sábado, 4 de março de 2023

Ferreira Pena, a rua do Conselheiro

Rua Ferreira Pena. Foto: Google Maps.

Na primeira semana de fevereiro fui instado pela produtora cultural Loren Lunière para fazer um levantamento histórico sobre a rua Ferreira Pena, onde será realizado um animado bloco de Carnaval. Com este singelo trabalho buscou-se dar maior relevância cultural às festividades momescas, mostrando como diversão e conhecimento podem andar de mãos dadas.

A rua Ferreira Pena tem início na rua 10 de Julho, atravessando a rua Monsenhor Coutinho, avenida Ramos Ferreira, rua Simon Bolívar, avenida Leonardo Malcher, rua Silva Ramos, rua Tarumã, avenida Japurá, alameda Hortência, rua Barcelos e avenida Ayrão, e termina na avenida Álvaro Maia (Boulevard). No passado, quando a Geografia da cidade era bastante peculiar e com limites bem diferentes dos atuais, a rua Ferreira Pena fazia parte do antigo bairro da Campina. Analisando algumas plantas da cidade chegou-se a conclusão de que sua abertura se deu por volta de 1890.

Quem foi Ferreira Pena? O Conselheiro Herculano Ferreira Pena nasceu em 14 de janeiro de 1811 na cidade de Diamantina, na Província de Minas Gerais, e faleceu em 27 de maio de 1867 no Rio de Janeiro. De acordo com o historiador amazonense Agnello Bittencourt, em seu Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado (1973), pouco se sabe sobre seus primeiros anos de vida. Entre 1830 e 1832 foi Professor de Primeiras Letras na Escola Modelo de Ouro Preto. Junto à carreira docente, trabalhou em periódicos mineiros, como O Novo Argos, onde atuou de 1829 a 1834. Foi nomeado Secretário-Geral da Província de Minas Gerais pelo presidente Manuel Ignácio de Mello e Souza.

Em 1842 foi nomeado Presidente da Província de Minas Gerais. Posteriormente presidiu as províncias do Espírito Santo (1845-1846), Pará (1846-1847 e 1847-1848), Pernambuco (1848), Maranhão (1849), Amazonas (1853-1855), Minas Gerais (1856-1857), Bahia (1859-1860) e Mato Grosso (1862-1863). O Imperador o nomeou Senador pela Província do Amazonas, cargo que desempenhou entre 1855-1856, 1857-1860, 1861-1863, 1864-1866 e 1867-1867. Fez parte do Conselho de Sua Majestade. De acordo com os pesquisadores Vera Lúcia Nogueira e Dalvit Greiner de Paula, autores do artigo De professor público a Presidente de Província: anotações sobre a trajetória política de Herculano Ferreira Pena (1811-1867) (2017), ele foi o político que mais vezes foi nomeado para presidir províncias no Império.

Foi sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e membro da diretoria do Banco do Brasil. Por sua atuação como destacado político, foi fidalgo da Casa Imperial e dignitário da Ordem da Rosa. Foi casado com Francisca de Paula Freire de Andrade. Da união nasceram Isabel Herculana Ferreira Pena, Herculano Carlos Ferreira Pena, Herculano Velloso Ferreira Pena e Carlos Amazonio Ferreira Pena. Faleceu no Rio de Janeiro em 27 de maio de 1867, aos 56 anos.

Herculano Ferreira Pena (1811-1867). Foto: Acervo do IHGB.

O médico e historiador brasileiro Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, no monumental Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1970), registra que Ferreira Penna produziu os seguintes discursos e relatórios: Discussão do voto de graças, discurso lido na Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro em 23 de janeiro de 1850; Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas no dia 1° de outubro de 1853; e Exploração dos afluentes do Amazonas, de 1855, disponível na Biblioteca Nacional.

Na Ferreira Pena estão localizados alguns prédios de interesse histórico. O primeiro é o Palacete Mourisco, na esquina com a rua Simon Bolívar. Datado de 1908, foi construído em estilo mourisco para ser residência do empresário, engenheiro e arquiteto paraense Carlos de Castro Figueiredo (1865-1927), Gerente e sócio majoritário do antigo Banco Amazonense. Nele também residiu o teatrólogo e escritor paraense Benjamin Lima (1885-1948). O prédio funcionou, posteriormente, como sede de audiências do Juizado Federal do Amazonas; Departamento de Educação e Cultura; Gabinete do Vice-Governador; Reitoria da Universidade do Amazonas, atual UFAM; Secretaria de Estado de Segurança Pública; e, entre 1999 e 2008, Escola Superior de Magistratura do Amazonas (ESMAM). Atualmente pertence à Secretaria de Estado de Cultura, estando sem uso.

Na esquina com a avenida Ramos Ferreira fica o Palacete Afonso de Carvalho, construído entre 1907 e 1908 para ser residência do Coronel da Guarda Nacional Raimundo Afonso de Carvalho, que assumiu o Governo do Estado quando da renúncia de Constantino Nery em 1907. Nele foi instalado, em 1922, a Casa Doutor Fajardo, hospital infantil. O nome é uma homenagem ao médico fluminense Francisco de Paula Fajardo Júnior (1864-1906). Posteriormente funcionou como Faculdade de Engenharia da antiga Universidade do Amazonas, Junta de Alistamento Militar e escritório.

Palacete Mourisco da Praça da Saudade. Foto: Hyago Sena.

Nas proximidades da avenida Ramos Ferreira ergue-se majestoso o casarão da tradicional família Benzecry. Trata-se de um bungalow em estilo missão californiana, construído na primeira metade da década de 1940 por Joaquim José da Cunha para ser residência do Comendador Isaac Jacob Benzecry, um dos empresários mais prósperos da Manaus na época. A família Benzecry residiu nele até a década de 1990. Posteriormente funcionaram em suas dependências a Aliança Francesa, o Consulado da Venezuela, Conselho Tutelar e a Defensoria Pública da União. Ao lado dela fica o Bororó Bar, instalado em um belo solar do início de 1900 construído pela família Câmara.

