sexta-feira, 17 de março de 2017

A Economia Gomífera na Amazônia III: A Crise




Introdução

1910, 1912, 1929. Datas utilizadas na tentativa de delimitar o começo e o fim da crise que assolou a Amazônia em princípios do século XX. Tentar delimitar o início e o fim de período é uma tarefa que envolve questões sociais e históricas complexas, que dependem da interpretação de uma pessoa ou grupo que se encarrega dessa tarefa. Na maioria das vezes, os historiadores ou pesquisadores de outras vertentes não são contemporâneos da época em questão, o que implica em julgamentos mais ou menos coerentes. No mais, foi a primeira vez que a região sofreu um abalo como esse. A economia gomífera substituiu a extração das drogas do sertão, forte entre os séculos XVII e XVIII, e o modesto cultivo de gêneros alimentícios. Mas, quando a borracha perdeu valor no mercado mundial, demorou para que outras atividades a substituíssem com a mesma rentabilidade e furor do início do século XX. Nessa terceira e última parte da série A economia gomífera na Amazônia serão abordados o declínio da economia gomífera; a busca pelos culpados; a situação dos estados do Pará, Amazonas e suas capitais; o neocolonialismo e a Segunda Guerra como esperanças de crescimento; as discussões historiográficas e sociológicas sobre o período.


Declínio da economia

A borracha do Amazonas dominou o mercado mundial no encontro do século XIX com o XX. Os ingleses, porém, transplantando mudas da seringa para jardins botânicos de Londres, recriaram o produto na Ásia. Começara uma concorrência fatal. Queda dos preços, do consumo, consequente queda da exploração. Queda dos reinos, desespero das ambições, orgulho ofendido, falências. A falta de planejamento encerrava mais um ciclo econômico do Brasil passado” - Glauber Rocha em Amazonas, Amazonas, 1966.

Desde o final do século XIX que a Amazônia, ou melhor dizendo, as principais cidades dela, vinham experimentando um crescimento econômico jamais antes visto. O trabalho semiescravo do seringueiro deu origem a um dos mais importantes ciclos econômicos do Brasil moderno, e tornou a região Norte uma das principais fontes de arrecadação pública. O que ficava da arrecadação de impostos das movimentações econômicas foi investido de forma maciça na reestruturação de Belém e na estruturação de Manaus.

Em meio ao sofrimento do seringueiro e o furor das capitais, a borracha asiática começara a aparecer de forma expressiva no mercado mundial, atingindo, em 1908, cerca de 1.800 toneladas1. Na Europa, o excesso de produtos fabricados com a borracha e a falta de mercados consumidores fez as importações da borracha brasileira caírem pela primeira vez. A partir de 1910, começara a crise que culminou na estagnação da região até 1960, quando outras alternativas surgiram, com destaque para a Zona Franca.

Os ciclos econômicos, de acordo com o economista Joseph Schumpeter, são divididos em quatro fases: boom, recessão, depressão e recuperação. O boom do ciclo da borracha se deu entre o final de 1890 até 1910, quando aumentou a demanda industrial e se especulou as produções locais. A recessão se inicia no final de 1910, com altas e baixas no mercado, com uma última grande exportação de 42.410 toneladas em 1912. A depressão vai de 1912, ainda com altos e baixos, até 1942. Entre 1942 e 1945 ocorre uma breve recuperação motivada pelo conquista, pelas forças japonesas, dos países asiáticos fornecedores de borracha. Esse intervalo durante a Segunda Guerra seria apenas uma breve recuperação até que voltasse o estado de crise.


Buscando causas culpados

Quando uma crise assola uma cidade, estado ou país, em paralelo às buscas por soluções, está também a busca pelas causas e culpados. A dimensão do ciclo econômico em questão torna a busca passível de diferentes interpretações, e esta se pretende ser apenas mais uma. Henry Wickham? Estado brasileiro? Elites locais? De quem é a culpa? Na História da Amazônia aprendemos que cada um deles tem sua contribuição no processo. Vamos por partes.

Sir Henry Alexander Wickham (1846-1928) foi um botânico e aventureiro inglês ativo na América Latina. Aos 20 anos foi para a Nicarágua em busca de plumas para a chapelaria de sua mãe. Durante a viagem, produziu um diário com informações sobre a região e, principalmente, sobre o crescimento e as possibilidades do comércio da borracha. Seu diário se tornou conhecido, na Inglaterra, pelo diretor do Kew Gardens, que lhe ofereceu dez libras para cada mil sementes de seringueira coletadas (FORLINE, 2013). Com sua família, Wickham se dirigiu para Santarém, no Pará, em 1871, onde conseguiu, mediante o escambo com indígenas e caboclos, cerca de 70.000 sementes. Bem acondicionadas em recipientes para não estragarem e nem despertar maiores suspeitas, passaram facilmente pela fiscalização e atingiram o exterior graças às manobras do cônsul inglês no Pará. A “encomenda” de Kew Gardens chegou em 1876, sendo que apenas 7.000 das 70.000 sementes brotaram no jardim. Depois, as mudas foram transportadas para o Ceilão, Malásia, Índia, Birmânia e Bornéo Britânico. O Império Britânico também enviou algumas mudas para o Jardim Botânico de Java, domínio das Índias Orientais Holandesas. Assim, a Holanda também entrava no processo de plantio ordenado das seringueiras, expandindo o cultivo para as ilhas de Java, Bornéu e Sumatra. No contexto da corrida imperialista e industrial, as principais potências da Europa buscavam, de qualquer forma, seja por intervenção militar ou econômica, a autossuficiência de matérias-primas. No entanto, da chegada das sementes à Inglaterra, em 1876, levaria pouco mais de 30 anos para que a produção europeia ultrapassasse a produção brasileira e quebrasse seu monopólio.

Não foi apenas a Amazônia a beneficiada com o ciclo da borracha. Os governos imperial e, mais tarde, republicano, souberam aproveitar as benesses do período. A relação dos seringalistas amazônicos com negociantes ingleses tornava abundante a entrada da libra esterlina, a moeda mais valorizada na época, nos portos brasileiros. No entanto, mesmo se beneficiando dessa situação, o governo federal tomou medidas tardiamente, quando o panorama da região já não era dos melhores. Os principais comerciantes do Amazonas e do Pará, vendo a cada dia os preços caindo vertiginosamente, com a entrada de toneladas de borracha de produções asiáticas racionalizadas, há muito pediam ajuda do governo federal para a implantação de plantações de seringueiras e capitais do Banco do Brasil para manter os preços estáveis. Nenhum desses pedidos teve resposta. Os cafeicultores de São Paulo, quando a cotação do mercado era desfavorável ao seu produto, recebiam da União grandes somas em ajuda. Em 1912, quando o Brasil já não era mais o principal exportador mundial de borracha, o Congresso aprovou um plano que, em síntese, era destinado ao investimento na logística da região, para aumentar a competitividade do produto, e incentivos ao cultivo racional. O plano, 'Defesa Econômica da Borracha', ficou sediado no Rio de Janeiro, distante da região problema. Foram feitos gastos exorbitantes em compras e pesquisas desnecessárias, o que fez o Congresso dar fim ao plano em 1913. Warren Dean afirma que

A espantosa indiferença do governo federal para com a sorte da economia amazônica parece quase suicida, considerando-se que a região, com apenas1/25 da população do país, havia proporcionado um sexto da renda nacional2.

Ainda segundo Dean, no período entre 1890 e 1912 o governo federal faturou com os Estados do Amazonas e Pará cerca de 656 mil contos de réis, sem contar a renda do território do Acre, que ia diretamente para a União. Já os gastos do governo federal na Amazônia, “como a caríssima ferrovia Madeira-Mamoré […], não eram particularmente eficazes na promoção de um crescimento regional” (DEAN, 1989, p. 80). O governo federal foi um dos maiores beneficiários da economia gomífera. Algumas obras financiadas com os impostos arrecadados ainda podem ser vistas no Rio de Janeiro, das quais se destacam o Teatro Municipal e a Av. Rio Branco. Quando a borracha asiática começou a invadir os antigos mercados brasileiros, e as rendas começaram a cair, esse mesmo governo demorou em tomar medidas para socorrer a região Amazônica e, quando tomou, não teve sucesso na empreitada.

Diante desse caos anunciado, como reagiram as elites locais, do Pará e do Amazonas? A elite paraense utilizou boa parte dos impostos da borracha na reestruturação do Estado e, principalmente, da capital Belém. Por reestruturação entende-se a reforma, novas aquisições e modernização da estrutura econômica vigente, com raízes do século XVIII, dos grandes proprietários de terra. A elite amazonense tratou de estruturar a capital, até aquele momento sem larga tradição comercial como a capital vizinha. As oligarquias do Norte, no contexto da República Velha,

[…] Gastavam mais do que arrecadavam, tomando empréstimos a esmo, na esperança de obter uma constante renda crescente, e nunca pagavam as dívidas. Impuseram taxas de exportação (reservadas aos Estados pela Constituição) que se aproximavam de um estulto patamar de 20% e dilapidaram a maior parte dessas rendas – que alcançaram um montante de 241 mil contos de réis entre 1890 e 1912 – no embelezamento de suas capitais e nos pagamentos de políticos locais3.

Seringalistas e aviadores, os dois principais grupos sociais das elites regionais, mantinham um estreito laço com o poder público. Eram publicados frequentemente, em jornais, revistas e álbuns como o Álbum de Belém do Pará para 15 de novembro de 1902 e Annuário de Manáos para 1910, artigos e notas sobre a situação econômica lisonjeira do Pará e do Amazonas, sobre a abundância da região em recursos e de sua exclusividade como detentora natural das seringueiras e principal fornecedora para os mercados estrangeiros. Criou-se entre os dirigentes e a elite um mito da exclusividade e da “eternidade” desse produto. Quando a realidade se mostrou inversa, tudo se tornou possível para salvar a economia

[…] inclusive alienar para grupos internacionais parte do território de seu país, como tentou fazer o governo do Amazonas, que tomou um empréstimo de um grupo americano garantido com terras públicas, felizmente vetado pelo governo federal, de quem necessitava o aval4.

Márcio Souza, em uma perspectiva sociológica, afirma que as elites da região não previram que a atividade extrativista demandaria mão de obra de outras áreas, o que impediu o surgimento de uma agricultura e indústria fortes ou tornou débil o que já existia. O curioso é que, pelo menos desde os anos 50 do século XIX, os presidentes provinciais denunciavam a fuga de braços para o extrativismo5. No jogo de cadeiras da República, faltava às elites amazônicas a expressividade que tinham as do Sul e Sudeste, o que tornava difícil, seja por manobras políticas, distância ou ignorância, qualquer ajuda. Seria um reflexo dos tempos de um Grão-Pará distante e fechado em uma relação direta com a metrópole portuguesa? Talvez.

