sábado, 17 de setembro de 2022

Receitas tradicionais de tartaruga por Dona Chloé Loureiro

FOTO: Marcelo Ferrari.

Concluí há alguns dias a leitura de Doces Lembranças, de Chloé Loureiro (1988). É um livro de memórias do tempo de infância da autora, vivida entre o Acre e o Amazonas entre as décadas de 1920 e 1930. Apesar da crise que se abateu sobre a região naquele período, a vida não deixou de pulsar na Amazônia. O texto é simples e encantador, principalmente quando se fala de Manaus, a Cidade Sorriso, que "tinha o cheiro característico da pescada e do tucunaré frescos, misturado ao forte perfume do cupuaçu" (p. 113). Os relatos são intercalados com receitas de família de encher os olhos e estimular o paladar. Nele se aprende a fazer a tradicional tartarugada, a galinha e o pato a cabidela, o pirarucu de casaca, os doces de cupuaçu e caju e os chás, caldos e mingaus fortificantes. Cada memória faz emergir um ou mais pratos que se degustava em determinado momento, fosse de alegria ou de tristeza. Em certas passagens me vi diante de minhas memórias de infância, de uma comida especial, da família reunida na mesa, dos risos e abraços fraternos. Dentre as várias receitas, é impossível não se deter nas de tartaruga, pois só quem provou sabe do sabor único que ela possui. Reproduzo abaixo as receitas de tartarugada, guisado das mãos, guisado de carne, picadinho, sarapatel e a farofa do casco.

Tartarugada

A tartarugada não é um prato, é um banquete, no qual a tartaruga é apresentada de diversas maneiras, com sabores diferentes e aproveitando carnes, vísceras e sangue do animal, nada sobrando.

Não é difícil de ser preparada. O guisado é feito como o de carne de vaca ou ragu de carneiro. O picadinho, também, embora o sabor seja totalmente diferente. Vivendo na água, não tem gosto de peixe sendo, por isso mesmo, sui generis.

O sacrifício do animal é triste, deprimente. Custa muito a morrer e mesmo depois de horas, escaldado, cortado, a sua carne ainda pulsa na panela. Dá pena.

Depois de morta a tartaruga é sangrada e retirada de sua carapaça, o que exige uma pessoa especializada para fazê-lo. O sangue é colhido e misturado com vinagre, limão e sal, batendo-se bem, para não talhar. O cuidado maior é o da retirada das vísceras, para não espocar a bolsa do fel, ao lado do fígado, pois a bile deixa um sabor amargo aonde pega. Tudo deve ser escaldado e limpo, pois da tartaruga nada se perde.

Coloca-se então os quartos em água fervente, para se retirar a pele das patas. Cortam-se as mãos pelas juntas, arrancando-se as unhas. A carne mais branca é para fazer o picadinho; a escura, para o guisado, o sarapatel e o paxicá. Se estiver muito gorda, tire o máximo de gordura antes de escaldar as carnes.

Guisado das mãos

Corte as mãos em pedaços, tempere com sal, pimenta do reino, alho, colorau e cominho. Tire pedaços de gordura e derreta numa panela. Junte cebolas e cheiro verde, e refogue. Coloque pedaços de tartaruga e deixe refogar. Deite, em seguida, água quente à panela, e deixe cozinhar até amolecer o couro das mãos. Adicione, se gostar, um pedaço de pimenta murupi e uma boa quantidade de folhas de alfavaca cortada. Abafe a panela e logo em seguida feche o fogo.

Guisado de carne

Corte pedaços de carne mais escura e dos ossos que a acompanham, logo acima das mãos. Tempere com sal, pimenta do reino, colorau, cominho, alho socado e uma folha de louro. Refogue tudo com um pouco de gordura, se precisar, pois geralmente há gordura nestes pedaços. Leve ao fogo, junte água quente, e deixe amaciar bem. Junte em seguida boa porção de cebolas, cheiro e alfavaca, tudo bem cortadinho. Quando a carne já estiver quase macia, coloque batatas descascadas, cruas no caldo ou molho, para cozinhar, em fogo brando. Sirva quente.

Picadinho

Moa uma boa quantidade de carne branca. Passe junto um pouco de gordura.

Tempere com todos os temperos, sem excesso, para não tirar o sabor especial. Os melhores temperos são o cheiro verde, a cebola, a cebolinha e o colorau. Não use tomate. Moa também os temperos, pois fica mais gostoso. Refogue tudo junto, deixe cozinhar em fogo lento, desprendendo a água da própria carne. Pode ficar molhadinho mas não aguado.

Para acompanhar faça uma farofa com farinha d'água, na gordura da tartaruga, com cebola, cheiro verde e cebolinha, deixando ficar bem torrada.

No peito da tartaruga, limpo e assado na brasa, coloque o picadinho, e cubra com a farofa, enfeitando com ovos cozidos e azeitonas.

Sarapatel

Corte miúdo o bucho, o fígado, as tripas e alguns pedacinhos de carne (isto depois de tudo limpo e lavado com limão). Tempere com os mesmos temperos dos pratos anteriores. Leve ao fogo e deixe cozinhar bem. Quando tudo estiver bem macio, bata bem o sangue com um pouco de água, e despeje na panela. Mexa bem, para não pegar no fundo. Deixe engrossar e apague o fogo. Sirva quente.

Farofa do casco

Lave e tempere o casco da tartaruga e asse-o na brasa, com cuidado para não queimar. Vá raspando com uma colher, a carne e a gordura presa no mesmo. Fogo baixo para não queimar muito rápido.

Quando tudo estiver bem fritinho, coloque cebola, cebolinha, cheiro verde cortadinho, e vá juntando a farinha da sua preferência, para fazer uma farofa molhadinha.

Estes pratos são todos acompanhados com molho de pimenta murupi, feita com o caldo do guisado, suco de limão e temperos verdes bem batidinhos. Estes pratos são os principais.

O paxicá é feito com os miúdos e mais a cabeça cortada em pedaços, do mesmo modo que o sarapatel, mas sem usar o sangue.

Se a tartaruga estiver magra, não use óleo de qualquer espécie, nem margarina. Apenas manteiga ou banha de porco. Caso contrário o gosto fica horrível.

O filé pode ser assado ou frito na gordura.

Todos esses pratos são demorados, pois a carne é muito dura. Use panela de pressão para o guisado das mãos para maior rapidez.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Amores proibidos: a homossexualidade em Manaus no início do século XX

Rapaz com cesto de frutas. Caravaggio, 1593. FONTE: commons.wikimedia.org.

Nos últimos 100 anos o entendimento sobre a homossexualidade sofreu grandes mudanças. Considerada uma condição/prática pecaminosa e antinatural, dentro a esfera religiosa, passou a ser compreendida e aceita por parte da população, ainda que boa parcela da sociedade continue utilizando justificativas de cunho religioso para condená-la. Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, tornou-se objeto de estudo das ciências médicas, por elas entendida como um “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263), no contexto da medicalização e saneamento “moral” que se difundiu no Ocidente.