Perto do prédio da Santa Casa de Misericórdia, na esquina com a rua 10 de Julho, está o antigo Museu Fernando Ferreira da Cruz, instalado em um prédio centenário e dedicado à preservação e divulgação da História do Hospital da Sociedade Beneficente Portuguesa do Amazonas. Foi inaugurado em 31 de outubro de 1997 com o nome Fernando Ferreira da Cruz (1909-1997), antigo sócio da instituição. Na esquina com a rua Monsenhor Coutinho encontra-se o casarão da família Nasser, de origem árabe. Foi construído no início do século XX, tendo funcionado no passado como Consulado do Japão.

Longe dali, no trecho mais “novo” da rua e representando o processo de verticalização do Centro da cidade na década de 1980, situa-se o Edifício São João Del Rey, condomínio de alto padrão construído entre 1987 e 1989 pela conceituada Construtora Rayol Ltda. Na esquina com a Avenida Álvaro Maia fica o deteriorado prédio do antigo Cine Palace, em atividade entre 1965 e 1973. Além dessas construções, ao longo da via encontram-se outras dezenas de casarões e palacetes.

Nos últimos anos a rua vem ganhando novos ares com a abertura de empreendimentos como clínicas, restaurantes e, principalmente, bares, instalados em charmosos prédios de época restaurados e bem cuidados, como é o caso do Jápeto Bar e Restaurante e do Bororó Bar – casa de gente Feliz. Que nesse Carnaval os foliões que passarem pela Ferreira Pena se atentem à grandeza dessa artéria.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Entrevista: Ed Lincon Barros Silva

Ed Lincon Barros Silva.

Ed Lincon Barros Silva, 53, nasceu em Manaus, na Maternidade Balbina Mestrinho, em 20 de julho de 1969, dia em que o homem pisou na lua. Pesquisa de forma autodidata a História de Manaus e de suas antigas salas de cinema desde 1984. É proprietário de um dos mais ricos acervos fotográficos e documentais da cidade, em parte reproduzido em fanpages na internet, em livros, revistas e jornais.

– Muito obrigado por conceder essa entrevista. Para começarmos, conte um pouco sobre você e sua família.

Sou filho de Aluízio e Arlete Barros Silva. Minha infância foi boa. Gostava de assistir desenhos e séries hoje considerados clássicos. Tive vários brinquedos. Joguei bola, empinei papagaio e brinquei de bolinha de gude. Só não joguei pião porque nunca soube usar. Fui nos balneários do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponte da Bolívia e Ponta Negra, quando esta era distante da cidade e cercada pelo mato. Estudei no Colégio Ângelo Ramazzotti, Escola Estadual Márcio Nery e Escola Estadual Ruy Araújo. Trabalhei 11 anos em uma empresa concessionária da Scania e Agrale. Também fui estagiário na Caixa Econômica e na Suhab. Atualmente trabalho em uma loja de informática.

- Quando e como surgiu o interesse pela História, especialmente a de Manaus?

Começou quando o meu pai e outras pessoas mais velhas me falavam sobre as coisas da Manaus de outrora, como os bondes, os cinemas, os prédios antigos, o Carnaval, os carros, os ônibus com carroceria de madeira, o Zeppelin, o Balneário do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponta Negra dentre outros assuntos. Isso despertou o desejo de saber mais sobre a História de Manaus que não ensinaram na escola, pois não existiam, naquela época, livros sobre o assunto. No começo foi difícil, já que não havia internet, e as únicas fontes de pesquisa eram os jornais e revistas da Biblioteca Pública e também livros de parentes e amigos. Meu pai era minha fonte de informações. Infelizmente ele faleceu em 2013. Ele tirava minhas dúvidas e dizia que eu era um saudosista (risos). Alguns parentes também me ajudavam.

- Ao nos aventurarmos pela pesquisa, é impossível não nos inspirarmos em determinados autores. Quais você considera mais marcantes?

São vários: Selda Vale da Costa, Mário Ypiranga Monteiro, Cláudio Amazonas, Roberto Mendonça, Otoni Mesquita, Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, Samuel Benchimol, Márcio Souza, Elza Souza, Moacir Andrade e tantos outros. A minha pesquisa sobre os cinemas começou com a leitura dos livros Hoje tem Guarany!, de Selda Vale e Narciso Lobo, Eldorado das Ilusões: cinema e sociedade, Manaus 1897-1935 e No rastro de Silvino Santos, ambos de Selda Vale, A Tônica da Descontinuidade: Cinema e Política em Manaus na década de 1960, de Narciso Lobo. Também tem o livro Síntese da História do Amazonas, de Antônio Loureiro, publicado em 1978.

- Em algum momento dessa trajetória você pensou em se profissionalizar através de um curso superior?

Sim, mas acho que não levo muito jeito para escrever.

- Você é considerado por muitos historiadores como um dos grandes especialistas na História dos cinemas de Manaus. Como surgiu o interesse pela sétima arte?

Como disse, das conversas com os mais velhos, da leitura dos livros da Professora Selda Vale da Costa e das conversas com o Joaquim Marinho. Meu pai, durante a década de 1960, trabalhava como taxista e também era contratado pelo gerente do Cine Polytheama para fazer a propaganda dos filmes. Para isso, o gerente mandava colocar em cima do carro dois alto falantes e cartazes afixados nas portas com o nome ou pôster do filme. Ele ia acompanhado por um funcionário do cinema que fazia a locução. A curiosidade de saber a História das casas cinematográficas de Manaus me empolgaram. Juntei um bom material. Joaquim Marinho e a professora Selda me ajudaram muito nas minhas pesquisas com fotos e informações. A pesquisa nos jornais foi longa e difícil, pois muitos jornais estavam deteriorados.

- Como pesquisador detentor de um acervo ímpar, você já foi várias vezes requisitado por historiadores, instituições, jornais e revistas para prestar consultoria. Foi um bom período? Quais os trabalhos mais desafiadores?

Foi uma época boa, pois eu estava desempregado. Trabalhei com o Coronel Roberto Mendonça, Selda Vale da Costa, Durango Duarte e Cláudio Amazonas. Agradeço a todos eles. A História dos grupos teatrais de Manaus e a História dos bombeiros foram grandes desafios. A falta de informações sobre o segundo era grande. Muita coisa se perdeu como jornais e fotos, e as pessoas que viveram a época já haviam falecido. Os jornais e revistas que existiam estavam em péssimo estado de conservação, com páginas rasgadas. Uma pena. Outra dificuldade encontrada foi que algumas instituições dificultaram o acesso a seus acervos, como o Instituto Geográfico e Histórico do Amazona (IGHA) e a Biblioteca da Fundação Rede Amazônica. NA Biblioteca da Associação Comercial do Amazonas (ACA) e do Museu Amazônico da UFAM fui muito bem atendido.

