FRANCISCO
Eu fiquei maravilhado:
Como aquilo está bonito
E o seu povo, animado!
- Gentes que eu não conhecia
Mostravam sua alegria,
- Há três anos que eu não ia
P’ ras bandas daquele lado…

Já que estou fazendo história
Vou agora esclarecer:
Que eu deixei o SÃO FRANCISCO
Mas não posso o esquecer;
- O tempo pode passar,
- A vida pode cessar,
- Tudo pode se acabar…
Mas o bairro há de viver!…

PETRÓPOLIS e SÃO FRANCISCO
Ninguém deve separar;
- São uma e a mesma coisa
Têm que juntos caminhar:
- Na estrada do trabalho,
Quais flores do mesmo galho,
Ou gotas do mesmo orvalho,
Sempre unidos, a marchar…
É tempo de terminar
Pois já está chegando a hora
Em que o Sol vai se deitar
P’ ra acordar com nova aurora.
Encerrando esta história
Pra mim uma vitória
Vou repousar a memória
Porque a musa foi-se embora…

Alexandre Pereira Montoril. Manaus, 13/02/1958

Essa foi uma tentativa de apresentar, de forma concisa, as primeiras décadas de existência do bairro de São Francisco. Muitos elementos ficaram dispersos na narrativa. Considero que um bom trabalho sobre as origens históricas de bairros e comunidades, além de estar assentado sobre fontes documentais, precisa dos relatos orais, dos depoimentos daqueles que foram testemunhas dos primeiros tempos, que vieram em ondas migratórias, que fizeram casas e ruas inopinadas, para que se penetre mais intimamente na trajetória coletiva desses lugares.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GÓES, Archipo. Nunca Mais Coari: a fuga dos Jurimáguas. Coari, Amazonas, 2016.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


FONTES:

Jornal do Comércio, 07/09/1954
Jornal do Comércio, 13/02/1958
Jornal do Comércio, 01/02/1966
Jornal do Comércio, 14/07/1967
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1953
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 15/03/1954
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1957
Mensagem da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, 1958


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal do Comércio, 07/09/1954
Jornal do Comércio, 14/07/1967
Nilson Montoril - Arambaé. http://montorilaraujo.blogspot.com.br

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Resenha: História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon


Os homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon (1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada pela produção da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano.

Poucas são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o primeiro volume de Declínio e Queda foi recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o entusiasmo dos mais liberais, mas tornou-se um sucesso de vendas. O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.

Foi em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…] enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez me veio à mente” (p. 19). Da cidade, ampliou a investigação para o Império. A junção de diferentes elementos históricos vistos (monges, ruínas romanas e a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.

Durante a juventude ele teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Horácio, Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos, de Montesquieu; e outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf, Locke e Bayle. Foram 12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição, até que a obra fosse concluída entre 1788-89, totalizando seis densos volumes.

Nós, leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de 2005, em formato de bolso, organizada em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, que também traduziu a mais antiga, de 1989. O compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador inglês. Gibbon analisa mais de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.

O gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do caráter dos imperadores, das guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de ter visto de perto as invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos bárbaros. A economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda essa vivacidade e acuidade são acompanhadas por críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a acidez. Na introdução de sua obra, sobre a extensão e o poderio militar do Império na época dos Antoninos, Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:

No segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus pacíficos habitantes desfrutavam até o ponto de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p. 31).

Gibbon, em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural são criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais. Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino, a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e não religiosos, desse fato. Fé cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele termos opostos.

Uma religião que até então vivia na clandestinidade, na periferia do Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos penetrando em suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias, sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos, de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha seus alicerces, no Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.

Além de História, Declínio e Queda está impregnado de filosofia, de reflexões, e possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia. Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia religiosa e o interesse por disputas religiosas. O período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre católicos e protestantes, pela transformação política, econômica, social e cultural das nações europeias, que despontavam como potências mundiais, e por revoluções. O pensamento humano estava mudando. Roma atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por fatores internos e externos. O mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não por acaso, mais de um século e meio depois a obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente entraram em um colapso político-social.

O que é o Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que o leio, mas sei que não é uma simples unidade política. Sua célebre frase ‘a história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano’ pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e ruiu por mãos humanas, é produto da força inventiva e destruidora do homem. Essa é a natureza humana. Segundo ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque durou tanto tempo. História do Declínio e Queda do Império Romano é um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos históricos. Em um futuro não muito distante o livro de Edward Gibbon voltará ao topo das vendas, preenchendo estantes em todo o mundo, alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.


Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.


CRÉDITO DA IMAGEM:

skoob.com.br

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A Odisseia de um seringueiro

José Moraes, o seringueiro que, em poucos dias, teve a vida transformada em um verdadeiro Inferno. Foto de 1914.