No recorte temporal do presente texto, a homossexualidade é entendida como um vício, uma imperfeição que degenerava homens e mulheres, estando lado a lado, nos famosos Códigos de Posturas, da prostituição e do alcoolismo. De acordo com o professor Adailson Moreira, “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). A passagem da esfera sagrada para a científica não representou o fim das perseguições. Pode-se pensar que, agora, a “ciência” justificava, seguindo os mais modernos critérios de pesquisa, a repressão e a marginalização de homens e mulheres que não se enquadravam em padrões normativos.

Para compreendermos a vida dos homossexuais de Manaus no início do século XX, devemos, primeiramente, ter ciência de que a cidade estava em plena modificação. A partir de 1890-1900, ela passa por um profundo processo de transformação em seus aspectos socioculturais, políticos e econômicos, possibilitado pelo crescimento do mercado de produtos primários – com destaque para a borracha - destinados ao abastecimento dos grandes centro industriais da Europa e da América do Norte. Ela precisa ser modernizada, práticas consideradas impróprias devem ser expurgadas e a vida urbana deve ser controlada por rigorosos Códigos de Posturas criados pelos administradores para garantir o bom funcionamento do novo polo econômico para as elites. Hábitos, costumes e práticas são sepultados, nos dizeres da historiadora amazonense Edinea Mascarenhas Dias (DIAS, 2007, p. 43).

Os periódicos locais são fontes preciosas para o estudo da vida dos homossexuais da cidade. O contato e leitura deles permitiu compreender o tratamento dispensado a eles, referidos nas folhas como pederastas, sodomitas e invertidos. As principais formas encontradas pelo poder público para combatê-los em nome do “saneamento moral” eram as perseguições e prisões, estimuladas pelos veículos de imprensa. Em 1912 o jornal A Marreta informava, estarrecido, que “Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos”. Eles estavam se espalhando pelas imediações do botequim ‘O Malho’, próximo ao Mercado Municipal, e por outros pontos da cidade. O redator da denúncia considerava a homossexualidade um vício terrível, afirmando que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”. Para cortar o mal pela raiz, sugeriu que “Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912). A prisão com trabalho forçado era aplicada em diferentes partes do mundo contra os homossexuais, como foi o caso da condenação, em 06 de abril de 1895, do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Nesse mesmo ano o Jornal do Commercio informava ter recebido da Casa Freitas um exemplar do primeiro volume da obra Os desequilibrados do amor, de A. Dubany (JORNAL DO COMMERCIO, 08/07/1912).

Em 1913 uma matéria do jornal O Chicote registrou que Manaus era “um dos mais sinceros espelhos de Sodoma e Gomorrha”, onde todos os vícios eram praticados, da vadiagem às relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. A “pederastia” era um vício que “alastra-se, desce do alto, arrasta na onda a infancia inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas” (O CHICOTE, 02/08/1913). O autor finaliza sua denúncia pedindo mais esforços da polícia para moralizar a capital. No ano seguinte, Evaristo da Silva e Norberto da Silva Azevedo foram presos por um guarda-civil na Rua Governador Vitório, no bairro de São Vicente, por estarem praticando, de madrugada, atos capazes de “lembrar os tempos de Sodoma” (JORNAL DO COMMERCIO, 26/12/1914). A homossexualidade era enquadrada nos crimes sexuais. Seja por questões biológicas, hereditárias ou adquiridas do meio em que se vive, o historiador Carlos Martins Júnior afirma que

Sob a justificativa de evitar o contato de indivíduos “sãos” com a “doença” física e moral, no final do século XIX desenvolveu-se a noção de que o controle racional das “perversões sexuais”, e mais especificamente da “homossexualidade viciosa”, garantiria a defesa do corpo social ameaçado (MARTINS JÚNIOR, 2015, p. 1249).

Esses são alguns registros de como os homossexuais eram tratados em Manaus. Não trata-se de um fenômeno exclusivo, pois ao redor do mundo, nas mais variadas sociedades, essas pessoas eram perseguidas, ridicularizadas e punidas. Observando bem, percebemos que esses informes tratam de um tipo específico de homossexual, o de baixa renda, que muitas vezes tinha que se prostituir para sobreviver. O que acontecia quando ele pertencia à elite? Qual era o peso da classe social sobre essa questão? O jornal A Marreta, em matéria já citada, informava que a campanha contra os “invertidos” deveria “[…] começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade” (A MARRETA, 03/11/1912). Aqueles que tinham prestígio na sociedade procuravam viver de maneira discreta, sem levantar suspeitas. Alguns mantinham uma vida dupla, pois eram casados ou tinham a fama de mulherengos, que não passava de uma fachada. Qualquer rumor era um prato cheio para os jornais de mexericos como O Chicote, A Marreta e A Farpa, sempre dispostos a acabar com uma reputação considerada irretocável.

A sociedade manauara do início do século XX tinha rígidos valores morais, que não davam espaço para qualquer tipo de “desvio”. Em Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, trabalho memorialístico de José Jefferson Carpinteiro Péres sobre sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950, nos é apresentada uma Manaus de padrões vitorianos, patriarcais, praticamente inalterados desde 1900. As meninas eram educadas para serem esposas obedientes, e os meninos para serem varões exemplares, chefes de família. Existia uma única preocupação que atormentava pais e mães: a homossexualidade. “Não tanto o feminino”, escreve Jefferson, “pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo”. “O problema dizia respeito”, continua, “aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a uma família. Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e irmãos morriam de vergonha e desgosto”. O pai castigava o filho e este era expulso de casa e, assim que os amigos ficavam sabendo, também era excluído de seus círculos sociais:

Lembro-me de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho. Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó. Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte. Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias e, não raro, com agressões físicas. Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis. Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não mais frequentaria a roda (PÉRES, 2002, p. 49-50).

Celino não esperou pela expulsão do grupo de amigos. Fez, de acordo com Jefferson Péres, o que muitos homossexuais que tinham condições faziam: deixou de procurá-los e, “[…] pouco tempo depois tomava o rumo do Rio de Janeiro” (PÉRES, 2002, p. 50). Amaro Vieira de Alencar, autor de São Raimundo dos Meus Amores, obra sobre sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo entre as décadas de 1940 e 1950, relata, com certa carga pejorativa, aspectos da homossexualidade dos meninos de seu tempo. Um jovem de nome Leopoldino, cita Amaro, era inclinado à “pederastia”. Certa vez, foi flagrado por vários garotos em posição de quatro com um rapaz, que logo saiu de cena: “Indignado, Leopoldino continuou de quatro pés e, arreganhando as nádegas com as duas mãos, exclamou – Deixa porr!… O c… é meu! Mete Chico! Amaro finaliza esse breve relato afirmando que isso não era estranho, pois outros meninos também eram homossexuais, ativos ou passivos, abandonando a prática na fase adulta: “Quando meninos, davam até por uma bolacha, hoje não dão nem por uma padaria” (ALENCAR, 1985, p. 26).

Essa Manaus de Jefferson Péres e Amaro Alencar guardava resquícios dos tempos dos periódicos analisados. Os relatos desses memorialistas descortinam uma cidade que convivia, de um lado, com rígidos padrões morais, oriundos de um tradicional Catolicismo enraizado na sociedade, que castigava, humilhava e excluía os homossexuais do convívio social; e, do outro, com esse e outros grupos marginalizados que, apesar das tentativas de “saneamento moral” e exclusão e após anos de luta renhida, conquistaram o direito de existir.