- Além da consultoria, você também é conhecido por colaborar com fanpages e blogs que divulgam a História de Manaus e do Amazonas. Parte de seu acervo se encontra em páginas e perfis no Instagram e Facebook. Como funciona essa parceria?

Eu sempre procuro ajudar com informações sobre datas e observações, como curiosidades sobre os registros fotográficos. Quando alguém tem dúvida, procuro sempre passar a informação correta. Quando não sei, prefiro não opinar. Sou muito consultado pelo jornalista Evaldo Ferreira, do Jornal do Commercio. No passado, o saudoso Joaquim Marinho sempre me ligava quando precisava saber a data de inauguração de seus cinemas. Atualmente colaboro com o Eliton Reis Lira, da Manaus na História, com o Paulo Menezes, da Manaus em Cores, com o Marçal, da Manaus Sorriso, com você, do blog História Inteligente, e com a Elza Souza e o Cláudio Amazonas. Todos são grandes amigos que fiz durante as pesquisas.

Nos arquivos encontramos fontes únicas, verdadeiros tesouros históricos muitas vezes intocados. Quais foram suas principais descobertas?

A foto do Cine Popular quando de seu fechamento em 1972. Não existia nada na internet. Procurei ano a ano em todos os jornais até que finalmente encontrei. Depois o Coronel Roberto Mendonça colocou na internet e agora é fácil de encontrar. Mas quem encontrou fui eu. Outra foto difícil de encontrar foi a do Silvério José Nery, patriarca da família Nery falecido em 1878. Achei no Diário Oficial. Outros achados foram a fotos da inauguração do Prédio do Departamento de Saúde Pública, na Praça Antônio Bittencourt (do Congresso) e da inauguração do Quartel dos Bombeiros na rua Joaquim Sarmento. Encontramos uma página manuscrita no Arquivo Público com dona Janete, funcionária.

Tanto pesquisadores formados quanto autodidatas, para realizarem suas investigações, enfrentam uma série de problemas, como a péssima conservação de arquivos e a resistência de certas instituições em abrir seus espaços ao público. Você já se viu diante desses entraves?

As dificuldades são muitas. A falta de incentivo para as pesquisas e os locais que não permitem a reprodução de seus acervos são alguns exemplos. Alguns responsáveis pelos arquivos questionam o porque da pesquisa, se é trabalho de faculdade ou para escrever um livro. Sempre que possível limitam o acesso a jornais e revistas.

Em sua opinião, qual o papel dos historiadores na sociedade?

Os historiadores devem ser pessoas interessadas em resgatar a História de uma cidade que, como a nossa, não se preocupa em preservá-la; ajudar quem tem interesse em conhecer as origens de sua cidade, de seus habitantes e seu cotidiano ao longo do tempo; deixar um legado para as novas gerações que desconhecem a História de Manaus, seja por falta de interesse ou de não haver a matéria de história local nas escolas. Falta incentivo do Governo e da Prefeitura.

A Manaus de sua geração foi a das décadas de 1970, 80 e 90. Do que você guarda boas lembranças?

Da minha infância. Dos igarapés de águas limpas e sem poluição. Dos vários circos que passaram por Manaus, de algumas lojas que fecharam, supermercados como Agromar, Royale, loja S. Monteiro e Credilar. Do Parquinho 2000 no Adrianópolis, do Aviaquário na Praça da Matriz, do Avião da Praça da Saudade e do Cine Guarany. Até hoje não me conformo com a demolição dele. Sinto um vazio muito grande quando passo em frente onde ele existiu. Guardo ainda boas recordações do Boulevard Amazonas, onde eu e meus primos costumávamos jogar bola no canteiro central. De andar de bicicleta na época de finados, saudades da casa dos meus avós. Como era de dois andares, gostava de ver a cidade lá do alto. Da Lobrás com seus chocolates e revistas para colorir na minha infância. Da Pastelaria Suprema na Rua Silva Ramos com Ferreira Pena, da Sorveteria Zizas na Praca 14. De visitar o Aeroporto de Ponta Pelada, do Porto com a locomotiva na entrada e as águas escuras que me davam medo. Da drogaria Avenida que vi inaugurar em 1977. Dos desfiles na avenida Eduardo Ribeiro e do Peladão.

Para finalizarmos, que conselhos você pode dar para os pesquisadores que estão iniciando suas carreiras?

Primeiro, gostar de pesquisar em jornais, revistas, cemitérios e arquivos públicos. Segundo, sempre usar equipamentos de proteção quando for manusear material antigo. Se dedicar, gostar de História e entender o passado, para poder ter pleno domínio sobre o assunto pesquisado. Registrar em fotos o que está pesquisando, respeitando os acervos dos arquivo para que outros pesquisadores possam utilizar os mesmos.

Manaus, 26/02/2023 – 27/02/2023.



sábado, 21 de janeiro de 2023

10 anos de História Inteligente

No dia 18 o blog História Inteligente completou 10 anos de existência. Tudo começou em 18 de janeiro de 2013, nas férias do Ensino Médio. Historia era desde que me lembre a disciplina à que mais me dedicava. Escrevia textos e fazia resumos de livros sobre as mais variadas temáticas históricas. Tive a ideia, então, de criar um blog para divulgar essa singela e amadora produção. Me questionei qual seria seu nome. Minha mãe fez uma sugestão: "História Inteligente". Não sabia utilizar muito bem essa nova tecnologia. Mas precisava dar início com uma postagem. Acabou que fiz a reprodução de uma matéria de 2006 da revista História Viva sobre o racismo no século XIX. Após ter contato na escola com a História do Amazonas, especialmente a da capital Manaus, decidi focar nessa área. Os textos sobre a história da cidade fizeram sucesso. Era pouco o conteúdo dessa área na internet. Ainda não sabia, mas estava fazendo um trabalho atualmente conhecido como História Pública, que consiste na divulgação do conhecimento histórico para o grande público. Em 2015 surgiu a oportunidade de me especializar através do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Olhando para trás, percebo o quanto ela foi importante para o amadurecimento da escrita e para reflexões profundas sobre a sociedade. A partir daí fui convidado para publicar textos em jornais, dar entrevistas, prestar consultoria, realizar passeios públicos e ministrar palestras. O ponto alto foi o convite para ser colunista de História do Jornal do Commercio. Após finalizar a graduação, fui aprovado em 2022 para cursar o Mestrado em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente estou na fase da redação da dissertação, o que fez eu esquecer de publicar esse texto no dia 18. O blog foi responsável por várias conquistas. Agradeço imensamente a vocês seguidores, no Facebook e no Instagram, que me acompanham ao longo dessa década.

sábado, 19 de novembro de 2022

Uma ilha de histórias - A história por trás da sede do Comando do 9° Distrito Naval

Adriel França*

Ilha de São Vicente, em Manaus. Cartão postal.