Contrabando, omissão do Estado Brasileiro e um cego otimismo por parte das elites locais. Três causas, três culpados. É justo culpar Henry Wickham, um aventureiro sem nada a perder que morreu na miséria? Não seria mais coerente afirmar que ele foi uma marionete do Império Inglês, que buscava autossuficiência de qualquer forma? O Estado Brasileiro, no alvorecer da República, mantinha os mesmos traços do Império, quando era comandado pelas oligarquias latifundiárias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Seus dirigentes, na maior parte originários desses grupos de poder, ignoraram a região que por 30 anos lhes garantiu 40% das exportações, no que parece ser mais um fruto de discrepâncias políticas ou a crença de que o café sustentaria o país, pois os cofres estavam sempre abertos quando São Paulo e Rio de Janeiro precisavam. As elites do Pará e do Amazonas se sustentaram por três décadas um sistema extrativista altamente predatório, com resquícios de trabalho escravo e voltado exclusivamente para a exportação. Faltou, por parte delas, planejamento antecipado, preocupação com o desenvolvimento interno e o desenvolvimento de áreas como a agricultura e a indústria.


Pará e Amazonas no contexto da crise

1910 é uma data frequentemente utilizada para marcar o fim desse período econômico. No entanto, o mercado não é um elemento que pode ser apreendido pela exatidão de modelos estruturalistas generalizantes, pois depende não apenas de fatores econômicos, mas também sociais e subjetivos. Os preços nunca são estáveis, oscilando para mais e para menos. O primeiro choque econômico da região se deu entre 1907 e 1908, quando começou a entrar na competição a borracha asiática, mais barata e de melhor qualidade; a borracha recuperada dos americanos; a borracha de guayule produzida no México e no Sul dos Estados Unidos; e quando alguns países da Europa, por estarem com excesso de pneus e outros derivados da borracha, diminuíram o nível das importações.

No Pará, em 1907, o governador Augusto Montenegro, representando a região Norte, enviou ao presidente da República, Afonso Pena, um telegrama contendo considerações sobre o comércio da borracha. O conteúdo do telegrama “referia-se à queda nos preços e sugeria a intervenção do governo federal por meio da criação de agências do Banco do Brasil em Belém e Manaus, as quais atuariam como reguladoras do mercado da seringa” (DAOU, 2000, p. 65). No Amazonas, o Jornal do Comércio anunciava, no mesmo ano, que o mercado continuava paralisado, sendo oferecido pela borracha fina 6$600, preço não aceito pelas casas aviadores. Informava também que o estoque era de 55 toneladas6.

Essa primeira crise começou a ser superada em 1908, quando a borracha, que chegou a valer 6$300 em outubro, chegou a 7$700 em novembro. Essa alta se explica, de acordo com Antônio Loureiro, “pela reorganização da indústria americana, pela resolução do processo sucessório nos Estados Unidos, e, principalmente, pela grande especulação na Bolsa de Nova Iorque, onde todos os “stocks” de borracha estavam sendo comprados, por intermediários, para revenda aos fabricantes” (LOUREIRO, 2008, p. 73). Entre 1909 e 1910 a borracha atinge seu maior preço, chegando a custar 17$000 o quilo da fina. Esse aumento foi fruto da especulação das bolsas de valores da Europa e da compra, ainda no Brasil, da borracha por quilograma, revendida às indústrias por libra-peso. Quando chegava às bolsas, a borracha chegava a valer o quádruplo dos preços praticados em Belém e Manaus. O lucro obtido pela especulação da borracha brasileira tinha um destino certo: formar novas empresas plantadoras no Oriente.

Em maio de 1910, o governo brasileiro valorizou o mil-réis, baixando a cotação das libras esterlinas de 16$000 para 15$000, fazendo essa moeda entrar cada vez menos no país. Os depósitos da caixa de conversão contavam com cerca de 20.000.000 de libras esterlinas, sendo emitidos 320.000 mil contos de réis. No entanto, “a quantidade de papel-moeda não conseguia suprir as necessidades do comércio da região, carente de dinheiro em espécie” (LOUREIRO, 2008, p. 78). Vigorava, desde que se estabeleceram as casas aviadoras e os seringais, o sistema de crédito, no qual os bancos forneciam aos aviadores, comerciantes, ferramentas e gêneros diversos; e estes, por sua vez, forneciam seus produtos aos seringalistas em troca da borracha. O seringalista repassava parte do que obtinha com o aviador para o seringueiro, através do barracão, em um sistema de endividamento sempre crescente. A borracha asiática voltou a figurar no mercado, agora com inúmeras empresas comandando sua produção. A oferta e os preços baixos fizeram a borracha amazônica cair de 17$000 para 7$000. Os anos que se seguiram foram marcados pelo recrudescimento contínuo dos preços; pela fuga de capitais para o Oriente; e pela perda da posição de maior exportadora mundial. A situação de Belém, entre 1912 e 1913, de acordo com o antropólogo Fábio Fonseca de Castro em a Cidade Sebastiana: Era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade7, era a seguinte: acumulava cerca de 100 milhões de francos, ou 59.524 contos de réis. Nos dias que se seguiram, cerca de 160 estabelecimentos comerciais fecharam as portas. A prefeitura de Belém devia mais de 2 milhões de libras esterlinas e o governo do Estado devia quase a mesma quantia.

O Amazonas também estava mergulhado em dívidas. Ao todo, somadas as dívidas externas e internas, devia-se cerca de 100.000 contos de réis, um valor, segundo Loureiro, “impossível de ser pago, pois a arrecadação de 1914 fora de apenas 6.900 contos e a de 1915 ficaria entre 4. 250 e 5.800 contos” (LOUREIRO, 2008, p. 14). Parintins, Itacoatiara, Humaitá e Maués, que no período conseguiram desenvolver algum comércio e se desenvolver, se encontravam agora acanhadas, com seus habitantes vindo procurar na capital mínimas condições de sobrevivência.A arrecadação dos dois estados e a do território do Acre caiu de forma significativa, tornando mais grave os quadros sociais e econômicos:

A receita do Estado do Pará, que era de 20.255 contos em 1910, reduz-se a 8.887 em 1915 e a 8.517 em 1920; a do Amazonas, de 18.069 cai para 7.428 e 5.888 respectivamente; e a do Acre, de 19.868 baixa para 5.610 em 1915, menos de 1/3 do que fora. A despesa pública teve que cair, mas não na mesma proporção, de modo que o deficit orçamentário se torna rotina naqueles anos8.

Os relatos de contemporâneos da Grande Crise, fontes primárias, nos mostram com vivacidade o que foram aqueles anos de estagnação. Por meio de artigos, a Revista da ACA noticiava o intenso movimento de abandono da capital amazonense em direção a outras regiões do país ou ao exterior. Um dos documentos mais interessantes, não ligado a instituições políticas ou econômicas, é a carta do fotógrafo alemão George Huebner, que por muitos anos manteve um estúdio em Manaus. O conteúdo da carta nos dá um panorama de como ficou a cidade durante a Primeira Guerra Mundial, quando algumas rotas comerciais foram temporariamente fechadas e os preços caíram mais bruscamente:

O que eu poderia dizer daqui? A situação é desoladora, não poderia ser pior. Tudo isso é o efeito da guerra. Primeiramente, o preço do látex não parou de cair, depois foi o câmbio da moeda, e agora tudo se encontra parado. Você deveria ter visto Manaus antes, tão animada! Atualmente inúmeras casas nas ruas principais estão vazias e cada vapor que vai para o sul viaja lotado de passageiros que fogem de Manaus. As pessoas sem dinheiro, que não podem pagar a viagem, se retiram para os seus sítios do interior, de maneira que a cidade se torna cada vez mais vazia. Agora não se faz mais negócios. Feliz é aquele que ainda consegue equilibrar suas despesas. Não é, infelizmente, o meu caso9.

Todos os desdobramentos da Primeira Guerra eram diariamente noticiados pelos jornais. No Estado do Pará10, lamentava-se que o florescente comércio do Estado e sua pequena indústria, por ausência de recursos, perdia a oportunidade de tirar algum proveito com o conflito, como estavam fazendo outros países da América Latina, que impossibilitados de importar produtos manufaturados da Europa, passaram em investir em suas próprias indústrias e a fortalecer o mercado interno. Suicídios motivados por perdas de emprego também eram vez ou outra noticiados. Mas o que realmente ganhava inúmeras páginas nos impressos era o isolamento da Amazônia, motivado pela crise marítima ocasionada pelo bloqueio naval alemão, iniciado em 1915. Um dos episódios mais dramáticos foi torpedeamento, na Costa da Grã-Bretanha, em 1917, do Paquete Antony, de propriedade da Booth & Company, onde foram perdidas 586 toneladas de borracha e 366 de farinha de mandioca11.

A crise da economia gomífera atingiu todos os setores da sociedade, seringalistas, comerciantes, profissionais liberais etc. Pará e Amazonas diminuíram as importações de gêneros alimentícios de outros estados; as libras esterlinas passaram a entrar com mais dificuldade no país; e uma fatia considerável da arrecadação da União teve fim. O funcionalismo público se tornou uma das poucas alternativas ainda rentáveis para as classes médias urbanas. Mas, para Márcio Souza, “o fim não significou nenhuma mudança na qualidade de vida dos seringueiros, dos operários, dos agricultores” (SOUZA, 2009, p. 310). O Pará, que tinha uma larga tradição comercial desde o século XVIII, resistiu melhor à crise. O Amazonas, no entanto, com comércio e indústria inexpressivas desde os tempos coloniais, tardou a se recuperar, encontrando salvação com a Zona Franca no final dos anos 60 do século XX. A crise tem suas especificidades. Nem todos os empresários faliram, e alguns chegaram a transformar a situação em oportunidade de crescimento. Joaquim Gonçalves de Araújo, por exemplo, desde fins do século XIX diversificava suas atividades, exportando não apenas borracha, mas castanhas, peles de animais e, algo raro, construindo uma indústria de manufaturas. Suas empresas resistiram às crises de 1910, 1920 e 1945 e só foram extintas no final dos anos 90 do século passado.


Neocolonialismo e Guerra como “esperanças”

Na década de 20 do século passado, Europa e Estados Unidos controlavam boa parte dos países da África, Ásia, Oceania, Oriente Médio e América. A Amazônia foi economicamente controlada, por 30 anos, por agentes do capital estrangeiro. No entanto, uma dominação completa, característica do neocolonialismo (dominação política e econômica), surgiria na região, mais especificamente no Tapajós (PA) a partir do final dos anos 20.