FONTES:


Jornal do Commercio, 08/07/1912.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 26/12/1914.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ALENCAR, Amaro Vieira de. São Raimundo dos Meus Amores. Manaus, Sociedade de Televisão Ajuricaba, 1985.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2007.

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

MARTINS JÚNIOR, Carlos. Saber jurídico e homossexualidade no Brasil da Belle Époque. Diálogos (Maringá), v. 19, p. 1217-1251, 2015.

PÉRES, Jefferson. Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. 2° edição revista e ampliada. Manaus: Editora Valer, 2002.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O Amazonas na época da Elevação à categoria de Província

Bandeira do Amazonas.

Naquele 05 de Setembro de 1850, encerrava-se, pela força da lei, uma luta. Luta por emancipação política que teve início décadas antes. A antiga Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará, foi elevada, através da Lei n° 582 de 05 de Setembro daquele ano, à categoria de Província do Amazonas. Emancipada essa porção territorial, criada uma nova unidade política, era preciso organizar a administração, ver o que existia, o que faltava, cuidar da arrecadação. Enfim, planejar o futuro da nova Província.

Os limites da Província do Amazonas seriam os mesmos da antiga Capitania de São José do Rio Negro, “com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da Cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro de Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro” (REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas, 2° ed, 1989, p. 121).

Quando a Província foi entregue a seu primeiro Presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851, esta contava com um Comando Geral, criado em 05 de julho de 1737, que compreendia todo o território; a Guarda Policial, criada em 04 de abril de 1837, formada por dois Batalhões com uma força de 1339 praças; nos portos existiam 12 oficiais militares destacados; e as Companhias de Trabalhadores, instituídas pela Lei n° 02 de 25 de abril de 1838, que eram instituições que recrutavam trabalhadores, índios e mestiços, para a prestação de serviços compulsórios para o Estado e particulares. Foi criada uma Companhia Provisória de Caçadores de 1° Linha, que contava com 84 praças. Existiam também 39 praças destacadas que pertenciam ao 3° Batalhão de Artilharia a pé. Com 2 Termos com foro independente, o Amazonas possuía 4 municípios, 20 freguesias, 18 Distritos de Paz, 2 Delegacias e 11 Subdelegacias.

O estado da segurança pública era considerado lisonjeiro, ainda que as maiores ameaças consideradas pelos administradores locais fossem os ataques de indígenas das tribos arara, macûs, muras e karipuna, que vez ou outra assaltavam embarcações e matavam seus passageiros. Tenreiro Aranha tomou medidas para coibir esses ataques e punir seus autores.

No que diz respeito ao culto público, representado pela religião Católica, existiam 3 Missões na região para a catequese dos indígenas: a de Porto Alegre, em São Joaquim do Rio Branco, no Alto Rio Branco, onde eram catequizados uapixanas, macuxis, jaricunas, anhuaques, arutanis, procutus e saparás; a de Japurá, Içá e Tonantins, na margem esquerda do Solimões, cujos trabalhos eram feitos com ticunas, mariatés, xomanas, juris e passés; e a do Andirá, em Vila Nova da Rainha (Parintins), voltada para a catequese de maués e muras. As missões não estavam dando os resultados esperados, o que era atribuído “a carencia de Missionarios esclarecidos, e animados de fervor religioso, e de patriotismo; a insufficiencia dos meios pecuniarios, de que se tem disposto; e a falta de um systema de educação mais apropriada” (EXPOSIÇÃO, 1851).

Em aspectos educacionais, em seus anos iniciais a Província possuía 8 escolas de ensino primário, das quais 7 estavam plenamente providas de todos os materiais necessários para o funcionamento. A única instituição de ensino secundário, o Seminário de São José, criado em 1848, ficava na capital, Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro (Manaus). Nela eram ensinada gramática latina, língua francesa, música e canto. À época era frequentado por 17 alunos, sendo 13 internos. Em trabalho de recenseamento realizado em 1851, a população foi estimada em 29.798 habitantes, sendo 7.815 homens livres e 225 escravos, 8.772 mulheres livres e 272 escravas, 6.776 menores do sexo masculino livres e 117 escravos, e 5.685 menores do sexo feminino livres e 136 escravas.

Assim se encontrava a Província do Amazonas, de acordo com a Exposição apresentada em 09 de dezembro de 1851 por Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província do Pará, a João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Fausto concluiu sua exposição desejando sucesso a Tenreiro Aranha e ao Amazonas: "Concluindo, felicito a V. Exa. pela gloria, que lhe caberá, de dar á Provincia do Amazonas o impulso, que deve acceleral-a na carreira do progresso, desenvolvendo largamente os grandes meios que ella possue, e que lhe afiançam, no porvir, um logar a par das que mais hajam florescido" (EXPOSIÇÃO, 1851).

A par dessas informações, do lugar que primeiro administraria, Tenreiro Aranha pôde enfim instalá-la em 01 de Janeiro de 1852, no prédio da Câmara Municipal de Manaus. Instalada, nomeados seus vice-presidentes e demais funcionários, seguiram-se os festejos e dois tradicionais atos religiosos, o de Ação de Graças, na capela do Seminário de São José, e o Te Deum Laudamus (A Ti Louvamos, Deus), na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, que estava servindo de Igreja Matriz.

Em 1852 foi levantada a planta de Manaus. Nela, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, do Espírito Santo e do Aterro, que cortavam seus poucos bairros, Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente. As ruas continuavam estreitas e curtas, como nos tempos coloniais, definidas de forma natural pelo terreno. Registra-se, ainda, como acontecimento marcante para a região, a introdução da navegação a vapor mediante a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Manaus no tempo dos ingleses

Bosque Municipal, ponto de encontro da colônia inglesa em Manaus. Foto de 1927. FONTE: Fanpage Manaus Sorriso.

Não tem como falar da História de Manaus sem fazer referência à presença e influência inglesa entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Nesse período a cidade era o principal polo econômico da Amazônia e um dos mais importantes centros comerciais do mundo, enriquecida graças à exploração da goma elástica. Os ingleses, assim como outros estrangeiros, aqui se estabeleceram em busca de auferir lucros com a corrida da borracha. Deixaram suas marcas na economia, na arquitetura, na moda e nos costumes.

O mundo vivia sob influência política e econômica do poderoso Império Inglês, que estava no auge de seu crescimento industrial, possibilitado pelo investimento do capital acumulado durante a expansão marítima entre os séculos XVI e XVIII na indústria. As grandes potências realizavam investimentos onde era possível adquirir matérias-primas para suas indústrias e onde estavam localizados mercados consumidores para seus produtos manufaturados. O capital inglês, registra o historiador Eric Hobsbawn em A Era do Capital (1996), foi responsável por desenvolver a infraestrutura da América do Sul e de outros continentes. Surgiram ferrovias, portos e serviços, explorados por longos anos por empresas sediadas em Londres. O pacto colonial já havia deixado de ser uma realidade, mas a dependência em relação às metrópoles continuaria nessa nova fase de expansão do capitalismo, que dominaria os mais distantes rincões do mundo.