A cidade de Manaus é cheia de ruas históricas que guardam as mais diversas histórias que se possam imaginar, mas nenhuma delas é tão fascinante quanto a rua Bernardo Ramos, uma das ruas mais antigas de Manaus, que possuía uma ilha ao final dela, a ilha de São Vicente.

Localizada no final da rua Bernardo Ramos, a ilha de São Vicente já era conhecida pelos primeiros moradores da então Cidade da Barra desde fins do século XVIII, quando o Governador da Capitania Lobo D ́Almada mandou erguer na ilha, um prédio para servir de quartel de milícias, e que assim se seguiu até idos de 1850, quando se fez presente na ilha outra instituição o Hospital Militar, o único da cidade que acabava não só por servir aos militares mas também aos civis. O hospital militar, foi responsável por cuidar das pessoas acometidas pelas diversas epidemias que assolavam Manaus no século XIX.

A incerteza de datas é grande, mas algumas fontes alegam que em 1857 o hospital já se encontrava em condições de funcionamento e por mais de 50 anos o funcionou no mesmo prédio, no qual já havia sofrido algumas alterações em sua estrutura e aparência.

Durante o século XIX só era possível chegar na ilha de S. Vicente por meio de pontes que ligavam a rua com a ilha e por pequenas embarcações que transportavam pessoal e mercadorias, mas, quase próximo a virada do século, o então governador Eduardo Ribeiro, mandou aterrar o igarapé que separa a ilha do continente, tornando-se uma península. Em 1909 o Hospital Militar deixa de funcionar no local, deixando para trás um prédio já histórico, mesmo que para a época, visto que sua fundação remonta aos idos do século XVIII, tornando-se ruínas.

Após algumas concessões do Governo para empresas privadas, a ilha torna-se novamente uma casa militar, passando abrigar o Grupamento de Elementos de Fronteira, nos anos 50, posteriormente servindo de primeira sede do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) em 1966, passando a servir depois de sede para a 29o Circunscrição de Serviço Militar em 1973, e em 1975 a 1o Companhia Especial de transportes do exército. Após tanto tempo servir como casa militar, volta para a iniciativa privada, mas, já como patrimônio histórico tombado do Estado, abrigando a antiga Portobras (Empresa de Portos do Brasil S.A) em 1982, resultado de uma permuta com o Exército, que ficou com a área que a Portobras detinha no bairro da Ponta.

Em substituição a Portobras, assumiu o local a AHIMOC (Administração das Hidrovias da Amazônia Ocidental) que ofereceu o prédio para o então Comando Naval da Amazônia Ocidental (CNAO), que até então localizava-se nas instalações do atual Batalhão dos Fuzileiros no bairro do Mauazinho. Oficializada a troca em agosto de 2001, e alguns meses de trabalho na recuperação do prédio, finalmente em 22 de janeiro de 2004 o prédio torna-se sede do CNAO, sendo este elevado à categoria de Distrito Naval em maio de 2005, mudando mais uma vez de nome, servindo de casa para o Comando do 9° Distrito Naval.

E sob os cuidados da Marinha encontra-se preservado mas fora do olha do público externo, por ser área militar, como sempre foi, pelo visto, São Vicente estará sempre guarnecida.


*Pesquisador, acadêmico de Jornalismo na Faculdade Martha Falcão e membro do Clube Filatélico do Amazonas, onde desempenha a função de Secretário. Colaborar da Web Rádio Censura Livre, Rádio JCAM, de revistas filatélicas e do Centro Cultural dos Povos da Amazônia.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Uma breve História do Dia de Finados

Cemitério de São João Batista, em Manaus, durante o Dia de Finados. Foto da década de 1960.

Não existe uma data que carregue tantos sentimentos como o Dia de Finados, ponto alto do calendário cristão. Todos os anos, no mês de novembro, os cemitérios públicos e particulares ao redor do mundo enchem-se da mais terna saudade, da mais pura devoção religiosa e da alegre nostalgia que aflora com as lembranças dos que já partiram. A morte, que a todos espreita e espera, faz com que realizemos, no dia 02 de novembro, uma profunda reflexão sobre nossa trajetória e as daqueles que jazem em outro plano.

Qual a origem dessa data? Desde os primeiros tempos do Cristianismo era costume rezar pelos mortos nas catacumbas, que naquela época cumpriam a função de locais de refúgio das perseguições religiosas e também de culto. O teólogo e filósofo Santo Agostinho de Hipona, no século V, no texto O cuidado devido aos mortos, registrou que a Igreja Católica já possuía em seu calendário uma comemoração geral pelos fiéis defuntos. Ele explica que a oração aos mortos deveria ser praticada pelos cristãos, e que ela só seria proveitosa àqueles que tiveram uma vida exemplar em Cristo. Homens e mulheres deveriam viver uma vida exemplar para gozar, na morte, da piedade dos vivos. Mas como saber quem teve uma vida de fato voltada para Cristo, morrendo dentro dos preceitos da Igreja? Na dúvida, Agostinho afirma que “(…) convém apresentar súplicas a todos os regenerados, para que não omitemos alguém entre aqueles que possam se servir desses benefícios”.

O historiador medievalista francês Jean-Claude Schimitt, em estudo sobre os mortos na sociedade Medieval, afirma que a data foi oficializada em 02 de novembro, um dia após o Dia de Todos os Santos, pelo Abade Odilon de Cluny, o Santo Odilon (962-1049). Ela começou a ser melhor documentada a partir do ano 1030. Alban Butler (1710-1773), hagiógrafo inglês do século XVIII, nos explica que essa celebração é marcada por “esmolas, orações e sacrifícios para o alívio das almas sofredoras no Purgatório”.