Henry Ford, grande empresário da indústria automobilística do início do século XX, buscava a autossuficiência de matérias-primas para suas indústrias. Não só Henry, mas um grande número de empresários americanos voltariam a depender da borracha brasileira. Durante a Primeira Guerra, o comércio europeu se tornou instável, agravado que fora pelo bloqueio marítimo alemão. A Inglaterra, que detinha o monopólio da borracha, viu os estoques acumularem e os preços caírem. Visando garantir preços estáveis e impedir a acumulação do produto durante o pós-guerra, o país adotou, a partir de 1923, o Plano Stevenson, que, basicamente, passa a limitar a cota de cada produtor inglês.

Com menos matéria-prima no mercado e os preços novamente favoráveis aos ingleses, os grandes fabricantes americanos de pneus foram os mais prejudicados. Como reação, as grandes companhias da época (Goodyear, Firestone e Ford) passaram a buscar diferentes locais, da América à África, para implantar seus próprios seringais.

José Custódio Alves de Lima, cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos, depois de saber do interesse do empresário em criar um seringal em Everglades, na Flórida, lhe sugeriu a Amazônia como local de implantação para seu projeto. José Custódio, em contato com Dionísio Bentes, governador do Pará, facilitou para Ford a aquisição de um milhão de hectares no Tapajós. A Companhia Ford, através de contrato firmado com o governo do Estado do Pará em 03/01/1927, tinha o direito à exploração das terras, dos minerais e de outras matérias-primas nela encontradas; de realizar a navegação nos rios Tapajós e Amazonas; construir estradas, armazéns, fábricas, criar núcleos de povoação, escolas, linhas de comunicação etc, sem necessidade do aval de qualquer autoridade. Poderia criar sua própria relação política, sem intervenção do governo. Estava, também, isenta de qualquer imposto pelo prazo de 50 anos. Surgiu um território americano na Amazônia, independente do Brasil, gerido por uma empresa privada.

Antigos trabalhadores das cidades do interior, dos seringais e de outras atividades atingidas pela grande crise, passaram a se dirigir à região que ficou conhecida como Fordlândia. Xingu, Madeira, Purus, Acre, Solimões, Guaporé e Jutaí foram os maiores “fornecedores” de mão de obra. Essas pessoas, acostumadas com um tradicional sistema de trabalho comandado pelo aviamento e pela rigidez do seringalista, pela primeira vez venderiam suas forças de trabalho através de um sistema de contrato. O funcionário recebia da Companhia uma chapa de alumínio, com seu número de identificação e tipo de serviço, pelo valor de dez mil réis. Através dessa chapa eram controladas as faltas, as licenças para tratamentos médicos, pagamentos de férias e transferências.

O regime de trabalho era pesado, indo de 7 da manhã à 17 da tarde, com direito a uma hora de intervalo. Relógios e sirenes ditavam o início e o fim do dia. Nos Estados Unidos vigorava a Lei Seca, que proibia o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território. Henry Ford, com apoio do governo paraense, implantou a medida em Fordlândia, onde já existia um considerável número de bares e casas de diversão. Para escapar da rigidez da fiscalização, à mesma maneira que nos Estados Unidos, surgiu um intenso movimento de contrabando de bebidas. Nos barracões onde eram feitas as refeições dos funcionários de patentes mais baixas, peixe e farinha eram substituídos por pão e espinafre, e servidos em bandejas padronizadas. A imposição dessas mudanças, nos anos 1930, fez surgir movimentos de greve radicais, com a destruição de galpões, tomada de usinas e refeitórios.

Os funcionários americanos abandonaram Fordlândia. Foi preciso a intervenção de forças policiais para o fim do movimento. Mas, antes mesmo de qualquer revolta, essa concessão já não mostrava os resultados esperados:

A grande distância do porto de Santarém, dificultando a comunicação e o abastecimento comercial, a reduzida força de trabalho, a não seletividade das mudas e sementes de seringueiras e a topografia do local, bastante acidentada, representavam um entrave para a lucratividade da empresa12.

Soma-se ao fracasso técnico a doença do mal das folhas, que atacava a árvore da seringueira e reduzia a produção do látex. Com o fracasso da primeira concessão de terra, a Ford permutou com o governo uma parte de Fordlândia por outra, dessa vez Belterra, distante 30 milhas de Santarém. Da mesma forma que na primeira, Belterra recebeu todos os aparatos necessários para seu funcionamento: escolas, hospitais, vilas, instalações industriais, um porto e estradas. Os antigos trabalhadores de Fordlândia foram transferidos para Belterra, e também foram realizadas novas contratações. Esse, que parecia ser o emprego dos sonhos, mostrava sua face mais cruel com a política da empresa para com os funcionários. Um anúncio da companhia em 1943, publicado em O Jornal de Santarém13, oferecia 9 cruzeiros por dia para homens e 6 para mulheres. As crianças, que já eram aceitas a partir dos 7 anos, ganhava 0, 50 por hora de serviço. Os fiscais estavam sempre atentos aos afazeres dos funcionários. Por menor que fosse o erro, o trabalhador era expulso da companhia sem o direito de tentar se explicar. Esses problemas, a baixa produtividade das plantações e a invenção da borracha sintética buna, mais barata que a natural, deram fim ao projeto, que durou de 1927 até 1945.

Entre 1942 e 1945, o Amazonas se viu inserido no conflito mundial. Em 1941, o Japão atacou bases Aliadas americanas e britânicas no Pacífico, dominando logo depois as colônias asiáticas produtoras de borracha. Sem acesso a essa matéria-prima, útil à indústria bélica e manufatureira, os Aliados voltaram suas atenções para o Amazonas. Em 1942, navios brasileiros foram torpedeados pelos alemães, o que fez o país declarar guerra ao Eixo.

O Amazonas, através de acordos firmados entre o Brasil e os Aliados, entrou no conflito como fornecedor de borracha. Mais uma vez ocorreria um surto de imigração nordestina para a Amazônia. Através dos “Acordos de Washington”, ficou estabelecido que os Estados Unidos investiriam no financiamento da produção de borracha na Amazônia, enquanto que o governo brasileiro se encarregaria de recrutar o maior contingente possível de trabalhadores. Estima-se que, entre 1942 e 1945, o governo conseguiu enviar do Nordeste, que passaram por uma terrível seca, cerca de 60.000 retirantes para a região Norte. O sistema de trabalho dos seringueiros continuava sendo o mesmo do início do século: em situação de semi escravidão, preso ao aviamento como devedor de um sistema cíclico. O governo norte-americano ficou de pagar 100$ por trabalhador instalado nos seringais. Manaus se tornou uma das subsedes da Rubber Development Company, órgão criado para administrar os serviços no Estado. A exportação da borracha, a circulação monetária, a construção de um aeroporto, os investimentos na capital e a especulação imobiliária criaram um momento de recuperação.

Enquanto o conflito ia se encaminhando e delineando o mapa político do mundo, os amazonenses e paraenses, inflados pelas propagandas do governo de Getúlio Vargas, mergulhavam, às de vezes de forma violenta, em um sentimento patriótico. Há registros, em Manaus, da malhação de bonecos de Judas como o nome ‘Xitler’, uma paródia com o nome do ditador alemão Adolf Hitler. Na Vila de Tomé-Açú, no Pará, foi construído um campo de concentração que chegou a receber 480 famílias japonesas, 32 alemãs e algumas italianas, tanto do próprio Estado quanto do Amazonas. Essas famílias, em Manaus e Belém, sofriam perseguição, tinham seus estabelecimentos e residências depredados pelo simples fato de virem dos países que formavam o Eixo.

Esse pequeno surto de desenvolvimento, de patriotismo, teve fim com a Segunda Guerra. O antigo mercado asiático estava novamente aberto, novas técnicas aperfeiçoaram o uso de borracha sintética. Já não existia mais a necessidade da borracha amazônica. O conflito acabara e, com ele

as esperanças de tirar a região do abismo sem fim do subdesenvolvimento. Os planos de desenvolvimento concebidos nos “Acordos” foram abandonados, as verbas indenizatórias dos trabalhadores foram descaminhadas, as estruturas do atraso não foram rompidas e tudo voltou como dantes. As atenções do governo federal agora são para as regiões Sul-Sudeste, por estas apresentarem mais condições de dinamismo econômico. A Amazônia vai ser mesmo esquecida do resto da nação por muito tempo14.

A Amazônica se viu novamente abandonada. O capital estrangeiro, depois de mais de 40 décadas conseguindo alguns resultados satisfatórios, foi direcionado para mercados mais estáveis. Em socorro à região, a nova Constituição de 1946, no artigo 199, de autoria do deputado federal Leopoldo Péres, instituiu que a União destinaria 3% de sua arrecadação para financiar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Em 1953 foi criada a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), que visava o desenvolvimento da agricultura, da extração mineral e da pecuária. Por falta de estrutura, principalmente de estradas, o plano não vingou. A construção da estrada Belém-Brasília, em 1958, atraiu o capital de grandes indústrias que passaram a funcionar no Pará. Em 1966 foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que criou incentivos fiscais para empresas nacionais e estrangeiras se instalarem na região. O resultado desse programa foi a criação da Zona Franca de Manaus, zona de livre comércio.


Algumas perspectivas historiográficas e sociológicas (1945-1999)

Existe, desde 1940, uma densa historiografia sobre esse período econômico da região, tanto de autores naturais da terra quanto de outros estados. Institutos Históricos e Geográficos, Universidades e outros especialistas lançaram uma gama de interpretações na tentativa de compreender o que ocorreu naquele intervalo de tempo entre 1890 e 192015.

Caio Prado Júnior, em História Econômica do Brasil (1945), vê de forma negativa o sistema de aviamento, que se aproveitando do baixo ou nulo letramento do seringueiro, o prende a um sistema contínuo de endividamento; e o sistema rudimentar de trabalho, que destruía aos poucos as árvores de seringueira, tornando os espécimes cada vez mais raros. Para o autor, além do contrabando de Wickham, o declínio se deu porque a Amazônia se constituía em uma região meramente exportadora de matéria-prima, enquanto que suas concorrentes, as colônias asiáticas, eram financiadas, desde a plantação até a distribuição, pela Inglaterra e outras potências europeias; e porque as elites locais, políticos e seringalistas, não construíram algo duradouro, dissipando rapidamente os lucros obtidos com essa economia, cujo maior símbolo, de “imponência e mau gosto”, é o Teatro Amazonas. Para esse historiador da geração nacionalista e progressista, o ciclo da borracha foi marcado por uma prosperidade fictícia e superficial, o que torna seu fim “mais um assunto de novela romanesca que de história econômica” (MESQUITA, 2006).