A primeira ação inglesa no Amazonas se deu por volta de 1860. O governo inglês pressionou o Império Brasileiro para que ele abrisse os portos do Rio Amazonas às nações estrangeiras, fechados desde o período Colonial. Após longos debates, foi lavrada em 07 de setembro de 1867 a lei que abria os portos do Rio Amazonas às grandes potências, favorecendo principalmente a Inglaterra, que em pouco tempo passou a dominar a navegação na região. Conforme estudos do historiador amazonense Antonio José Souto Loureiro, autor de O Amazonas na Época Imperial (1989, p. 154-155), em 1871 empresários ingleses compram a Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá em 1852, a transformando na The Amazon Steamship Navigation Company Limited. A Companhia Fluvial do Alto Amazonas também teve seus direitos transferidos para aquela companhia em 1874.

Com a abertura dos portos, os produtos ingleses invadiram os mercados locais. Nos jornais amazonenses encontramos aos montes anúncios de chapéus de sol, camisas, botas, sapatos, máquinas de costura, instrumentos musicais, armas, relógios, estopa, conservas, geleias, bebidas, manteigas e outras mercadorias sendo vendidos por casas comerciais de Manaus. Enfatizava-se, em cada informe, a excepcional qualidade que possuíam. Em contrapartida, a exportação de produtos animais e vegetais, com destaque para a borracha, utilizada nas indústrias de revestimento de cabos elétricos e automobilística, teve largo crescimento, possibilitando, a partir de 1880, um surto de desenvolvimento jamais antes visto na região. Isso só foi possível, deve-se lembrar, graças à criação, em 1839, pelo inventor norte-americano Charles Goodyear (1800-1860), do processo de vulcanização, no qual o uso do calor e do enxofre aumentou a durabilidade da borracha, impedindo que ela se degradasse pela ação climática. Os impostos arrecadados através da exportação foram aplicados, em diferentes administrações estaduais e municipais, na modernização de Manaus.

Membros da colônia inglesa em Manaus. Foto do início do século XX. FONTE: SCHWEICKARDT, Júlio César. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930). Tese de Doutorado, Fiocruz, 2009.

Manaus, agora transformada no principal centro financeiro da Amazônia, necessitava de uma série de melhorias. Faltava um bom sistema de comunicação, um porto flutuante, energia elétrica e abastecimento regular de água e esgoto. Como vinha ocorrendo em várias partes do mundo, o Estado, em troca da implantação desses serviços, concedeu o direito de exploração a empresas estrangeiras, leia-se inglesas. Antônio Loureiro, em A Grande Crise (2008, p. 95-97), nos dá um panorama dessas concessões: Em 1895 é fundada a The Amazon Telegraph Company Ltd., concessionária da comunicação por cabo fluvial entre Manaus e Belém e, por submarino, entre Belém e a Europa. É formada em 1909 a Booth Steamship Company, de navegação internacional entre a Europa e os Estados Unidos. A The Amazon Steamship Navigation Company Ltd. é transformada em 1911 na The Amazon River Steamship Company Ltd. Em 1902 é fundada a The Manáos Harbour Limited, responsável pela construção e exploração do Porto de Manaus, com uma concessão de exploração por 60 anos. Também foi responsável pela construção do novo prédio da Alfândega, erguido entre 1906 e 1909. A concessionária do serviço de abastecimento de água e esgotos, Manáos Improvements Ltd., foi fundada em 1906. O mercado e o matadouro público passaram a ser administrados pela The Manáos Markets and Slaughterhouse Ltd. O serviço de bondes elétricos foi concedido à The Manáos Railway Company em 1895, mesmo ano em que o serviço de energia elétrica é concedido à The Manáos Eletric Lighting Company. Em 1909 bonde e energia elétrica passaram a ser explorados pela The Manáos Tramways and Light Company Ltd.

O Governo esperava que as concessões garantissem, além da arrecadação e do melhoramento técnico da cidade, o bom funcionamento desses serviços para os moradores. No entanto, a realidade nem sempre foi essa. Várias vezes o Estado e a população tiveram que entrar em confronto com as concessionárias inglesas por conta do péssimo serviço oferecido, pelos abusos no aumento das taxas e, principalmente, pela pouca atenção aos interesses locais. A Manáos Harbour, por exemplo, desde o início oferecia um serviço muito abaixo do esperado. Em 07 de agosto de 1904 assim se manifestava o Jornal do Commercio a seu respeito: “Os atropellos que ao commercio desta praça tem imposto a archi-poderosa empreza que houve carta testamentaria para espraiar seus dominios no littoral desta cidade, são notorios já e patentes e formam um longo rosario de indestrutiveis e irritantes desmandos”. Em 1913 o escritório da Manáos Improvements foi destruído pela população, enfurecida pelos constantes e exorbitantes aumentos. A Manáos Markets foi encampada durante a Revolução de 1924. A Manáos Tramways and Light Company foi encampada pelo Estado em 1950. O porto foi a concessão inglesa que mais durou, encampado pelo Estado apenas em 1967.

Em 06 de novembro de 1901 é instalada na antiga Rua Doutor Constantino Nery, atual Monteiro de Souza, uma agência do London and Brazilian Bank Ltd. Posteriormente é aberta uma agência do The London & River Plate Bank Ltd. Os dois são fundidos em 1923, dando origem ao London Bank, com agência na rua Guilherme Moreira. A economia do Estado do Amazonas, que àquela altura já representava uma das principais arrecadações do país, circulava por essas instituições. Só para termos uma ideia em valores, em 1910 a cotação da borracha atingiu, de acordo com Samuel Benchimol em Amazônia – Formação Social e Cultural (1999, p. 209), a cifra de 665 libras por tonelada, sendo exportadas 38.206 toneladas. Consultando o Annuario de Manáos (1913-1914), encontramos os nomes de algumas das mais afamadas e poderosas casas exportadoras inglesas estabelecidas em Manaus: Adelbert H. Alden, Ahlers & Cia, De Lagotellerie & Cia, General Rubber Co. Of Brasil, W. Peters & Cia e Zarges, Ohliger & Cia.

Vieram para a cidade engenheiros, médicos, funcionários públicos, banqueiros, empresários e investidores que construíram carreiras sólidas e pequenas fortunas. O médico Hermenegildo Lopes de Campos, em sua Climatologia médica do Estado do Amazonas (1988, p. 101), calculou que em 1903 residiam em Manaus de 70 a 75 ingleses. Destacamos o Sr. Stanley Sutton, gerente da Manáos Harbour; Arthur James Billet, adjunto do Contador da Manáos Harbour, George Clawson Browne, funcionário da mesma empresa; Mr. Forbes e Mr. Turner, gerente e diretor da Manáos Tramways and Light Company respectivamente; Edmund Compton, sócio da casa comercial Compton, Meech & Cia; F. Higson, sócio da firma Higson & Fall; Fanny Hughes de Oliveira, esposa do Coronel Manoel Dias de Oliveira, corretor da Junta Comercial do Amazonas. O médico canadense Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas (1875-1931), do laboratório da Liverpool School of Tropical Medicine, fundado em Manaus em 1910, atendia cidadãos ingleses e alemães. Caminhando pelo do Cemitério de São João Batista encontramos alguns túmulos de membros da colônia. Vejamos a trajetória de Alfred John Toone (1882-1906), impressa em uma bela lápide de granito negro: Filho mais velho de Charles e Sarah Toone, nasceu no município de Liscard, na Inglaterra, tendo trabalhado por oito anos no escritório de Liverpool da Booth Steamship Company, posteriormente vindo trabalhar no Brasil. Faleceu 5 meses depois de deixar a Inglaterra, em 16 de fevereiro de 1906, possivelmente vítima de alguma doença tropical. Seu túmulo foi uma homenagem da empresa pelos serviços prestados. Muitos deles se relacionavam com a comunidade local através da presença em outros clubes, como o Luso Sporting Clube, dos portugueses, que admitia como sócios cidadãos ingleses e de outras nacionalidades.