Na Doutrina Cristã Católica, o Purgatório é um lugar localizado entre o Céu e o Inferno para onde vão as almas daqueles que, para atingir o Paraíso, necessitam passar por um processo de purificação marcado por provações. As orações dos vivos, recomendadas pela Igreja, amenizaria a passagem por esse local intermédio entre a perdição e a glória eterna. De acordo com o historiador medievalista francês Jacques Le Goff, essas orações pelos mortos foram a gênese da criação do Purgatório: “Foi, parece, pela crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos mortos – como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e depois, no começo do século III, a Paixão de Perpétua, primeira das representações espacializadas do futuro Purgatório – que começou um movimento piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório”.

O Dia de Finados, dessa forma, surge através de um sentimento de união entre vivos e mortos, representando um novo estágio na relação entre ambos, pois até a Antiguidade os mortos ficavam bem distantes da população, enterrados o mais distante possível das áreas urbanas, de forma a não prejudicar espiritualmente o ambiente dos vivos. Nesses distantes cemitérios, na época do Império Romano, foram enterrados os primeiros mártires do Cristianismo. No lugar de suas sepulturas, os cristãos passaram a erguer igrejas, e passaram a querer serem enterrados no interior desses templos, informa o historiador francês Philippe Ariès, autor do clássico História da Morte no Ocidente (1989). Com o passar do tempo e o crescimento urbano, as cidades passaram a absorver os subúrbios onde ocorriam os sepultamentos. Os mortos, dessa forma, passaram a fazer parte, de forma mais direta, do cotidiano dos vivos.

A prática de enterrar os mortos dentro e ao redor das Igrejas espalhou-se pelo Ocidente e outras regiões, chegando aos mais distantes rincões conquistados pelas potências coloniais da época, Portugal e Espanha. Elas introduziram a comemoração de Finados, incorporando um novo rito no cotidiano das populações locais.

Nos primórdios de Manaus, entre os séculos XVII e XVIII, quando era uma simples comunidade de indígenas e soldados portugueses localizada nos arredores da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, os nativos enterravam seus mortos no cemitério que tinha seu núcleo na atual Praça Dom Pedro II, se estendia pela antiga Rua de São Vicente e chegava até o Forte da Barra, nas imediações do Porto. Os colonizadores, por sua vez, eram enterrados dentro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e em seu largo. Documentos do século XIX indicam que a Ilha de São Vicente era outro local utilizado como cemitério. No início do século XIX surge um novo local de enterro, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e o terreno localizado atrás desta, batizado de Cemitério dos Remédios.

Esses espaços desempenharam suas funções até 1850, quando o Governo da Província decide estabelecer – em nome da saúde pública e de uma nova mentalidade – um cemitério público na cidade e extinguir os enterros tradicionais. Com dificuldades materiais para executar a obra, foi cercado em 1854 o antigo Cemitério dos Remédios, que funcionaria de maneira provisória até a abertura de um novo. Com isso, foram proibidos os enterros nos templos e seus arredores. O geógrafo e historiador Agnello Bittencourt, em texto publicado no Boletim da Associação Comercial do Amazonas (1956), lembra que o Cemitério dos Remédios ficava onde está localizado o antigo prédio da Faculdade de Farmácia e Odontologia, se prolongando pela rua Leovigildo Coelho, onde ficava o seu cruzeiro.

Uma grave epidemia de febre amarela em 1856, fez com que o Governo encerrasse os enterros no Cemitério dos Remédios. Foi aberto, nessa ocasião, na antiga Estrada da Cachoeira, atual Avenida Epaminondas, o Cemitério de São José. Por décadas as romarias de Finados se dirigiram a essa necrópole. Em 1869 um redator do jornal O Catechista registrou que viu nele, desde o dia 01, “Uma infinidade de luzes simetricamente dispostas sobre as sepulturas dos finados, parte das quais se achavam vestidas de crepe, e ornadas de flores sentimentais”, além de uma “[…] multidão de pais, amigos e parentes” que iam deixar lágrimas de saudade sobre os túmulos daqueles que lhes foram caros em vida. Somava-se a esse cenário melancólico a oração fúnebre do Padre Manoel Ferreira Barreto, capelão do cemitério, que “causava a todos que chegavam a porta daquela habitação mortuária, uma emoção difícil de descrever”.

Em 1872 as romarias tiveram início no dia 01. Para o articulista do jornal Amazonas, o cemitério era o local de nivelamento social, com o mais rico dos homens sendo igualado ao mais pobre: “É que ali naquela sombria igualdade cifram-se todas as vaidades mundanas; alli acabam-se as dissenções e ódios de que muitas vezes se nutre a fragilidade humana na breve passagem que faz por este mundo sáfaro até chegar á eternidade; ali não ha distinção nem de raça nem de classes: todos são – pó, cinza, terra e nada!”. No ano de 1879 é inaugurado, no bairro de São Raimundo, o Cemitério dos Variolosos, utilizado exclusivamente para o sepultamento de vítimas da varíola, que desde 1870 assolava a cidade. Em 1888 esse campo santo foi aberto ao público em geral, ganhando o nome de Cemitério de São Raimundo.

O Dia dos Finados de 1885 foi marcado por forte emoção, com as celebrações tendo início no dia 01. Os Alunos do Instituto de Educandos Artífices cantaram o Libera-me, enquanto o Reverendo Vigário Geral Pe. Raimundo Amâncio de Miranda realizava as orações e encomendas pelas almas dos mortos. No dia 02, distante do Cemitério de São José, foi realizada comemoração no bairro de São Raimundo pela alma “[…] dos que, vítimas da epidemia que a pouco assolou esta capital, repousam no cemitério dos variolosos”. O Libera-me foi tocado pelos Reverendos. Padre Amâncio e Coutinho, com ajuda do Capitão Fleury. De acordo com o articulista do Jornal do Amazonas, “A concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”.