Em Ordem e progresso (1957), Gilberto Freyre aborda a transição do período imperial para o Republicano, mostrando como permanecem, nesse novo contexto político, formas de organização social características da monarquia, com o diferencial de que a República trouxe a industrialização, a urbanização e, em menor proporção, alguma ascensão social de grupos antes excluídos. É nessa oposição, entre Império e República, que entra Manaus. Para Gilberto, a cidade foi “uma reação à rotina brasileira”, pois, recebendo influências inglesas, francesas, americanas e espanholas, se diferenciava da maioria das cidades do país, ainda com fortes traços conservadores do Império, acolhendo “desajustados políticos e sociais” que se entregavam aos prazeres em um ambiente de “economia de aventura e de civilização cenográfica” (MESQUITA, 2006).

A partir de 1960 autores da região Norte começaram a publicar obras sobre o assunto. Genesino Braga, em Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem (1960), é saudosista ao afirmar que, naquele momento, o Amazonas “passava por uma fase alucinante de fausto, de luxo, de esbanjamento e de gastos imoderados, sendo um pequeno centro de ressonância da cultura europeia” (MESQUITA, 2006).

Bradford Burns, professor de História da UCLA e especialista em América Latina, produziu em 1961 uma monografia editada pelo governo do Estado do Amazonas em 1966, com o nome Manaus 1910: retrato de uma cidade em expansão. Sobre a capital, diz ele: “em 1910, Manaus reinava como a capital mundial da borracha. Manaus alardeava com orgulho todas as civilidades de qualquer cidade europeia de seu tamanho ou mesmo maior”. Notou que, politicamente, a cidade estava ligada ao Rio de Janeiro, economicamente dependia de Londres e, culturalmente, de Paris. A obra, que não possui maiores informações, não carrega críticas sobre o sistema econômico, as condições de trabalho e as elites (MESQUITA, 2006).

Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969), de Luiz de Miranda Corrêa, tem ares de um elogio saudosista ao período, à influência europeia e à ação das elites. Manaus se transformava, com obras monumentais e serviços públicos de qualidade. “Uma sociedade inteira passava de um estágio primitivo para os requintes da civilização europeia”. A descrição dos palacetes, bares, hotéis e bordéis são vívidas. As elites elogiadas são aquelas formadas com o nascimento da República, enquanto que “as famílias mais antigas do Amazonas, o pequeno número de privilegiados do Império, […] ou se adaptavam às novas condições de vida da região ou seriam, como vários o foram, tragados pelo redemoinho dos interesses da borracha” (CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969).

Com exceção da análise de Caio Prado Júnior e, em parte, da de Gilberto Freyre, que ainda tenta ver algum ponto positivo na sociedade republicana do início do século XX, todas as demais são positivas, algumas constituindo-se em verdadeiros elogios saudosistas. A borracha tornou alcançável o ideal de progresso burguês da Europa, sedimentando um passado amazônico nativo e mestiço, estagnado no marasmo colonial e, logo depois, imperial (MESQUITA, 2006).

O sociólogo Márcio Souza encerra essa linha de elogios e exaltação da cultura burguesa em 1977, com a publicação de A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. De acordo com Otoni Mesquita, Márcio Souza, em algumas passagens, “mostra ter alguma influência de Caio Prado e Gilberto Freyre, mas tece críticas mais radicais” (MESQUITA, 2006, p. 157). Para o autor, durante o apogeu da borracha, o Amazonas esteve bastante alienado, com sua capital sendo “a única cidade brasileira a mergulhar de corpo e alma na franca camaradagem dispendiosa da belle époque”. Acrescenta ainda que ela não era “verdadeiramente uma cidade, mas decoração do sonho e do delírio, microcosmo das doenças do espírito burguês com toques de selvageria e grossura”, cujo novo estilo de vida contrastava com sua linhagem portuguesa, a tornando um verdadeiro cenário para o colonialismo. Essas críticas, em especial ao ideal burguês citadino, também poder ser vistas em sua Breve História da Amazônia (1994) e História da Amazônia (2009).

Roberto Santos, com sua História Econômica da Amazônia: 1800-1920 (1980), vê o ciclo da borracha como uma fase de expansão da economia amazônica, dependente de estímulos externos (industrialização na América do Norte e na Europa). Para ele, a força desses estímulos foi tão forte ao ponto de outros setores econômicos não conseguirem competir com a extração do látex, que absorveu mão de obra até da agricultura de subsistência. O sistema de aviamento “falseava o cálculo econômico”, estimulando o escambo nos seringais e “limitando a liberdade de consumo dos trabalhadores”. Roberto divide o período em quatro fases: 1830-50 – elevação inicial moderada; 1850-70 – melhoria do tirocínio, com aceleramento da produtividade; 1870-90 – adestramento nordestino, com modestíssima elevação da produtividade; e 1890-1910 – A fase acreana.

Antônio Loureiro, em A Grande Crise (1986), com um grande arsenal de dados estatísticos, analisa a derrocada da borracha em uma perspectiva nacional. O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuava alheio à região. As críticas, em sua maioria, são feitas à omissão da União, que tardiamente tomou medidas que se mostraram ineficazes ao combate da crise; outras são feitas aos empresários e outros trabalhadores que enviavam altas somas de dinheiro para suas terras de origem, descapitalizando a região.

Warren Dean, americanista autor de A luta da borracha no Brasil (1987), desenvolve uma pesquisa interdisciplinar entre a história e a ecologia, ou História Ecológica, popular nos EUA entre 1970 e 1990. Dean levantou importantes questionamentos, como o porque de o país ter perdido o monopólio; quais os limites da monocultura; e porque as plantações brasileiras falharam. A luta do Brasil se deu após o auge das exportações e no início da decadência, quando começaram as primeiras tentativas de domesticação da seringueira e seu cultivo racional. Sua abordagem ultrapassa o recorte cronológico tradicional, indo de 1855 a 1986.

Bárbara Weinstein, também americanista, produziu A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920 (1993). Nesse estudo a autora mostrou como essa matéria-prima dominava a região muito antes do boom do final do século XIX; como existia, entre as elites, discursos a favor e contra essa economia extrativa. Ao abordar a figura do seringueiro, Bárbara, dentro do conceito de luta de classes da teoria marxista, foge da historiografia tradicional, que o mostrava apenas como um trabalhador miserável e explorado, o mostrando como um “militante” que usava diferentes formas de resistência contra a opressão dos seringalistas.

O ensaio de Edinea Mascarenhas Dias, A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920 (1999), é um estudo que, ao mesmo tempo em que é esmiuçado o processo de transformação e desenvolvimento da cidade e de suas políticas públicas, são apresentadas as contradições do espaço urbano pensado pelas elites e pelo poder público, que criou mecanismos que, ao mesmo tempo em que ordenavam a urbe, segregavam pobres, prostitutas, analfabetos e desocupados. Tem influências de Edward Thompson, com sua crítica ao marxismo estruturalista; e de Max Weber, com seu conceito de estratificação social. O livro é dividido em duas partes: A cidade do Fausto e A falácia do Fausto.


Conclusão

A crise da economia gomífera é um período ainda pouco estudado, tanto a nível regional quanto seus reflexos para o resto do país. Existem trabalhos, nos campos da História, da Sociologia e da Economia, de autores nacionais e estrangeiros, que buscaram diferentes formas de interpretar a Amazônia a partir de 1910. A Amazônia fora incorporada ao capitalismo internacional como fornecedora de matéria-prima. Passou por um surto de progresso, mas ao custo de milhares de vidas humanas e na forma de pequenas ilhas de privilégios de seringalistas e aviadores. O período não deve ser encarado como uma “novela romanesca” de Caio Prado Júnior, pois por 3 décadas fora um dos sustentáculos da economia nacional; nem romantizado como em Luiz de Miranda Corrêa, pois ergueu-se em meio a exploração do seringueiro, à prostituição feminina e a exclusão de grupos menos favorecidos. Analisar o ciclo da borracha e sua crise é levar em conta sua dinâmica, suas especificidades e o contexto da época.

Bibliografia

AMORIM, Antônia Terezinha dos Santos. A Dominação norte-americana no Tapajós – A Companhia FORD Industrial do Brasil. Câmara Municipal de Santarém, Santarém (PA), 1995.

CASTRO, Fábio Fonseca. Este ano Belém completa 100 anos da crise da borracha. Ninguém mais vai lembrar? Disponível em http://hupomnemata.blogspot.com.br/2012/01/este-ano-belem-completa-100-anos-da.html.

DEAN, Warren. Luta pela borracha no Brasil. São Paulo, Nobel, 1989.

FIGUEIREDO, Aguinaldo. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.

FORLINE, Louis Carlos. O ladrão de sementes. RJ, Revista de História da Biblioteca Nacional, n° 08, abril de 2013.

LOUREIRO, Antônio. A Grande Crise (1907-1916). Manaus, Editora Valer, 2° ed, 2008.

SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1980.

SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus, Editora Valer, 2009.

VANIA, Paula. Biografia de Huebner. Manaus, 2014. Disponível em:
http://noticiasdemanaus.blogspot.com.br/2014/05/ultima-parte-da-biografia-de-huebner.html Acesso em 09/03/2017.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/01/1907.

Jornal Estado do Pará, 21/03/1917.

Revista a Associação Comercial do Amazonas, n° 95, 10/05/1916.

NOTAS:

1Amando Mendes. Revista a Associação Comercial do Amazonas, n° 95, 10/05/1916.
2DEAN, Warren. Luta pela borracha no Brasil. São Paulo, Nobel, 1989, p. 80.
3Idem, p. 80-81.
4SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus, Editora Valer, 2009, p. 310.
5Sobre as queixas dos presidentes da Província do Amazonas, consultar os relatórios provinciais, disponíveis em Center for Research Libraries: http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/amazonas
6Jornal do Comércio, 04/01/1907, p. 1.
7CASTRO, Fábio Fonseca. Este ano Belém completa 100 anos da crise da borracha. Ninguém mais vai lembrar? Disponível em http://hupomnemata.blogspot.com.br/2012/01/este-ano-belem-completa-100-anos-da.html Acesso em 07/03/2017.
8 SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1980, p. 240.
9 VANIA, Paula. Biografia de Huebner. Manaus, 2014. Disponível em:
http://noticiasdemanaus.blogspot.com.br/2014/05/ultima-parte-da-biografia-de-huebner.html Acesso em 09/03/2017.
10 Estado do Pará, 21 de março de 1917, p. 01.
11 Idem, p. 01.
12AMORIM, Antônia Terezinha dos Santos. A Dominação norte-americana no Tapajós – A Companhia FORD Industrial do Brasil. Câmara Municipal de Santarém, Santarém (PA), 1995, p. 44.
13Ibidem, p. 108.
14FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. 24/10/2015. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.