Manáos Athletic Club. Foto de 1913. FONTE: Acervo do pesquisador Gaspar Vieira Neto.

Diferentes esportes praticados pelos ingleses foram introduzidos na cidade. Partidas de futebol já eram realizadas em Manaus desde o início do século XX. Eles fundaram em 1908 um clube de futebol, o Manáos Athletic Club, constituído unicamente por súditos da velha Albion. O corpo administrativo desse clube eleito em 1911 nos dá uma ideia dessa composição: “Presidente, W. Robilliard; secretario, T. C. Shaw; thesoureiro, A. H. Samuels; capitain, E, Compton; director-fiscal, W. Baumann; vogaes, Aimers, Gordon. Higson, Douglas, Dening”. Por volta de 1900-1904 foram fundados o Cricket Club e o Manáos Tennis Club. Todos esses esportes eram praticados em um local de uso exclusivo, o aristocrático Bosque Municipal, também conhecido como Bosque dos Ingleses, localizado na antiga Estrada de Flores, atual Avenida Constantino Nery. O Jornal do Commercio informava em edição de 17 de abril de 1904 que “No bosque municipal haverá hoje jogo de cricket pelas turmas que no domingo passado estiveram ali disputando um match”. Eles comemoravam com grandes festividades as principais datas do calendário britânico, com especial destaque para os aniversários de membros da Família Real. Os eventos aumentaram consideravelmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que eram angariados fundos para a Cruz Vermelha.

Os memorialistas lembram com saudosismo da Manaus dos ingleses. Agnello Bittencourt (1876-1975), renomado professor e historiador amazonense, pontua, em Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências (1969, p. 70), que nesse período, apesar do clima tropical, os membros da elite vestiam-se seguindo o rigor da moda europeia, em especial a francesa e a inglesa, com “as mulheres espartilhadas e vestidas até aos pés em pesadas sêdas; os homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso estilo “fin-de-siècle”. Os homens procuravam estar sempre apresentáveis, vestindo belíssimos ternos de linho branco H.J. inglês, comercializados nas melhores lojas da cidade. Desde o século XIX a língua inglesa era ensinada nos estabelecimentos de educação e cobrada nos concursos públicos.

Restam hoje alguns exemplares de arquitetura genuinamente inglesa. O primeiro é o Porto Flutuante, popularmente conhecido como Roadway. É o maior porto flutuante do mundo, acompanhando as cheias e as vazantes do Rio Negro. Na mesma região encontra-se a Alfândega, pré-fabricado na Inglaterra e projetado pelos arquitetos Edmund Fisher, H. M. Fletcher e G. Pinkerton. Nas palavras do historiador paraense Leandro Tocantins, em O Rio Comanda a Vida (2000, p. 234), é um edifício “vistoso, arquitetura eclética, sendo uma reprodução de prédio inglês comum nas ruas londrinas de 1900”. Próximo dali, entre a Travessa Vivaldo Lima e a Rua Taqueirinha, estão o prédio do antigo Museu do Porto, construído em 1903 para abrigar a usina de força do cais do porto; e a antiga Administração do Porto. Assim como a Alfândega, foram construídos em estilo inglês, com tijolos aparentes.

O tempo dos ingleses se esvaiu juntamente à bancarrota que atingiu a região amazônica entre 1913-1920. A borracha produzida nos seringais planejados das colônias inglesas e holandesas no sudeste asiático, fruto do contrabando por eles feito por volta de 1870, superou a produção nativa. Empresas fecharam, serviços foram paralisados, obras deixaram de ser construídas. Parte daqueles que se aventuraram no passado deixando a Terra da Rainha em direção ao “Inferno Verde”, rumaram de volta para Londres, Liverpool, Manchester e outras cidades de médio e pequeno porte, levando, com certeza, lembranças da vida nos trópicos. O capital inglês, que por mais de duas décadas foi aqui aplicado, agora seria direcionado para a Ásia. Terminava assim a saga inglesa em Manaus.


FONTES:


Annuario de Manáos, 1913-1914. Acervo particular do pesquisador Ed Lincon Barros Silva.

Correio Sportivo, 12/03/1911.

Jornal do Commercio, 07/08/1904.

Jornal do Commercio, 17/04/1904.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer, 1999.

CAMPOS, Hermenegildo Lopes de. Climatologia médica do Estado do Amazonas. Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1988 (fac-similado, 1909).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de ManausPródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. 5° ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

___________________________. A Grande Crise. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2008.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia. 9° ed. rev. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Índex de Livros Proibidos e a Inquisição Católica

Inquisição. Pintura de Edouard Moyse (1872). FONTE: commons.wikimedia.org.

No período da Contrarreforma, em que a Igreja Católica se viu diante das ameaças do Protestantismo, que ganhava, naquele contexto da Modernidade, grande número de adeptos, já fazendo-se presente em algumas das principais Cortes europeias, a autoridade papal utilizou poderosos mecanismos de controle e repressão, destacando-se o Index librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos), datado de 1559, e a Inquisição, já utilizada na Idade Média e reativada na Idade Moderna.

As listas de livros proibidos já circulavam em universidades de Teologia pelo menos desde o início do século XVI. Coube ao Papa Paulo IV a promoção de uma lista de trabalhos considerados hereges e que, por isso, deveriam ser proibidos em toda a Cristandade. Interessante destacar que não foram apenas os livros protestantes a serem proibidos, mas também os trabalhos clássicos de humanistas. Autores como Dante Alighieri, Michel de Montaigne, René Descartes, Montesquieau, La Fontaine, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire tiveram suas obras listadas no índex. Deve-se destacar que a censura já se fazia presente desde os tempos de Paulo de Tarso. Em Atos 19, Paulo se dirigiu à cidade de Éfeso para converter judeus e gregos. Nessa ocasião, os recém convertidos se desfizeram de seus antigos livros de magia:

"E foi isto notório a todos que habitavam em Éfeso, tanto judeus como gregos; e caiu temor sobre todos eles, e o nome do Senhor Jesus era engrandecido. E muitos dos que tinham crido vinham, confessando e publicando os seus feitos. Também muitos dos que seguiam arte mágicas trouxeram os seus livros, e os queimaram na presença de todos e, feita a conta do seu preço, acharam que montava a cinquenta mil peças de prata" (ATOS 19:17-19).