Em 1891 os cemitérios de São José e de São Raimundo já não possuíam mais condições de permanecer funcionando. O primeiro por já fazer parte da área urbana, oferecendo perigo para a saúde pública e por já não dispor mais de espaço. O segundo, além de não possuir mais espaço, tinha um terreno que dificultava a decomposição dos cadáveres. O então Governador do Estado do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro, através do Decreto N° 95, de 02 de abril de 1891, determinou o fechamento desses cemitérios. Em 05 de abril foi inaugurado, em sessão solene, o Cemitério de São João Batista, no antigo bairro do Mocó, hoje bairros de Adrianópolis (Vila Municipal) e Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul da cidade. Ele já estava sendo idealizado desde o final da década de 1880. Foi uma das grandes obras modernizadoras erguidas no Governo de Eduardo Ribeiro.

Foi pelas mãos do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, à frente da administração municipal entre 1902 e 1907, que o Cemitério de São João Batista recebeu grandes melhoramentos. Em 1904 ele autoriza sua reconstrução. No ano seguinte, manda ser construído o muro com portões e gradis de ferro, importados da Escócia. Em 1906 é concluída a nova capela, em estilo neogótico. No portão de entrada foi fixada a expressão latina ‘Laborum Meta’, que significa fim ou meta dos trabalhos. Agora em grande estilo, transformara-se de fato em cemitério da elite manauara, que passaria a atestar seu poder através de túmulos e jazigos monumentais, obras esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias e artistas de renome. No Dia de Finados de 1908 o Jornal do Commercio noticiou seu embelezamento: “Tivemos ocasião de admirar ali muitas obras novas e bonitas, recém-colocadas, simples, sólidas e dignas de apreço, pela sua boa confecção, pelo seu bem-acabado, todas executadas pelo exímio marmorista Cesare Veronese, proprietário da conhecida e premiada marmoraria Ítalo-Amazonense, desta praça, que cada ano mais se desenvolve em crescente progresso, afirmando assim os foros simpáticos que tem de ótimo interprete da arte a que se dedica, com tanto interesse”. Anos mais tarde, distante do luxo do cemitério da Vila Municipal, era aberto, por volta de 1904-1908, o Cemitério de São Francisco, no bairro Colônia Oliveira Machado.

A Prefeitura cuidava da organização dos cemitérios. As quadras eram limpas, a vegetação era aparada, o número de bondes para fazer o transporte dos visitantes era ampliado e o de soldados da força policial do Estado para fazer a segurança. Os jornais publicavam inúmeros anúncios de venda de flores, cruzes, velas, imagens sacras, instalações elétricas especiais e outros elementos decorativos para túmulos e jazigos. Para as comemorações de 1909, a Casa Loyo e Paredes anunciava no Jornal do Commercio ter recebido “o maior e mais completo sortimento de coroas mortuárias”. Em 1920 A The Manáos Tramways and Light Company encarregava-se “de preparar instalações elétricas nas sepulturas, e tinha um grande estoque de cruzes”. Em frente aos cemitérios eram instaladas barracas para a venda de alimentos e bebidas. Não se ia ao cemitério de qualquer forma. Existia uma indumentária tradicional para o Dia de Finados. O antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de Azevedo, na obra Ciclos da vida: ritos e ritmos (1987), informa que as mulheres usavam roupas pretas e roxas combinadas com um véu branco que cobria o rosto. Os homens utilizavam roupas escuras, cinzas e brancas, com fumo no braço direito ou na lapela. Essas cores eram associadas à pureza da alma, à morte e ao luto.

As visitas tinham início pela manhã. Milhares de pessoas se dirigiam aos cemitérios da cidade, São João Batista, São Raimundo, São José e São Francisco. Engana-se quem imagina um ambiente de ordem e calmaria, como atualmente a ocasião pede. Entre lágrimas e orações, abundavam as beberagens, as comilanças, as conversas, os namoros, as gargalhadas, a correria de crianças brincando entre as quadras e, sempre que houvesse oportunidade, o furto de alguma cruz, vaso ou metal com valor de mercado. A sociabilidade era tão intensa que, no Regulamento dos Cemitérios Públicos do Estado do Amazonas (1892), estabeleceu-se que “É proibido fazer-se do cemitério lugar de recreio”. Apesar da medida, a morte, parafraseando o historiador João José Reis, seguia sendo uma festa. A primeira vez que os manauaras não puderam visitar os cemitérios foi durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918. O Jornal do Commercio publicou, para a tristeza da população, que “Em virtude da terrível epidemia que lavra entre nós, não haverá, hoje, como nos anos anteriores, romarias às necrópoles desta capital”. Em 2021, com a pandemia de Covid-19, ocorreu o mesmo. Não poder velar, enterrar em vala comum, não visitar e não prestar homenagens causa uma ruptura dolorosa, pois esses ritos fúnebres estão há séculos arraigados em nosso cotidiano. Ao final de 2021, a normalidade retornou.

No final da década de 1930 o antigo Cemitério de São José deu lugar à sede do Atlético Rio Negro Clube. O Cemitério de São Raimundo foi arrasado no mesmo período, sendo construído em seu lugar, décadas mais tarde, a Escola Estadual Marquês de Santa Cruz. Em 1934 é inaugurado nesse bairro o Cemitério de Santa Helena. A partir da década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa Helena e São Francisco já estavam sem espaço, passando a receber enterros apenas em jazigos perpétuos. Foram construídos, na década seguinte, o Cemitério de Nossa Senhora Aparecida e o Cemitério Parque de Manaus, também conhecido como Cemitério Parque Tarumã. Este último foi uma novidade na época, seguindo novos padrões de enterramento, sem jazigos convencionais, apenas com placas de identificação e um parque florido seguindo o estilo norte-americano. Era uma nova mentalidade em relação à morte, com busca pela praticidade e a economia de tempo e dinheiro.

Hoje as romarias irão em direção às necrópoles de São João Batista, São Francisco, Nossa Senhora Aparecida, Parque de Manaus (Parque Tarumã) e Santo Alberto. Os antigos simbolismos, como o uso de determinadas roupas, foram abandonados. Mas os sentimentos mais puros, a saudade, a tristeza e a alegria, e as virtudes mais caras, a fé, a esperança e a caridade, continuam a tomar conta das quadras e alamedas desses lugares de memória, arte e cultura incríveis que são os cemitérios.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Os nomes de Manaus

Manaus em 1865. Aquarela de Jacques Burkhardt. FONTE: Harvard Library.