15 Subtópico retirado na íntegra do livro de Otoni de Moreira Mesquita, 'Manaus, História e Arquitetura – 1852-1900'. Ele traça uma cronologia para a historiografia da borracha que vai de 1945 com Caio Prado Júnior até 1977 com Márcio Souza. No artigo a cronologia se estendeu até 1999, com o trabalho de Edneia Mascarenhas Dias. Foram incluídos os autores Roberto Santos, Antônio Loureiro, Warren Dean e Bárbara Weinstein.

CRÉDITO DA IMAGEM:

stravaganza.com

quarta-feira, 15 de março de 2017

Perspectivas históricas e sociológicas sobre o Ciclo da Borracha (1945-1999)


Existe, desde 1940, uma densa historiografia sobre esse período econômico da região, tanto de autores naturais da terra quanto de outros estados. Institutos Históricos e Geográficos, Universidades e outros especialistas lançaram uma gama de interpretações na tentativa de compreender o que ocorreu naquele intervalo de tempo entre 1890 e 192015.

Caio Prado Júnior, em História Econômica do Brasil (1945), vê de forma negativa o sistema de aviamento, que se aproveitando do baixo ou nulo letramento do seringueiro, o prende a um sistema contínuo de endividamento; e o sistema rudimentar de trabalho, que destruía aos poucos as árvores de seringueira, tornando os espécimes cada vez mais raros. Para o autor, além do contrabando de Wickham, o declínio se deu porque a Amazônia se constituía em uma região meramente exportadora de matéria-prima, enquanto que suas concorrentes, as colônias asiáticas, eram financiadas, desde a plantação até a distribuição, pela Inglaterra e outras potências europeias; e porque as elites locais, políticos e seringalistas, não construíram algo duradouro, dissipando rapidamente os lucros obtidos com essa economia, cujo maior símbolo, de “imponência e mau gosto”, é o Teatro Amazonas. Para esse historiador da geração nacionalista e progressista, o ciclo da borracha foi marcado por uma prosperidade fictícia e superficial, o que torna seu fim “mais um assunto de novela romanesca que de história econômica” (MESQUITA, 2006).

Em Ordem e progresso (1957), Gilberto Freyre aborda a transição do período imperial para o Republicano, mostrando como permanecem, nesse novo contexto político, formas de organização social características da monarquia, com o diferencial de que a República trouxe a industrialização, a urbanização e, em menor proporção, alguma ascensão social de grupos antes excluídos. É nessa oposição, entre Império e República, que entra Manaus. Para Gilberto, a cidade foi “uma reação à rotina brasileira”, pois, recebendo influências inglesas, francesas, americanas e espanholas, se diferenciava da maioria das cidades do país, ainda com fortes traços conservadores do Império, acolhendo “desajustados políticos e sociais” que se entregavam aos prazeres em um ambiente de “economia de aventura e de civilização cenográfica” (MESQUITA, 2006).

A partir de 1960 autores da região Norte começaram a publicar obras sobre o assunto. Genesino Braga, em Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem (1960), é saudosista ao afirmar que, naquele momento, o Amazonas “passava por uma fase alucinante de fausto, de luxo, de esbanjamento e de gastos imoderados, sendo um pequeno centro de ressonância da cultura europeia” (MESQUITA, 2006).

Bradford Burns, professor de História da UCLA e especialista em América Latina, produziu em 1961 uma monografia editada pelo governo do Estado do Amazonas em 1966, com o nome Manaus 1910: retrato de uma cidade em expansão. Sobre a capital, diz ele: “em 1910, Manaus reinava como a capital mundial da borracha. Manaus alardeava com orgulho todas as civilidades de qualquer cidade europeia de seu tamanho ou mesmo maior”. Notou que, politicamente, a cidade estava ligada ao Rio de Janeiro, economicamente dependia de Londres e, culturalmente, de Paris. A obra, que não possui maiores informações, não carrega críticas sobre o sistema econômico, as condições de trabalho e as elites (MESQUITA, 2006).

Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969), de Luiz de Miranda Corrêa, tem ares de um elogio saudosista ao período, à influência europeia e à ação das elites. Manaus se transformava, com obras monumentais e serviços públicos de qualidade. “Uma sociedade inteira passava de um estágio primitivo para os requintes da civilização europeia”. A descrição dos palacetes, bares, hotéis e bordéis são vívidas. As elites elogiadas são aquelas formadas com o nascimento da República, enquanto que “as famílias mais antigas do Amazonas, o pequeno número de privilegiados do Império, […] ou se adaptavam às novas condições de vida da região ou seriam, como vários o foram, tragados pelo redemoinho dos interesses da borracha”.

Com exceção da análise de Caio Prado Júnior e, em parte, da de Gilberto Freyre, que ainda tenta ver algum ponto positivo na sociedade republicana do início do século XX, todas as demais são positivas, algumas constituindo-se em verdadeiros elogios saudosistas. A borracha tornou alcançável o ideal de progresso burguês da Europa, sedimentando um passado amazônico nativo e mestiço, estagnado no marasmo colonial e, logo depois, imperial (MESQUITA, 2006).

O sociólogo Márcio Souza encerra essa linha de elogios e exaltação da cultura burguesa em 1977, com a publicação de A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. De acordo com Otoni Mesquita, Márcio Souza, em algumas passagens, “mostra ter alguma influência de Caio Prado e Gilberto Freyre, mas tece críticas mais radicais” (MESQUITA, 2006, p. 157). Para o autor, durante o apogeu da borracha, o Amazonas esteve bastante alienado, com sua capital sendo “a única cidade brasileira a mergulhar de corpo e alma na franca camaradagem dispendiosa da belle époque”. Acrescenta ainda que ela não era “verdadeiramente uma cidade, mas decoração do sonho e do delírio, microcosmo das doenças do espírito burguês com toques de selvageria e grossura”, cujo novo estilo de vida contrastava com sua linhagem portuguesa, a tornando um verdadeiro cenário para o colonialismo. Essas críticas, em especial ao ideal burguês citadino, também poder ser vistas em sua Breve História da Amazônia (1994) e História da Amazônia (2009).

Roberto Santos, com sua História Econômica da Amazônia: 1800-1920 (1980), vê o ciclo da borracha como uma fase de expansão da economia amazônica, dependente de estímulos externos (industrialização na América do Norte e na Europa). Para ele, a força desses estímulos foi tão forte ao ponto de outros setores econômicos não conseguirem competir com a extração do látex, que absorveu mão de obra até da agricultura de subsistência. O sistema de aviamento “falseava o cálculo econômico”, estimulando o escambo nos seringais e “limitando a liberdade de consumo dos trabalhadores”. Roberto divide o período em quatro fases: 1830-50 – elevação inicial moderada; 1850-70 – melhoria do tirocínio, com aceleramento da produtividade; 1870-90 – adestramento nordestino, com modestíssima elevação da produtividade; e 1890-1910 – A fase acreana.

Antônio Loureiro, em A Grande Crise (1986), com um grande arsenal de dados estatísticos, analisa a derrocada da borracha em uma perspectiva nacional. O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuava alheio à região. As críticas, em sua maioria, são feitas à omissão da União, que tardiamente tomou medidas que se mostraram ineficazes ao combate da crise; outras são feitas aos empresários e outros trabalhadores que enviavam altas somas de dinheiro para suas terras de origem, descapitalizando a região.

Warren Dean, americanista autor de A luta da borracha no Brasil (1987), desenvolve uma pesquisa interdisciplinar entre a história e a ecologia, ou História Ecológica, popular nos EUA entre 1970 e 1990. Dean levantou importantes questionamentos, como o porque de o país ter perdido o monopólio; quais os limites da monocultura; e porque as plantações brasileiras falharam. A luta do Brasil se deu após o auge das exportações e no início da decadência, quando começaram as primeiras tentativas de domesticação da seringueira e seu cultivo racional. Sua abordagem ultrapassa o recorte cronológico tradicional, indo de 1855 a 1986.

Bárbara Weinstein, também americanista, produziu A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920 (1993). Nesse estudo a autora mostrou como essa matéria-prima dominava a região muito antes do boom do final do século XIX; como existia, entre as elites, discursos a favor e contra essa economia extrativa. Ao abordar a figura do seringueiro, Bárbara, dentro do conceito de luta de classes da teoria marxista, foge da historiografia tradicional, que o mostrava apenas como um trabalhador miserável e explorado, o mostrando como um “militante” que usava diferentes formas de resistência contra a opressão dos seringalistas.

O ensaio de Edinea Mascarenhas Dias, A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920 (1999), é um estudo que, ao mesmo tempo em que é esmiuçado o processo de transformação e desenvolvimento da cidade e de suas políticas públicas, são apresentadas as contradições do espaço urbano pensado pelas elites e pelo poder público, que criou mecanismos que, ao mesmo tempo em que ordenavam a urbe, segregavam pobres, prostitutas, analfabetos e desocupados. Tem influências de Edward Thompson, com sua crítica ao marxismo estruturalista; e de Max Weber, com seu conceito de estratificação social. O livro é dividido em duas partes: A cidade do Fausto e A falácia do Fausto.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://vfco.brazilia.jor.br


NOTA:

15 - Retirado na íntegra do livro de Otoni de Moreira Mesquita, 'Manaus, História e Arquitetura – 1852-1900'. Ele traça uma cronologia para a historiografia da borracha que vai de 1945 com Caio Prado Júnior até 1977 com Márcio Souza. No artigo a cronologia se estendeu até 1999, com o trabalho de Edneia Mascarenhas Dias. Foram incluídos os autores Roberto Santos, Antônio Loureiro, Warren Dean e Bárbara Weinstein.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Predecessores da Historiografia grega: Os logógrafos

Cariátides no templo de Erecteion, Acrópole de Atenas, século V a.C.

Os homens, nos tempos mais remotos, tinham como instrumento de transmissão de conhecimento a oralidade. A grandiosidade do mundo à sua volta, as imposições sofridas pela natureza indomável, o cotidiano rudimentar e outros elementos que poderiam causar fascínio e medo, fizeram surgir mitos e lendas para ilustrar a origem da vida e do mundo. Deuses, deusas e heróis surgiram para reger o universo e proteger aldeias, vilas e cidades. Os gregos, durante vários séculos, viam nesses relatos seu passado histórico. Não é difícil, através de uma reconstrução imaginativa, ver que as personagens de mitos e lendas representam seres humanos que possivelmente existiram um dia. O poeta épico Hesíodo (século VIII a.C.), em suas obras Os Trabalhos e os Dias e Teogonia, reúne, em versos, uma infinidade de histórias transmitidas oralmente, sendo considerado uma das principais fontes sobre os mitos e lendas gregas.