Não só os autores sofriam com a censura. Os impressores de livros e jornais e os livreiros também eram vigiados pela Igreja. A fiscalização, feita com frequência, era severa e muitas vezes arruinava as vendas, pois o material, caso não estivesse de acordo com as determinações da Santa Sé, era confiscado e posteriormente eliminado. O historiador britânico Toby Green registra que a repressão acabava estimulando a procura pelos livros proibidos, que se tornavam cada vez mais valiosos. Surgia assim um contrabando rentável de obras, que chegavam aos seus destinos escondidas em baús, roupas e navios.

O historiador norte-americano Carter Lindberg, autor de História da Reforma (2017), registra, no entanto, que a historiografia mais recente afirma que o Index não teve um efeito tão devastador como se imagina, sendo “menos uma “cortina de ferro” que uma rede de malha” (LINDBERG, 2017, p. 492). Lindberg mostra que as visões sobre o período, ainda falando sobre o Index, são marcadas pela ponderação entre a rigidez e a continuidade da produção de cultural, embora autores como Gleason e Silvana Menchi mostrem os efeitos da repressão. A proibição de obras, pela Igreja, durou, embora já bastante enfraquecida, até 1966.

A Inquisição poder ser definida, de forma pedagógica, como um instrumento legal de perseguição a heresias, tendo suas raízes na repressão ao catarismo no século XIII. Na Espanha, no final do século XV, ela teve como alvo o judaísmo, determinando a conversão ao Cristianismo aos seus praticantes. Esses cristãos-novos, assim como seus descendentes, continuaram a ser perseguidos por conta da suspeita da continuidade de seus antigos cultos. Durante e após a Reconquista, além dos judeus, também foram perseguidos e mortos muçulmanos recém-convertidos. 

Lindberg pontua que existiam na Europa sistemas legais seculares mais severos que a Inquisição, como a pena das galés, mas nenhum com efeitos psicológicos tão duradouros quanto ela, que promovia uma intensa exploração do medo, através, principalmente, da humilhação pública dos condenados. O historiador britânico Toby Green, autor de Inquisição: O Reinado do Medo (2012), recuperou bem essa dimensão psicológica, mostrando como o medo era almejado pelas autoridades inquisitoriais:

"Esse terror era cuidadosamente cultivado pelas autoridades inquisitoriais. Em 1564, um advogado escreveu à Suprema para dizer que na Galícia era necessário que as pessoas "alimentassem o medo", respeitando a Inquisição. Em 1578, ao reeditar o Directorium Inquisitorium, texto sobre os procedimentos inquisitoriais de Nicolas de Eymeric, inquisidor de Aragão no século XIV, Francisco Peña escreveu: "Devemos recordar que o objetivo essencial do julgamento e da sentença de morte não é salvar a alma do acusado, mas fazer o bem público e aterrorizar as gentes" (GREEN, 2012, p. 28).

Mais uma vez o autor nos convida a contextualizar esse instrumento, mostrando que a tortura, na qual logo se pensa quando se fala em Inquisição, tinha uma dinâmica própria, sendo mais moderada do que se imagina. A Inquisição espanhola tinha relação com o Estado, este último a utilizando como mecanismo de controle social não apenas de hereges, mas também de estrangeiros que poderiam comprometer a organização social. O Papa Paulo IV, interessado pelos resultados da Inquisição, a aplicou na Itália e posteriormente a toda a Cristandade, organizando o tribunal romano, com juízes dominicanos e cardeais escolhidos pelo Papa. Lindberg afirma que a Inquisição “serviu de arma defensiva da Contrarreforma” (LINDBERG, 2017, p. 497).

Após nos inteirarmos brevemente sobre o funcionamento do Index librorum prohibitorum e da Inquisição, tendo como base as pesquisas de Carter Lindberg e Toby Green, concluímos que eles foram mecanismos importantes na Reforma Católica ou Contrarreforma, muito mais de defesa do que de ataque, em um período em que o enfrentamento ao Protestantismo tornou-se mais rígido, embora fique claro que a natureza de ambos foi revisitada pela historiografia mais recente, que buscou contextualizá-los e historicizá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Trad. Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LINDBERG, Carter. História da Reforma. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

sábado, 18 de junho de 2022

O que é História Cultural?

A Dança Camponesa. Pintura de Pieter Bruegel, o Velho (1567). FONTE: commons.wikimedia.org.

O que é História Cultural? Essa pergunta é antiga. De acordo com o historiador inglês Peter Burke, autor de O que é História Cultural? (2005), ela foi formulada no final do século XIX pelo historiador alemão Karl Lamprechet. Desde então muito já se escreveu e se refletiu sobre, mas ainda não existe uma resposta concreta, ou, pelo menos, uma resposta totalmente aceita pela comunidade acadêmica. Como entender a História Cultural, dada a sua complexidade? A presente reflexão, singela, abordará a História Cultural como um campo historiográfico.

A História Cultural pode ser entendida como um campo historiográfico em que seus praticantes realizam uma interpretação cultural da História. Cultura é um conceito polissêmico, o que garante certas especificidades a esse campo, que é estudado e praticado desde a segunda metade do século XIX, sendo redescoberto na década de 1970. Em uma definição simples, mas não satisfatória, cultura pode ser entendida como um conjunto de práticas que caracterizam determinado grupo social. Existe a cultura popular, a cultura erudita, a cultura material, a cultura imaterial etc.

Peter Burke (2005) divide a História Cultural em quatro fases: fase clássica, fase da História social da arte, fase da descoberta da História da cultura popular e a fase da Nova História cultural. A primeira vai de 1800 a 1950. Os historiadores desse período voltam-se para o estudo dos clássicos da arte, da filosofia, da literatura e da ciência. A segunda tem início na década de 1930, sendo marcada pela produção de trabalhos que abordavam a arte através de uma perspectiva social. A terceira fase, surgida na década de 1960, tem como principal característica a “descoberta do povo”, isto é, a descoberta do protagonismo das classes populares (operários, camponeses, artesãos), anteriormente relegadas ao esquecimento. A quarte e última fase, denominada Nova História Cultural, está em pleno desenvolvimento desde a década de 1980. Caracteriza-se pelo diálogo com outras ciências como a Antropologia, a Sociologia e as Ciências Sociais.

Essa redescoberta ocorrida na década de 1970 está ligada às transformações pelas quais passaram as ciências humanas nesse período, transformações essas que dizem respeito à valorização das diferenças culturais, dos modos de vida das sociedades. Em síntese, tudo que está relacionado à identidade cultural. Os historiadores culturais buscam significados, práticas e representações, elementos simbólicos construídos pelo homem ao longo de sua trajetória. Por dedicar-se ao simbólico e ao abstrato, a História Cultural possui uma abordagem diferente do que ocorre, por exemplo, nas histórias política e econômica. Ela oferece uma gama de possibilidades de estudos. O pesquisador que se dedica a esse campo pode produzir uma História do cotidiano, História da vida privada, História dos costumes, História da morte, História da sexualidade etc. Aparentemente não existem fronteiras para os estudos culturais, pois tudo está permeado pela cultura humana.