Manaus surge ao redor da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, construída na segunda metade do século XVII, como um modesto povoado formado pelas tribos indígenas dos barés, aruaquis, manaus, tacu, passé, baníua, tarumã, muras, merequenas, juris e alguns soldados portugueses. O local foi denominado Lugar da Barra. Permaneceu em relativo abandono por mais de um século, com uma população rarefeita e sem infraestrutura. A fortaleza desempenhava suas funções defensivas contra espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que, assim como os portugueses, tinham grande interesse no comércio das drogas do sertão.

Em 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro – embrião político geográfico do atual Estado do Amazonas – subordinada à do Grão-Pará. Instalada em 1758, teve como primeira capital a antiga Aldeia de Mariuá, transformada em Vila de Barcelos. No final do século XVIII, Manuel da Gama Lobo d’Almada, Governador da Capitania de São José do Rio Negro, considerou a posição geográfica do Lugar da Barra, entre os rios Negro e Solimões, como bastante favorável à defesa contra invasões estrangeiras e às rotas de comércio naquela região. Decide, então, transformá-lo em capital, transferindo-a de Barcelos em 1791. A Barra, agora capital, recebeu uma série de melhorias, como a construção de fábricas, engenhos, cordoarias, padaria, olarias, poço e outros estabelecimentos.

O lugar desfrutou de certo prestígio até 1799, quando, por ordem do Governador do Grão-Pará, a capital retornou para Barcelos. Em 1804 o novo Governador do Grão-Pará, D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, reavaliou a administração de Lobo d’Almada e sugeriu ao Governador da Capitania de São José do Rio Negro, José Simões de Carvalho, a mudar novamente a capital para o Lugar da Barra. A transferência, porém, explica o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, só se concretizou quatro anos mais tarde: “Só, porem, em 1808, já sob o governador capitão de mar e guerra José Joaquim Victorio da Costa, a suggestão era acceita, deixando-se em definitivo Barcellos e reinstalando-se a capital na Barra, aos 29 de março” (REIS, 1934, p. 56).

Mais de vinte anos depois, em 1833, o Lugar da Barra foi elevado à categoria de Vila com o nome de Manáos (Manaus). Isso só foi possível graças ao Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, que reorganizou os termos e comarcas das Províncias. A Província do Grão-Pará o executou em 25 de junho de 1833, ocasião em que a Província foi dividida nas comarcas do Grão-Pará, Baixo Amazonas e Alto Amazonas: “O Logar da Barra do Rio Negro fica erecto em villa com a denominação de Manáos, servindo de cabeça de termo, em o qual se comprehende a mesma villa e a de Silves, que perde o predicamento de villa e a denominação de Silves, sendo substituída pela de Saracá; e bem assim as Freguezias de Aturiá e Amatary (supprimindo o título que cada uma tinha de Missão) e de Jaú, que era denominada Ayrão, com os seus limites actuaes” (REIS, 1934, p. 69-70).

A cidade de Manaus conservaria esse nome por 15 anos. A Assembleia Provincial do Grão-Pará, após estudos, decidiu que a então Vila de Manaus, capital da Comarca do Alto Amazonas, já possuía as devidas condições de ser elevada à categoria de cidade. A população era estimada entre 3000 e 6000 habitantes, existia uma pequena lavoura, comércio de matérias-primas e manufatura de produtos como a tartaruga, o pirarucu e a mandioca. A elevação foi levada a efeito através da Lei N° 145 de 24 de outubro de 1848. A Vila de Manaus passou a se chamar Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, homenageando a geografia da região e a padroeira do Amazonas.

Assim se chamou a cidade até 1856. O historiador Robério dos Santos Pereira Braga registra que em 21 de agosto de 1856 o Deputado Provincial João Inácio Rodrigues do Carmo apresentou à Assembleia um projeto mudando o nome da Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro para Manáos (Manaus). Após longos debates e sendo aprovado, o projeto deu origem à Lei N° 68 de 04 de setembro de 1856, oficializando a mudança do nome (BRAGA, 1993, p. 40). Uma publicação de 06 de setembro de 1856 do jornal Estrella do Amazonas informa que “Manáos foi o nome de uma antiga e poderosa tribu, que habitava o lugar onde está hoje assentada a cidade. Manáos é também o nome do igarapé que a embelleza pelo lado oriental, e o de um regato que abastece de água potavel”. A lei, conforme esse periódico, foi instituída no dia 05 de Setembro, data em que foi criada a Província do Amazonas em 1850. A população comemorou com júbilo o novo nome, soltando nas ruas e praças, durante o dia e a noite, fogos de artifício. Ao fim da matéria, o autor informa que “A mudança do nome da capital foi geralmente applaudida. Todos achão o nome de Manáos mais nosso e mais significativo” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 06/09/1856).

Como se escreveu o nome da cidade? Em documentos, jornais, livros, revistas, placas, cartas e cartões-postais de 1856 a 1940 encontramos o nome sendo escrito como Manáos, Manáus e Manaus. A grafia Manáos, com acentuação tônica no ‘a’, foi a forma mais difundida. Pelo Decreto N° 117, publicado no Diário Oficial do Estado do Amazonas, de 17 de março de 1937, a grafia Manaus foi oficialmente estabelecida. O Diário Oficial do Estado corrigiu seu cabeçalho em 1939 (BRAGA, 2007). A Reforma Ortográfica de 1943, que excluiu os étimos latinos e gregos ch, th, ph, xh, mm, nn e os por us, a grafia Manaus se consolidou (PEDROSA, 2018).


FONTES:

Estrella do Amazonas, 06/09/1856.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. Da cidade da Barra do Rio Negro e de Manaus. Jornal do Commercio, 24/10/1993, p. 40-40.

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. O nome "Manaus". Blog do Rocha, 21/02/2007.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. Manaós, Manáos e Manaus: Como se escreveu o nome da cidade ao longo do tempo. Blog História Inteligente, 19/10/2018. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2018/10/manaos-manaos-e-manaus-como-se-escreveu.html.Acesso em 24/10/2022.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. Manáos e outras Villas. Manáos: Typografia Phênix, 1934. Biblioteca Arthur Reis – CCPA.

sábado, 17 de setembro de 2022

Receitas tradicionais de tartaruga por Dona Chloé Loureiro

FOTO: Marcelo Ferrari.