 De todos os animais, o homem é o único que é cruel. É o único que inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. - Mark Twain

José Moraes, natural do Piauí, trabalhava com seis fregueses seus no seringal ‘São Gonçalo’, da firma Asensi & Cia (Mato Grosso), “proprietária de grandes seringais no rio Ji-Paraná, no limite entre Mato Grosso e Amazonas”1. No dia 29 de agosto de 1913, José Moraes e seus fregueses partiram do seringal em direção ao barracão, com o objetivo de pedir mantimentos que já faltavam há uma semana. Chegando lá, Moraes deixou seus fregueses esperando enquanto subia o estabelecimento. José Gomes Coelho, o gerente2, recebeu o seringueiro aos gritos, dizendo que este tinha planos para eliminá-lo.

O seringueiro protestou, negando qualquer acusação. Queria urgentemente mantimentos, pois há uma semana sobrevivia apenas à base de mingau. Lembrou, no entanto, que se tinha alguma reclamação, ela se referia ao fato de que a pesagem da borracha que produzia não correspondia às suas expectativas. Novamente aos gritos, José Gomes Coelho perguntou ao seringueiro se ele achava que estava sendo roubado, no que também foi respondido no mesmo tom. O gerente refletiu, se acalmou. Pediu de Moraes a relação de mantimentos, que consistia de carne, feijão, banha e tabaco, coisas de primeira necessidade. O caixeiro Moura Ferro atendeu o seringueiro, lhe entregando os pedidos em quantidades reduzidas.

Pegos os mantimentos, era hora de esperar até o dia seguinte para voltar. Na manhã de 01 de setembro, quando se preparava para partir, foi impedido pelo gerente, que lhe informara que a ponte que ligava a região tinha desabado, tornando o retorno do grupo impossível.

José Moraes disse que dava seu jeito, pois em sua casa não havia mais comida e, além disso, sua mulher já estava em estado avançado de gravidez. O grupo, agora chefiado pelo empregado João Barbosa, teve que partir. Chegaram ao lugar onde ficava a ponte. Depois de muita dificuldade, Moraes conseguiu atravessar o rio pelos lugares menos profundos. Percebendo que demoraria para chegar em casa, mandou um de seus homens na frente com um pedaço de carne para ser entregue à família.

Às 17 horas o seringueiro Moraes chegou em casa. Um de seus filhos que estava enfermo morreu na sua ausência. Enterrou-o no dia seguinte, uma segunda-feira. Abatido física e psicologicamente, não trabalhou. Na terça-feira distribuiu os mantimentos e, acompanhado de sua mulher, partiu para o trabalho. Foi um dia calmo, aparentemente. No dia 04 de setembro o seringueiro se dirigiu a uma nova estrada para extrair o látex. Talhava uma seringueira, como era costume, quando às 10 horas foi surpreendido com um grito: - Não se mexa, cabra.

Olhando para trás, deparou-se com José Gomes Coelho, o gerente, acompanhado de 25 homens armados com rifles. Com um gesto de Gomes Coelho, dispararam contra José Moraes, que caiu rolando por uma depressão do terreno. Novos disparos foram feitos. O seringueiro, atordoado, tentou se levantar duas vezes, mas não conseguiu, ficando caído no local.

José Gomes Coelho partiu com seus capangas para a casa de José Moraes. Dispararam várias vezes contra o humilde casebre de palha. De dentro da residência ouviam-se choros. Surgiram, apavoradas, tremendo de medo, três crianças, uma de nove anos, uma de oito e outra de um ano. Elas jogaram-se de joelhos no chão, de mãos postas, pedindo desculpas e implorando por suas vidas.

A mãe ouviu os tiros e correu em socorro das filhas. Ela acabou sendo presa, junto de um freguês de seu marido, de nome Amâncio, que também tentou ajudar as crianças. Depois de um grande cerco na área, o restante dos fregueses foi preso, com exceção de um que estava em uma estrada desconhecida pelos homens de Gomes Coelho. Estes saquearam a casa de Moraes, levando o pouco que havia. Saíram dali com seus prisioneiros: a mulher e filhas de Moraes, os fregueses e suas famílias.

José Moraes não morreu, mas estava ferido. Auxiliado pelo seringueiro que não foi encontrado pelo grupo do gerente, se dirigiu até a casa de um caucheiro3 que também era freguês da firma Asensi & Cia. Ele pediu que fosse até sua casa pegar duas mudas de roupa, no que foi avisado pelo caucheiro que José Gomes Coelho o tinha proibido de prestar qualquer ajuda. No entanto, no dia seguinte, este ajudou o seringueiro.