Outro fator que possibilitou essa redescoberta de História Cultural foi a crise dos paradigmas, que atingiu principalmente o marxismo, enfraquecido pela denúncia dos crimes cometidos por Josef Stálin na União Soviética, o que causou uma cisão na intelectualidade marxista. A historiadora Sandra Jatahy Pesavento, em História & História Cultural (2003), explica que a visão mecanicista, etapista, materialista e economicista do marxismo tradicional passou a ser criticada e vista como insuficiente para a produção do conhecimento histórico. A abordagem cultural, dessa forma, tornou-se uma alternativa para superar essa crise.

Uma característica importante da História Cultural, brevemente destacada anteriormente, é sua interdisciplinaridade, a relação com outros campos do conhecimento humano. Os historiadores culturais, em seus estudos, lançam mão de conhecimentos em Ciências Sociais, Sociologia, Antropologia, Linguística e outras ciências que auxiliem nos estudos sobre a cultura em suas mais diferentes dimensões. O diálogo com outras áreas torna-se essencial. Os pesquisadores desse campo também procuram utilizar métodos qualitativos em vez de quantitativos, como o levantamento seriado de fontes. Isso não quer dizer, no entanto, que não existam historiadores culturais que o façam. Um exemplo que pode ser dado são os estudos culturais que utilizam a demografia, sendo necessária a utilização de fontes seriadas como registros de nascimento e de óbito.

Como todo campo historiográfico, a História Cultural está ligada à diferentes tradições culturais de origem nacional. Existem as tradições germânica, holandesa, inglesa, norte-americana e francesa, para ficarmos apenas em alguns exemplos básicos. Cada uma possui sua particularidade. A francesa possui algumas especificidades que devem ser destacadas, como, por exemplo, suas abordagens, surgidas através da Escola dos Annales, sobre as mentalidades, as sensibilidades, as representações coletivas, a cultura material e o imaginário social. São autores renomados Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie e Alain Corbain.

A História Cultural é, portanto, um campo historiográfico no qual a cultura é o prisma da análise histórica de seus historiadores praticantes. Isso quer dizer que práticas, pensamentos, gestos, símbolos, são seus objetos de estudo. Os métodos utilizados podem ser qualitativos e, em menor ocorrência, quantitativos. E por ser a cultura um conceito com diferentes significados, em constante mudança, a História Cultural está em plena expansão, oferecendo diferentes possibilidades aos pesquisadores.


sexta-feira, 25 de março de 2022

Matéria viscosa, matéria vistosa: a escarradeira

Escarradeira de porcelana francesa. FONTE: Leslie Diniz Leilões.

A escarradeira, também conhecida como cuspideira e salivadeira, é um objeto utilizado, como revelam seus nomes, para escarrar e cuspir. Suas origens remontam à Idade Média Oriental. Na China, por exemplo, foram encontradas escarradeiras em tumbas de imperadores que remontam ao século VIII. As intensas trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente, no século XVI, fizeram as escarradeiras se popularizar nas Cortes da Europa - escarrar era um hábito - principalmente durante o apogeu das exportações de tabaco das colônias portuguesas e espanholas na América. Após o tabaco ser mascado, ele era cuspido nesses recipientes. Além desse uso, a escarradeira também era utilizada para fins médicos, com a eliminação de secreções decorrentes de doenças como a gripe e a tuberculose. 

Sua chegada ao Brasil se deu entre fins do século XVIII e início do XIX. Encontramos em jornais do Rio de Janeiro publicados entre as décadas de 1820 e 1840, pessoas anunciando a compra e a venda de escarradeiras. Em 1827, a Chácara Copacabana, do Padre Jacinto Pires Lima, foi furtada por uma quadrilha. Dentre os inúmeros itens subtraídos, consta uma escarradeira (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 30/03/1827, p. 03). Por volta de 1838, uma pessoa anônima, estabelecida na rua do Valongo, comprava objetos de segunda mão. Um dos objetos que procurava, ao lado de uma bacia e jarro de prata, era a escarradeira (O DESPERTADOR, 30/11/1838, p. 04). Em um leilão realizado em 1845 na rua do Ouvidor, foi leiloada uma escarradeira feita de mogno (JORNAL DO COMMERCIO, 20/06/1845, p. 03). O lampista Auguste Daveau, proprietário da loja 'Bule Monstro', anunciava ter para vender em 1859 "escarradeiras de latão e de folha envernizada, ditas hygienicas de patente" (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1859, p. 86).

A escarradeira, que já tinha uma origem ligada a membros do topo da hierarquia social, foi incorporada no Brasil pela nobreza, pela burguesia e pela classe média urbana. As utilizadas por esses segmentos eram feitas de porcelana, de louça, de faiança, de vidro e de madeiras e metais nobres. Eram decoradas com motivos florais, com paisagens bucólicas do campo, figuras de animais e muitas vezes suas formas, sendo mais empregada as do leão, com a representação de seu rosto e suas patas, de forma a lembrar, talvez, as origens orientais. Na geografia doméstica, a escarradeira, que poderia ser uma ou duas, ficava na sala, ao lado das cadeiras e sofás, e também debaixo ou ao lado da cama, junto do urinol. O sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre registra que elas também eram postas na porta de casa, onde recebiam os visitantes: "Os viajantes estrangeiros que aqui estiveram no fim do século XVIII e no começo do XIX não se cansam de censurar nos brasileiros daquele tempo o mau hábito de viveram cuspindo, as salas cheias de escarradeiras ou cusparadas" (FREYRE, 2013). Os viajantes estrangeiros encontraram escarradeiras aos montes nas casas grandes e nas casas da burguesia e da classe média que começava a se formar em meados de 1800. A arqueóloga e historiadora Tânia Andrade Lima, em estudo sobre a cultura material do Rio de Janeiro do século XIX, afirma que a escarradeira é um objeto que diz muito, assim como outros, da mentalidade burguesa da época e suas práticas sociais:

"Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao aoto de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos" (LIMA, 1996, p. 66).

Sobre o hábito de cuspir e escarrar eram impostas, pelo menos desde o século XVI, normas de conduta. O teólogo e filósofo holandês Erasmo de Rotterdam, no livro A civilidade pueril, publicado em 1530, recomenda que quando se fosse cuspir, a pessoa deveria virar-se para o outro lado, de forma a evitar que as gotículas atingissem alguém. Se a matéria mucosa caísse no chão, o recomendado era que se colocasse o pé em cima. Cuspir em um lenço era o mais recomendável. Apesar de ser um hábito, não deveria ser praticado rotineiramente: "Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir" (ROTTERDAM, 2006, p. 150).  Esse hábito, que se tornava cada vez mais intolerável, pôde ser mais ou menos controlado, de acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, através da escarradeira, que se tornou um utensílio bastante requisitado nas residências burguesas (ELIAS, 1994, p. 159).

As escarradeiras não ficavam restritas ao ambiente doméstico, estando presentes em hospitais, escolas, igrejas, bares e teatros. Vejamos a extensa lista de objetos solicitados pelo Presidente da Província do Amazonas para o Hospital Militar de Manaus em 1876: Nela constam xícaras, bules, copos, lamparinas, colchões, cadeiras, urinóis e "cincoenta escarradeiras de madeira" (JORNAL DO AMAZONAS, 06/07/1876, p. 03). Na lista de objetos a serem adquiridos pelo Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, consta o pedido de uma dúzia de escarradeiras, não sendo especificado de que material (DIÁRIO OFFICIAL, 22/08/1896, p. 07). As que eram encomendadas para hospitais - geralmente de ferro ou outro material mais simples - ficando ao lado das camas dos pacientes, tinham um tratamento diferente. Contra vários tipos de doenças, o jornal A Federação recomendava, em 1899, que "na bacia de cama e escarradeira deve sempre haver uma porção do soluto de sulfato de cobre" (A FEDERAÇÃO, 15/12/1899, p. 01).