Concluí há alguns dias a leitura de Doces Lembranças, de Chloé Loureiro (1988). É um livro de memórias do tempo de infância da autora, vivida entre o Acre e o Amazonas entre as décadas de 1920 e 1930. Apesar da crise que se abateu sobre a região naquele período, a vida não deixou de pulsar na Amazônia. O texto é simples e encantador, principalmente quando se fala de Manaus, a Cidade Sorriso, que "tinha o cheiro característico da pescada e do tucunaré frescos, misturado ao forte perfume do cupuaçu" (p. 113). Os relatos são intercalados com receitas de família de encher os olhos e estimular o paladar. Nele se aprende a fazer a tradicional tartarugada, a galinha e o pato a cabidela, o pirarucu de casaca, os doces de cupuaçu e caju e os chás, caldos e mingaus fortificantes. Cada memória faz emergir um ou mais pratos que se degustava em determinado momento, fosse de alegria ou de tristeza. Em certas passagens me vi diante de minhas memórias de infância, de uma comida especial, da família reunida na mesa, dos risos e abraços fraternos. Dentre as várias receitas, é impossível não se deter nas de tartaruga, pois só quem provou sabe do sabor único que ela possui. Reproduzo abaixo as receitas de tartarugada, guisado das mãos, guisado de carne, picadinho, sarapatel e a farofa do casco.

Tartarugada

A tartarugada não é um prato, é um banquete, no qual a tartaruga é apresentada de diversas maneiras, com sabores diferentes e aproveitando carnes, vísceras e sangue do animal, nada sobrando.

Não é difícil de ser preparada. O guisado é feito como o de carne de vaca ou ragu de carneiro. O picadinho, também, embora o sabor seja totalmente diferente. Vivendo na água, não tem gosto de peixe sendo, por isso mesmo, sui generis.

O sacrifício do animal é triste, deprimente. Custa muito a morrer e mesmo depois de horas, escaldado, cortado, a sua carne ainda pulsa na panela. Dá pena.

Depois de morta a tartaruga é sangrada e retirada de sua carapaça, o que exige uma pessoa especializada para fazê-lo. O sangue é colhido e misturado com vinagre, limão e sal, batendo-se bem, para não talhar. O cuidado maior é o da retirada das vísceras, para não espocar a bolsa do fel, ao lado do fígado, pois a bile deixa um sabor amargo aonde pega. Tudo deve ser escaldado e limpo, pois da tartaruga nada se perde.

Coloca-se então os quartos em água fervente, para se retirar a pele das patas. Cortam-se as mãos pelas juntas, arrancando-se as unhas. A carne mais branca é para fazer o picadinho; a escura, para o guisado, o sarapatel e o paxicá. Se estiver muito gorda, tire o máximo de gordura antes de escaldar as carnes.

Guisado das mãos

Corte as mãos em pedaços, tempere com sal, pimenta do reino, alho, colorau e cominho. Tire pedaços de gordura e derreta numa panela. Junte cebolas e cheiro verde, e refogue. Coloque pedaços de tartaruga e deixe refogar. Deite, em seguida, água quente à panela, e deixe cozinhar até amolecer o couro das mãos. Adicione, se gostar, um pedaço de pimenta murupi e uma boa quantidade de folhas de alfavaca cortada. Abafe a panela e logo em seguida feche o fogo.

Guisado de carne

Corte pedaços de carne mais escura e dos ossos que a acompanham, logo acima das mãos. Tempere com sal, pimenta do reino, colorau, cominho, alho socado e uma folha de louro. Refogue tudo com um pouco de gordura, se precisar, pois geralmente há gordura nestes pedaços. Leve ao fogo, junte água quente, e deixe amaciar bem. Junte em seguida boa porção de cebolas, cheiro e alfavaca, tudo bem cortadinho. Quando a carne já estiver quase macia, coloque batatas descascadas, cruas no caldo ou molho, para cozinhar, em fogo brando. Sirva quente.

Picadinho

Moa uma boa quantidade de carne branca. Passe junto um pouco de gordura.

Tempere com todos os temperos, sem excesso, para não tirar o sabor especial. Os melhores temperos são o cheiro verde, a cebola, a cebolinha e o colorau. Não use tomate. Moa também os temperos, pois fica mais gostoso. Refogue tudo junto, deixe cozinhar em fogo lento, desprendendo a água da própria carne. Pode ficar molhadinho mas não aguado.

Para acompanhar faça uma farofa com farinha d'água, na gordura da tartaruga, com cebola, cheiro verde e cebolinha, deixando ficar bem torrada.

No peito da tartaruga, limpo e assado na brasa, coloque o picadinho, e cubra com a farofa, enfeitando com ovos cozidos e azeitonas.

Sarapatel

Corte miúdo o bucho, o fígado, as tripas e alguns pedacinhos de carne (isto depois de tudo limpo e lavado com limão). Tempere com os mesmos temperos dos pratos anteriores. Leve ao fogo e deixe cozinhar bem. Quando tudo estiver bem macio, bata bem o sangue com um pouco de água, e despeje na panela. Mexa bem, para não pegar no fundo. Deixe engrossar e apague o fogo. Sirva quente.

Farofa do casco

Lave e tempere o casco da tartaruga e asse-o na brasa, com cuidado para não queimar. Vá raspando com uma colher, a carne e a gordura presa no mesmo. Fogo baixo para não queimar muito rápido.

Quando tudo estiver bem fritinho, coloque cebola, cebolinha, cheiro verde cortadinho, e vá juntando a farinha da sua preferência, para fazer uma farofa molhadinha.

Estes pratos são todos acompanhados com molho de pimenta murupi, feita com o caldo do guisado, suco de limão e temperos verdes bem batidinhos. Estes pratos são os principais.

O paxicá é feito com os miúdos e mais a cabeça cortada em pedaços, do mesmo modo que o sarapatel, mas sem usar o sangue.

Se a tartaruga estiver magra, não use óleo de qualquer espécie, nem margarina. Apenas manteiga ou banha de porco. Caso contrário o gosto fica horrível.

O filé pode ser assado ou frito na gordura.

Todos esses pratos são demorados, pois a carne é muito dura. Use panela de pressão para o guisado das mãos para maior rapidez.