Moraes e seu companheiro se embrenharam na mata com o intuito de alcançar o seringal em que estava o dono da firma, Carlos Miguel Asensi4. Quando atravessavam o seringal ‘Santo Antônio’, foram denunciados e presos. Nesse seringal, cujo gerente se chamava Zeca, e onde já se encontravam a mulher e as filhas de Moraes, bem como os demais presos, foram todos entregues a José Alves de Sant’Anna, que os levaria para o seringal ‘São Paulo’. Chegaram ao destino em 10 de setembro. Ali deviam aguardar a chegada de Antônio dos Reis Cavalcante, um dos sócios de Asensi & Cia, que cuidaria do destino dos prisioneiros.

José Alves lembrou José Rodrigues, gerente do ‘São Paulo’, de que os presos deveriam ser castigados, sendo preparados feixes de varas de goiabeira. José Rodrigues, em um primeiro momento, relutou, mas no dia seguinte ele mesmo espancou até a morte o jovem Pedro Caboclo, um dos fregueses presos. Antônio dos Reis Cavalcante não apareceu, sendo os prisioneiros levados para outro seringal, o ‘Dois de Novembro’. Antes de partir, Sant’Anna decidiu que os homens presos, a cada pausa no trajeto, tivessem as mãos açoitadas. Aqueles que tentassem reagir ou fugir teriam a cabeça cortada.

José Moraes suplicou para que não lhe batessem. Viu o estado em que ficaram as mãos de seus companheiros. José Alves concordou e, em troca, Moraes lhe venderia abaixo do preço um gramofone que possuía. Talvez esse objeto não existisse, mas foi o que bastou para que não tivesse suas mãos varadas. No dia seguinte chegaram ao ‘Dois de Novembro’, gerido por Fuão Ricardo, estando ali Miguel Leitão, relacionado à firma Asensi.

José Moraes, algemado e abatido, comia e bebia com a ajuda da mulher, assim como os seus companheiros. Leitão decidiu que tal situação, para ele “promíscua”, não deveria continuar: Os homens deveriam ser separados das mulheres, elas para Manaus e eles para Pimenta Bueno. Os prisioneiros imploraram, mas não foram atendidos. Os homens foram enviados na frente, enquanto as mulheres ficariam mais um tempo antes de ir. Durante a viagem, Moraes e um companheiro conseguiram fugir e, com um prego, tiraram as algemas.

José Moraes decidiu voltar ao ‘Dois de Novembro’, onde conseguiu, sorrateiramente, falar com a mulher, pedindo que ela fugisse e o esperasse no ‘Primor’. Sua mulher conseguiu fugir, indo para o local indicado, onde o filho nasceu. Moraes não apareceu, e a mulher partiu para Humaitá, onde deixou o filho com uma família caridosa, e uma mala que possuía, embarcando posteriormente para Manaus. A demora do seringueiro tinha explicação: Ele continuava se esgueirando pela mata, pois continuava sendo procurado por seus algozes. Chegando ao ‘Primor’, negaram a passagem de sua mulher. Voltou ao Mirary e de lá foi para Humaitá.

Conseguindo notícias da esposa, vendeu a mala que ela deixara na casa da família, conseguindo uma soma para vir até Manaus. Chegou a bordo do navio ‘Fortaleza’, em 10 de janeiro de 1914. Foto até a Santa Casa de Misericórdia na esperança de encontrá-la, o que não ocorreu. Nunca mais soube do paradeiro dela ou das filhas. A Odisseia do seringueiro José Moraes não teve um final semelhante à de Odisseu (Ulisses), que conseguiu voltar para Ítaca, para sua esposa e retomar seu lugar de rei. Talvez ele não esperasse que sua vida se tornaria um inferno ao questionar o gerente do seringal. O que ele conseguiu foi nos legar um relato5 que, depois de mais de um século, sai das sombras do esquecimento, ganhando vida e importância histórica, tornando-se registro de um cotidiano de sangue e de bala, das relações desumanas dos seringais. A Amazônia foi e ainda é uma fronteira, palco de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de diferentes modos de produção, assentada sobre o sangue e os ossos de vários José Moraes.


NOTAS:

1 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 261.

2 O gerente fazia parte do corpo burocrático do seringal, que incluía o encarregado de depósitos e o guarda-livros. Entre os seus deveres estava o de zelar e vigiar a casa que dirigia e fazer com que todos produzissem e vivessem satisfeitos. Cf. TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.

3 O caucho (castilloa ulei) é uma planta da região amazônica, de mata de terra firme, de onde também se extrai o látex, mas este é inferior ao da seringueira. Pode ser encontrada no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Colômbia e no Equador.

4 Carlos Miguel Asensi tinha como sócio o coronel Leovigildo Machado. MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 144.

5 José Moraes foi ouvido pelos redatores do Jornal do Comércio em 11/01/1914, que publicaram sua história em 12/01/1914 com o título ‘Odysséa de um seringueiro - José Moraes relata-nos o seu martyrológio – Cortem a cabeça, a casa garante!’.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998.

TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.


FONTE:

Jornal do Comércio, 12/01/1914.