Ainda de acordo com Tânia Andrade Lima, as escarradeiras eram produzidas na China e exportadas para a Europa no século XVIII. Posteriormente surgiram oficinas nas cidades portuguesas de Viana, Porto e Gaia (LIMA, 1996, p. 67). Encontrou-se em um jornal baiano de 1841 um vendedor comercializando objetos de Prata vindos da cidade do Porto. Entre facas, garfos e bules estavam as escarradeiras (CORREIO MERCANTIL, 20/03/1841, p.04). Também existiam fábricas em outros países Europeus, como a Alemanha. É de lá uma interessante peça que faz parte do acervo do Museus Ibram Goiás, datada do século XIX e produzida pela fábrica Bonn Franz Ant Mehlem (1840-1884). Veio de Limoges, na França, uma belíssima escarradeira do Museu Histórico e Pedagógico Visconde de Mauá, em Mogi das Cruzes, São Paulo. Deve-se mencionar a produção brasileira, que teve como representante a Fábrica Nacional de Vidros de São Roque, no Rio de Janeiro, que produzia "escarradeiras de diferentes côres, imitando as francesas, proprias para sala de visita" (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 03/04/1860, p. 04).

A escarradeira possivelmente chegou ao Amazonas por volta de 1850, assim como outros objetos domésticos, favorecida que foi a região pelo estabelecimento de uma linha regular de vapores da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852), propriedade do Barão de Mauá que mais tarde, em 1871, seria adquirida por empresários ingleses. A primeira referência encontrada data de 1859, na lista de objetos da Enfermaria Militar localizada em Manaus (ESTRELLA DO AMAZONAS, 20/07/1859, p. 03). Já por volta de 1870 a encontramos sendo comercializada. O comerciante Bernardo Truão, proprietário da Loja Esperança, importou em 1877 variadas "fazendas de luxo e miudezas" de Paris, Viena e Hamburgo, de onde vieram escarradeiras de porcelana (CORREIO DO NORTE, 21/07/1877, p. 04). Na Livraria Clássica, de Silva & Gomes, podiam ser encontradas, em 1892, "escarradeiras nickeladas e de zinco" (DIÁRIO DE MANÁOS, 06/04/1892, p. 04). Em 1898 a Casa Pekim, na rua Henrique Martins, comercializava "escarradeiras finas" (COMMERCIO DO AMAZONAS, 31/05/1898, p. 03).

O uso desse utensílio era tão arraigado na sociedade burguesa manauara que ele acabava tornando-se sinônimo de imundície em algumas situações. O jornal humorístico A Marreta, ao se referir a uma prostituta polaca que residia na Avenida Epaminondas, afirmou que ela era "peior do que uma escarradeira de tysico (tuberculoso)" (A MARRETA, 10/11/1912, p. 02). "Vae lavar tuas escarradeiras, sujo", bradavam os redatores de O Pimpão contra um português que estava tentando conquistar uma jovem (O PIMPÃO, 05/09/1911, p. 04). O Rebenque, protestando contra as moças que iam à missa e, ao invés de prestarem atenção nos ofícios, ficavam tagarelando, as alertava que "[...] as cabeças dos catholicos que vão a igreja, assistir religiosamente os seus actos, não podem nem devem servir de escarradeiras" (O REBENQUE, 11/01/1913, p. 03).

As mais belas escarradeiras do Amazonas encontram-se em exposição no museu do Teatro Amazonas. São de procedência holandesa e alemã, produzidas pela histórica fábrica Villeroy & Boch, em atividade desde 1748. São decoradas com figuras de animais, principalmente de pássaros, e cenas urbanas como um passeio de charrete, algo bastante característico do período. Outras, possivelmente de igual qualidade e beleza, devem ter se perdido nos antigos palacetes aristocráticos e residências pequeno-burguesas, a arruinar-se no Centro da cidade. Fazendo um exercício imaginativo, podemos nos transportar para a Manaus do final do século XIX e início do século XX para visualizar os usos da escarradeira. Quantas cusparadas e escarradas não foram dadas nos intervalos dos grandes espetáculos nas vistosas escarradeiras espalhadas pelo Salão Nobre do teatro, ou nas reuniões realizadas nos salões das casas mais suntuosas da Avenida Joaquim Nabuco e da Avenida Eduardo Ribeiro. Matéria viscosa de artistas, políticos, militares de alta patente, homens de negócios, cônsules, expectorada entre um gole de champagne francês Veuve Clicquot Ponsardin, vinho português do Porto e uma tragada de charuto cubano, o melhor do mundo. Expectoração que poderia anteceder ou suceder a assinatura de algum tratado, de acordo comercial entre seringalistas e casas aviadoras, ou de simples agendamento de convescote nos bosques do Tarumã no final de semana.

Até quando as escarradeiras foram utilizadas? É difícil precisar. As encontramos sendo vendidas ou leiloadas em anúncios de jornais até a década de 1940. A partir daí elas praticamente somem de circulação. As antigas escarradeiras de porcelana, de prata e de vidro, são substituídas por novos modelos hidráulicos, instalados em pontos estratégicos de espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como bem exemplifica um anúncio de 1926 da Escarradeira Hygéa, criada no Rio de Janeiro, que possuía limpeza automática: "Os regulamentos de saúde publica exigem escarradeiras deste systhema". A revista Careta, do Rio de Janeiro, registra a instalação desse tipo de escarradeira em Manaus, no consultório do médico José Garcia e no Posto de Profilaxia Miranda Leão (CARETA, 17/09/1927, p. 37). É provável também que entraram em decadência juntamente aos hábitos de mascar fumo e usar cachimbo, e que tornaram-se, disso não tenhamos dúvida, menos toleráveis com o passar do tempo: o refinamento deu lugar ao estranhamento, à repugnância, reação que ainda temos quando vemos essas peças expostas em museus e lembramos dos seus usos no passado.


FONTES:

Diário do Rio de Janeiro, 30/03/1827.

O Despertador, RJ, 30/11/1838.

Correio Mercantil, BA, 20/03/1841.

Jornal do Commercio, RJ, 20/06/1845.

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, 1859.

Estrella do Amazonas, 20/07/1859.

Diário do Rio de Janeiro, 03/04/1860.

Jornal do Amazonas, 06/07/1876.

Correio do Norte, 21/07/1877.

Diário de Manáos, 06/04/1892.

Commercio do Amazonas, 31/05/1898.

A Federação, 15/12/1899.

O Pimpão, 05/09/1911.

A Marreta, 10/11/1912.

O Rebenque, 11/01/1913.

Careta, RJ, 17/09/1927.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1994.

FREYRE, Gilberto de Mello. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.

LIMA, Tânia Andrade Lima. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v. II, n.3, p. 44-96, 1996.

ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.