No século VI a.C., um grupo de prosadores gregos provenientes da Jônia e de outras regiões passou a racionalizar esses mitos e lendas para buscar uma origem histórica vinculada mais aos homens do que aos deuses. Estes eram os logógrafos, ainda não propriamente historiadores, por misturarem mitos aos fatos, mas já apresentando um certo espírito crítico, estando divididos em escritores de genealogias e relatos de fundação de cidades; obras geoetnográficas e de relatos de viagens; e mitográficas. Através de inúmeros fragmentos, cópias presentes em outras obras ou vagas citações, é possível conhecer a escrita, o estilo e os métodos desses 'quase' historiadores que antecederam Heródoto e Tucídides.

O mais antigo, ainda que envolto de dúvidas sobre sua existência e temporalidade, foi Cadmos de Mileto, que escreveu uma crônica sobre a fundação de sua cidade, utilizando tradições orais de mitos e lendas. Acusilau de Argos (final do século VI e primeira metade do século V a.C.), dório de origem mas escritor em dialeto jônico, escreveu uma Genealogia de sua cidade natal. Nela buscava estabelecer “uma linha sucessória desde a origem do mundo e dos deuses até o nascimento do primeiro homem, Foroneo, que também havia sido […] o primeiro rei humano de Argos e progenitor das estirpes reais do Peloponeso” (LÓPEZ, 2006, p. 39). Miceneo, herói fundador da cidade de Micenas, seria filho de Espartón e neto de Foróneo. Argos, fundador da cidade de mesmo nome, é neto de Foróneo através da união de Níobe, irmã de Espartón, com Zeus. Três heróis, sendo o último, fundador de Argos, o primeiro filho de Zeus com uma mortal. Essa Genealogia de origem divina engrandece sua cidade. Na parte dos mitos

“foi fortemente influenciado por Hesíodo, mas aplica um critério seletivo sobre a tradição quando elabora a genealogia de Foroneo e insere nela os heróis fundadores das grandes cidades do Peloponeso, resolve feitos inverossímeis de alguns mitos, sincroniza feitos e personagens míticos isolados e apresenta esses feitos e personagens sem os epítetos que a eles estavam consagrados pela tradição poética”.1

Quanto à escrita, Acusilau utiliza o dialeto jônio mesclado a formas anteriores de uma língua comum com expressões poéticas. Seu estilo é o paratático, de frases curtas unidas por partículas coordenativas e entrelaçadas pela repetição em cada frase de alguma palavra. Dialeto jônio e estilo paratático são característicos dos logógrafos. Ferécides de Atenas (primeira metade do século V a.C.) também produziu uma genealogia, intitulada Histórias, dividida em 10 livros. Ferécides não começa essa obra com uma cosmogonia nem com uma teogonia, mas com uma genealogia dos heróis da tradição mítica, com suas ascendências até os deuses, e suas descendências até os personagens de sua época e de sua cidade. É o primeiro a se dedicar às lendas da Ática e ao herói Teseu, de sua luta contra as Amazonas e as façanhas em Creta. O estilo é o paratático e o dialeto é o jônico.

Foi através das viagens marítimas, motivadas principalmente pelo comércio, que os gregos tomaram ciência da existência de outras culturas. Os logógrafos geoetnográficos e de relatos de viagens descreveram as terras e os povos que conheceram durante suas expedições pelo Mediterrâneo, Ásia e África.

Hecateu de Mileto (560 – 480 a. C.), proveniente da aristocracia de Mileto e contemporâneo das revoltas das cidades jônias contra o domínio persa, escreveu Genealogias, uma obra em prosa em que ordenava as linhagens das tradições míticas sobre as sagas heroicas. Hecateu não faz uma simples compilação, mostrando, em sua produção, uma busca pela verdade ou, pelo menos, pela verossimilhança. No proêmio diz o seguinte: “Assim fala Hecateu de Mileto: vou escrever o que é verdade, segundo se parece para mim, pois as histórias contadas pelos gregos são, me parece, contraditórias e ridículas”(LÓPEZ, 2006, p. 44). A verossimilhança é fundamentada na autoridade do autor, que indaga sobre suas fontes. O que ele pretende nessa obra é a organização e a racionalização dos mitos, numa tentativa de torná-los mais críveis. Hecateu é mais conhecido por suas obras de viagens, Descrição da terra (Periegeses) e Viagem ao redor da Terra (Periodos Ges). A Descrição da terra, dividida em dois livros, “Europa” e “Ásia”, foi produzida com informações obtidas durante as viagens e com informações de terceiros. A rota de viagens começa na Península Ibérica, passa pela costa da Europa até o Bósforo e contorna o Mar Negro; no segundo livro são abordadas a Ásia Menor, o Egito e a Líbia e termina nas Colunas de Hércules. Foram descritas formações geológicas, hidrográficas, cidades, portos e diversos povos e suas origens históricas ou lendárias. Viagem ao redor da Terra, um mapa do mundo à época, compreende a Ásia, a Europa e a África. Os continentes estão agrupados em partes iguais, em formato circular, agrupados em torno do Mar Egeu e rodeados pelo Oceano.

Helânico de Lesbos (480 - 395 a.C.) não foi um grande viajante como Hecateu, produzindo suas obras não a partir da observação pessoal, mas da obtenção de fontes orais e escritas. No campo mitográfico, Helânico revisa e sistematiza o passado mítico, ordenado de acordo com as sagas heroicas. Cada saga recebe um trabalho individual do autor. “Ele calcula por gerações a partir da tomada de Troia; elimina versões contraditórias, duplica ou amplia de forma arbitrária os membros de algumas linhagens e cria novas ramificações” (LÓPEZ, 2006, p. 48). Assim como seu predecessor, busca a racionalização do mito, suprimindo o que parecia excessivamente fantasioso e valendo-se do julgamento por verossimilhança. Helânico escreveu sobre a geografia, a história e os costumes da Pérsia, Egito, Lídia, Cítia e territórios mais relacionados com os gregos. Na própria Grécia, produziu monografias sobre costumes, construções, lendas de fundação e genealogias sobre a Eólia, Lesbos, Argos, Arcádia, Beocia, Tessália e Atenas. Em Ática, uma de suas principais obras, são abordadas a geografia, a história e os costumes da Ática. Atenas, principal cidade dessa região, recebe uma revisão de seu passado mítico de forma a torná-lo politicamente favorável; as origens míticas das principais famílias; e, pela primeira vez, se dá atenção para Teseu, herói fundador de Atenas e contraponto de Hércules, antepassado dos espartanos. Fundações de povos e cidades, Os vencedores das Carneas e As sacerdotisas de Hera em Argos são obras de caráter cronológico. Helânico buscou nas listas oficiais de instituições, templos, anotações antigas para estabelecer datas a cada nome importante para relacioná-los com feitos do passado e do presente. Em Os vencedores das Carneas, escrita em prosa e verso, utiliza a lista dos poetas que venceram as festas espartanas das Carneas. As sacerdotisas de Hera em Argos é baseada em listas oficiais que remontam ao período da Guerra de Tróia, sendo a linha cronológica de Helânico fundamentada na lista de reis e arcontes de Atenas. O autor consegue estabelecer um período para a queda de Tróia, entre 1192 e 1183 a.C.

Outros logógrafos que podem ser citados são Xantos de Sardes, lídio criado nos moldes da educação grega, autor de obras sobre sua terra natal, sobre a Ásia Menor e os diferentes povos que a formavam; e Dionísio de Mileto, a quem “deve-se-lhe a transformação de toda a mitologia heroica em novela histórica. Nesta, os antigos heróis tinham o seu lugar tomado por monarcas, generais, sábios e filantropos” (AZEVEDO, 1964, p. 24).

Os logógrafos deram início a um importante trabalho de busca histórica de suas origens, de suas cidades e instituições, vendo na racionalização dos mitos e lendas resquícios do que um dia fora um passado crível. No entanto, esses historiadores dos primeiros tempos ainda estavam longe daquela historiografia inaugurada por Heródoto e rigorosamente aplicada por Tucídides, a dos feitos e fatos memoráveis puramente humanos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LÓPEZ, José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografia griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid, España, 2006.

AZEVEDO, Vítor de. A História antes de Heródoto In: HERÓDOTO, História. W. M. Jackson Inc. São Paulo, Vol. XXIII, 1964.

NOTAS:


1 LÓPEZ, José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografía griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid, Espana, 2006, p. 39.

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domingo, 5 de fevereiro de 2017

O casamento entre portugueses e indígenas na Amazônia: O Alvará de 04 de abril de 1755

Essa pintura retrata uma família formada por um branco europeu e um indígena. Da união dos dois surge um mestiço. América Espanhola, séculos XVIII-XIX.

A dimensão do Estado do Grão-Pará e Maranhão, na segunda metade do século XVIII, constituía-se de empecilho para o reino de Portugal. Seja em São Luís ou em Belém, a administração pública não dava conta de todas as localidades do interior da região, isoladas e carentes de comunicação e desenvolvimento econômico. Vendo o problema que isso acarretaria para a soberania de Portugal sobre a Amazônia, cobiçada por holandeses e espanhóis, Mendonça Furtado sugere a criação de uma nova região administrativa. Na Carta Régia de 03 de março de 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro, com capital na aldeia de Mariuá de São José do Javari, elevada à categoria de vila em 06 de maio de 1758 com o nome de Barcelos. (REIS, 1989, p. 120).

            Criada a nova unidade, era necessário povoá-la. A carência demográfica era um antigo problema do Grão-Pará, que possuía uma população formada, em sua maioria, desde os tempos do Padre Antônio Vieira, por indígenas, divididos em gentios, que viviam no interior, e cristãos, que podiam ser livres ou escravos; e por brancos portugueses, divididos em nobres ou cidadãos, aqueles que desempenhavam altos cargos civis e militares; peões, que poderiam ser mercadores, mecânicos e operários; e os infames, que eram cristãos novos e degredados (SARAGOÇA, 2000, In SOUZA, 2009, p. 130).  O rei de Portugal, Dom José I, autorizou, no Alvará de 04 de abril de 1755, o casamento entre portugueses e indígenas, com amplos benefícios para os casais constituídos e seus descendentes, súditos a partir de agora com forte ligação com a metrópole portuguesa. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que [...] “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro” (MONTEIRO, 1995, p. 47).

            As primeiras famílias da Capitania de São José do Rio Negro surgiram dessa política populacional. Portugueses com índias, índios com portuguesas, esses casais foram se fixando, com direito, na região, em casas simples de madeira e palha ou já de alvenaria. Seus filhos e, depois, outros descendentes, continuaram o trabalho de povoar a Amazônia. Confiram na íntegra, abaixo, o Alvará que autorizou a união entre portugueses e nativos na Amazônia:

Eu, El Rey. Faço saber aos que este meu Alvará de Lei virem, que considerando o quanto convém, que meus Reais domínios da América se povoem, e que para este fim pode concorrer muito a comunicação com os índios, por meio de casamentos: Sou servido declarar, que os meus Vassalos deste Reino, e da América, que casarem com as índias dessa, não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha Real atenção, e que nas terras em que se estabelecerem, serão preferidos para aqueles lugares, e ocupações, que couberem na graduação das suas pessoas, e que seus filhos, e descendentes, serão hábeis, e capazes de qualquer emprego, honra, ou Dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que serão também compreendidas as que já se acharem feitas antes desta minha declaração: E outrossim proíbo, que os ditos Vassalos casados com índias, ou seus descendentes, sejam tratados com o nome de caboclos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso; e as pessoas de qualquer condição, ou qualidade, que praticarem o contrário, sendo-lhes assim legitimamente provado perante os Ouvidores das Comarcas, em que assistirem, serão por sentença destes, sem apelação, nem agravo, mandados sair da dita Comarca dentro de um mês, e até mercê minha; o que se executará sem falta alguma, tendo porém os Ouvidores cuidado em examinar a qualidade das provas, e das pessoas, que jurarem nesta matéria, para que se não faça violência, ou injustiça com este pretexto, tendo entendido, que só hão de admitir queixas do injuriado, e não de outra pessoa: O mesmo se praticará a respeito das Portuguesas que casarem com índios: e a seus filhos, e descendentes, e a todos concedo a mesma preferência para os ofícios, que houver nas terras em que viverem; e quando suceda, que os filhos, ou descendentes destes matrimônios tenham algum requerimento perante mim, me farão a saber esta qualidade, para em razão dela mais particularmente os entender. E ordeno que esta minha Real resolução se observe geralmente em todos os meus domínios da América. Pelo que mando ao Vice-Rei e Capitão general de mar e terra do Estado do Brasil, Capitães generais e governadores do Estado do Maranhão e Pará, e mais conquistas do Brasil, capitães-mores delas, chanceleres, e Desembargadores das Relações da Bahia, e Rio de Janeiro, Ouvidores Gerais das Comarcas, Juízes de fora, e Ordinários, e mais justiças dos referidos Estados, cumpram, e guardem o presente Alvará de Lei, e o façam cumprir, e guardar na forma que nele se contém, o qual valerá como Carta, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, e se publicará nas ditas Comarcas, e em minha Chancelaria mor em que semelhantes Alvarás se costumam registrar; e o próprio se lançará na Torre do Tombo. Lisboa, quatro de Abril de mil e setecentos e cinquenta e cinco.

Rei

Marquês de Penalva P.

            Alvará de Lei, porque V. Majestade é servido declarar, que os Vassalos deste Reino, e da América, que casarem com índios dela, não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da sua Real atenção, e serão preferidos nas terras, em que se estabelecerem, para os lugares, e ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas; e seus filhos, e descendentes serão hábeis, e capazes de qualquer emprego, honra, ou Dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que se compreendem as que já se acham feitas antes desta Resolução; e que o mesmo se praticará com as Portuguesas, que casarem com índios, e a seus filhos, e descendentes, como acima se declara.
Para Vossa Majestade V:.

            Por Resolução de Sua Majestade de vinte e dois de Março de mil setecentos e cinquenta e cinco, tomada em Consulta do Conselho Ultramarino, de dezessete do dito mês, e ano.

O Secretário Joaquim Miguel Lopes de Lavre o fez escrever

            Registrado a fol. 48. Do liv. 12. De Provisões da Secretaria do Conselho Ultramarino. Lisboa, 10 de Abril de 1755.
Joaquim Miguel Lopes de Lavre.

Francisco Luiz da Cunha de Ataíde

            Foi publicado este Alvará de Lei na Chancelaria mor da Corte, e Reino, Lisboa, 12 de Abril de 1755.                                      
                                                                                                               Dom Sebastião Maldonado

            Registrado na Chancelaria mor da Corte, e Reino, no livro das Leis a fol. 83. Lisboa, 14 de Abril de 1755.
Rodrigo Xavier Alvares de Moura.


Theodosio de Cobellos Pereira o fez.



Foi reimpresso na Oficina de Miguel Rodrigues.


FONTES:

REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed, Belo Horizonte, Itatiaia, 1989. (Coleção reconquista do Brasil).

SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus, Editora Valer, 2009.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 4° ed, São Paulo, Metro Cúbico, 1995.

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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De Boca do Acre para Manaus: A vida de uma migrante entre 1960 e 1980

Entrevista com a Sra. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho
Entrevista realizada entre 12/01/2017 e 13/01/2017

DEPOENTE: Maria Hortência Rodrigues de Carvalho, 66 anos, natural do município de Boca do Acre (AM), há 54 anos moradora de Manaus.
TEMÁTICA: História Oral de vida

1° Imagem: Principal rua comercial de Boca do Acre, 1974. 2° Imagem: Av. Eduardo Ribeiro, Manaus, 1960.

“Eu tinha 12 anos quando sai de Boca do Acre. Fui obrigada. Meu pai foi obrigado a deixar a cidade porque trabalhava em uma empresa federal que lhe deu a ordem de vir para Manaus com a família. Chorei muito, eu era uma criança. Tenho muitas saudades de Boca do Acre, cidadezinha linda. Chegamos em Manaus de tarde. Era muito diferente de Boca do Acre. Achei a cidade feia porque nós fomos morar em uma região de mata onde existiam algumas casas da Base Aérea. Ficamos em uma onde já existia um casal e outra pessoa. O casal nos recebeu bem, o outro morador, não. Ele era estranho. Quem nos recebeu foi o seu Agostinho e a dona Raimunda Araújo. Fizeram um jantar, comemos e conversamos. Sabe o que era o jantar? Dois quartos de paca1 assada, uma delícia. No outro dia dona Raimunda nos convidou para ir no mercado fazer compras. Comprar comida porque aqui tudo era comprado. 
Aqui em Manaus meu pai continuou exercendo a mesma profissão de Boca do Acre, a de construtor de pistas para avião. Ele recebia as pedras para o trabalho de Santarém. Minha mãe sempre foi dona de casa, mãe e companheira. Zacarias Rodrigues Vieira e Maria Raimunda Rodrigues foram bons pais. Naquela época era no chicote (risos), qualquer erro apanhava, mas eram muito bons, me criaram com muito carinho.(Aponta para um grande quadro antigo da família, na sala) Esse quadro é uma das poucas lembranças que tenho deles. Ele é de 1969. Os retratistas vinham de casa em casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham entregar. Foi minha mãe que contratou o serviço. Ela tinha 41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei de lá ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o vendo. 
Eu e meus pais moramos nas casas da Base Aérea e depois fomos para a Betânia2, que estava sendo fundada. O dono daquelas terras limpou o lugar e construiu um escritório de venda de terrenos. Papai foi lá e comprou um, que ficou 10 meses pagando. Nele construiu uma palhoça onde ficamos morando. Depois, a prefeitura estava abrindo a rua Nova em São Lázaro. Era tudo propriedade da Base Aérea. Ela determinou que a área fosse loteada e que fosse dado um terreno para cada funcionário seu. Nós ganhamos e desde então passamos a morar no São Lázaro. Me lembro que meu pai estava construindo uma casa de madeira na rua Nova. Nós tínhamos uma também de madeira na rua 09 de Maio. Um dia vieram nos avisar que a casa da 09 de Maio estava pegando fogo. Quando chegamos lá alguns moradores, o Braga e a Nasa, já estavam apagando o fogo. Nos mudamos definitivamente para a Rua Nova. Em Boca do Acre eu estudava no Patronato Nossa Senhora de Nazaré. Quando viemos para Manaus eu fui estudar no Patronato Santa Terezinha. Nele estudei até começar os namoricos (risos) e me casar, ainda jovem. 
Na minha infância e adolescência Manaus era uma cidade linda. Não tinha tanto crime, era calma, boa para se morar. Lembro dos ônibus de madeira, das praças, a praça em frente ao Colégio Dom Pedro II, a da Polícia. Aos domingos todos levavam os filhos para brincar. Tinha alguns animais, na Praça da Matriz. Tinha tartaruga e peixe-boi. No Centro tinha arraial, mas acabou. A Cidade só ficava acesa até as 22:00 hrs, depois a energia era desligada e só voltava no outro dia. Os crimes eram muito raros. Quando acontecia, investigavam, assassinatos e outros tipos. Lembro do crime da Pensão Maranhense, na Avenida Eduardo Ribeiro, ocorrido em 1968. Era uma pensão, tinha restaurante. Era um recinto como outro qualquer. Um garoto, Waldegrace, que era engraxate, ficava trabalhando em frente a pensão. O dono dela, José Figueiredo, ficava observando ele. Um dia ele chamou o garoto e perguntou: Tu queres umas roupas usadas? O garoto disse que sim e ele falou: Então vamos lá em casa pegar. Fez isso só para assassinar o rapaz. No dia do julgamento, o pai de Waldegrace tentou matar o assassino. Só não matou porque o calibre era 22 e não fez muito efeito. O pai do menino foi para o presídio. 
Para se divertir nós tínhamos festas. Eu era muito nova e só ia para a Tarde Dançante. Eram a Manhã de Sol, a Tarde Dançante e a Noite Noturna. Era aqui no São Lázaro, organizadas pelos moradores. De noite também tinha cinema, de dia, muitas festas e, de tarde, muitas danças. Lá no Morro da Liberdade (apontando para cima) tinha o Libermorro. Nunca cheguei a ir. No Centro, o Ideal Clube era para os ricos. No São Jorge tinha o Arauto, casa de dança. E tinha uma no São Raimundo. As mulheres solteiras só saíam de casa a noite. De dia ficavam na “toca”, na casa delas. Só de noite podiam sair. 
Pela cidade nos locomovíamos de ônibus. Eles eram de madeira, pequenos. Não tinha cadeira para o cobrador, que ia em pé, segurando o dinheiro e procurando os passageiros que ainda não tinha pagado. Não lembro o preço da passagem, não lembro não. Tinha carroça, mas era para carregar rancho, madeira e palha para cobrir as casas. Tinha carro, tipo táxi. Não lembro do ano da instalação da Zona Franca, só sei que foi nos anos 70. A cidade ficou um alvoroço. Eu também gostei, pois podia comprar as coisas com facilidade. Tudo tinha aqui. Antes tinha que mandar buscar de longe. Depois que ela foi instalada, o ritmo de vida mudou, acelerou. Ninguém tinha mais tempo para nada. 
Existiram bons governos, que trabalhavam muito. Mas era Ditadura Militar. Foi pesada aqui. Daquela época eram bons os preços, aqui, no Morro da Liberdade e em qualquer lugar. No Centro a gente via aqueles senhores conversando na Praça, falando sobre o governo. A Polícia ficava vigiando e pegava eles, que eram presos ou sumiam. Disso eu não gostava. Ninguém podia ficar conversando muito tempo junto, vadiando, que a polícia vinha para cima. A política atual não é boa, não, tem muita corrupção. Não é bom para ninguém entrar na política hoje. 
Eu me casei com 14 anos, mas ele foi embora para Belém. Mandou me buscar mas meus pais não deixaram. Fui tendo meus filhos. Com ele tive apenas um. No meu segundo casamento eu já tinha 20 anos e fui tendo mais filhos. Tive quatro. Esse foi um bom casamento, que durou até ele falecer no ano passado, com 74 anos. O nome dele era João Augusto de Carvalho. Não estudou, mas eu também tinha pouco estudo, terminei eles com 62 anos. Era um bom marido, carinhoso. Com o primeiro marido eu tive o Leomar Rodrigues da Silva. Com o segundo, Giovana Rodrigues de Carvalho, Gerivan Rodrigues de Carvalho, Trissimara Rodrigues de Carvalho e Maralice Rodrigues de Carvalho, gêmeas. 
Eu já tinha 30 anos quando comecei a trabalhar e não parei mais, até me aposentar. Trabalhei na Caloi, onde hoje é outra loja, mas não gostei. Era um trabalho chato em uma fábrica de meias e tapetes. Depois fui trabalhar em uma fábrica de relógios, a Nelima. Trabalhei, trabalhei, mas não gostei. Resolvi estudar. Estudava, estudava mais, fazia cursos para cá e para lá. Fiz primeiros socorros e enfermagem. Fiz o concurso e entrei na SEMSA3. Fiz outro concurso e entrei na SUSAM4. Nela eu entrei como auxiliar mas também era técnica. Depois de uns anos, me convidaram para trabalhar na FUNAI5. Queria me aposentar pela SUSAM. Consegui. Na FUNAI era CLT, órgão federal que pagava bem. Fiquei trabalhando lá por 32 anos. Tinha vontade de fazer faculdade de Medicina, mas não fiz porque não tinha terminado os estudos. Depois estudei, mas aí já trabalhava em três empregos (mostra com os dedos) e estava cansada. Antes de trabalhar eu era doméstica. Ajudava a minha mãe a limpar a casa. Ajudar com dinheiro eu ainda não podia, pois meu marido ganhava muito pouco e também não deixava eu sair de casa para trabalhar. 
Ah, a melhor época da minha vida foi nos anos 60. Eu namorava muito (risos), muito mesmo, ia para muitas festas. Inventei de casar aí acabou (risos). Apesar da política suja, ainda espero uns bons anos para mim, para meus filhos, netos e tudo mais. Espero que minha cidade melhore bastante. Não tenho vontade de sair daqui, amo essa cidade. Assim como eu chorei quando sai da minha cidadezinha para vir para cá, se um dia eu precisar sair daqui, vou chorar muito mais...

NOTAS:
1 Espécie de roedor predominante em regiões de clima tropical
2 Bairro da Zona Sul de Manaus, vizinho do Morro da Liberdade, São Lázaro e Crespo.
3 Secretaria Municipal de Saúde.
4 Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas.

5 Fundação Nacional do Índio.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Manaus de Antigamente
Hernondino Chagas, IBGE.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Catolicismo Popular no Brasil

Imagens de Santo Antônio e São João Batista, santos populares no Brasil.

Esse pequeno texto faz parte do artigo Fragmentos de objetos, costumes e crendices antigas em Manaus, ainda não publicado.

O português e o espanhol trouxeram para a América o catolicismo. Nessa parte do Atlântico essa religião se desenvolveu de forma curiosa: mesclaram-se às raízes da tradição cristã ibérico romana, ainda com fortes traços medievais de influência pagã e maometana, as crenças dos nativos e, mais tarde, dos escravos africanos. Por mais que os conquistadores tentassem suprimir os credos dos outros dois grupos, o sincretismo, lentamente forjado em uma relação nem sempre amistosa de séculos, já havia ocorrido. Surgiu algo novo, outro catolicismo, o popular. Os moradores de povoados, vilas e poucas cidades existentes na América Portuguesa, distantes do centro de poder de Roma, se apegam mais à devoção do que ao sacramento.

O atual Rio de Janeiro um dia foi São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira cidade da colônia foi consagrada ao padroeiro de Lisboa, São Vicente. A fortaleza que deu origem à Manaus foi construída entre 1669-1670, sob a “invocação de Jesus, Maria e José” (MONTEIRO, 1995, p. 25), a Sagrada Família, e ficou conhecida como Fortaleza de São José da Barra. Em 1695, os padres carmelitas constroem uma pequena igreja ao lado do forte, consagrando o templo e a localidade à Nossa Senhora da Conceição. São Sebastião, São Vicente, Sagrada Família, São José da Barra e N. S. da Conceição da Barra, referências e oragos do catolicismo lusitano implantado no litoral e na região amazônica. De acordo com o Banco de Nomes Geográficos do Brasil, do IBGE, uma em cada 9 cidades brasileiras têm nome de santo, sendo 652 dos 5.565 municípios. Os mais citados, por ordem, são: São José (60), São João (54), Santo Antônio (38) e São Francisco (27)4.

O leigo (a) é a autoridade do culto popular. Existiam, claro, padres, freis e monges, mas o catolicismo foi transmitido por pessoas não ligadas ao poder eclesiástico, mas conhecedoras, ao seu modo rústico, das práticas religiosas. Herdeiras dos primeiros tempos da religião na América Portuguesa, são as rezadeiras e benzedeiras que ainda existem nas regiões Norte e Nordeste, que transitam entre a linha da religião, invocando os nomes de Jesus e santos, e do conhecimento nativo, buscando na mistura de ervas e plantas panaceias para todas as dificuldades. Iemanjá, divindade do Candomblé e da Umbanda, tem seu par na figura de Nossa Senhora dos Navegantes; e a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia, é realizada por mães de santo e filhas de santo (RIBEIRO, 2012, p. 18). Essa é uma característica da ausência do poder institucionalizado, que permite o surgimento de uma religião maleável e mais acessível às massas. Semelhante aos cultos fenícios e greco-romanos é a prática do ex-voto suspecto, o voto realizado, que consiste em deixar objetos para os santos como agradecimentos por graças alcançadas.

O santo tem papel de destaque na vida religiosa. Tudo gira em torno de sua figura. Oratórios, capelas e santuários são construídos com a ajuda da comunidade para honrá-lo. Esses templos movimentam as massas devotas e concentram em si a vida econômica e social, com a realização de arraiais, feiras e quermesses em seus terrenos ou arredores. As principais cidades do Nordeste se transformam durante os festejos de junho para São João, São Pedro e Santo Antônio. Deus é o ser supremo, representado como Senhor Bom Jesus, Divino Pai Eterno e Divino Espírito Santo. Não existe um culto específico para ele, pois os santos cumprem o papel da intercessão divina. Jesus, filho do criador

[…] é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ele ganha a misericórdia divina para com os homens. Sua representação popular é, pois, a representação do sofredor: o Crucificado, o Senhor morto, o Jesus da Paixão. Só a partir da ‘romanização’ se introduz a representação de Jesus glorioso, Cristo-Rei, do Jesus suave e manso, como o Menino Jesus e Sagrado Coração de Jesus. Basta lembrar que a grande festa do catolicismo popular não é a Páscoa e nem mesmo o Natal, mas a Sexta-Feira Santa, a Sexta-feira da Paixão. Assim como Jesus sofreu, aceitando como resignação as provações que Deus lhe mandou, também os santos sofreram cada qual as suas provações, tendo assim provado diante de Deus sua conformidade com o que lhes mandava. Também os homens têm que se conformar com a sorte que Deus lhe deu, vivendo em fidelidade aos mandamentos de Deus sem jamais amaldiçoar sua vida5.

A relação com as imagens sacras é íntima e mistura superstições variadas. Santo Antônio, o casamenteiro, quando intercede e não encontra um parceiro, é congelado e posto de cabeça para baixo em um copo d' água. São Longuinho ganha “três pulinhos” se ajudar a encontrar um objeto perdido. Quando ajudam são recompensados e, quando não, ficam de castigo. Em cantiga vinda da antiga freguesia de Monsanto, em Portugal, São José ajuda a embalar uma criança para o sono6: 

José, embala o Menino,
Com a mão, nanja co pé,
O menino que ali vês
É Jesus de Nazaré.
Cantai, anjos, ao Menino,
Que a Senhora logo vem,
Foi lavar os cueirinhos
À ribeira de Belém

São amigos próximos mas também podem ser tratados como crianças birrentas. Os santos curam e ajudam nos problemas do cotidiano, bem como protegem a casa, a rua e o comércio. O catolicismo popular é um dos exemplos mais significativos de como se desenvolveu a sociedade na América Portuguesa e, mais tarde, no Brasil. Uma religião milenar, já transformada em sua região de origem, se aclimatou nos trópicos, onde também recebeu outras influências e se transformou em algo novo, expressão de uma sociedade desigual e culturalmente multifacetada.

NOTAS:

4 Uma em cada nove cidades do país tem nome de santo. Disponível em g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/uma-em-cada-nove-cidades-do-pais-tem-nome-de-santo.html. Acesso em 17/01/2017.
5 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 112.
6 José embala o menino In: Pires, A. Tomás. Cantos Populares Portuguezes (em Português). 1 ed. Elvas: Tipografia Progresso, 1902. vol. I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. São Paulo, Editora Metro Cúbico, 4° ed, 1995.

RIBEIRO, Josenilda Oliveira. Sincretismo religioso no Brasil: Uma análise histórica das transformações no catolicismo, evangelismo, candomblé e espiritismo. UFPE, 2012.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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